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A tormenta

O silêncio dos passos na casa. O silêncio das vozes, das falas, dos risos. O silêncio das ondas, dos mares, dos pássaros. O silêncio das corujas na areia fria das dunas. O silencio dos ventos. Por que tudo é silêncio, quando o meu coração grita profundo, como a tormenta? Talvez porque as flores que vi, já não migram pelos mesmos caminhos, seus pólens não mais transitam entre os canteiros, e suas pelugens brancas não adornam meus ombros. Quisera ouvir mais vozes, sentir mais aromas, perceber novos avanços, alcançar outras conquistas. Jamais ouvir o ribombar dos mísseis, mesmo que sejam apenas ecos que repercutem como lamentos em meus ouvidos. Quisera ter a boca seca por gritar, usar a revolta dos oprimidos para bradar as falas mudas dos que morrem nos escombros, como animais submersos na poeira das tragédias. Quisera ser ouvido. Mas o silêncio me impede de falar. O silêncio dos que suportam as dores alheias e subornam a realidade. A dor que carregam é sempre mais pesada do que a

Esperar

Esperar. Estar à espera de algo, ter esperança. Há tantos significados para o verbo, além destes citados. Há, no entanto, a possibilidade da espera ser somente uma espera, nada mais. Um atentado à lógica, ao senso estabilizado, ao padronizado, ao comum. Que fazer, se não esperar pela aventura de ser feliz? Que fazer, se não esperar pela ausência do medo, da incerteza do acolhimento, da dúvida do sentir? Que fazer, se não aguardar o momento em que o sentimento revele alguma certeza, embora restrita nas verdades relativas? Que fazer, se não olhar para o nada e perceber a distância tênue que nos separa do sonho e da realidade? Que fazer, se não parar, como uma estátua, quando a vida se esvaí num único momento? Que fazer na hipótese da dor, da solidão, do olhar canhestro da desilusão? Não sei. Talvez ninguém encontre qualquer solução, apenas se liberte das expectativas e viva tudo na média. Ilustração: https://pixabay.com/pt/illustrations/possível-impossível-oportunidade-2499888/

Um mergulho

Um mergulho significa muito, mergulho nas ideias, na observação das pessoas, nas trajetórias cotidianas. Um mergulho no mar, bem assim, no finalzinho do verão. Absorver cada gota em nosso corpo sedento. Sentir o revirar das ondas, o vai e vem das correntezas, o repuxo e, de vez em quando, a calmaria, uma pausa para respirar, olhar as dunas e voltar ao processo do enxague, de percepções quase etéreas dos respingos no rosto ou densas, espalhando-se pelo corpo e derrubando-nos as pernas. Os mergulhos se dão sem que nos demos conta, mergulhos em pensamentos, que descontrolados, vão e vem das mais distintas intuições ou sentimentos. Como as ondas, eles crescem desordenados, embora tenham um objetivo intenso e final, que é o de nos alertar de alguma coisa que nos incomoda, um perigo iminente, real ou imaginário, um perigo talvez ao ato de viver plenamente. Mas é preciso apaziguá-los, como a pausa das ondas, deixar que o repuxo se desvaneça e espumas se produzam, desenhando traços e abrind

Quase um arco-íris

Observar as árvores ao longe, o cheiro da grama tão próxima, os raios da roda girando, girando e uma sensação plena de felicidade. Andar, andar, andar. Voltar para a praia, descer na areia, deixar a bicicleta no chão e olhar o céu, apenas o céu. As luzes, aos poucos se dissipando e longe, bem longe, luzes refletidas da lua ou próprias das estrelas, não sei. Um vento, uma brisa, mais aromas. Suaves aromas. Aquele perfume patichouli, pura canabis, que passa nas pernas lentas do menino e se dispersa na areia, em direção ao trapiche. Um perfume suave e profundo. A sensação de que o mundo para, por um segundo, e o céu nem mesmo está tão distante, ao contrário, está aqui, se fundindo com o mar, tão próximo que posso segui-lo. Mas fico aqui, na areia, usufruindo os últimos raios do sol, o crepúsculo que me confunde e anima. A areia é fria e suave, a bicicleta jaz quieta, voltada pra mim, como se me aguardasse, cúmplice. Talvez surja mais alguém neste fim de verão e crianças corram atrás

Duas sensações jamais serão iguais

Às vezes, pensamos que podemos repetir o passado e viver aqueles momentos que julgamos felizes e únicos. Entretanto, nada pode ser revivido, nada volta. Não voltam os momentos felizes, nem quaisquer lembranças se tornam acontecimentos novamente. O pensador Heráclito dizia que ninguém pode entrar no mesmo rio, pois quando nele se entra, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou. Seguindo o raciocínio de Heráclito, podemos afirmar que ao mergulharmos na praia, jamais teremos as mesmas partículas de água, os mesmos movimentos, as mesmas marolas. Nem mesmo o ar, os ventos e o calor do sol serão os mesmos. É uma outra praia, um outro mar, um outro rio, um segundo depois de termos entrado. Quando se caminha na areia e retornamos no mesmo espaço, as pegadas nunca mais serão as mesmas. Nem as ondulações da areia, nem os grãos que mascaram os pés, nem o sol que as aquece. Nem os animais visíveis e invisíveis, nem a poeira que se estabelece a nossa passagem, nem a d

A barbárie

Dói o coração quando se situa longe de seu ambiente ideal, onde a dor do outro não vale nada. É como a lanterna que cai no chão, estilhaça a luz, o celular não filtra mais e a escuridão se escala. Não importa o artefato, basta apenas o poder de utilizá-lo. O homem parece deixar, aos poucos, o poder da empatia para experimentar apenas a indiferença e o interesse individual, descendo rapidamente a escala da involução. Em meio a tudo isso, a vida oscila, as costelas doem e seus ossos tangem, num pedido de socorro. Mas quem os ouve? Quem tem a capacidade de absorver sons tão ínfimos, quase inaudíveis? Entretanto, o mundo tange de dor. Doem as entranhas da terra, , o minério regurgita, o fogo se alastra, a selva padece, a natureza clama e o homem morre. Poucos veem, poucos sabem, poucos assumem. Crianças, adultos, idosos , que povos são esses que se evadem de seus territórios? Que povos são esses que estranhos assumem seus lugares, seus espaços, produzem suas dores, doenças, fome e mo

Um certo despertar

Seguia pela Av. Portugal numa dessas tardes primaveris, um tanto outonais, atualmente. Um pouco de frio, um sol que aquece à tarde e parece indicar uma proximidade real com o verão. Que nada, daqui a pouco, retorna o ciclo de calor e frio. A natureza tem suas regras e talvez uma delas seja apenas nos preparar aos poucos, para a mudança que transcorre lentamente. Mas olhando ao longe, embora de carro, pude ver um céu muito azul, de vez enquanto, entrecortado pelas árvores que se debruçavam distraídas em suas copas pela avenida. Meus olhos acostumados com o nosso céu, no entanto, parecia encontrar nele e naquelas ocorrências de cores, nos caminhos da Cidade Nova, um certo despertar, que há tempos não experimentava. Como se gerasse uma nova era e um vento suave, quase brisa, soprasse devagar novos ares, novas descobertas, novas esperanças. Então, meu coração deu uma sacudida, de leve, delicado com meu corpo há tanto calejado, nestes últimos tempos, com meus olhos sem muita iluminação

Quando não cabemos no mundo

“O mundo inteiro terá que se transformar para eu caber nele.” Esta frase de Clarice Lispector nos remete a vários significados dentro do panorama social e político que vivemos no mundo e no Brasil. Parece-me que o mundo interior das pessoas, aquilo que pensam e professam durante toda a sua vida, independente do que realmente praticam, desemboca nas suas articulações políticas e sociais. Talvez mesmo, uma coisa não se possa separar da outra. E falo tanto no aspecto conservador, de costumes e práticas sociais, quanto no aspecto de vanguarda, de mudança de uma sociedade que avança gradualmente, quer queiramos ou não. Que avance para a melhoria do ser humano, no seu significado e significante em relação à vida atual, ou retroceda conforme o pensamento conservador extremo e neste caso, há uma luta de comportamento de modo estrutural e articulado. Explico melhor: o homem nasceu para crescer, evoluir em ambição à liberdade de se expressar, de se distinguir em diversos aspectos, de ser ap

A fronteira dos pensamentos

O que me pedes do alto de teus argumentos? O que exiges da fronteira de teus pensamentos dispersos e esparsos? O que defendes de um sistema de morte, de guerra, de armas e dor? O que permites em tuas condescendências mais simples? A quem desejas a vida e a paz? Quem merece teu brilho, tua alegria e tua contemplação? Por certo, os de tua classe, os que pensam como tu, os que zelam por teu pensamento único de família, propriedade e este deus ao qual veneras, quando vela apenas por teu grupo. Sei que há muito, excluíste os que pensam de modo diverso, sei que defendes a estranheza para amalgamar a homogeneidade de tuas ideias. Sei que o mundo pra ti é de uma cor apenas, um fastio de diversidade, de alegria e poder, que me dá preguiça. Sei que enxergas os demais de acordo com a tua ótica semelhante, na qual apenas os que estão na tua bolha são os eleitos. Parece que teu deus os acomoda assim e os aparta dos maus. A bondade que revelas é útil apenas para locupletar os teus desejos de pode

É suave a noite

Quando observavas as luzes esparsas da noite, por certo, vias estrelas tão suaves e distantes, que quase sumiam na visão etérea de nossos sentimentos. Era só nossa, como a daquela versão antiga de “Tender is the night”. “É suave a noite, a noite é de nós dois.” Sabias que o amanhecer era a fronteira entre nossos encontros, mas nossos beijos permaneceriam para sempre, em nossos lábios sedentos, mentes melancólicas e pensamentos afetuosos. Lábios que se tocavam suavemente na brisa de verão, embora tudo passasse tão rápido, desafiando o tempo. Era nossa última noite. Agora, quem sabe, nem a lembras mais. Pode ter ficado apenas em minha memória, em minha sensação, meus sentimentos. Talvez tenhas vivido outras noites, outros momentos, outros verões. “Ternuras de luar, a brisa a murmurar sua canção. Tudo tem suave encanto, quando a noite vem”. Nem percebes perdida no tempo, que as brumas da noite não são as mesmas que vivíamos, cujos encantos jamais seriam compartilhados por outros. “A n

O SEGREDO

Quando avistou a mãe no velho espelho do quarto, pensou que chegara a hora. Olhar enviesado, taciturno. Precisava de coragem, isso sim. Coragem que nunca tivera na vida. Era um fraco, diziam seus irmãos, truculentos e pouco amistosos. A própria mãe se preocupava com aquela passividade que sempre o caracterizara. Mas, enfim, era chegada a hora. Como contar porém, que à noite, não ia para a casa de amigos, mas apenas circular por vielas escuras. Um impulso indefinido. Talvez sentir-se vivo. Impulso, pulsão, compulsivo. Tudo que havia ouvido de centenas de psiquiatras, psicólogos, psicanalistas e até autores de autoajuda. Sabia, entretanto que precisava seguir o ritual. Um sentimento de busca, uma verdade inconteste que latejava no peito e respondia no sexo, o degrau inferior que percorria pensamentos, mas que o impelia a se sentir alguém. Talvez fosse um louco, destes que andam às escuras, escondidos nas brumas das árvores dos parques, prontos a atacar ou serem atacad

Traço caminhos

Quando vires minha mão estremecer, não faças diagnóstico sobre meu estado físico ou emocional. Quando perceberes meu olhar flutuar, não penses que meus sonhos já se foram. Quando ouvires meus argumentos, não te surpreendas com meu desabafo dilacerado. Quando notares que mal me movimento nas noites, não julgues a falta de jeito. Não conheces minhas dores, nem meus pensamentos. Não sabes de onde venho e de meu desamparo. Não peço teu acolhimento, talvez apenas teu olhar. Pode ser assim, oblíquo e disfarçado, pode ser apenas a visão de um segundo. Pode ser um gesto perturbado de um espaço invasivo, mas que não seja hostil. Não precisas falar, nem sorrir. Talvez, apenas que reconheças a minha humanidade, como a tua. Quando estiver em frente a tua casa, na soleira de tua porta, no toque da campainha, apenas pergunta o que quero. Saberás da minha fome como necessidade básica e também emocional. Saberás que vou além do ser, quase objeto, que perpassa a tua fronteira, sou também alma esco

Teu olhar

Leva o teu olhar ao passado, como se fosse permitido reverter o tempo. Como se o espaço em que vives, seja o mesmo em que tuas experiências deram sentido ou não a tua vida. Volta, mesmo que a saudade doa e o mar que atravessas não te permita o retorno. Lembra dos que contigo partilharam os mesmos caminhos e deles te distanciaste. Quanto desalento, quanta dor e desamparo. Quando houve acolhimento? Nos primórdios do país, quando se matava indígenas e se introduzia uma cultura que escravizava, matava e alterava os costumes? Quando se impunha uma teoria jesuítica transformando o homem da terra num ser metamorfoseado por conceitos adversos e estranhos a sua concepção de vida e humanidade? Quando se escravizou homens e se criou castas e distinções de etnia, de cor, de gênero? Talvez os processos de barbárie ainda prossigam nos mesmos parâmetros, apenas tingidos por tecnologias cujos avanços não se refletem na condição humana. Mas quem sabe, voltas o olhar ao passado, sem desviar do

Que rompa a aurora

Nascia na floresta um momento. É como brotar do nada, sem que se dê conta. Um gota que cai lambendo o galho verde até escorregar pelo tronco. E ninguém vê, mas a natureza se renova, se reveste, se recria. Um gorjeio aqui, um zunido ali. Um voo no alto, naquela nesga de céu. Um voo raso entre galhos e folhas. Um visgo que brilha nas ervas que crescem. Um cheiro. Um cheiro doce, adocicado, um cheiro de ar. Ar que revigora e se respira. Um gota que cai. Mais uma. Um sopro de vento. Um incêndio. Uma luz, o sol que incendeia, devagarinho, queimando, alvoroçando. Folhas que caem. Tudo se regenera. Tudo vive. Vida. Um momento nunca igual ao outro. Mais um momento que não se pode alcançar. Mas que há. Até quando experimentaremos momentos, até que o gelo chegue, que o mar, os rios, as águas se unam? O sol se enfraqueça? Ou tudo queime? Até quando viveremos nesta gangorra de respirar e esperar, que o mundo acorde e sobreviva? Que as mentes se iluminem e que se possa romper a aurora. Ilust

Livros

Muito se fala sobre o livro e com muita propriedade. Há expressões das mais variadas que ilustram com perfeição a finalidade, a valorização e a importância do livro. Kafka fala sobre o livro com certa dureza, mas seu intuito é o de inspirar uma transformação no homem. Vejamos: "Deveríamos apenas ler livros que nos mordem e nos espicaçam. Se a obra que lemos não nos desperta como um golpe de punho no crânio, qual é a vantagem de ler?” . Os livros devem provocar sensações, deixar marcas, fazer a alma voar e a mente repensar, repensar e deglutir com paciência, quase intolerância, o que recebe. Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/photos/folhas-café-copo-ainda-vida-livro-1076307/

De reputação ilibada

Quando a via pelas vitrines, sentia um certo frisson ao vê-la assim, tão bem vestida, geralmente de um vermelho vivo ou mesmo um cinza apagado, mas que por detrás daquelas cores, certamente havia grande conteúdo. Por vezes, tinha a esperança de que alguém a trouxesse até mim, mas era apenas sonho. No tempo, em que elas iam de casa em casa, e muito bem consideradas por sua reputação ilibada, geralmente eram aceitas e passavam a fazer parte da família. Naqueles tempos, em que não se tinha internet, a sua chegada era como a visita esperada, a companheira para todas as horas, o cultivo da sabedoria, do conhecimento e da curiosidade. Era como se viesse de um grande centro, de uma metrópole e após horas de viagem, trouxesse toda a bagagem de erudição, ciência e saber e nos revelasse enfim, o ápice de toda a informação armazenada pela humanidade. Às vezes, eu a via em bibliotecas, consultórios médicos, casa de amigos ou mesmo em livrarias. Parecia chamar a atenção entre os demais, insinuan

O Natal de Michael José

Michael José surgia na rua morna naquela tarde de dezembro. Nem uma lufada de ar, nem uma brisa desavisada para uma véspera de Natal. Era de um ar apertado, quase desconforto. Digo que ele surgia, porque pessoas como ele não transitam pelas ruas, não passeiam, não caminham por um objetivo específico. Michael José surgia do nada, porque para nada ele era designado. Na verdade, achava-se um ninguém, no meio daquela apatia e desapego. Nada o acolhia, nada o libertava de si mesmo, nada mexia com o seu interesse. Era um desamparo que o consumia desde muito cedo, provavelmente desde a infância, se é que a tivera. Também não havia ninguém nas ruas do centro. A cidade estava morta, esperando as celebrações da noite. Ele também estava morto, há muito tempo. Talvez para ele, a data estivesse errada e em vez de Natal, fosse sexta-feira santa, sem ressureição. A vida, para ele, não passava de um eterno domingo de ramos, no qual festejavam o Mestre, para o apedrejarem depois. Ele, ao contrári

O lado bizarro da alegria

O poeta tinge de cores fortes o que produz a mente, o escritor descreve o que seu sentimento aviva, enternece, destrói. Usa da palavra como adaga, faca afiada que lhe corta de modo cirúrgico a dor mais profunda, que o dilacera e o fragmenta. Não é possível falar de modo prosaico das cores primaveris, dos sorrisos das crianças que se enfeitam entre jardins e esquinas, dos jovens que se encontram, quando a máscara serve de anteparo à dor, à morte, ao medo. Não é possível a mesmice da alegria das borboletas, quando uma sombra obscura tolda o horizonte, por mais otimistas sejamos, por mais que tentemos ser felizes e descolados da realidade. Mas eis que está aí, ante nossos olhos e corações e ao termos empatia, sentimos tão forte a dor, que nos encolhe e desaparece qualquer beleza primaveril. Dizem que o poeta é melancólico? Que o escritor é pessimista? Mas o que é a natureza, se não a humanidade que a compõe? O vírus faz parte da natureza. Os vermes e bactérias também. O mundo subterrâne

Quase parente

Ela nem tinha chegado aqui e eu já me emocionara com a sua presença. Era forte, altiva, esclarecida e divertida. Nas poucas horas em que tínhamos contato, na verdade, eu que ficava hipnotizado por ela, meu dia ficava mais festivo. Ou melhor, a noite, o período em que realmente nos encontrávamos na casa de uns amigos de meus pais. Depois, passávamos praticamente uma semana sem nos vermos. Até que chegou o grande dia. Ela apareceu majestosa, imponente, tomando conta da casa como se fosse uma visita. Uma visita esperada, aguardada e que já tomava ares de hóspede eterna. Ficava no melhor lugar da sala, defronte ao sofá, onde permanecia mais exposta e parecia estar sempre pronta ao diálogo. Diga-se, a bem da verdade, que às vezes, parecia indisposta, um tanto alheia e embora fizéssemos o possível e o impossível para que correspondesse, não dava as caras. Mas nunca a censurávamos, ao contrário, ficávamos felizes quando ela voltava. Muitas vezes, não foi exclusividade minha, amigos apareciam

Como um androide

Ando pela cidade como um estrangeiro num país estranho e hostil. A passos largos, enfrento os caminhos que sempre me foram tão familiares. Sentia-me em casa. Andava pelas ruas como uma extensão de meu quintal. As pessoas eram apenas pessoas conhecidas ou não, um público que se avantajava na direção do centro ou dos bairros. Quase não percebia seus rostos, porque me era natural observar assim, preocupado com meus afazeres. Algumas cumprimentava, quando considerava conhecidas, outras me aproximava porque eram amigos que fortuitamente passavam por mim. Ou era aquele vizinho, quando morava em determinada rua ou mesmo o dono do boteco da esquina, ao qual eu conhecia há muito tempo. Agora, já não vejo estas pessoas, paira uma ameaça no ar, um medo que se agiganta e que me deixa inerte. Um pânico do vírus que assola nosso país e o planeta inteiro. Parece que aqui, ele fez moradia não tão temporária e insiste em se replicar como um androide de um filme sci-fi . Também assolam os pensamen