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sexta-feira, maio 14, 2021

Não posso calar

Como falar dos dias tranquilos e ensolarados do outono, das tarde agradáveis e noites frias. Como falar das folhas amarelando pátios, calçadas e ruas? Como falar das aves que se apropriam dos espaços agora um tanto vazios e se mostram encantadas e encantando na sua beleza natural e avidez de liberdade e alimento? Como falar do vento que cria e recria dunas, que as destrói e reconstrói, que as troca de lugar e potencializa caminhos, às vezes mais arenosos, às vezes mais úmidos pela água do mar. Como falar das pequenas flores que se erguem submissas ao vento, calmas entre as depressões ali mesmo nos cômoros quase ondulantes? Como falar das ondas do mar, que se ajustam ao entardecer conservando vagas platinadas, quase translúcidas num avantajado azul? Como falar das gaivotas que riscam o céu, tão próximo ao mar que quase o tocamos, esticando o braço, esperando o pousar entre o céu e a mão nas garras molhadas e o bico salgado da pesca habitual. Como falar da lua que surge lenta e cordial, aparecendo de improviso neste céu quase tocado, compartilhando os raios fugidios do sol. Como falar da natureza que nos agracia com os sabores, perfumes, visões, imagens, cores e beleza? Como não falar dos homens e mulheres, cujas lágrimas se esvaem em súplicas, medos, dores e desesperança? Como não falar dos corpos que se amontoam numa guerra cujos generais salvaguardados em seus vis propósitos genocidas, se fartam e se empanturram em desejos de morte? Como não falar do número devastador de vidas perdidas diariamente numa pandemia cujo elemento principal é o negacionismo, o confronto com a ciência e o interesse perdulário das religiões? Como calar neste outono sinistro, onde parte da natureza se decompõe como traste sem serventia? Como se a vida nada mais importasse? Como calar ante o genocídio de um governo criminoso? Como calar e consentir na insanidade, sem se sentir culpado pelo silêncio? Como calar ante a dor de milhares de pessoas que não tiveram a chance de sobreviver, nem ao menos de procurarem ajuda? Como calar ante a dor da miséria, das crianças que morrem de fome, de ilusão, de sonhos? Dos adultos desnorteados ante a impotência? Como calar? Não. Não posso calar. A ferida é cruel e fere como fogo.
A ferida se alastra pelo País. A ferida vai muito além de nossa realidade. A ferida é. Está. Permanece. E não há quem a cure. Por mais que a natureza se esforce todo o dia renascer em sua beleza, há uma parte da natureza que agoniza e morre. Morre com ela o silêncio. Morre com ela, a beleza. Morre com ela o renascer, o reviver, o recriar, porque a morte é absoluta. Então, como falar na natureza e calar nesta parte que se consome e se destrói diariamente. Não. Não posso calar.

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/photos/outdoor-grama-verão-campo-3202494/

sábado, junho 08, 2019

A bruma que apascenta

Que quisera eu agora? Que quisera saber do mar, das ondas que rebuliçam no cais, nos degraus que servem de apoio aos homens que chegam com mais facilidade em suas embarcações? Que me importam as oferendas com quindins, algumas velas e garrafas de aguardente? Talvez elas digam alguma coisa a quem procura afeto e fé. Não sei.

Mas, e as vísceras de peixe atiradas nas águas, como se fosse a regra, livrar-se do entulho que deveria ir para o lixo orgânico?

Que quisera saber dos pensamentos, dos desejos, das buscas e sonhos dos que jazem por ali, sentados atrás de colunas ou postes fumando um baseado e olhando perdidos para a lagoa. O que buscam em seus sonhos se é que os tem?

O que importam os gritos da mulher que vende balas ou doces ou pastéis, ou quaisquer outros alimentos, enquanto se sente de algum modo ultrajada pelas cobranças dos vendedores estabelecidos, bem a sua frente?

Que importa a maré de pessoas que descem da lancha e se dispersam rumo às casas, lojas, talvez bancos ou bares. Quem sabe, levam consigo a brisa da qual fizeram parte na lancha, ou a dispersam pela bruma que as apascenta.

Que importam os meninos que se agrupam junto ao cais, na brecha dos guardas municipais, para mergulharem, talvez na única praia em que são valorizados. Uma praia que não é praia, apenas aventura na lagoa e exibição de corpos e potências, força, vitalidade e luta pela sobrevivência do orgulho! Para quem tem tão pouco, talvez.

Por outro lado, olhar para o homem de saias, patético e triste, não pela maneira de se vestir, mas pela deterioração da lucidez que aos poucos desaparece. Pior ainda, observar os risos, as palavras de baixo calão, o olhar acusador de quem julga o que o seu interior experimenta.

Por outro lado, perceber o motorista irritado, na picape destinada ao campo e ao off road, com grandes motores a diesel e tração 4x4, entretanto preferida pelos citadinos em plenas ruas centrais, ocupando o espaço de dois carros de passeio. Daí a sua indignação e protesto junto a pedestres desavisados, bicicletas ao deus-dará e motos enviesando-se entre os contornos engarrafados das ruas estreitas.

Como me preocupar com estas desavenças e desconfortos sob todos os sentidos, se não há guarida entre as os sentimentos plenos do interesse comum, do direito do cidadão, da educação e a sensibilidade em se reportar ao que se aprendeu na infância e se carregou para toda a vida: respeito e gratidão.

Quisera não me importar com tudo isso, mas na verdade, há muito mais a refletir no que vejo e sinto, provavelmente uma onda que se alastra de longe e não é de agora, mas que se pronuncia com muita força, pensando que é dona do mundo. Talvez sim, aquele mundo em que todos aqueles que citei no início sejam alijados deste contexto atual.

segunda-feira, fevereiro 25, 2019

Sonhos de carnaval

Talvez pensasse no carnaval do passado, naquelas passarelas da Colombo e da Mal. Floriano, as duas que me recordo dos tempos idos. Lembrar da praça Saraiva, repleta de eucaliptos e foliões mascarados e vestidos de mulher atravessando aqueles caminhos, batucando ou fazendo estripulias entre os transeuntes, tocando apitos e brincando com um ou outro, armando um circo de alegria. Lembrar de meu pai levar-me pela mão em direção à Colombo, atravessando esta mesma praça e eu encantado com os bondes com seus vagões abertos, que passavam ali perto, pela Bento Gonçalves, e vinham repletos de foliões. Lembrar das inúmeras mesas dos bares pela calçada da Colombo, em determinado ponto, no qual serviam os sanduíches, refrigerantes e a cerveja Brahma, cujo single era conhecido por todos: ¨Quem gosta de cerveja, bate o pé e reclama, quero Bhrama, quero Bhrama.¨ Lembrar do bloco de sujos, como se chamava o grupo que acompanhava os cordões carnavalescos, logo atrás da corda que os separava. Eram as mulheres que vestiam roupas masculinas e a máscara de gatinho e os homens, geralmente, vestidos de mulher. Lembrar do Drácula, que via de regra, aparecia em todos os carnavais puxando o seu caixão pela avenida, além de outras figuras folclóricas que faziam a alegria da gurizada e dos mais velhos. Lembrar dos caminhões, os chamados carros alegóricos que traziam as rainhas do carnaval e as princesas, todas fantasiadas a rigor, acenando para os espectadores.

Lembrar o carnaval da Cidade Nova é passear por um passado de muita euforia e encantamento. Era como um aperitivo, bem familiar do grande carnaval da Mal. Floriano, que ocorria à noite. Lá, as escolas de samba, os blocos maiores e até os dos sujos se reuniam e faziam o carnaval agitado e alegre da cidade.

Mas lembrar é pensar que tudo aquilo faz parte da memória, uma memória afetiva, que registrou momentos de criança, sob um olhar sem grande discernimento, mas muita expectativa. Uma lembrança, cuja melancolia apenas reforça uma pequena face do calidoscópio que se tornou o carnaval durante todos estes anos. Uma face que não se distorceu no tempo, mas que contínua nítida e pronta a traduzir o sentimento de que o tempo passa, o mundo evolui em vários aspectos e que a beleza existe em muitos fragmentos de um mesmo contexto, que permanece em nossos sonhos. Sonhos de carnaval.

quarta-feira, setembro 06, 2017

As escolhas

De olhos abertos observa-se a vida. De olhos abertos percebe-se o mundo. De olhos abertos descobre-se os medos. Mas de olhos fechados, absorve-se a plenitude da vida. De olhos fechados, avalia-se as trajetórias que nos revelam o nosso mundo interior. De olhos fechados refletimos, nomeando os medos, concedendo-lhes voz e tamanho, despojando-os de força e poder.

Pensei nestas maneiras de apreender a vida, em virtude de uma conversa com uma senhora, que me fez refletir sobre os nossos devaneios em cumprir as tarefas e avançar o tempo. Eu, aproveitando a sombra no parque, afogueado por um calor abrasante, ela, tranquila, com um olhar límpido de quem manifesta a profundidade de seu mundo interior.

Por um momento, me encarou com uma generosidade que me desconcertou e falou sobre o tempo e como o dispõe através de alguns princípios, dos quais prioriza as escolhas. Disse-me que costuma meditar e o que vê durante o dia, absorve de uma forma distinta, em que as verdades são aprofundadas. O que parece assustador arrefece e se dissipa e a trajetória do mundo é bem mais intensa e menos problemática do que se pensa. Basta fazer-se escolhas.

De certo modo, aquelas certezas me incomodavam, talvez pelo desconhecimento da disciplina que revelava. Ela, no entanto, completou: cada um tem suas escolhas, mas devemos cultivar as que dão significado ao nosso tempo, aproveitando-o e produzindo mais prazer.

Então, repliquei que nem sempre podemos escolher o que nos interessa, ao que ela concluiu que nem tudo que amamos podemos priorizar, mas talvez dois ou três itens dos cinco que elegemos; deste modo, o tempo fica melhor dividido e muito mais afável.

Calei-me, em seguida fui embora, sem antes olhar para trás e me despedir. Percebi que ela estava encantada com um livro, provavelmente uma de suas escolhas.

Afastei-me e pensei que tinha razão, que deveríamos optar por alguns ítens de nossos sonhos, para redistribuir o tempo, de modo a experenciarmos a vida e não apenas passarmos como figurantes. Afinal, o cenário está pronto, não custa tentar.

segunda-feira, maio 22, 2017

Garrafas ao mar

Uma garrafa pode conter muitas coisas, além do líquido, do rótulo, da tampa, pode conter por exemplo, um segredo.

Quem não tem vontade de mandar para outro continente, quem sabe, uma garrafa contendo algo estranho, como um bilhete.

E se a garrafa atirada ao mar, trouxesse boas vindas de um tempo muito antigo, tantos anos atrás, que já nem reconhecêssemos o objetivo, o texto carcomido, com um letreiro cheios de esses e efes, quando se pediria apenas vogais. Palavras esquisitas, desejos tão inocentes que não mais teriam significado nos dias de hoje.

Porém é uma garrafa que vem com um bilhete dentro e nos traz alvissareiras mensagens. É o que pensamos. É o que desejamos.

Mas e se essas mensagens não passem de apenas um desejo individual?

Como por exemplo, que o mundo saiba que em 1920 alguém comprou o seu primeiro automóvel e percorreu 35 km, a maior distância já percorrida por um carro numa estrada de carruagens?

Talvez não significasse nada. Talvez apenas um regalo para quem mandou e uma notícia blasé para quem recebeu.

Nos dias de hoje, somos levados a experienciar apenas o que nos permite ter importância, e que participemos dessa magnitude.

Não temos o romantismo e a ilusão de outrora.

Talvez não mandássemos garrafas ao mar e se o fizéssemos seria talvez como um artefato bélico que explodiria e lançaria milhares de chamas para alegrar nossas mentes deterioradas.

É, não se tem mais a ilusão dos bilhetes, nem se espera qualquer segredo, pois eles não existem mais nas redes sociais.

E se existem, servem apenas para delatar quem participa dessas mesmas redes e achincalhar o seu perfil.

Garrafas ao mar, jamais. Sonhos jamais. Apenas o cobre desairoso de nossos petardos.

sábado, outubro 01, 2016

Os dez textos mais lidos no mês de setembro de 2016

O que vem na lancha?

Trabalho voluntário no hospital psiquiátrico: uma provocação para a vida

Piolhos de rico

Metáforas cruéis: desqualificação das mulheres e negros

Candidato inflamado

As divagações e sonhos de Marina

A fotografia de Santa - CAP. 2

Os pecados de Xavier

A fotografia de Santa - CAP. 1

Sabrina

quinta-feira, junho 16, 2016

A ARANHA

A crônica "A aranha" está na antologia "Outras águas" e foi vencedora na categoria, juntamente com a crônica "A palestra" publicada neste blog.


Fonte da ilustração: Westermann, Johannes do site https://pixabay.com/pt/users/Westi2605-2708584/

Quando acordei, pensei que o mundo houvesse acabado, tão grande a agonia que sentia. Coração aos saltos, lábios trêmulos, língua paralisada. Estaria eu no fim? De repente, um assobio que se finava ao longe indicava drasticamente que estava vivo. Não tão desperto, como imaginava.

Sentei-me devagar, com dificuldade, procurando os óculos sobre o baú, entre frascos de comprimidos, colírios e livros. Passei a mão, ainda perturbado, empurrando tudo que se opunha ao meu gesto. Até que o estalido no chão obrigou-me a dobrar a coluna para encontrar o objeto de minha dependência.

Deitei-me de bruços na cama, enfiei um pé entre os cobertores ainda quentes e espiei pelo lado oposto onde estava deitado.

Mergulhei a mão, enveredei por cantos obscuros do parquê e embaracei os dedos em teias de aranhas.

Tirei a mão irritado, sem ter atingido o objetivo, mas neste gesto, bati em alguma coisa metálica.

Eram eles que se instalaram a poucos centímetros de meu caminho de busca.

Organizei novamente a expedição e os puxei resoluto.

Quando os engatei no nariz, olhei o mundo num relance, tendo agora certeza absoluta de que ainda estava vivo.

Um pesadelo resgatava um mundo oculto, funesto, cheio de pequenas obsessões não ditas, doses de concupiscência não manifestada, traços de egoísmo não declarados e desejos jamais confessados.

Por isso, esta aflição, este jeito de enfrentar a realidade e a fantasia, colocando-as em mundos opostos, como fazemos no dia a dia, mas que por um pequeno espaço de tempo, ao acordarmos, pendemos mais para o lado do sonho, que talvez seja muito mais real do que imaginamos.

E ao nos darmos conta, caímos no mundo que pensamos como único, verdadeiro e concreto.

Em vista disso, essa dor nas costas, este resfolegar de mãos suadas, torcendo uma na outra, como querendo limpar a sujeira do subconsciente.

Agora, tento levantar-me, olhando de frente, ou de soslaio, se for sincero, o meu mundo insípido, neste quarto sujo de teias de aranha.

E vejo-as passear pelo piso, fazendo tiro-ao-alvo de suas redes, prendendo-as aos pés da cama, esperando insetos incautos que se atrevam a bisbilhotar suas vidas ou mesmo integrar o mesmo espaço que tomam como direito. O meu espaço.

Se pudesse, as eliminaria de minha vida, tal como as teias de aranha que ficam em minha mente nebulosa, assustada pelos direitos que me dou a ser tão lascivo, enquanto durmo, tão ousado em meus devaneios, tão despojado de qualquer sentimento de culpa.

Por que agora me sinto tão culpado, examinando seus passos, seus caminhos subterrâneos, suas gosmas viscosas que grudam a qualquer estrutura, menos a suas patas.

Sinto-me assim, grudado ao meu mundo real, tão longe daquele idealizado, no qual o destino me atinge com suas tramas, como aranhas gigantes, largando sobre mim as teias que me deixam alienado, preso ao chão rasteiro de minhas dúvidas e temores, enquanto suas patas saltam livres e prosseguem a sua jornada.

Se pudesse ao menos, me desgrudar de suas teias, e tramas tão fechadas que me prendem como mosca tonta na busca frenética do alimento.

Se pudesse alçar vôos mais altos, sem preocupar-me com a queda ou a apreensão dos cuidados, sem a censura dos descaminhos.

Ah, se pudesse provar deste alimento que a aranha me induz para caçar-me, me deixa livre para decidir, sem que possa saborear a fruta que escolhi e se o faço, me lança à rede implacável, me prende na gosma e me tolhe, de joelhos a bendizer a morte que vaticina.

Tenho medo da aranha, mas muito mais de minhas escolhas.

domingo, outubro 04, 2015

REFUGIADOS EM SEUS SONHOS

Nem que se diga, que lhes faltou o peito, nem que a fome durou;
nem que se saiba que a vida é árdua e a escola seja talvez o único acesso à dignidade.

Nem que os pais não lhes provejam o amor ou que o abandono se torne perene.

As crianças deveriam sempre vencer as dificuldades, sobreviver e se tornarem homens e mulheres mais fortes e guerreiros.

No entanto, às vezes, o homem no seu poder canhestro e torpe, investe na vida dos povos, interferindo em sua trajetória. E o poder se revela na intolerância religiosa, na ganância dos modelos econômicos, no imperialismo dos governos.

Gostaria de falar de nossas crianças em seu dia, de seus sorrisos, suas procuras pelo abraço e carinho, seus encontros e descobertas.

Mas como esquecer as que aparecem em nossos monitores diariamente, pedindo socorro ou registrando a sua falência. Como esquecer entre tantas, a menina praticante de Candomblé que foi agredida na escola, vítima de preconceito religioso, por outras de sua idade, que também são vítimas, pois repetem a norma do preconceito arraigado de uma sociedade em decomposição moral? Pensei nos pais dessa menina.

Como esquecer o menino sírio Ailan Kurdi, cujo corpo apareceu numa praia da Turquia, em setembro. Seu corpinho frágil registrando o sectarismo grotesco da humanidade, destoante dos melhores sentimentos fraternos. Como esquecer o irmão de 5 anos anos que se perdeu no mar e morrera como tantos outros.

Pensei nas crianças do Brasil. Pensei nas crianças do mundo.

Pensei no pai do menino, que na tentativa de fugir da Síria, imaginava um futuro para a família. Lembrei então da música “Cantiga de ninar” de Raul Seixas, cuja última estrofe enfatiza o que meu coração doído expressa:

"Fiz meu rumo por essa terra

Entre o fogo que o amor consome

Eu lutei mas perdi a guerra

Eu só posso te dar meu nome”.

O pai sírio que lutou para chegar à ilha de Kos na Turquia, perdeu a guerra. Nada mais lhe restou, nem a mulher, nem os filhos. Apenas lhes deu o nome. O nome de refugiado. Refugiados são todas as crianças, cujo direito de viver a infância lhes é tolhido, quando a intolerância, o racismo, o ódio, a esquizofrenia sexual de alguns, a violência e a incompetência das instituições impedem que sejam realmente crianças e se tornem apenas uma trajetetória interrompida. Uma ruptura da lógica infantil. São refugiados em seus próprios sonhos.

sábado, maio 30, 2015

PAREDES APARENTES

Morena, ainda percorro em infinitos passos, cada taco do corredor. Sei que imaginas, mas não sentes o que sinto, nem percebes a aflição. Toco nas paredes, como se me ouvissem, e às vezes, tenho a impressão de que não estão aqui, de verdade. Paredes aparentes que me oprimem, me sufocam como mãos que se torcem e me agarram a garganta. Morena, falta-me o ar. Queria ver-te, bem perto, nem que para apenas receber o beijo frio, molhar minha boca no teu veneno e corromper minhas vísceras. Quisera vender a mobília, cerrar as janelas, impedir o vento que rola as folhas em rodamoinhos de nossa paisagem. Quisera não sentir o bafejo na vidraça, molhando os olhos, nariz e boca no frio do vidro. Preferia fugir e pisar nos insetos que infestam nossas soleiras. Ouço tua voz, teu cheiro, tua presença. Ecoam tuas palavras, às vezes doces, outras, duras, frias, cruéis.

Moreno, arrisquei atravessar a lagoa, dei braçadas para vencer as marolas e não alcancei teu amor. Hoje, pra ti não sou nada, carta dobrada, que desfazes do baralho pra esconder o jogo. Fecha as janelas sim, deixa que a escuridão tome conta, sente meus dentes rangendo, minha boca estremecendo de raiva e torpor. Não sou nada, talvez a marca do adeus. Um adeus feito devagarinho, aos poucos, acalentado, pra não dar na conta. Meu destino é caminhar assim, desesperada, longe de casa, da tua vida, do lar. Quem sabe, o mapa que percorro não seja o mesmo das paredes falsas que construíste, mas que me dão guarida pra continuar.

Morena, saio na rua aos tropeços. Penso e repenso, nem sei se falo ou desisto, se grito ou alcanço com o som de minha voz fugaz dos que nem querem ouvir. Temo não te escutar jamais. Temo desviar nossos rumos, descarrilar nossos trens, afundarmos na lama fugidia que me cobre na chuva. Sei que fui omisso e não mais posso esperar que me ouças. Talvez nem pedir que me esperes, que examines com cuidado cirúrgico minhas passagens por teu corpo, teu ventre, teus seios, tua mente. Não, sei que me esqueces assim, de momento, para não mais sofreres. Agora, estou só, perdido neste vendaval que me tolhe os sentidos e os gestos. Encosto-me na parede, finjo que estou firme, ancorado, apoiado nas pernas finas que mal me cabem as calças. Sinto a dor da esperança e o olhar dos aflitos. Vejo-me na vidraça do bar, um rosto truncado, escondido em olhares sorrateiros, que não parecem os meus. Nariz adunco, avermelhado, os olhos fundos, congestão infinita. Entro no bar, me acerco de outros homens e mulheres que se esgueiram famintos na noite. Minhas mãos estremecem, assim como meu pés, imprecisos, solitários. Morena, dói-me o peso nos ombros, fardo que carrego sem querer. Dores que ferem e me afastam de mim. Morena, peço a bebida, que talvez aqueça a garganta e turve a alma.

Moreno, bebi da água pura que escorre sem dó, fria, entre minhas mãos ansiosas. Procuro o que não acho, vejo o que não encontro, desvio do que me atrai e me aproximo do que me atinge. Nem estou só, mas não me encontro entre os meus. Milhares de quilômetros nos separam, porque a distância interna é maior do que o mundo. Quisera sim estar ao teu lado, ouvir tuas queixas, assumir tuas dores, mas só soubeste golpear-me, assim de uma forma cruel e lenta para que a punição se tornasse comum e necessária. Quando te vi, nada mais restou a não ser a imagem da desilusão. Nem cansamos de nós, nem enfaramos de nossas vivências. Ao contrário, estávamos sedentos, um do outro. Mas a mulher de tua vida não pode ser apenas complemento do teu desejo. Vejo-te ainda ao lado dela e tão longe de mim. Minha mãe se acerca e pergunta qualquer coisa que não sei responder, ou nem sei decifrar. Como esfinge que me questiona, me perturba, me dilacera. Tenho olhos e ouvidos para aquela imagem que me fica guardada assim em multimídia, para não esquecer jamais. Respondo então o que devo e me vem à lembrança. Nada doce, nada suave, nada sensível. Estou só. Onde andarás, agora?

Morena, alguém se aproxima, sinto seus cotovelos próximos aos meus, no balcão de pedra. O garçom me olha de soslaio, triste, como se compartilhasse minha dor. No cotovelo, o retalho de couro, num casado antigo de lã, xadrez. Afasto-me um pouco, tento desviar os olhos para a porta de umbral redondo, cheia de vidraças coloridas; em cada uma vejo o teu sorriso, às vezes caramelo, às vezes, vermelho, às vezes, azul, às vezes sem cor. Teus dentes brancos sorrindo pra mim. Pareces um caleidoscópio. É bonito de se ver. O homem do casaco pergunta alguma coisa, vejo seu perfil e por um momento examino o rosto cravejado de espinhas, pequenas saliências que lhe agastam a fisionomia. Boca escondida num bigode tingido. Cabelos ao alto, circundado por extensas entradas. Olhos parados, finitos. Nada parece perturbá-lo, mas é só por um momento. Afasto o olhar e ele repete a pergunta. Me volto surpreso, porque nada me vem à mente, a não ser teus gestos brejeiros, tua voz sonora, límpida, teus olhos claros me dizendo coisas que não recusava ouvir. Carrega uma pasta estreita, uma espécie de guarda-tudo, talvez documentos, agendas, talvez fotos dos filhos. Não tivemos filhos, morena, nada nos sobrou a não ser o que nos vai na alma e o que lutas tanto para destruir. Ele insiste, puxa conversa. O barulho do bar fica quase insuportável, misturado ao som da tv que inicia um jogo de futebol. Um grupo se acomoda no meio do bar, espalhando-se entre as mesas, assim em pé, tentando torcer juntos, em uníssono, como pássaros em bando, conformados em viver um momento coletivo. Não é o meu caso, estou só, sem amigos, sem ti. Estás longe, morena. Tão longe que a distância até dói. Mas bastava um telefonema, uma mensagem pra começar o encontro. Foi o que ele falou, o homem do casaco com remendo de couro no cotovelo. Falou em encontro. – Não achas que tá na hora? Os homens deviam se encontrar mais, buscar em suas vidas, a paixão pelo encontro. Engoli a bebida destilada num gole. Olhei-o sem saber o que dizer. Ele pareceu entusiasmado com o meu espanto. Prosseguiu, enfático: – a paixão de se reunir. Não para assistir futebol, como fazem estes caras aí – quando terminava a frase, o nariz se erguia e uma troca rápida de olhares para a turma que já se acotovelava na galera - só tem por objetivo torcer por um time, mas não tem o sabor do encontro, da conversa fluída, da amizade intensa. Logo que acaba o jogo, cada um vai para suas casas, sem nunca mais se virem, a não ser no próximo jogo, ou na próxima beberagem. Acho que fiz um aceno afirmativo, mas quisera eu ter para onde ir, encontrar-te morena, me esperando, assim, de braços abertos. Teus cabelos caídos nos ombros, aquele cheirinho de sabonete de maçã, a boca pintada de vermelho, o olhar puro a me dizer todas aquelas coisas que eu sempre quisera ouvir. – Tu não achas que é um crime? Um crime com suas vidas, com suas ambições mais humanas, que deveria ser de integração, de procura e de encontro. O encontro máximo. Um com o outro. O garçom se aproximou, trouxe-me outra vodca, que ingeri sem gelo nem limão. Vi quando o homem abriu aquela maleta preta e esquisita e enfiou a mão com cuidado. Examinou-a de tal forma, que me pareceu haver mesmo alguma coisa muito perigosa ali dentro. Tirou um recorte de jornal, um cartão e me entregou sorrindo. Nem sei se li, morena, mas no recorte, eu via a tua imagem, tão linda, sorrindo, me dizendo coisas, aquelas em que eu sempre ajustava o ouvido com cuidado, pra não perder o matiz da trama bem urdida.

Moreno, nem devo pensar nos momentos que vivemos de bem, mas o bem que vivemos já não é o bem presente, que não é bem nem mal, apenas nada. Insosso. Sentimento puído, renda velha, desbotada. Traças que perfuram, impunes, a vida que se desenrola sem colorido. Minha mãe se atrapalha nas louças, nos talheres, se atrapalha nas pernas, se perde. Ajusto as costas, ergo o dorso, seguro-a com força. Penso em ti. Quisera estar do teu lado e esquecer a dor que causaste. Quisera sufocar também a dor que corrói meu coração. Ela está velha e doída. Talvez tenha sofrido assim,este desgaste, mas as costas não lhe doem como antes, porque se acostumou com a dor. Eu não. Sentou-se ofegante. Olhou-me nos olhos. Pensou em morrer. Disse-me coisas corajosas e até falou em ti. Estamos as duas tão só e nem nos fazemos companhia. Por uma estar se acabando na dor e a outra, a dor a acabou. Nossos mundos desiguais são apenas paralelos, mas ela sabe que só há um rumo em minha vida. Moreno, queria devolver-te a rosa, que não morreu jamais. Ela é símbolo da beleza que persiste. Minha mãe fala em perdão, porque teme não haver mais encontro, ela que já se desencontrou tanto nesta vida e nem achou seu rumo. Se achou, perdeu de vez, assim, cansada, tropeçando nas coisas, tendo raros momentos lúcidos, fugazes, que temo não encontrá-la jamais. A não ser, batendo-se nos móveis, perdendo-se em labirintos dos quais nao encontre a saída. Melhor ficar quieta e esperar.

Morena, ensaiei alguns passos, tentando afastar-me olhando a figura que mostrava teu sorriso tão franco, como se fosse me contar uma de tuas histórias. Mas o homem do casaco de remendo de couro me puxou pelo braço. Indicou o endereço, falou-me na igreja, o único ponto de encontro que julgava ter algum objetivo. Li o cartão ,agradeci e tentei afastar-me. Mas um sonoro não ecoou no recinto, tão forte que paralisei. Minhas pernas estremeceram, meus pés suaram encharcando as meias. Por um momento, os olhos e todos se desviaram da tv e se voltaram para nós. Para mim, porque de alguma forma, fazia parte do drama que para ele se agigantara entre todos, como se força descomunal tivesse. Abriu a mala preta, esquisita e retirou um revólver, apontado em seguida para a própria cabeça. Tentei falar-lhe. Me contive. Só ali tua imagem desapareceu, Morena. Uma cena tão forte, me fez temer pela vida, mas não entrei em pânico. Apenas ouvi. – Ninguém quer, ninguém pode, mas eis o encontro. Se não ouvirem a palavra, não se integrarão como devem. Eu já não posso! Não conseguia entender porque se mataria se pregava a união. Ele então, virou a maleta sobre o balcão de pedra, ante os olhos assustados do garçom. Uma mulher loira, cabelos presos ao alto se antecipara à cena, adentrando à porta e alguém a interceptara com um gesto. Como se tudo devesse ocorrer da forma esperada. Ou imaginada. No balcão, voaram papéis para todos os lados. Notas promissórias, contas, talões de cheques. Aproximei-me. Argumentei:– Se queres o encontro, como pretendes te matar? Ele gritou, exasperado: – Por isso mesmo, porque ninguém quer o encontro e eu me endividei! A Receita Federal está atrás de mim! O Banco Central me procura! O Ministério Público, a Polícia Federal me caça! Não se aproximem. Façam o que não fiz. Vão à igreja e ajudem o irmão. Não destruam o seu pastor! – e disparou um tiro na cabeça, despencando no chão. Algumas gotas de sangue respingam em meu rosto. Depois do estampido, um silêncio brutal. Foi só um segundo. O garçom quase saltou sobre o balcão, a mulher que chegara há pouco, gritou em desespero, pedindo socorro, os assíduos do futebol se afunilaram em volta do corpo. Dobrei-me sobre o homem, tentando descobrir se ainda havia vida. Mas nada. Abri o paletó de lã, xadrez, com o remendo de couro no cotovelo. Encontrei uma carteira, examinei as fotos, os documentos. Pastor da igreja evangélica. Levantei-me. Chamei o dono do bar para que tomasse alguma atitude em relação ao defunto. Afastei entre o grupo que se alinhava, atenção máxima na cena inusitada que se desenrolava ante seus olhos. O sangue brotava do ouvido, alagando o piso, do qual os pés descuidados se afastavam devagar. De repente, um gol sonoro na tv e todos os olhares e gestos e movimentos bruscos se efetuaram no mesmo instante. Aproveitei para afastar-me, Morena, acabrunhado, sem ter muito o que fazer a não ser enfrentar a chuva. O frio me fazia ranger os dentes. Quisera estar aí, do teu lado, acendendo algumas achas de nossa lareira imaginária, e sentir nas minhas mãos as tuas, percorrendo nossos corpos aquecidos. Só me resta, porém, divagar entre as calçadas irregulares, atravessando ruas enlameadas, buscando o nada, voltando para as paredes aparentes e sentindo-me mais perdido do que estou agora. Sem querer, vejo a luz do teu quarto, ao longe, um pequeno abajur que enfeita tuas noites de leitura, teu notebook abusado, amigo inseparável que me substitui a todo tempo. Quisera estar contigo, Morena, embora com ele ao lado dividindo nossos espaços. Esperando que tua mãe dormisse e esquecesse o passado onde reina rainha de um mundo desconhecido, só seu e de seus mortos. E assim ficaríamos abraçados, tomando vez que outra um vinho ao gosto, repetindo pra nós mesmos que o mundo se resumia nestes momentos, salvaguardo pela atenção, o carinho, o cuidado, o amor.

Moreno, da janela avisto um riscado cinza que ora aparece ante a luz de postes. Um riscado de água que escorre incólume pelas calçadas, inundando vielas, mergulhando as lágrimas dos que vivem ao relento, ou nas fachadas sonhadas de casas inexistentes de papelão. Sei que ficarei assim toda a noite, esperando que a vida passe, que o tempo se esgote, que minha mãe vislumbre uma cena real por alguns segundos e esqueça de vez dos vivos. Ai de mim. O tempo passa, Moreno, a mola- mestra da vida não tem fim. Melhor esquecer e não seres nada mais do que uma lembrança boa, manchada apenas pela traição. Melhor assim. Um homem qualquer, como tantos outros. Mas se surgisses nesta escuridão listrada, se vislumbrasse teu rosto molhado, teu corpo encharcado, teu pedido de perdão, talvez não soubesse dissimular, e perder de vez a vergonha, o orgulho, a auto-estima, a raiva, o ódio. Tal como as putas que te assediam. Sem vergonha, sem recato, sem princípios. Talvez não dissesse nada. Apenas abrisse a porta.

Morena, como atravessar os degraus, subir as escadas respingando nos patamares diáfanos, sujando o branco dos mármores, aviltar com minhas botas a pureza dos andares, o enfeitar dos verdes, ligeiramente escorrendo folhas pelos vasos floridos. Temo resfolegar, engolir em seco, mastigar as palavras incongruentes, construir sintagmas estranhos, inventar hipóteses absurdas. Minhas pernas tremem. Morena, meu cabelo ensopado de chuva e suor cai-me na testa, afugentando a imagem escondida, acabrunhada, meus olhos submersos em água e lágrima, mergulhados em que estão num vazio absurdo, meus ouvidos que somente ouvem o próprio som que me vem da alma, expressos numa única palavra: perdão. Mesmo com a mão trêmula, um pingo de coragem alicerçada na bebida destilada que me aquece a garganta, espalmo a mão desajeitada, encostando-me à porta impoluta, alimentado apenas pela esperança, tênue, rasa. A porta se abre devagarinho, adivinhando a investida. O olhar furtivo, a boca vermelha, o cabelo ondulado, caído nos ombros, a voz sonora e límpida.

Morena.

–Moreno.

terça-feira, maio 12, 2015

Então, me explica...

Nem sempre me lembro de ti. Nem sempre me pergunto, porque te foste tão cedo. Nem sempre me envolvo nas histórias que contavas. Nem sempre me enfrento te olhando no espelho. Um espelho que parece muito comigo. Um espelho onde te imagino às vezes, caminhando ao nosso lado pelas ruas quase desertas da cidade, no feriado de Natal. Lembro-te de sapato preto, de verniz, bico de pato e salto fino. Do vestido azul e a bolsa de mão. Mas lembro mais do aconchego de tua mão na minha. Da alegria de meu pai ao teu lado, como um guia, um líder que nos levava à festa dos presentes. Lembro do guaraná, do quindim que sempre nos aguardava no imenso salão do clube. Lembro da expectativa dos prêmios. Dos palhaços, das músicas, dos mágicos. Lembro dos presentes. Uma boneca para minha irmã, um cavalo branco de gesso para mim. Mas lembro especialmente do brilho dos teus olhos, da emoção que passavas, que tornava nossos momentos intensos e felizes. Da alegria que sublinhavas com teu sorriso sincero. Tu eras assim, voltavas desenhando sonhos, torcendo o salto no paralelepípedo enquanto esperavas o táxi e visitavas as lojas enfeitadas para a festa. Por isso, pergunto, traçando um paralelo com a música “Feminina” de Joice , me apropriando de alguns versos, assim alterados: “Ó Deus, me explica, me ensina, me diz o que é ser mãe? Não é no vestir, no gesto, no olhar, é ser mãe em qualquer lugar. Então me ilumina, me diz como é que termina? Termina na hora de recomeçar. Costura o fio da vida só pra poder cortar. E este mistério estará sempre lá. “ Por certo, tens todas as respostas, pois Deus já te criou sabida. Agora no espelho não estás mais. Não te vejo em meus olhos, nem nos sonhos, nem nas ruas desertas de outrora. Teu lugar é tão íntimo, que não há como explicar. Ficas muito mais do que em minha memória. Fazes parte de minha vida. Do meu ser. Do me estar no mundo. Do homem que me tornei. Por isso mãe, às vezes, me pergunto o que somente tu sabes a resposta. Mas foste tão cedo.

quarta-feira, julho 31, 2013

A CINZA EM QUE ARDI

Sempre a vira expor-se de maneira ridícula. Pelo menos para os padrões da época. Tinha lá seus quase oitenta anos e se vestia como uma mulher de trinta. Um vestido godê preto, que ao vento lhe subia nos ombros, aos meus olhos espantados de 10 anos. Na boca, um batom vermelho delineando os lábios sumidos. Um sorriso largo, de dentes miúdos, com falhas inevitáveis. Gostava de sentir-se assim, livre e talvez a sensibilidade aflorada na pele revelasse apenas o desejo de felicidade. Uma brisa, um aroma, um sopro de vida. Todos ou quase todos a chamavam de louca. Ou senil. Ou velha destemperada. Não lhe permitiam explosões em seus pensamentos, nem alfinetadas nas ideias que não se constituíssem um dedal. Mentes torpes, endurecidas pelo hábito higiênico e padronizado da maioria. Eu, como criança, talvez a seguisse no que tinha de melhor. E o melhor eram os livros que me oferecia. Livros tão antigos quanto à coluna que se comprimia nas vértebras enferrujadas. Livros amarelecidos, capas andrajosas pedintes de leituras, folhas finas, às vezes rasgadas. Pedaços de livros. Frangalhos de histórias. Mas que me faziam beber da fonte inesgotável da aventura, de trajetórias distintas das que seguia, dos vôos altos em que avistava outros prados.

Ela não arrefecia em mostrar-me este novo mundo, talvez porque visse em mim uma sagacidade desconhecida aos demais de sua família. Um desejo de ir mais longe ou de descobrir o que estava tão perto, mas tão perto, que nem fazia sentido.

Ela era assim: alegre, divertida, faceira, estranha. Um estranho absurdo, que talvez a lançasse aos limites da loucura. Mas esta insanidade voraz e desconhecida talvez a tornasse um ser humano íntegro em sua relação peculiar com a vida.

Claro que nem todos a entendiam, nem eu. Apenas não a julgava com o olhar de adulto. Por certo, encontrava em sua imaginação fértil uma afinidade com o universo interior de um pretenso escritor. Tudo que eu escrevia num papel encardido de embrulho era devidamente analisado, anotado e compreendido. Quando muito, uma nova visão, um ponto de vista próprio, difícil de atingir, mas que anunciava uma entrega desavisada com cheiro de sonho e gosto de felicidade.

Morava com um irmão tão velho quanto ela e os três sobrinhos. Todos a consideravam amalucada, rótulo vencido.

Eu sentia um certo constrangimento em me aproximar, tal era o preconceito que expressavam sobre ela.

Certa vez, ela me chamou pelo muro. Estendeu seus braços finos, com um caderno na mão, tão amarelo quanto os livros. As unhas vermelhas apertavam a capa cerzida na restauração improvisada. Percebi que havia uma espécie de tule ou renda branca empoeirada, revelando o guardado num daqueles baús imensos que tinha ao lado da cama. Espichei o meu braço, arrastando-o no reboco rugoso e peguei o caderno. Ela fez um sinal cúmplice com a boca, produzindo mil ruguinhas entre os lábios, pedindo que não o abrisse logo, apenas quando estivesse em casa, engendrando minhas histórias. Obedeci. Guardei o caderno embaixo do travesseiro para lê-lo à noite, sem muito tempo para decifrar o que havia nele. Fui para a escola, de lá para casa, o banho, um pouquinho de tv, o sono e esqueci o presente.

Acordamos pela manhã, eu e meus pais com os gritos. Uma ambulância e um olhar de desespero cercado entre braços fortes que a empurravam para dentro do veículo, como se pudesse resistir a não ser com gritos. Um cheiro de fumaça, de papel queimado, de lixo armazenado no fundo do quintal.

Meu pai perguntou ao sobrinho mais velho o que estava acontecendo, mas não houve tempo para respostas, a sirene já se ouvia forte, abrindo caminho na rua onde se formavam pequenos grupos. Todos comentavam, produzindo explicações que convinham. Alguns meninos no caminho da escola, paravam intrigados, observando a cena. Cenário perfeito para uma investida na imaginação por mais acanhada que fosse. Tudo conspirava para o senso comum se estabelecer: dispensar a tia louca para o sanatório.

Meu pai afastou-se do lugar enquanto minha mãe já tomava as últimas da vizinhança. Entramos, a hora se adiantava. A vida continuava. O mundo girava no mesmo ritmo. Um ritmo desordenado em nossa vida caótica. Lembrei de seu irmão mais velho, que nem aparecera. Devia ter ficado lá, constrangido pela covardia em não lutar contra um destino que mais cedo ou mais tarde seria o seu.

Não me contive e desviei do cuidado de meus pais e pulei o muro, pelos fundos do quintal. Atravessei o pequeno alpendre e passei pela cozinha, dirigindo-me ao quarto dela: reduto pouco visitado, embora lá havia conhecido e ganho os meus primeiros livros. Percebi que o irmão estava encostado no parapeito da janela que dava para o nosso pátio, um cotovelo apoiado, com a mão no queixo, amaciando a barba mal feita e na outra mão, um cigarro de brasa esquecida.

Afastei-me pé ante pé e abri a porta do quarto, lentamente. Observei a cama de mogno desarrumada, a cômoda com os porta-retratos atirados, uns sobre os outros como em efeito dominó, alguns livros rasgados. Mas meus olhos se detiveram espantados na velha estante de madeira que emoldurava toda a parede do lado esquerdo, oposto à janela. Estava vazia, uma estante em que moradores notáveis fizeram historia, um Kafka, um Machado, um Guimarães Rosa, um Joice, um Goethe, um Dostoevisk. Demandaram em derradeira missão, talvez desconhecida e definitiva, jamais almejada.

Corri para os fundos do quintal, segui a cortina que se antecipava aos meus olhos e um pequeno visgo de fumaça, como uma serpente que se insinuava, mostrava o caminho.

Ali estavam os livros, com suas brochuras à mostra como esqueletos restantes do incêndio homicida, costuras desalinhadas, pedaços de folhas em desenhos disformes com olhos negros produzidos pelo fogo, marcas indeléveis, transmutando o que era saudável em feridas fatais. Sangue negro escorrido nas cinzas, fome de vingança jamais aplacada.

Ainda salvei das últimas chamas, alguns farrapos que resistiam aos pingos de sereno. Parte de um livro de Almeida Garret, que li sujando as mãos na página quente, que me doíam os dedos: restos mortais de uma vida que se dissolvia na intolerância.

Seus olhos - se eu sei pintar

O que os meus olhos cegou

Não tinham luz de brilhar.

Era chama de queimar;

Vivaz, eterno, divino,

Como facho do Destino.

Divino, eterno! - e suave


Ao mesmo tempo: mas grave


E de tão fatal poder,


Que, num só momento que a vi,

Queimar toda alma senti...


Nem ficou mais de meu ser,

Senão a cinza em que ardi.

Nunca mais a vi. À noite, abri o caderno de capa cerzida e passei a viver assim, embasbacado, até descobrir o sentido das coisas que avistara. Ela teria feito um apanhado de minhas histórias, como incentivo a prosseguir no desvendar incessante da imaginação. Um dia, seria talvez um aprendiz de um daqueles escritores consagrados. Mais tarde, porém percebi que aquelas narrativas não eram minhas, a não ser a semelhança pela ingenuidade e a descoberta prenhe da vida. Eram histórias de há muito tempo atrás, talvez de seis ou sete décadas, quando ela era tão criança quanto eu e assim, iniciara também seus contos num caderno, hoje cerzido de linha azul, para preservar o sonho. E talvez, a lucidez.

domingo, julho 12, 2009

HIATO E PONTOS DE VISTA



Nem sempre o olhar mais profundo sobre as coisas que nos cercam é o racional e objetivo. Na maioria das vezes, é preciso ressaltar o sentimento, mesmo obtuso, mesmo dilacerado, mesmo engendrado em nuvens longínquas e escuras que toldam a alma e o pensamento, pois através destas lembranças ou idéias inusitadas, surge o verdadeiro esqueleto da realidade. Uma realidade não tão idealizada ou limpida ou verdadeira, uma realidade onde a ficção e a poesia se escondem em meandros tão obscuros que se torna difícil decifrá-la. Entretanto, para o autor é necessário se utilizar das lembranças, da infância, dos ditos populares, da imaginação para representar esta realidade e este desejo infinito do homem de ser feliz. Através dos contos e crônicas do livro Hiatos e pontos de vista" (que está na rede), procuro exercer esta faculdade da imaginação e das lembranças, tentando efetivar um olhar curioso e inquisidor, às vezes infantil, às vezes maduro, às vezes alucinado, mas sempre voltado para a condição humana. Talvez viver seja isto, vivenciar o que de bom e nefasto o homem adquire e repassa através de suas trajetórias perturbadas ou não. São contos e crônicas onde o amor e a busca da verdade prevalecem. Basta olharmos com olhos amorosos o outro ou a nós mesmos. Recordações que todos tivemos um dia. Ou vamos ter.

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