segunda-feira, novembro 09, 2015

A CALÇA COMPRIDA

Lembro-me dele. Chamava-se Camilo, um nome que eu achava estranho. Mas nossa amizade era segura, firme, quase madura. Confidenciávamos sobre tudo o que nos acontecia, falávamos da família, das ideias políticas de nossos pais, das agruras de minha avó, que se limitava a sentir aquela falta de ar absurda, o sorriso complacente e tranquilo de meu avô, o seu olhar sereno e belo.

Parecíamos adultos, mas éramos crianças e não passávamos da 5ª. Série.

Ele parecia mais velho, era mais forte, mais ágil. Eu franzino, pernas finas, calças curtas, meias até o joelho.

Estávamos felizes. Aproximava-se o dia da procissão de Corpus Christi que eu ansiosamente aguardava, não exatamente a procissão, mas a oportunidade que se antecipava de eu usar calças compridas. Minha mãe prometera que usaria neste dia.

Naquela época, usar calças compridas significava quase a passagem para a vida adulta, um símbolo de masculidade. Estávamos ficando homens de fato, portando-nos como tal.

Minha mãe passou dias na costura. Antes porém, enveredou-se por lojas, buscando o tecido adequado, a cor, naturalmente azul-marinho, um tecido firme e ao mesmo tempo maleável, que fosse possível se fazer o friso.

Acabou na mesma loja de sempre, onde se encontravam os tecidos finos e mais baratos. Comprou a fazenda, como ela dizia, cortou o pano ante meus olhos grandes por detrás da mesa, espiando, fingindo preocupar-me com as figuras dos jogadores da copa, ocupado em que estava em demonstrar indiferença.

De vez em quando, meus olhos aflitos se deparavam com os de minha mãe. Ela olhava-me, encarava por alguns segundos, depois, se mantinha entretida nas linhas, nos dedais, retroses, carretéis, tesouras e agulhas.

Contornava delicadamente o tecido, desenhando um esboço de calça que me encantava. Suas mãos brancas, de dedos pequenos e finos percorriam delicados os viés da costura, os tortuosos vai-e-vem dos alinhavos, na construção da obra imaginada. Em seguida, um corte aqui, uma fisgada no dedo ali, um jeito ágil de chupar o sangue e esquecer de imediato a dor, partindo para a atividade almejada.

Eu corria os olhos atentos, obedecendo a ordem de ligar o interruptor, clarear o ambiente, buscar o pão quentinho, estalando nos dentes no caminho, roubando um pedaço rápido, antes de chegar em casa, conhecendo de antemão a rotineira repreensão.

Coração aflito, voz esganiçada, perguntando se queria mais algum favor. Não queria, nem precisava, o que me angustiava mais.

Desejava permanecer ali, ao seu lado, parado, vendo o espectro tornar-se real: a calça imaginada correndo comigo, passeando orgulhosa entre os colegas menores, seguindo a procissão, ouvindo o “louvado-seja-nosso-Senhor-Jesus-Cristo-do-padre”, com um olhar entre orgulhoso e cúmplice, querendo dizer “tu, heim, já é um homem, de calças compridas” e eu mais orgulhoso e seguro”para-sempre-seja-louvado”, querendo dizer ”isso-mesmo-seu padre-já-sou-um-homem, igualzinho ao meu pai.”

Mas ela não se dispunha a ouvir-me, mandava-me estudar, os livros me esperavam no quarto, a escrivaninha estava cheia, um dez não basta, um dez não é definitivo, é preciso alimentar a cabeça. Que ela queria dizer com isso? Que eu ainda não estava feito por inteiro? Seria por causa das calças curtas? Mas logo, logo, eu usaria as tão esperadas e amadas calças compridas, como todo o mundo.

E vinha dia e voltava noite e a labuta na costura ficava ainda mais acirrada. Era uma briga constante com a máquina, dor nas costas, olhos inchados, pouco dormir, camisa por fazer, ah, branca, colarinho de entretela, passado na goma para ficar bem duro. Cinto? Aquele de couro que ganhei no Natal.

Até que chegou o grande dia. Meu coração saltitava exuberante no peito, os olhos grandes vibravam, o espírito voejava translúcido, a boca estremecia ressequida, ofegante, esperando os olhares invejosos dos menores ou dos que não tinham conseguido uma calça comprida e além de tudo, o respeito dos mais velhos.

Minha mãe ficou me vigiando da esquina, não sei se orgulhosa de fato comigo ou com a sua obra-prima.

Na verdade, ficava feliz com a minha alegria. Tanto que passara horas na noite anterior, espargindo borrifadas de água, com leveza, para ajustar o vinco com o ferro quente. Depois de alisada, observada, examinada e almejada, deixara-se ficar assim, a calça, quase feliz como eu, estirada na cadeira, preguiçosa, longe de qualquer toque mais abrupto para não desmanchar o desenho. A camisa branquinha, lavada em anil, de gola bem engomada e passada rigorosamente para não fazer feio na procissão.

Como a noite custou-me a passar. Só fui vencido pelo sono e não sonhei com nada. Quando acordei, já me via longe, abanando para a mãe que prosseguia na esquina, até eu desaparecer no colégio.

A pequena igreja estava em construção. A escola em rebuliço. As crianças eufóricas.

Meu amigo Camilo foi o primeiro a me ver com a calça nova. Sorriu satisfeito e mostrou a dele, de tergal, com um certo brilho, meio furta-cor, que me incomodava um pouco. Mas não comentei nada.

Em seguida, o orgulho deu lugar à euforia das brincadeiras. Outros chegaram e passamos, como de hábito a correr, pega daqui, esconde ali, agora pelos escombros da igreja antiga, subindo no altar ainda em construção da nova e gigante que se antecipava aos nossos olhos e corações.

Corria tanto que nem via padre, ou professora, ou qualquer outra autoridade que me fizesse parar. O prazer era mais forte do que meus brios de homem recém adentrado na sociedade masculina. Tanto foi, que no puxar de cá, empurra pra lá, caí de um aterro da construção de concreto, assim, de modo abrupto, rasgando inexoravelmente a calça, bem na altura do joelho.

Meu amigo me viu e não deu muita importância. Falou alguma coisa como voltar para a casa, trocar de calça.

Os demais chegaram rápidos como saídos do ninho, bando em disparada, ao meu encontro. Era tudo que eu não queria.

Voltei para casa decepcionado.

Na cadeira, como se estivesse a minha espera, a calça curta, marinho, velha amiga de guerra, das brincadeiras de criança, menino que não queria mais ser.

Minha mãe assentiu com a cabeça, como se conhecesse antecipadamente o meu infortúnio. Não tinha remédio. Voltei para a procissão de calças curtas. Percebi que nada havia mudado. Só a certeza de que não seria daquela vez que eu usaria definitivamente as calças compridas. Quando isto ocorreu? Acho que não teve nenhum sentido. Talvez tivesse amadurecido naquele tombo e descoberto que não significavam nada a mais do que um vestuário novo. Só lembro que voltamos da procissão com a sensação de liberdade plena, como se a nós fosse dada a oportunidade da vida e livrarmo-nos de todas as opressões da infância. Talvez por isso, tocássemos “indisciplinadamente” a campainha de todas as casas que víamos pela frente.

Meu avô : existir é compartilhar

Alimentava-se de nossas pequenas arruaças, brincadeiras inusitadas para quem passara a infância na labuta. Tinha no olhar uma pureza quase infantil, mas cheio de perspicácia, sagacidade e curiosidade por nossas vidas.

Corríamos pelas vielas empoeiradas, empurrando aros de bicicleta, equilibrando-os com uma pequena haste de ferro ou arame dobrado, fazendo voltas, escolhendo caminhos próximos aos seus pés, desviando, riscando o solo arenoso. Ou jogávamos bolinhas de gude, desenhando arcos no chão, ou cavando o imba.

Noutras vezes, corríamos organizando gangues, constituindo quadros de polícia e ladrão, onde o ladrão, na maioria das vezes era pego e massacrado com centenas de sopapos na cabeça, quase uma instituição, um dogma.

Quando havia meninas, uma ou duas, seguíamos o recatado amarelinha, que chamávamos de pula-boneco, sempre vigiado pelo olhar complacente e generoso de sua presença.

Em outros momentos, não perdíamos as chance de imitar os reis do ringue, artistas de luta-livre, que se dividiam sempre em heróis e vilões. Não passávamos de três, contando apenas os meninos, acrescidos de dois ou mais, quando partíamos para o futebol.

Mas quando intimado ao banho e execrar-me dos prazeres da rua, também era acompanhado por ele.

Caminhar dificultado pelo avc, mãos trêmulas que seguravam uma bengala improvisada, olhar aprumado para a frente, fingindo-se forte e resoluto.

Após o banho e o jantar, ficávamos juntos: eu, lendo meus livros fantásticos, com voz impostada, ele ouvindo e comentando entre sorrisos, a virtuosidade de minha dramaturgia, ante o olhar frio e reprovador de minha avó.

Mas logo, quando ela se afastava, deixando-nos a sós, entre nossas histórias, mais dele, do que minhas, voltávamos a desfazer a teia de informações compartilhadas. Falava-me da vida difícil na zona rural, da impossibilidade de prosseguir na faina em que se habituara desde pequeno, em função das deficiências da saúde e da precariedade do atendimento.

Em qualquer tema, revelava um humor constante, uma celebração à vida, o prazer de dividir aqueles momentos de companheirismo e afeto. Fazíamos bem um ao outro: não havia solidão para meu avô, nem para mim.

O quarto não era uma prisão, apenas a ante-sala de nossas conversas até a hora de dormir. Era mais um espaço de partilha de alegria.

Nos finais de tarde, numa época não povoada de novelas, assistíamos ao Bat Masterson e sua pistola que cuspia fogo, Os Waltons e seus cumprimentos noturnos, Roy Roger e as intermináveis corridas pelas pradarias do velho oeste, o túnel do tempo e o passeio frantástico pela história e assim, nos perdíamos na imaginação, de espírito elevado, só interrompidos pela novela que se antecipava e com ela o restante da família.

Meu avô retirava-se, levando consigo a alegria que ainda persistia em meu coração. Quando o acompanhava, mostrava-lhe desenhos toscos, ilustrando histórias que me permitia escrever e revelar.

Às vezes, degringolava o inglês, recitando poemas que seriam apresentados na aula seguinte, ou apenas sentava ao seu lado. Observava-lhe a face morena, o olhar tranquilo, mas inquieto, buscando dentro de si uma saída que eu não compreendia muito bem, mas que me deixava tomar parte de alguma forma.

Os cabelos totalmente brancos, finos, esparsos, caídos para o lado direito. O sorriso instantâneo, a voz forte e densa. O corpo frágil. Tão frágil, que um dia caiu da cadeira que ficava à frente de nossas brincadeiras, na rua, e nem percebemos.

Foi ali, naquele instante, que aos pouquinhos, ele foi se ausentando. Como uma flor quase etérea, que se espalha nos campos, afugentada pelo vento, levada pela brisa, enfeitando estradas, pontilhando regatos. Tais como aquelas, que se sustentam no ar, por momentos, ao sopro de uma criança. Flocos de algodão, desvanecendo-se, consumindo-se. Ficou-me, no entanto, a beleza da dança, bailarinas miúdas ensaiando nas campinas. Ficou-me o sorriso vivaz, o prazer de cantar a vida e partilhar com ela o inspirar do sonho, de se mostrar generoso e paciente, de apostar em mim, um homem como ele, rindo de tudo e de si mesmo, tentando ser feliz.

A foto à direita é de meu avô.

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