terça-feira, agosto 02, 2016

Alfredo Martins: o homem ideal e as várias formas de amar

Todas as noites Alfredo Martins fechava a porta de ferro do velho cartório, sempre de maneira metódica, puxando-a devagar para não desengatar o trilho e agachando-se enquanto trazia até o chão, para finalmente engatilhar o trinco e o cadeado ao mesmo tempo. Era de praxe. Era o modelo deixado por seu pai. Era o correto.

Alfredo Martins era na vida pessoal, como agia em seu trabalho: um tabelião responsável e rígido. Tinha a pontualidade e a responsabilidade no trabalho como modelo indispensável para uma integridade ética e moral em suas relações profissionais. Casado, sem filhos e afeito a servir à comunidade através de missões filantrópicas de forte poder ético, o abonavam como um homem de qualidade familiar e social. Religioso e pacato em sua vida particular, Alfredo Martins tinha um único único hobbie, que era a pesca e o fazia apenas acompanhado da esposa, porque considerava de bom tom experienciar também os prazeres como um casal.

Naquela manhã porém, Alfredo Martins sentia que alguma coisa havia quebrado dentro de si, quando antes de abrir a cortina de ferro do cartório, retirou o cartaz de aviso fúnebre. Leu a frase, como se desconhecesse o conteúdo e depois dobrou-o, guardando o pedaço de papel no bolso. Em seguida, levantou a porta com cuidado, como de hábito, mas suas mãos tremiam. Seu corpo parecia debilitado e um suor frio escorria por sua coluna vertebral, invadindo além das costas, as nádegas, que agora, agachadas, sentiam o frio instalar-se como se estivesse molhado. Levantou-se com esforço.

Antes de abrir a porta de vidro, que ficava um pouco além da cortina levantada, parou um momento, observando o próprio rosto, parecendo um desconhecido. Acenou triste, a cabeça e abriu a segunda porta, dirigindo-se para o interior do cartório.

Levantou a portinhola do balcão e sentou-se em sua mesa, como de hábito.

Daqui a pouco, chegariam os cinco funcionários que trabalham consigo.

Jarbas, o mais velho de todos, que fora inclusive contratado por seu pai, nos anos 70 e que já deveria ter se aposentado.

Luís, um bonachão que aparentava quarenta anos, que dizia ser casado, mas passava as noites divertindo-se com mulheres e bebidas. Tinha um certo rancor por essas demonstrações de alegria e obscenidades que ele tanto desaprovava.

Nataliya deveria ser a mais nova, embora às vezes parecesse uma mulher tão velha quanto Eva, requisitando a todos, exigindo provas e justificativas, assoberbada como se estivesse prestes a ter um colapso nervoso. Raramente parecia calma e controlada. Será que Nataliya era casada? Nunca soubera de sua vida pessoal, a não ser o que um ou outro comentava, como por exemplo, que tinha vindo da Ucrânia e morava com uma mulher idosa que ajudara a cuidar. Diziam as más línguas que ela pretendia ficar com o apartamento da velha. Mas quem poderia afirmar tal coisa? Às vezes, vinha-lhe na mente o pensamento de que ela era lésbica e não podia evitar uma certa repulsa.

Depois deles, dois estagiários, uma jovem muito bonita, mas um tanto intrometida nos assuntos do cartório e segundo alguns, um tanto desfrutável. Por último, um rapagão de seus 18 anos, muito tímido, mas bem responsável.

Alguns dias atrás, também havia seu pai, que gostava de ficar algumas horas no lugar onde passara a vida trabalhando, tal como ele, um tabelião tão bem conceituado na cidade. Hoje porém, ele tirava o aviso fúnebre avisando que seu pai não viria mais. Era por isso a fisgada no peito, o suor destemperado, o tremor nas pernas. Alguma coisa se quebrava dentro de Alfredo Martins.

Tinha vontade de tomar um café, mas não iria na padaria da esquina. Não queria ver ninguém, muito menos conversar.

Olhou para o relógio e percebeu que ainda faltava uma hora para o início do expediente.

Não conseguira dormir toda a noite, ficara o tempo remoendo pensamentos confusos, situações que lhe vinham à mente, problemas que o perturbavam, mas dos quais não poderia tentar nenhuma solução. Ah, fora uma noite terrível.

Lá fora, agora começava a garoar. Tinha a ver com a atmosfera triste. Garoa e frio. Daqui a pouco, quem sabe, uma chuva torrencial.

Voltou-se para o velho relógio da parede, devia ter uns cem anos, no mínimo, afinal passara de geração a geração e continuava lá firme, badalando as horas, as meia-horas, o tempo passando. As pessoas vindo e saindo, vozerio lá fora, buzinas, apitos, roncos de carros, conversas animadas, brigas, violência. Tudo passava à frente de sua porta envidraçada.

Virou o rosto para a porta, tendo a impressão que ouvira uma batida fraca. Era verdade. Havia alguém na porta, um homem aparentando uns trinta anos, de casaco preto e bastante alto.

Tinha vontade de não atender, mas alguma coisa lhe dizia que devia fazê-lo.

Aproximou-se da porta e abriu uma folha, perguntando o que queria.

O homem o fitou longamente como se o conhecesse. Depois, num meio suspiro, fez-lhe um pedido: — Pode me emprestar o celular?

Alfredo emudeceu. Seria um assaltante àquela hora da manhã?

O outro prosseguiu, esclarecendo, ansioso, a voz falhava de vez enquanto, o olhar sempre fixo no de Alfredo, como se tentasse provar que não lhe faria mal.

— Desculpe, meu nome é Jean Marques. Tive um pequeno acidente na esquina aqui perto e fiquei sem bateria. Preciso falar com uma pessoa, mas como vê, a cidade está vazia. Então percebi que havia alguém aqui, no cartório e decidi pedir ajuda.

Alfredo fez um gesto apontando o telefone fixo.

Jean sorriu, com um comentário.

— Não tinha percebido que havia um. Que bom. Será bem rápido, está bem?

Alfredo levantou-se e encostou-se no balcão, olhando para a rua, enquanto o outro se aproximava do telefone na mesa próxima. De canto de olho observa a cena: o homem falando com uma ansiedade exarcebada. Percebeu que estava bem vestido, roupas de grife e parecia bem apessoado.

A ligação não demorou muito, mas parece que não teve um bom resultado, pois Jean se mostrava desanimado.

Desta vez, Alfredo interviu: — Aconteceu alguma coisa?

— Aconteceu. Quero dizer, não se preocupe. Eu vou dar um jeito, com certeza.

— Como foi o seu acidente? – completou, justificando-se – Desculpe, ouvi alguma coisa sobre isso...

— Na verdade, eu não bati em ninguém nem fui batido. O meu carro caiu num buraco, uma verdadeira cratera na esquina. Rebentou o pneu e o aro entortou. Agora terei que esperar o guincho para que tirem o carro de lá e perderei muito tempo.

— E como pretendia resolver a situação?

— Queria que um amigo me ajudasse tomando essa responsabilidade para si, mas não foi possível. O cara não me ajudou, sei lá, deu uma desculpa. É que não tenho ninguém na cidade, apenas ele, entende? Agora vou perder o meu compromisso.

— Não pode adiar para outro dia?

— Infelizmente não. Era uma entrevista de emprego. São três candidatos selecionados, eu era um deles, minha entrevista seria a segunda e não poderia perder de forma alguma.

— Acha que não dá mais tempo?

— Meu amigo, tenho 12 minutos para percorrer 50 quilômetros. Acabou. Perdi. – terminou a frase em total desamparo.

Alfredo o olhou intrigado. Pretendia perguntar alguma coisa, mas viu a decepção estampada no rosto do homem. Então, acrescentou que sentia muito. Se pudesse ajudá-lo, faria de bom grado.

— Não tem problema, isto é, problema tem e bem grande, mas agora não há o que fazer. Vou tentar ligar para uma oficina mecânica para levarem o carro. Não posso deixá-lo lá, abandonado.

Alfredo observou que a joalheria defronte começava a abrir as portas, então a hora do início do expediente não demoriaria muito. De certa forma, a proximidade do movimento do dia o incomodava, principalmente porque estava sendo inútil em sua atividade rotineira. Auxiliar aquele homem o perturbava, forçava-o a sair dos trilhos do trabalho.

Quando voltou-se para o homem, na expectativa de que se afastasse, percebeu que ele cambaleou um pouco, parecendo sentir alguma tonteira.

— Ei, está se sentindo mal?

— Só me faltava essa. Eu não to bem mesmo, acho que vou desmaiar.

— Espere aí, quem vai desmaiar não anuncia – mas ao terminar a frase, o homem foi amolecendo o corpo e segurando-se no balcão para não cair.

Alfredo correu ao seu encontro, tentando levá-lo para a parte traseira do cartório, onde ficava um pequeno refeitório e um quarto onde seu pai às vezes, costumava tirar uma soneca. Com muito esforço, segurou o rapaz pela cintura e foi carregando-o até o quarto, quase puxando-o pois seu corpo se transformava frágil e ao mesmo tempo muito pesado. Pedia que ele o ajudasse, que não se apagasse, que lutasse para ficar alerta, bem atento, mas quase não conseguia seu intento.

Felizmente, deu tempo para que o deitasse na cama. O homem não desmaiara e em dado momento, seu corpo ficou muito próximo ao de Alfredo, porque a coberta presa sob o corpo o impelia ao seu encontro.

Alfredo ainda tentou se afastar, sentindo os lábios do rapaz roçando os seus e teve um estremecimento, quase um abalo. Num salto, levantou-se, enquanto o homem se queixava de muito frio.

Alfredo foi até uma cômoda velha, retirou um cobertor de lã e cobriu o rapaz.

Afastou-se um pouco e o observou da porta, tendo uma sensação estranha que o incomodava.

Retirou-se rapidamente e dirigiu-se para a frente do cartório, acomodando-se no balcão.

Em seguida, os funcionários começaram a chegar. Alguns o cumprimentavam pela perda do pai, outros apenas acenavam a cabeça e se dirigiam ao cartão-ponto.

Alfredo reuniu-os num círculo e elaborou um pequeno discurso, pedindo que fizessem o trabalho como de hábito, como se seu pai estivesse ali. A vida continuava e ele tinha que tocar o negócio em frente.

Quando acabara a conversa, Jean que deixara o quarto e em passos firmes apareceu na porta.

Todos o olharam intrigados.

Alfredo, constrangido, tentou esclarecer o motivo daquela presença ali, em seu cartório. Embasbacou-se na explicação e exigiu que se afastassem e começassem as suas tarefas. O dia estava apenas começando, incentivou.

Jean aproximou-se de Alfredo, que o olhou enviesado, irritado por aquela aparição inadequada. Que dia, meu Deus, pensou, tudo acontecia ao mesmo tempo.

— Desculpe o incômodo, meu amigo. Mas acho que me restabeleci, foi uma tontura idiota, certamente pelo nervosimo da situação, mas estou bem agora e preciso resolver os meus problemas.

— Acho que tem razão.

— Gostaria de saber o seu nome. Afinal, você foi muito solidário comigo, jamais vou esquecer a sua atitude – e completou, com um olhar profundo, ao qual Alfredo evitou – muito obrigado.

— Todo mundo me conhece por aqui. Se você perguntar em qualquer esquina, descobriria o meu nome – respondeu ríspido. Em seguida, emendou – Alfredo Martins é o meu nome.

— Prazer Alfredo, mais uma vez quero agradecer pelo que fez por mim – estendeu-lhe a mão e ficou à espera de Alfredo, que demorou a estender a sua. Jean ainda completou: — Espero sinceramente que nos encontremos novamente. Em seguida, pegou a mochila que havia deixado numa cadeira e afastou-se ante o olhar de Alfredo e dos funcionários que da outra sala espiavam curiosos.

Um zum-zum se formou, a princípio um ruído moderado, mas logo se transformando numa algazarra de vozes e sorrisos. Alfredo, irritado, dispersou o grupo mandando que voltassem ao trabalho.

Entretanto, durante todo o dia, Alfredo tinha a sensação de que alguma coisa nova e desagradável interferia em seus pensamentos, de modo a tornar-se angustiado, como se o mundo andasse para trás.

Já não bastava a morte do pai, surgia uma ausência não conhecida, uma saudade de alguma coisa que não vivera, uma estranha melancolia.

Decidiu ir ao quarto, para verificar se estava tudo em ordem. Percebeu que a coberta estava dobrada sobre a cama estendida.

Sentou-se e fez um afago sentindo ainda o calor do corpo que ali estava. Retirou a mão, como se esta queimasse numa chama ardente.

Levantou-se, andou pelo aposento e de repente avistou um objeto no chão. Abaixou-se e pegou um pequeno cartão com o nome e o telefone de Jean Marques. Pensou em jogá-lo fora, na lixeira, mas num pequeno lapso de tempo, decidiu guardá-lo no bolso.

À noite, ao voltar para casa, a vida de Alfredo transcorria normal. Tudo como era antes, sem qualquer vestígio de sentimentos confusos, a não ser o luto natural pelo pai.

Jantou com a mulher, teceu alguns comentários sobre o trabalho, sobre o tempo injusto de garoa e frio ou sobre qualquer coisa que justificasse um comentário insignificante.

Também assistiu TV e fez críticas ferrenhas ao governo, mas só quando foi dormir que a coisa voltou.

No quarto escuro, a mulher dormindo ao seu lado, um tilintar de chuva no telhado, a persiana batendo com o vento e aquela sensação de abandono e dor.

A melancolia de um passado que não foi seu, de uma história não vivida e uma leve excitação o deixava ainda mais confuso.

A imagem do homem vinha ao seu encontro, o olhar profundo, a barba rala e o seu jeito de passar a mão leve pelos lábios, como se precisasse tocá-los para pensar no que diria, a voz grave e serena.

Além disso, aquele leve roçar de lábios, aquele gesto pecaminoso e devasso. Por que aquela imagem não lhe saía da cabeça?

Alfredo não conseguia dormir.

Levantou-se e dirigiu-se para a janela da sala. Olhou pela vidraça e a chuva se tornava cada vez mais insistente.

O mundo parecia desabar naquele momento.

Talvez o seu mundo interior também começasse a ruir.

Afastou-se da janela, foi ao banheiro para urinar e teve uma ereção.

Sentiu seu corpo tremer e de repente, como um adolescente, começou a masturbar-se e o fez com tanta intensidade e furor, que um jato intenso de esperma atingiu a parede, deixando-o com as pernas trêmulas e o coração assustado.

Abaixou a cabeça na pia, lavou o rosto com água fria e chorou.

Olhou-se no espelho e via Jean sorrindo, agradecendo a ajuda. Socou o espelho com raiva até ferir a mão e fazer um traço no vidro quebrado.

Voltou para a sala, pegou o celular e deixou-se ficar, mexendo a esmo nos aplicativos, como se assim, liberasse o sofrimento que o invadia. Mas nada o afastava de seus pensamentos, de sua aflição.

Sabia que alguma coisa havia mudado dentro de si ou talvez apenas houvesse um despertar de um desejo latente, que nunca fora liberado.

Deixou o celular sobre a mesa e voltou para o quarto. Precisava dormir porque no dia seguinte, tudo voltaria ao normal.

Alfredo Martins era na vida pessoal, como agia em seu trabalho: um tabelião responsável e rígido. Tinha a pontualidade e a responsabilidade no trabalho como modelo indispensável para uma integridade ética e moral em suas relações profissionais. Não destoava em nada a sua vida pessoal de homem bem casado e benemérito da sociedade.

Olhou mais uma vez para o relógio da parede que devia ter mais de cem anos, as badaladas nas horas certas, nas meia-horas, o tempo passando, o mundo girando, a vida assumindo o seu espaço e ele como o seu pai assistindo o passar das horas, dos dias, da vida.

No bolso, um cartão queimava-lhe os dedos.

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/homem-solitário-parque-noite-1394395/

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - CAPÍTULO 17

No capítulo anterior o detetive Júlio Ramirez encontrou-se com o delegado Borba. A partir dessa conversa, teve novos planos e num encontro com o seu amigo Jairo, um madereiro que estava trocando de negócios, com a intenção de instalar um camping na cidade, decide falar sobre os suspeitos.

Capítulo 17


Júlio encontra o amigo Jairo no bar. Tomam uma cerveja e recordam os velhos tempos. Em seguida porém, o tema passa a ser os crimes não solucionados na cidade. Jairo pergunta a quanto anda a investigação do detetive.

— Bom, meu amigo, a passo de tartaruga, como tudo nessa cidade. Mas acho que estou no caminho certo.

— E o que se passou com o delegado?

— Como sabe que estive lá?

— Marília me contou. Ela viu quando você se dirigiu à delegacia.

— Aquela moça fala demais, não acha?

— Sabe de uma coisa, Júlio? Eu ouço e fico calado. Deixo que as pessoas expressem os seus sentimentos, as suas curiosidades e vou sabendo de tudo. É uma boa tática, acredito eu.

—Tenho certeza de que sim.

— Então esteve na delegacia mesmo?

— Estive sim, e a conversa com o delegado Borba a princípio não foi muito producente, mas com o passar do tempo, sei que incuti umas caraminholas na cabeça dele.

— E o que você queria?

— Ajuda. Queria que fizesse uns interrogatórios. Tenho alguns suspeitos, principalmente pelo crime da moça, mas pode haver alguma relação com os demais.

— Você pode me dizer alguma coisa sobre isso?

— Você é meu amigo e confio em você. Claro que sim, mas precisamos conversar com mais sigilo – e aproximando-se um pouco, no balcão onde estão lado a lado, Júlio prossegue em tom mais baixo – tenho alguns suspeitos sim.

— É gente importante?

—Digamos que é gente importante ou conhecida.

Jairo ri irônico, afirmando que todo mundo é conhecido na cidade. Júlio — Sim, mas veja bem. Há pessoas que são conhecidas pela sua atividade, outras porque tem um parentesco importante. A isso que me refiro.

— Aí a coisa muda de figura. Se falamos no prefeito, por exemplo...

— Você sabe de alguma coisa dele?

— Na verdade não, apenas o que todo mundo sabe, ou seja, que é um prefeito relapso. A cidade vive na penúria, faltando asfalto nas avenidas principais, a ponte está em estado precário, as praças em verdadeiro abandono. É meu amigo, votamos mal, muito mal. O sujeito que está aí não correspondeu às nossas expectativas.

— E quanto ao filho dele?

— Esse aí dizem que está envolvido com drogas. Mas é o que o povo diz. Não se tem certeza de nada.

— Pois eu acho que ele é um dos suspeitos – Júlio volta-se para os lados, para ver se há alguém nas redondezas, mas aliviado, percebe que o bar está praticamente vazio. Apenas um casal de namorados conversa animado numa mesa aos fundos, próxima à janela que dá para a esquina. Então, ele prossegue.

— Este rapaz é protegido pelo pai, como andei averiguando. Ele promove as festinhas à beira do rio, contrata prostitutas para abrilhantar as festas, consegue drogas e segundo me parece, é um cara violento. E além disso, meu caro, numa festa dessas onde acontece de tudo, pode acontecer um crime, porque estão desorientados, completamente.

— Sim, é bem provável.

— Mas há outros suspeitos, eu preciso chegar a um definidor comum.

— Como assim?

— Alguns tinham motivos para matar a moça, outros, como no caso do grupo do lual, provavelmente em virtude de drogas e do tráfico.

— E quais seriam os outros?

— Bem, temos o próprio médico, o doutor Ricardo Silveira. Segundo consta, a moça ficou completamente apaixonada por ele, queria que namorassem a todo custo. E o que ele me contou, é que tiveram alguns encontros casuais, sem qualquer compromisso, embora ela tenha confundido tudo. Para livrar-se do incômodo, ele a matou, afinal tem um nome a zelar, uma namorada com muito prestígio na capital.

— O senhor acha que ele a teria matado por isso?

— Tudo é possível, meu amigo. Nos dias atuais, não se sabe em quem confiar, mas particularmente, eu não acredito não. Vou lhe contar um segredo, pra mim, este médico é um bom sujeito. Ele não mataria ninguém. Para a polícia, entretanto, é o suspeito número um.

— É o que todo mundo fala.

— Aqui impera o senso comum.

—E os outros?

— Veja bem, tem um sujeito muito estranho, inclusive é amigo de Ricardo, o médico, embora eles não sejam muito chegados, na verdade.

Jairo coça o bigode, intrigado. Os olhos pequenos e brilhantes expressam uma curiosidade intensa, como se estivesse assistindo um filme de mistério. Aguarda paciente o resultado da lista de suspeitos. Júlio sorri, satisfeito, observando o interesse do amigo.

— Quem é esse cara?

— Raul Soares. Já ouviu falar? É o filho da mulher que me chamou até aqui, por incrível que pareça, a dona Sara Soares.

— Mas por que você acha que ele tem alguma coisa a ver com o crime?

— Não sei se diretamente, mas ele é um cara complicado. É um homem adulto, que foi deixado pela mulher e não se conforma. Vive fumando maconha como um adolescente em crise e se diz atacado por um pessoal da pet shop, que queria matá-lo.

— É verdade isso?

— É o que diz. E olhe como pretendiam matá-lo, injetando insulina no infeliz. A sorte dele é que é diabético.

— Como assim? Não entendi a conclusão.

— Porque segundo os especialistas, as pessoas saudáveis que forem injetadas com insulina podem morrer e o pior, não se descobre o motivo da morte com facilidade.

— Que coisa incrível!

— Pois é meu caro. E imagine você, que a mãe me contratou por um motivo muito especial que já lhe conto daqui a pouco. Na verdade, ela me falou dos assassinos deste tipo de crime, dos que usavam a insulina e principalmente em turistas. O filho diz que foi uma vítima, mas ela não acredita, considera tudo uma loucura da cabeça dele, porque anda muito depressivo por ter sido abandonado pela mulher. Quanto aos crimes, nada foi provado, inclusive o inquérito arquivado. Mas o mais absurdo de tudo isso é o motivo pelo qual me contratou. ela quer que eu investigue Rosa, a maestrina.

— A mulher que trabalha no hotel?

— Sim, ela atua em várias frentes, inclusive é professora aposentada, se não me engano.

— Acho que sim. Mas por que investigá-la?

— Segundo Sara, o filho, o tal de Raul está há muito tempo no coral e sempre foi humilhado pela maestrina. Ela acha que a mulher tem alguma coisa a ver com os crimes dos turistas e inclusive o assassinato de Taís. Para Sara, Rosa no fundo, tem interesse no seu filho.

— E só por isso, mataria todo mundo? É hilário, não acha?

— Não sei meu amigo, não sei. O que eu posso depreender dessa história é que Rosa é uma mulher carente, que precisa do afeto de alguém para sobreviver. Ela inicialmente teve um afeto muito grande por Raul, mas depois desentendeu-se e passou a humilhá-lo.

— Mas o que isso tem a ver com os crimes?

— O ser humano é muito complexo, meu caro. Rosa transferiu o seu afeto para outra pessoa e passou a odiar Taís, exatamente por esse motivo.

— Agora deu um nó na minha cabeça. Não to entendendo nada.

— Já vou lhe explicar. Taís tinha um namorado, um mecânico chamado Paulo.

— Sim, e daí?

— E daí que o Paulo é protegido de Rosa, inclusive quando ele chegou na cidade, ela o ajudou, concedendo-lhe o direito de morar num apartamento que aluga. Dizem que está perdidamente apaixonada pelo rapaz. Isso pode tê-la levado a cometer o crime, não concorda comigo?

— Pensando por esta lógica, sim, sem dúvida.

— Mas tem outro suspeito.

— Outro? Meu Deus, é um quebra-cabeça!

— Sim, o mecânico. Ele amava Taís e tinha muito ciúmes dela, a ponto de tomar satisfações com o médico. Ele pode ser o suspeito número um. Preciso investigá-lo, logo que volte à cidade.

— É meu amigo, você vai ter muito trabalho para desenredar esta trama.

— Você tem razão, até mesmo porque eu estou pensando noutra pessoa. Você conhece o veterinário da cidade? Ainda não sei o nome dele.

— Pois por incrível que pareça, este eu não conheço.

— Pois segundo minhas investigações, ele é um sujeito muito reservado e reacionário. Parece que é engajado num grupo de ultra-conservadores que pretende acabar com os avanços sociais e entre eles, o que ele considera ultrajante na sociedade.

— E que relação pode ter com os crimes?

— Se o cara é reacionário desta forma, um Bolsanaro da vida, quem pode afirmar que ele não lutou para acabar com o que considera imoral, como a própria Taís, que procurava drogas nas festinhas do rio, ou nos turistas que trazem novos costumes à cidade?

— Então, meu caro detetive, temos uma lista enorme de suspeitos.

— É que não lhe falei no seu Domingues.

— Seu Domingues? O velhinho que era dono do posto? Está brincando!

— Ele acusa o médico de negligência com a sua esposa, quando ainda era residente, aqui na cidade. Segundo ele, ela morreu numa crise diabética por erro médico. Será que ele não quer vingar a morte da esposa, provocando outras mortes? Temos que considerar todas as hipóteses, meu amigo. Todas.

— É uma loucura tudo isso. Jamais poderia imaginar que isso acontecesse em nossa cidade tão pacata.

— Mas falando em pacata, me diga como está o seu empreendimento do camping, que você quer construir poróximo ao rio, naquela região da ponte?

Jairo emudece. De repente, uma sombra passa por seus olhos e expressa uma preocupação latente.

— A coisa tá difícil. Não consegui levar adiante. Tem o problema do Ibama que não está liberando, além disso, essa série de acontecimentos está prejudicando o meu negócio. Não to conseguindo fazer uma boa publicidade para uma futura instalação do camping.

— Por causa dos crimes?

— Principalmente destas malditas festas que os jovens promovem. O povo quer um lugar tranquilo, não posso oferecer isso por enquanto.

— Quem sabe as coisas se acomodem, não?

— É o que eu espero. Mas tenho certeza de que de uma maneira ou outra, vou conseguir fazer o meu investimento na cidade. Você vai ver.

Os dois encerram a cerveja e Júlio convida o amigo para uma outra rodada. Este no entanto, parece subitamente apressado em retirar-se. Afasta-se em seguida e Júlio fica observando-o pela vidraça do bar, intrigado.

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