Morena, ainda percorro em infinitos passos, cada taco do corredor. Sei que imaginas, mas não sentes o que sinto, nem percebes a aflição. Toco nas paredes, como se me ouvissem, e às vezes, tenho a impressão de que não estão aqui, de verdade. Paredes aparentes que me oprimem, me sufocam como mãos que se torcem e me agarram a garganta. Morena, falta-me o ar. Queria ver-te, bem perto, nem que para apenas receber o beijo frio, molhar minha boca no teu veneno e corromper minhas vísceras. Quisera vender a mobília, cerrar as janelas, impedir o vento que rola as folhas em rodamoinhos de nossa paisagem. Quisera não sentir o bafejo na vidraça, molhando os olhos, nariz e boca no frio do vidro. Preferia fugir e pisar nos insetos que infestam nossas soleiras. Ouço tua voz, teu cheiro, tua presença. Ecoam tuas palavras, às vezes doces, outras, duras, frias, cruéis.
Moreno, arrisquei atravessar a lagoa, dei braçadas para vencer as marolas e não alcancei teu amor. Hoje, pra ti não sou nada, carta dobrada, que desfazes do baralho pra esconder o jogo. Fecha as janelas sim, deixa que a escuridão tome conta, sente meus dentes rangendo, minha boca estremecendo de raiva e torpor. Não sou nada, talvez a marca do adeus. Um adeus feito devagarinho, aos poucos, acalentado, pra não dar na conta. Meu destino é caminhar assim, desesperada, longe de casa, da tua vida, do lar. Quem sabe, o mapa que percorro não seja o mesmo das paredes falsas que construíste, mas que me dão guarida pra continuar.
Morena, saio na rua aos tropeços. Penso e repenso, nem sei se falo ou desisto, se grito ou alcanço com o som de minha voz fugaz dos que nem querem ouvir. Temo não te escutar jamais. Temo desviar nossos rumos, descarrilar nossos trens, afundarmos na lama fugidia que me cobre na chuva. Sei que fui omisso e não mais posso esperar que me ouças. Talvez nem pedir que me esperes, que examines com cuidado cirúrgico minhas passagens por teu corpo, teu ventre, teus seios, tua mente. Não, sei que me esqueces assim, de momento, para não mais sofreres. Agora, estou só, perdido neste vendaval que me tolhe os sentidos e os gestos. Encosto-me na parede, finjo que estou firme, ancorado, apoiado nas pernas finas que mal me cabem as calças. Sinto a dor da esperança e o olhar dos aflitos. Vejo-me na vidraça do bar, um rosto truncado, escondido em olhares sorrateiros, que não parecem os meus. Nariz adunco, avermelhado, os olhos fundos, congestão infinita. Entro no bar, me acerco de outros homens e mulheres que se esgueiram famintos na noite. Minhas mãos estremecem, assim como meu pés, imprecisos, solitários. Morena, dói-me o peso nos ombros, fardo que carrego sem querer. Dores que ferem e me afastam de mim. Morena, peço a bebida, que talvez aqueça a garganta e turve a alma.
Moreno, bebi da água pura que escorre sem dó, fria, entre minhas mãos ansiosas. Procuro o que não acho, vejo o que não encontro, desvio do que me atrai e me aproximo do que me atinge. Nem estou só, mas não me encontro entre os meus. Milhares de quilômetros nos separam, porque a distância interna é maior do que o mundo. Quisera sim estar ao teu lado, ouvir tuas queixas, assumir tuas dores, mas só soubeste golpear-me, assim de uma forma cruel e lenta para que a punição se tornasse comum e necessária. Quando te vi, nada mais restou a não ser a imagem da desilusão. Nem cansamos de nós, nem enfaramos de nossas vivências. Ao contrário, estávamos sedentos, um do outro. Mas a mulher de tua vida não pode ser apenas complemento do teu desejo. Vejo-te ainda ao lado dela e tão longe de mim. Minha mãe se acerca e pergunta qualquer coisa que não sei responder, ou nem sei decifrar. Como esfinge que me questiona, me perturba, me dilacera. Tenho olhos e ouvidos para aquela imagem que me fica guardada assim em multimídia, para não esquecer jamais. Respondo então o que devo e me vem à lembrança. Nada doce, nada suave, nada sensível. Estou só. Onde andarás, agora?
Morena, alguém se aproxima, sinto seus cotovelos próximos aos meus, no balcão de pedra. O garçom me olha de soslaio, triste, como se compartilhasse minha dor. No cotovelo, o retalho de couro, num casado antigo de lã, xadrez. Afasto-me um pouco, tento desviar os olhos para a porta de umbral redondo, cheia de vidraças coloridas; em cada uma vejo o teu sorriso, às vezes caramelo, às vezes, vermelho, às vezes, azul, às vezes sem cor. Teus dentes brancos sorrindo pra mim. Pareces um caleidoscópio. É bonito de se ver. O homem do casaco pergunta alguma coisa, vejo seu perfil e por um momento examino o rosto cravejado de espinhas, pequenas saliências que lhe agastam a fisionomia. Boca escondida num bigode tingido. Cabelos ao alto, circundado por extensas entradas. Olhos parados, finitos. Nada parece perturbá-lo, mas é só por um momento. Afasto o olhar e ele repete a pergunta. Me volto surpreso, porque nada me vem à mente, a não ser teus gestos brejeiros, tua voz sonora, límpida, teus olhos claros me dizendo coisas que não recusava ouvir. Carrega uma pasta estreita, uma espécie de guarda-tudo, talvez documentos, agendas, talvez fotos dos filhos. Não tivemos filhos, morena, nada nos sobrou a não ser o que nos vai na alma e o que lutas tanto para destruir. Ele insiste, puxa conversa. O barulho do bar fica quase insuportável, misturado ao som da tv que inicia um jogo de futebol. Um grupo se acomoda no meio do bar, espalhando-se entre as mesas, assim em pé, tentando torcer juntos, em uníssono, como pássaros em bando, conformados em viver um momento coletivo. Não é o meu caso, estou só, sem amigos, sem ti. Estás longe, morena. Tão longe que a distância até dói. Mas bastava um telefonema, uma mensagem pra começar o encontro. Foi o que ele falou, o homem do casaco com remendo de couro no cotovelo. Falou em encontro. – Não achas que tá na hora? Os homens deviam se encontrar mais, buscar em suas vidas, a paixão pelo encontro. Engoli a bebida destilada num gole. Olhei-o sem saber o que dizer. Ele pareceu entusiasmado com o meu espanto. Prosseguiu, enfático: – a paixão de se reunir. Não para assistir futebol, como fazem estes caras aí – quando terminava a frase, o nariz se erguia e uma troca rápida de olhares para a turma que já se acotovelava na galera - só tem por objetivo torcer por um time, mas não tem o sabor do encontro, da conversa fluída, da amizade intensa. Logo que acaba o jogo, cada um vai para suas casas, sem nunca mais se virem, a não ser no próximo jogo, ou na próxima beberagem. Acho que fiz um aceno afirmativo, mas quisera eu ter para onde ir, encontrar-te morena, me esperando, assim, de braços abertos. Teus cabelos caídos nos ombros, aquele cheirinho de sabonete de maçã, a boca pintada de vermelho, o olhar puro a me dizer todas aquelas coisas que eu sempre quisera ouvir. – Tu não achas que é um crime? Um crime com suas vidas, com suas ambições mais humanas, que deveria ser de integração, de procura e de encontro. O encontro máximo. Um com o outro. O garçom se aproximou, trouxe-me outra vodca, que ingeri sem gelo nem limão. Vi quando o homem abriu aquela maleta preta e esquisita e enfiou a mão com cuidado. Examinou-a de tal forma, que me pareceu haver mesmo alguma coisa muito perigosa ali dentro. Tirou um recorte de jornal, um cartão e me entregou sorrindo. Nem sei se li, morena, mas no recorte, eu via a tua imagem, tão linda, sorrindo, me dizendo coisas, aquelas em que eu sempre ajustava o ouvido com cuidado, pra não perder o matiz da trama bem urdida.
Moreno, nem devo pensar nos momentos que vivemos de bem, mas o bem que vivemos já não é o bem presente, que não é bem nem mal, apenas nada. Insosso. Sentimento puído, renda velha, desbotada. Traças que perfuram, impunes, a vida que se desenrola sem colorido. Minha mãe se atrapalha nas louças, nos talheres, se atrapalha nas pernas, se perde. Ajusto as costas, ergo o dorso, seguro-a com força. Penso em ti. Quisera estar do teu lado e esquecer a dor que causaste. Quisera sufocar também a dor que corrói meu coração. Ela está velha e doída. Talvez tenha sofrido assim,este desgaste, mas as costas não lhe doem como antes, porque se acostumou com a dor. Eu não. Sentou-se ofegante. Olhou-me nos olhos. Pensou em morrer. Disse-me coisas corajosas e até falou em ti. Estamos as duas tão só e nem nos fazemos companhia. Por uma estar se acabando na dor e a outra, a dor a acabou. Nossos mundos desiguais são apenas paralelos, mas ela sabe que só há um rumo em minha vida. Moreno, queria devolver-te a rosa, que não morreu jamais. Ela é símbolo da beleza que persiste. Minha mãe fala em perdão, porque teme não haver mais encontro, ela que já se desencontrou tanto nesta vida e nem achou seu rumo. Se achou, perdeu de vez, assim, cansada, tropeçando nas coisas, tendo raros momentos lúcidos, fugazes, que temo não encontrá-la jamais. A não ser, batendo-se nos móveis, perdendo-se em labirintos dos quais nao encontre a saída. Melhor ficar quieta e esperar.
Morena, ensaiei alguns passos, tentando afastar-me olhando a figura que mostrava teu sorriso tão franco, como se fosse me contar uma de tuas histórias. Mas o homem do casaco de remendo de couro me puxou pelo braço. Indicou o endereço, falou-me na igreja, o único ponto de encontro que julgava ter algum objetivo. Li o cartão ,agradeci e tentei afastar-me. Mas um sonoro não ecoou no recinto, tão forte que paralisei. Minhas pernas estremeceram, meus pés suaram encharcando as meias. Por um momento, os olhos e todos se desviaram da tv e se voltaram para nós. Para mim, porque
de alguma forma, fazia parte do drama que para ele se agigantara entre todos, como se força descomunal tivesse. Abriu a mala preta, esquisita e retirou um revólver, apontado em seguida para a própria cabeça. Tentei falar-lhe.
Me contive. Só ali tua imagem desapareceu, Morena. Uma cena tão forte, me fez temer pela vida, mas não entrei em pânico.
Apenas ouvi.
– Ninguém quer, ninguém pode, mas eis o encontro. Se não ouvirem a palavra, não se integrarão como devem. Eu já não posso!
Não conseguia entender porque se mataria se pregava a união. Ele então, virou a maleta
sobre o balcão de pedra, ante os olhos assustados do garçom. Uma mulher loira, cabelos presos ao alto se antecipara à cena, adentrando à porta e alguém a interceptara com um gesto. Como se tudo devesse ocorrer da forma esperada. Ou imaginada.
No balcão, voaram papéis para todos os lados. Notas promissórias, contas, talões de cheques. Aproximei-me. Argumentei:– Se queres o encontro, como pretendes te matar?
Ele gritou, exasperado: – Por isso mesmo, porque ninguém quer o encontro e eu me endividei! A Receita Federal está atrás de mim! O Banco Central me procura! O Ministério Público, a Polícia Federal me caça! Não se aproximem. Façam o que não fiz. Vão à igreja e ajudem o irmão. Não destruam o seu pastor! – e disparou um tiro na cabeça, despencando no chão. Algumas gotas de sangue respingam em meu rosto. Depois do estampido, um silêncio brutal. Foi só um segundo. O garçom quase saltou sobre o balcão, a mulher que chegara há pouco, gritou em desespero, pedindo socorro, os assíduos do futebol se afunilaram em volta do corpo. Dobrei-me sobre o homem, tentando descobrir se ainda havia vida. Mas nada. Abri o paletó de lã, xadrez, com o remendo de couro no cotovelo. Encontrei uma carteira, examinei as fotos, os documentos. Pastor da igreja evangélica. Levantei-me. Chamei o dono do bar para que tomasse alguma atitude em relação ao defunto. Afastei entre o grupo que se alinhava, atenção máxima na cena inusitada que se desenrolava ante seus olhos. O sangue brotava do ouvido, alagando o piso, do qual os pés descuidados se afastavam devagar. De repente, um gol sonoro na tv e todos os olhares e gestos e movimentos bruscos se efetuaram no mesmo instante. Aproveitei para afastar-me, Morena, acabrunhado, sem ter muito o que fazer a não ser enfrentar a chuva. O frio me fazia ranger os dentes. Quisera estar aí, do teu lado, acendendo algumas achas de nossa lareira imaginária, e sentir nas minhas mãos as tuas, percorrendo nossos corpos aquecidos. Só me resta, porém, divagar entre as calçadas irregulares, atravessando ruas enlameadas, buscando o nada, voltando para as paredes aparentes e sentindo-me mais perdido do que estou agora. Sem querer, vejo a luz do teu quarto, ao longe, um pequeno abajur que enfeita tuas noites de leitura, teu notebook abusado, amigo inseparável que me substitui a todo tempo. Quisera estar contigo, Morena, embora com ele ao lado dividindo nossos espaços. Esperando que tua mãe dormisse e esquecesse o passado onde reina rainha de um mundo desconhecido, só seu e de seus mortos. E assim ficaríamos abraçados, tomando vez que outra um vinho ao gosto, repetindo pra nós mesmos que o mundo se resumia nestes momentos, salvaguardo pela atenção, o carinho, o cuidado, o amor.
Moreno, da janela avisto um riscado cinza que ora aparece ante a luz de postes. Um riscado de água que escorre incólume pelas calçadas, inundando vielas, mergulhando as lágrimas dos que vivem ao relento, ou nas fachadas sonhadas de casas inexistentes de papelão. Sei que ficarei assim toda a noite, esperando que a vida passe, que o tempo se esgote, que minha mãe vislumbre uma cena real por alguns segundos e esqueça de vez dos vivos. Ai de mim. O tempo passa, Moreno, a mola- mestra da vida não tem fim. Melhor esquecer e não seres nada mais do que uma lembrança boa, manchada apenas pela traição. Melhor assim. Um homem qualquer, como tantos outros. Mas se surgisses nesta escuridão listrada, se vislumbrasse teu rosto molhado, teu corpo encharcado, teu pedido de perdão, talvez não soubesse dissimular, e perder de vez a vergonha, o orgulho, a auto-estima, a raiva, o ódio. Tal como as putas que te assediam. Sem vergonha, sem recato, sem princípios. Talvez não dissesse nada. Apenas abrisse a porta.
Morena, como atravessar os degraus, subir as escadas respingando nos patamares diáfanos, sujando o branco dos mármores, aviltar com minhas botas a pureza dos andares, o enfeitar dos verdes, ligeiramente escorrendo folhas pelos vasos floridos. Temo resfolegar, engolir em seco, mastigar as palavras incongruentes, construir sintagmas estranhos, inventar hipóteses absurdas. Minhas pernas tremem. Morena, meu cabelo ensopado de chuva e suor cai-me na testa, afugentando a imagem escondida, acabrunhada, meus olhos submersos em água e lágrima, mergulhados em que estão num vazio absurdo, meus ouvidos que somente ouvem o próprio som que me vem da alma, expressos numa única palavra: perdão. Mesmo com a mão trêmula, um pingo de coragem alicerçada na bebida destilada que me aquece a garganta, espalmo a mão desajeitada, encostando-me à porta impoluta, alimentado apenas pela esperança, tênue, rasa. A porta se abre devagarinho, adivinhando a investida. O olhar furtivo, a boca vermelha, o cabelo ondulado, caído nos ombros, a voz sonora e límpida.
–Morena.
–Moreno.
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