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segunda-feira, julho 10, 2023

Mordaça

Queria criar um balaio de flores

Símbolo de beleza em cenários esparsos

Na esperança de criar valores

Que desfaçam laços e cadarços


Da mordaça que invade nossas vidas

Do medo que instiga os desejos

Das vitórias que não temos definidas

Das lutas que se furtam aos ensejos


Quem sabe tais flores invadam espaços

Vazios com feridas abertas

Varrendo retrocessos engessados

Numa vanguarda de ideias


E num mundo assim debilitado

Transgridam os ferrolhos das cancelas

Libertem as mentes magoadas

E desaferrem, num ímpeto, as celas.


Fonte da ilustração: autor Acedev

in www.pixbay.com

quarta-feira, abril 26, 2023

Esperar

Esperar. Estar à espera de algo, ter esperança. Há tantos significados para o verbo, além destes citados. Há, no entanto, a possibilidade da espera ser somente uma espera, nada mais. Um atentado à lógica, ao senso estabilizado, ao padronizado, ao comum.

Que fazer, se não esperar pela aventura de ser feliz? Que fazer, se não esperar pela ausência do medo, da incerteza do acolhimento, da dúvida do sentir? Que fazer, se não aguardar o momento em que o sentimento revele alguma certeza, embora restrita nas verdades relativas? Que fazer, se não olhar para o nada e perceber a distância tênue que nos separa do sonho e da realidade? Que fazer, se não parar, como uma estátua, quando a vida se esvaí num único momento? Que fazer na hipótese da dor, da solidão, do olhar canhestro da desilusão? Não sei. Talvez ninguém encontre qualquer solução, apenas se liberte das expectativas e viva tudo na média.


Ilustração: https://pixabay.com/pt/illustrations/possível-impossível-oportunidade-2499888/

quinta-feira, maio 13, 2021

Onde ficou a poesia?

Onde ficou a poesia? Onde ficou a ilusão? Perdidas numa esquina qualquer, sem sonhos nem saudades a serem desfrutadas? Que se curte agora? A chacina no Rio? A morte de homens negros? O desvio de verbas endereçadas a kit de medicamentos e aparelhos, em plena pandemia? A morte de milhares de pessoas diariamente? O descontrole de um governo que debocha da morte que não lhe pesa nas costas, porque não as assume? Porque as deseja com espírito assassino?
Onde ficou a poesia onde só há dor? Onde ficou a alegria onde só há morte? Onde ficou a segurança e a confiança, onde só há descalabro? Onde ficou a verdade, onde só há fake news?
É uma dor contínua, que agoniza ante nossos olhos diariamente.
Uma dor que nos invade, que nos impede de sonhar, de sorrir.
Uma dor que nos deixa inerte, sem espírito de luta, sem esperança.
Pois quem devia alertar a população, produzindo campanhas de vacinação e isolamento social, quem devia comprar vacinas desde o ano passado e não o fez, quem debocha de países que nos proporcionam os insumos de nossas vacinas, está inerte, preso em suas opiniões insensatas, frágeis e desonestas. Como pensar em poesia, em música, em belos dias e outonos floridos, se a agonia de nossos irmãos bate quase que diariamente a nossa porta.

quinta-feira, abril 02, 2020

O cheiro doce da maresia

Fonte da ilustração: Bernhard_Staerck in: www.pixbay.com



Quisera falar coisas agradáveis. Talvez anunciar que ando lendo livros, ouvindo músicas , que arrumo minhas estantes e desorganizo meus pensamentos. Talvez a única opção correta é o caos de pensamentos.

Quisera sorrir com as piadas, com os memes da pandemia, com os artifícios de comunicação em mídias menos afeitas ao jornalismo.

Quisera sorrir e ver beleza em imagens da natureza, nos programas de viagens, nos realities falsos de construções e vendas de casas ou de restauração de carros. Quisera me divertir com programas de humor, de me emocionar com dramaturgia, de acalentar a alma com a melodia. Mas não consigo. Meu coração está apertado e meu peito não se expande para dar vazão a sopros de esperança.

Fico emocionado sim com o pessoal que trabalha na frente de batalha, como soldados fiéis e fortes, em nossa defesa. Parece que a humanidade está tão frágil e as questões de classes, etnias ou orientações sexuais parecem ter apenas um viés democrático, o de estarem todos no mesmo barco.

E parece que a tempestade é poderosa, cujos ventos e ondas estão a ponto de desestabilizar o barco no qual cabe cada vez menos pessoas. Como se fôssemos ficando sem espaço, pois os que decidiram avançar as ondas, já não podem voltar para o barco e se voltarem farão com que os que já estavam acomodados e isolados, afundem juntos. Quisera que a tempestade passasse rápida e que pudesse novamente olhar de frente o horizonte e observar uma paz indefinida, com a certeza de que não estou sozinho nem isolado e que outros já podem respirar ao meu lado. Antever ao longe, o oscilar das névoas entre o sol e a brisa, permeando meu olhar solidário. Para isso, basta que não enfrentem a ciência e fiquem no barco, não sigam as atitudes bisonhas de um líder que não lidera, que apenas aguardem que a maré abaixe, que as ondas diminuam, que o mar se acalme, que sintam o cheiro doce da maresia e a vida recomece. Nunca mais como antes, mas talvez mais rica e densa de valores.

sexta-feira, julho 12, 2019

Déjà vu

Quando passava pela rua, me dei conta que terminava num beco escuro. A escuridão se afunilava no medo, na falta de perícia em enfrentar o desconhecido, na exigência de encontrar uma saída. Mas qual! Cada vez, o perigo absurdo e sinistro avançava, como numa névoa de filme de terror. Um uivo aqui, um ecoado lá. A impressão que tinha é que uma coruja cantava ao longe. Não que sugerisse mau agouro, o agouro já era tão presente, que nem valia à pena exortar estes medos menores.

Mas precisava seguir o caminho e este parecia mais longo, embora a bifurcação na esquina se escondesse sob uma árvore, ou o que parecia ser árvore naquela escuridão de sombras e pequenos flashes nas calçadas. Na verdade, as calçadas se diluíam em uma terra lamacenta que se insurgia sob meus pés afundados numa passagem visguenta, como se um verme se apoderasse deles e os corroesse aos poucos, devagar, para sentir o gozo da tortura. Mesmo assim, afundando um pé e retirando o outro, afastei-me aos poucos, do que me parecia uma armadilha.

Ao longe, uma luz de farol na neblina que se insinuava. Por certo, o beco se transformaria num lugar conhecido e aberto e as pessoas passeassem, músicas e danças fruíssem e o mundo seria o mesmo de antes. Por certo, aquela luz influenciaria todo o aspecto soturno e as dores seriam apenas as do coração.

Parei então, fumei um cigarro, uma bagana qualquer, senti aquele ressecado no nariz e na garganta e uma certa esperança.

Entretanto, a luz forte que se aproximava de repente, assim, como do nada, me cegou completamente e pude perceber que aquela luz nada mais era do que um dos últimos suspiros de uma claridade antiga, de uma felicidade morna que como num déjà vu mostrou o passado. O presente? Este era mais escuro, sombrio e assustador do que aquele beco, no qual nunca pisei.

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/users/geralt-9301/

quinta-feira, maio 31, 2018

Quem sabe?

A flor na pele

a pele da flor

Se a flor floresce

a esperança ressurge

a dor desaparece

nada perece

Prospera o amor



À flor da pele

Em carne viva

Tudo perece

Vida sem cor

Quem luta compete

Quem fica fenece

Que luta, só dor!



Diálogo, luta, justiça

Quem sabe mais o que fazer?

Se não esperar ou perecer?


Fonte:https://pixabay.com/pt/rosa-natureza-flor-flores-174817/

terça-feira, março 07, 2017

O VERÃO AGONIZA

Nem sempre a noite clara, a brisa entre o arvoredo, a avenida com luzes esparsas pairando sobre bancos e jardins, parecem a plenitude da paz no fim de verão. Pode ser sim o reflorescer das esperanças dos que se reencontram, o harmonizar do mate solitário no banco de madeira, o gorjear dos pássaros noturnos que sinalizam o início do descanso. Ou a emboscada da solidão que martela de leve os que carregam na mochila pesada de vazios, a busca insensata das bebidas e drogas, do ser não sendo quase nada, dos que mendigam amores e dinheiro no chão das esquinas desenhado entre folhas e luar.

Outro dia, o vi recolhendo latinhas perto do parque infantil. Fumava uma bagana e parecia procurar alguma coisa indefinida, talvez uma dúvida da qual não se livrava. Olhou-me de soslaio e sem vacilar, disparou: o que é cupincha? Surpreso, respondi indeciso: comparsa. Ele reagiu com um grunhido e silenciou. Pensei em afastar-me, mas perguntei se juntava muito material à noite. Ele repetiu cismado: me chamou de cupincha. Tentei descrever a palavra; seria companheiro? Ele riu com alguns dentes à mostra. Depois, se aproximou mais, o que me produziu algum receio. Confidenciou que um camarada o mandou levar drogas até determinado lugar, mas não aceitara. Só vivia de sua cachaça e não queria se sujar. Entendi que “se sujar", em sua linguagem, era tornar-se um criminoso. Concordei que não devia ser envolver com drogas. Ele deu uma gargalhada e me abandonou de vez, como se entrasse num mundo paralelo, do qual eu não fazia o menor sentido.

Fiquei alguns minutos observando o arvoredo da avenida, as poucas pessoas que passavam, o veraneio que agonizava bonito como abandono dos pássaros na maciez dos ninhos. Afastei-me e pensei na ética humana. Aquele homem podia não ter nada, nem esperança, nem saúde, nem importância para os transeuntes, mas tinha ética. Mesmo que tudo fossem devaneios, não importa, ali estava incrustada a ética em suas convicções mais profundas. Ética não é para todos.

quinta-feira, maio 19, 2016

O ALBATROZ E O VOO INTERROMPIDO

Às vezes, observo as aves sobrevoando a lagoa ou mesmo em voos rasantes nas dunas irregulares do Cassino. No céu, algumas em relevante altitude, mas todas com uma elegância que nos encanta e enche o coração de esperança.

Lembro então da lenda do albatroz, que seguia o navio de Fernão de Magalhães, auxiliando-o na rota, pois após uma tempestade havia se perdido, chegando próximo à Antártica. Ele guiou o navio, afastando-o dos ventos glaciais, mas um marinheiro o matou usando-o como alvo.

O barco naufragou e o único sobrevivente, o marinheiro atirador, teve como castigo a incumbência de contar ao mundo a história do pobre albatroz.

Em determinadas situações, o homem age como o marinheiro desavisado e mata a única esperança de sobrevivência. Ou apenas ele sobrevive por algum tempo em sua traição, mesmo que sua embarcação ainda navegue por águas ilegais. Ocorre um arremedo de vida, de liberdade vigiada e nem sempre a história contada poderá resgatar a solidariedade perdida.

O albatroz morre e mesmo que sua condição de bússola tenha algum respaldo na natureza, o voo livre fora interrompido em definitivo, rasgando a cartilha das aves.

Fonte da ilustração: Portal Brasil — http://www.brasil.gov.br/meio-ambiente/2015/03.

sexta-feira, novembro 13, 2015

PRESSÁGIO

Colocou o notebook no colo e abriu, afoito, os e-mails, imaginando que pelo menos, naquela situação,  haveria alguma resposta. Era tardia, sabia, mas tinha de haver, tinha que acreditar, um último fio de esperança. Abriu e o que viu era a rotina de spans de sempre, cadastros mal elaborados, informações do trabalho. E nada dela. Nada de sua conduta marcada pelos tons nevrálgicos das discussões inacabadas.

Nada que valesse à pena esperar. Abriu uma página, duas, assustou-se com o imenso número de pessoas participando de chats àquela hora da tarde. Espiou um, bisbilhotou nas mensagens e arrepiou-se com o que viu. Sentia-se perdido no mundo de ilusões que criara desde a infância.

O barulho ensurdecedor do metrô abafou seus pensamentos. Milhares de pessoas corriam para a plataforma, filas se formavam e ele oculto dentro de si mesmo, olhando para o nada, esperando quem sabe, ser assaltado naquele terminal repleto de mal intencionados.

Um homem o olhava de soslaio, desconfiado, examinando-lhe a roupa, o terno bem cortado, a elegância dos sapatos e principalmente a maleta com o laptop em cima. Resolveu guardá-lo, fechar a maleta e levantar-se do banco. Passear dissimulado pela estação. O metrô afastou-se abarrotado, olhares pelas janelas, gente absorta como ele que olhava o que vinha pela frente, pensamentos do dia.

Ele pressentiu que o homem o seguia com o olhar dissimulado, esgueirando-se entre as pessoas que iam e vinham, em busca de  novas chegadas,  extenuadas com as partidas.

Resolveu afastar-se, tomar a escada rolante que levava até a rua, afinal, não estava à espera de transporte, não se afastaria daquele bairro, não faria nada para mudar as coisas. Olhou para trás na mancha escura de pessoas que preenchiam a escada e viu o homem de moletom vermelho, também no mesmo rumo, olhando para os lados, fingindo outros objetivos, que não escusos, outras direções, que não a dele.

Temeu por sua vida. Mas o que ele faria naquela multidão? Melhor era retirar-se rapidamente, quase correr, alcançar a rua e entrar em qualquer bar ou galeria que encontrasse.

De repente, sentiu uma pancada na cabeça, uma dor forte, as veias latejando, parecendo rios inchados e as forças esvaindo-se, vendo-se rolar escada abaixo, esbarrando em pessoas que o empurravam, acotoveladas, desviando-se surpresas, obtusas em suas fisionomias próximas, olhos arregalados, pavor, torpor.

Um vazio imenso. Um nada no infinito. Ouvia-lhe a voz suave, dando-lhe as boas vindas e vontade de estar perto e não mais sentir dor. Nenhuma.

Viu o homem do moletom vermelho afastar-se depressa, como um fugitivo que deixara uma bomba às ocultas, num lugar público.

Avistava o céu embrumar-se em nuvens rápidas que corriam para o sul, trazendo chuva. Sentia os pingos frios e grossos chocarem-se com seu rosto, mas não podia mexer-se.

Pessoas corriam, abrigando-se. Poucos o olhavam e se o faziam, temiam se envolver. Comentários rápidos acenando ajuda.

Um que outro se aproximava e desistia, mas alertava os demais. Como pombos famintos nos grãos deixados na praça, chegando curiosos, cautelosos e debandando rápido, pressentindo  algum perigo. Outro resistia no banco da praça, incauto, à espreita, esperando retorno.

Até que pediram documentos, mexeram em sua maleta, pesquisaram seus bolsos, reviraram a sua vida. Quem sabe o salvariam? Sentiu um nó na garganta de dó e esperança, de medo e aflição, de angústia e espera.

Mãos fortes o seguraram, o retiraram da calçada de ladrilhos coloridos, picotados, como aqueles adornos de festa junina da escola, bandeirolas, correntes de papel de seda, enfeitando a sala. Uma menina de tranças vermelhas, correndo em sua direção, mostrando exultante os enfeites de papel, os desenhos mal acabados, mas coloridos e acalentados com um 10. Ele, empurrando-a, com força, com raiva e inveja, deixando-a esticada no chão, aos gritos, entre lágrimas que molhavam a cara vermelha de sangue.

Podia ser ela, podia ser Eugênia, ali, ao seu lado, sem despedidas, sem brigas, sem dores, repleta de mensagens reais em sua face macia, seus olhos vivos, brilhantes, examinadores. Olhos de detetive.

Deixaram-no no carro, o frio que sentia não era mais o dos pingos da chuva chocando-se com seu rosto, nem o medo do assalto, nem a expectativa da espera.

Era um frio interior que aumentava a cada minuto.

Sirenes invadindo as ruas, os ouvidos doendo, vozes misturadas, confundindo-lhe a mente.

Por que não se mexia? Por que não tomava o notebook que estava tão perto, por que não procurava novamente as mensagens, não buscava as informações que precisava, não levantava a cabeça para ver além. Além do carro, da sirene, das vozes, do corredor branco, do soro no braço, da cama inerte, do vizinho do quarto. Havia quarto? Vizinho?

Quem estava do seu lado, só divisava sombras, vozes distantes, absurdas, um buraco no estômago dilacerando-lhe as entranhas, um sentimento de onipotência, uma falta de dor, de consciência.

Quando distinguiu uma frase nítida aos ouvidos, pensou que fossem recados do celular. Quem sabe ela atendeu. Quem sabe estava ali, tão próxima, tão intima, esquecida das brigas, dos maus tratos, das vinganças, dos perigos da rua.

Mas não era a voz dela.

Era uma voz estranha, tão distante quanto o tempo em que estava assim, sem se mexer. Referiam-se a ele e precisava ouvir para ter certeza. Desligar os aparelhos. Foi tempo demais. Não tem mais volta. A família não suporta esperar. É muito sofrimento. Esperar o que? Desligar o que?  Suportar o que? Por que vão desligar...?

sábado, maio 30, 2015

PAREDES APARENTES

Morena, ainda percorro em infinitos passos, cada taco do corredor. Sei que imaginas, mas não sentes o que sinto, nem percebes a aflição. Toco nas paredes, como se me ouvissem, e às vezes, tenho a impressão de que não estão aqui, de verdade. Paredes aparentes que me oprimem, me sufocam como mãos que se torcem e me agarram a garganta. Morena, falta-me o ar. Queria ver-te, bem perto, nem que para apenas receber o beijo frio, molhar minha boca no teu veneno e corromper minhas vísceras. Quisera vender a mobília, cerrar as janelas, impedir o vento que rola as folhas em rodamoinhos de nossa paisagem. Quisera não sentir o bafejo na vidraça, molhando os olhos, nariz e boca no frio do vidro. Preferia fugir e pisar nos insetos que infestam nossas soleiras. Ouço tua voz, teu cheiro, tua presença. Ecoam tuas palavras, às vezes doces, outras, duras, frias, cruéis.

Moreno, arrisquei atravessar a lagoa, dei braçadas para vencer as marolas e não alcancei teu amor. Hoje, pra ti não sou nada, carta dobrada, que desfazes do baralho pra esconder o jogo. Fecha as janelas sim, deixa que a escuridão tome conta, sente meus dentes rangendo, minha boca estremecendo de raiva e torpor. Não sou nada, talvez a marca do adeus. Um adeus feito devagarinho, aos poucos, acalentado, pra não dar na conta. Meu destino é caminhar assim, desesperada, longe de casa, da tua vida, do lar. Quem sabe, o mapa que percorro não seja o mesmo das paredes falsas que construíste, mas que me dão guarida pra continuar.

Morena, saio na rua aos tropeços. Penso e repenso, nem sei se falo ou desisto, se grito ou alcanço com o som de minha voz fugaz dos que nem querem ouvir. Temo não te escutar jamais. Temo desviar nossos rumos, descarrilar nossos trens, afundarmos na lama fugidia que me cobre na chuva. Sei que fui omisso e não mais posso esperar que me ouças. Talvez nem pedir que me esperes, que examines com cuidado cirúrgico minhas passagens por teu corpo, teu ventre, teus seios, tua mente. Não, sei que me esqueces assim, de momento, para não mais sofreres. Agora, estou só, perdido neste vendaval que me tolhe os sentidos e os gestos. Encosto-me na parede, finjo que estou firme, ancorado, apoiado nas pernas finas que mal me cabem as calças. Sinto a dor da esperança e o olhar dos aflitos. Vejo-me na vidraça do bar, um rosto truncado, escondido em olhares sorrateiros, que não parecem os meus. Nariz adunco, avermelhado, os olhos fundos, congestão infinita. Entro no bar, me acerco de outros homens e mulheres que se esgueiram famintos na noite. Minhas mãos estremecem, assim como meu pés, imprecisos, solitários. Morena, dói-me o peso nos ombros, fardo que carrego sem querer. Dores que ferem e me afastam de mim. Morena, peço a bebida, que talvez aqueça a garganta e turve a alma.

Moreno, bebi da água pura que escorre sem dó, fria, entre minhas mãos ansiosas. Procuro o que não acho, vejo o que não encontro, desvio do que me atrai e me aproximo do que me atinge. Nem estou só, mas não me encontro entre os meus. Milhares de quilômetros nos separam, porque a distância interna é maior do que o mundo. Quisera sim estar ao teu lado, ouvir tuas queixas, assumir tuas dores, mas só soubeste golpear-me, assim de uma forma cruel e lenta para que a punição se tornasse comum e necessária. Quando te vi, nada mais restou a não ser a imagem da desilusão. Nem cansamos de nós, nem enfaramos de nossas vivências. Ao contrário, estávamos sedentos, um do outro. Mas a mulher de tua vida não pode ser apenas complemento do teu desejo. Vejo-te ainda ao lado dela e tão longe de mim. Minha mãe se acerca e pergunta qualquer coisa que não sei responder, ou nem sei decifrar. Como esfinge que me questiona, me perturba, me dilacera. Tenho olhos e ouvidos para aquela imagem que me fica guardada assim em multimídia, para não esquecer jamais. Respondo então o que devo e me vem à lembrança. Nada doce, nada suave, nada sensível. Estou só. Onde andarás, agora?

Morena, alguém se aproxima, sinto seus cotovelos próximos aos meus, no balcão de pedra. O garçom me olha de soslaio, triste, como se compartilhasse minha dor. No cotovelo, o retalho de couro, num casado antigo de lã, xadrez. Afasto-me um pouco, tento desviar os olhos para a porta de umbral redondo, cheia de vidraças coloridas; em cada uma vejo o teu sorriso, às vezes caramelo, às vezes, vermelho, às vezes, azul, às vezes sem cor. Teus dentes brancos sorrindo pra mim. Pareces um caleidoscópio. É bonito de se ver. O homem do casaco pergunta alguma coisa, vejo seu perfil e por um momento examino o rosto cravejado de espinhas, pequenas saliências que lhe agastam a fisionomia. Boca escondida num bigode tingido. Cabelos ao alto, circundado por extensas entradas. Olhos parados, finitos. Nada parece perturbá-lo, mas é só por um momento. Afasto o olhar e ele repete a pergunta. Me volto surpreso, porque nada me vem à mente, a não ser teus gestos brejeiros, tua voz sonora, límpida, teus olhos claros me dizendo coisas que não recusava ouvir. Carrega uma pasta estreita, uma espécie de guarda-tudo, talvez documentos, agendas, talvez fotos dos filhos. Não tivemos filhos, morena, nada nos sobrou a não ser o que nos vai na alma e o que lutas tanto para destruir. Ele insiste, puxa conversa. O barulho do bar fica quase insuportável, misturado ao som da tv que inicia um jogo de futebol. Um grupo se acomoda no meio do bar, espalhando-se entre as mesas, assim em pé, tentando torcer juntos, em uníssono, como pássaros em bando, conformados em viver um momento coletivo. Não é o meu caso, estou só, sem amigos, sem ti. Estás longe, morena. Tão longe que a distância até dói. Mas bastava um telefonema, uma mensagem pra começar o encontro. Foi o que ele falou, o homem do casaco com remendo de couro no cotovelo. Falou em encontro. – Não achas que tá na hora? Os homens deviam se encontrar mais, buscar em suas vidas, a paixão pelo encontro. Engoli a bebida destilada num gole. Olhei-o sem saber o que dizer. Ele pareceu entusiasmado com o meu espanto. Prosseguiu, enfático: – a paixão de se reunir. Não para assistir futebol, como fazem estes caras aí – quando terminava a frase, o nariz se erguia e uma troca rápida de olhares para a turma que já se acotovelava na galera - só tem por objetivo torcer por um time, mas não tem o sabor do encontro, da conversa fluída, da amizade intensa. Logo que acaba o jogo, cada um vai para suas casas, sem nunca mais se virem, a não ser no próximo jogo, ou na próxima beberagem. Acho que fiz um aceno afirmativo, mas quisera eu ter para onde ir, encontrar-te morena, me esperando, assim, de braços abertos. Teus cabelos caídos nos ombros, aquele cheirinho de sabonete de maçã, a boca pintada de vermelho, o olhar puro a me dizer todas aquelas coisas que eu sempre quisera ouvir. – Tu não achas que é um crime? Um crime com suas vidas, com suas ambições mais humanas, que deveria ser de integração, de procura e de encontro. O encontro máximo. Um com o outro. O garçom se aproximou, trouxe-me outra vodca, que ingeri sem gelo nem limão. Vi quando o homem abriu aquela maleta preta e esquisita e enfiou a mão com cuidado. Examinou-a de tal forma, que me pareceu haver mesmo alguma coisa muito perigosa ali dentro. Tirou um recorte de jornal, um cartão e me entregou sorrindo. Nem sei se li, morena, mas no recorte, eu via a tua imagem, tão linda, sorrindo, me dizendo coisas, aquelas em que eu sempre ajustava o ouvido com cuidado, pra não perder o matiz da trama bem urdida.

Moreno, nem devo pensar nos momentos que vivemos de bem, mas o bem que vivemos já não é o bem presente, que não é bem nem mal, apenas nada. Insosso. Sentimento puído, renda velha, desbotada. Traças que perfuram, impunes, a vida que se desenrola sem colorido. Minha mãe se atrapalha nas louças, nos talheres, se atrapalha nas pernas, se perde. Ajusto as costas, ergo o dorso, seguro-a com força. Penso em ti. Quisera estar do teu lado e esquecer a dor que causaste. Quisera sufocar também a dor que corrói meu coração. Ela está velha e doída. Talvez tenha sofrido assim,este desgaste, mas as costas não lhe doem como antes, porque se acostumou com a dor. Eu não. Sentou-se ofegante. Olhou-me nos olhos. Pensou em morrer. Disse-me coisas corajosas e até falou em ti. Estamos as duas tão só e nem nos fazemos companhia. Por uma estar se acabando na dor e a outra, a dor a acabou. Nossos mundos desiguais são apenas paralelos, mas ela sabe que só há um rumo em minha vida. Moreno, queria devolver-te a rosa, que não morreu jamais. Ela é símbolo da beleza que persiste. Minha mãe fala em perdão, porque teme não haver mais encontro, ela que já se desencontrou tanto nesta vida e nem achou seu rumo. Se achou, perdeu de vez, assim, cansada, tropeçando nas coisas, tendo raros momentos lúcidos, fugazes, que temo não encontrá-la jamais. A não ser, batendo-se nos móveis, perdendo-se em labirintos dos quais nao encontre a saída. Melhor ficar quieta e esperar.

Morena, ensaiei alguns passos, tentando afastar-me olhando a figura que mostrava teu sorriso tão franco, como se fosse me contar uma de tuas histórias. Mas o homem do casaco de remendo de couro me puxou pelo braço. Indicou o endereço, falou-me na igreja, o único ponto de encontro que julgava ter algum objetivo. Li o cartão ,agradeci e tentei afastar-me. Mas um sonoro não ecoou no recinto, tão forte que paralisei. Minhas pernas estremeceram, meus pés suaram encharcando as meias. Por um momento, os olhos e todos se desviaram da tv e se voltaram para nós. Para mim, porque de alguma forma, fazia parte do drama que para ele se agigantara entre todos, como se força descomunal tivesse. Abriu a mala preta, esquisita e retirou um revólver, apontado em seguida para a própria cabeça. Tentei falar-lhe. Me contive. Só ali tua imagem desapareceu, Morena. Uma cena tão forte, me fez temer pela vida, mas não entrei em pânico. Apenas ouvi. – Ninguém quer, ninguém pode, mas eis o encontro. Se não ouvirem a palavra, não se integrarão como devem. Eu já não posso! Não conseguia entender porque se mataria se pregava a união. Ele então, virou a maleta sobre o balcão de pedra, ante os olhos assustados do garçom. Uma mulher loira, cabelos presos ao alto se antecipara à cena, adentrando à porta e alguém a interceptara com um gesto. Como se tudo devesse ocorrer da forma esperada. Ou imaginada. No balcão, voaram papéis para todos os lados. Notas promissórias, contas, talões de cheques. Aproximei-me. Argumentei:– Se queres o encontro, como pretendes te matar? Ele gritou, exasperado: – Por isso mesmo, porque ninguém quer o encontro e eu me endividei! A Receita Federal está atrás de mim! O Banco Central me procura! O Ministério Público, a Polícia Federal me caça! Não se aproximem. Façam o que não fiz. Vão à igreja e ajudem o irmão. Não destruam o seu pastor! – e disparou um tiro na cabeça, despencando no chão. Algumas gotas de sangue respingam em meu rosto. Depois do estampido, um silêncio brutal. Foi só um segundo. O garçom quase saltou sobre o balcão, a mulher que chegara há pouco, gritou em desespero, pedindo socorro, os assíduos do futebol se afunilaram em volta do corpo. Dobrei-me sobre o homem, tentando descobrir se ainda havia vida. Mas nada. Abri o paletó de lã, xadrez, com o remendo de couro no cotovelo. Encontrei uma carteira, examinei as fotos, os documentos. Pastor da igreja evangélica. Levantei-me. Chamei o dono do bar para que tomasse alguma atitude em relação ao defunto. Afastei entre o grupo que se alinhava, atenção máxima na cena inusitada que se desenrolava ante seus olhos. O sangue brotava do ouvido, alagando o piso, do qual os pés descuidados se afastavam devagar. De repente, um gol sonoro na tv e todos os olhares e gestos e movimentos bruscos se efetuaram no mesmo instante. Aproveitei para afastar-me, Morena, acabrunhado, sem ter muito o que fazer a não ser enfrentar a chuva. O frio me fazia ranger os dentes. Quisera estar aí, do teu lado, acendendo algumas achas de nossa lareira imaginária, e sentir nas minhas mãos as tuas, percorrendo nossos corpos aquecidos. Só me resta, porém, divagar entre as calçadas irregulares, atravessando ruas enlameadas, buscando o nada, voltando para as paredes aparentes e sentindo-me mais perdido do que estou agora. Sem querer, vejo a luz do teu quarto, ao longe, um pequeno abajur que enfeita tuas noites de leitura, teu notebook abusado, amigo inseparável que me substitui a todo tempo. Quisera estar contigo, Morena, embora com ele ao lado dividindo nossos espaços. Esperando que tua mãe dormisse e esquecesse o passado onde reina rainha de um mundo desconhecido, só seu e de seus mortos. E assim ficaríamos abraçados, tomando vez que outra um vinho ao gosto, repetindo pra nós mesmos que o mundo se resumia nestes momentos, salvaguardo pela atenção, o carinho, o cuidado, o amor.

Moreno, da janela avisto um riscado cinza que ora aparece ante a luz de postes. Um riscado de água que escorre incólume pelas calçadas, inundando vielas, mergulhando as lágrimas dos que vivem ao relento, ou nas fachadas sonhadas de casas inexistentes de papelão. Sei que ficarei assim toda a noite, esperando que a vida passe, que o tempo se esgote, que minha mãe vislumbre uma cena real por alguns segundos e esqueça de vez dos vivos. Ai de mim. O tempo passa, Moreno, a mola- mestra da vida não tem fim. Melhor esquecer e não seres nada mais do que uma lembrança boa, manchada apenas pela traição. Melhor assim. Um homem qualquer, como tantos outros. Mas se surgisses nesta escuridão listrada, se vislumbrasse teu rosto molhado, teu corpo encharcado, teu pedido de perdão, talvez não soubesse dissimular, e perder de vez a vergonha, o orgulho, a auto-estima, a raiva, o ódio. Tal como as putas que te assediam. Sem vergonha, sem recato, sem princípios. Talvez não dissesse nada. Apenas abrisse a porta.

Morena, como atravessar os degraus, subir as escadas respingando nos patamares diáfanos, sujando o branco dos mármores, aviltar com minhas botas a pureza dos andares, o enfeitar dos verdes, ligeiramente escorrendo folhas pelos vasos floridos. Temo resfolegar, engolir em seco, mastigar as palavras incongruentes, construir sintagmas estranhos, inventar hipóteses absurdas. Minhas pernas tremem. Morena, meu cabelo ensopado de chuva e suor cai-me na testa, afugentando a imagem escondida, acabrunhada, meus olhos submersos em água e lágrima, mergulhados em que estão num vazio absurdo, meus ouvidos que somente ouvem o próprio som que me vem da alma, expressos numa única palavra: perdão. Mesmo com a mão trêmula, um pingo de coragem alicerçada na bebida destilada que me aquece a garganta, espalmo a mão desajeitada, encostando-me à porta impoluta, alimentado apenas pela esperança, tênue, rasa. A porta se abre devagarinho, adivinhando a investida. O olhar furtivo, a boca vermelha, o cabelo ondulado, caído nos ombros, a voz sonora e límpida.

Morena.

–Moreno.

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