Ouço batidas, soam longe, mas aos poucos, ficam mais audíveis, como se ocorressem muito próximas. O som se torna agudo e forte, ríspido como um alarme. Meus ouvidos doem, alma lateja. Observo, aflito, as paredes, os espaços, os cenários que se multiplicam. Fico imaginando se este barulho não parasse jamais. Como viveria assim, nesta voracidade que corrói meus ouvidos. Parece uma eternidade. Não sei se é algum alarme ou é meu coração. Quisera voltar aos poucos, a ouvir sons óbvios, quase inúteis. Quisera apenas ouvir o som do carro que se afasta, da música dormente do apartamento ao lado, do assobio agudo nas noites enrijecidas, dos fonemas dispersos de minha voz afônica. Quisera apenas viver o mesmo do mesmo, sem este alarme que sonda minhas invasões. Se não houvesse essa tela dormindo em meu travesseiro. Se não houvesse esse impulso e pulsão de clicar. Se não houvesse essa aflição em ser ouvido, visto e amado. Talvez, esse alarme parasse de soar.
Este blog pretende expressar a literatura em suas distintas modalidades, de modo a representar a liberdade na arte de criar, aliada à criatividade muitas vezes absurda da sociedade em que vivemos. Por outro lado, pretende mostrar o cotidiano, a política, a discussão sobre cinema e filmes favoritos, bem como qualquer assunto referente à cultura.
domingo, dezembro 10, 2023
sexta-feira, agosto 04, 2017
De cara com o monstro
O monstro se aproximava devagar. Ninguém sabia de onde viera e qual o seu objetivo. Todavia era um monstro singular. Um monstro que se moldava de acordo com nossos desejos ou esperanças, às vezes tentativas de mudança.
Certa vez eu caminhava pela avenida que atravessava a cidade de ponta a ponta, o trânsito já diminuira e a iluminação começava a ficar precária, conforme eu me afastava do centro. Sabia que mais cedo ou mais tarde, eu o encontraria por ali. Diziam que ele costumava ficar naquelas redondezas do grande canalete que dividia a cidade. Talvez entrasse pelas águas turvas e se lambuzasse na sujeira que por dias alimentava aquela travessia aquática. Eu nem tinha certeza se o canalete tinha como objetivo livrar a cidade das enchentes, porque o povo costumava jogar entulhos, garrafas plásticas e além da poluição gerada, por certo um daqueles objetos iria parar numa saída de água obstruindo-a e facilitando a inundação.
Fiquei assim pensativo e decidi sentar num dos bancos, que margeavam os muros do canalete. O monstro daqui a pouco surgiria, mas eu não o temia. Nunca o tinha visto, porém tinha comigo que aquele monstro tão questionado por sua conduta perigosa, não passava de um monstrinho assustado por toda agonia aquática e seu poder de destruição. No fundo, ele tentava apavorar os homens para esquecer o próprio medo.
Mas estava ali, esperando-o e fiquei por horas a fio, nao sei quanto tempo. A lua desapareceu, dando lugar a nuvens escuras e eu temia que chovesse ou ocorresse uma ventania fora de hora, fazendo redemoinhos de folhas e poeira.
Um homem passou correndo por mim, usava boné, moleton escuro e bermudas. Não vi o seu rosto, mas percebi que fugia de alguma coisa ou de alguém. Talvez do monstro. Não por muito tempo, apenas o suficiente para voltar com uma fisionomia diferente, como se fosse outra pessoa. Parecia transtornado e demasiado eufórico, a ponto de gritar coisas sem nexo e me encarar com olhos sanguinolentos, embora revelasse uma total ausência de minha figura. Atingiu com pontapés uma coluna que projetava alguns degraus para o fundo do canal, descendo-os em seguida e ali mesmo aliviou-se, enquanto simulava articular um funk que somente ele entendia. Como chegou, desapareceu sem deixar vestígios.
Continuei sentado, procurando mensagens no celular, mas logo o guardei no bolso, pois não havia nada de novo, a não ser as mesmas publicações das redes sociais, as eternas correntes religiosas do whatsapp e os incontroláveis votos de boa noite. Fiquei ainda mais pensativo, imaginando o monstro e suas ações. Certamente, se encontrasse aquele rapaz, o golpearia com suas patas enormes e após arremessá-lo ao chão, montaria no seu corpo frágil e enfiaria as garras na garganta até sufocá-lo com o próprio sangue em golfadas.
Estava tão absorto que nem percebi que uma motocicleta se aproximava, subindo sobre a calçada e estacionando num rodopio, em frente ao banco em que eu estava. Aquele banco de pedra já me doía a bunda e eu havia decidido afastar-me de vez daquele cenário vazio, quase absurdo, numa noite de outono. Entretanto, um dos motoqueiros, rápido como um flecha, deu um salto da motocicleta e espetou uma faca em minha garganta, de tal modo que eu sentia a ponta quase rasgando a pele, tendo a sensação de que ele a cortaria. A primeira ameaça, a primeira exigência, o grito de guerra, enquanto o outro puxou o celular do bolso, bem como a carteira, examinado algumas notas que ainda sobraram após a compra de uma cerveja. Logo em seguida, o da faca, golpeou-me a cabeça com o cotovelo e deu-me outro soco para arrematar a ação, quebrando-me os dentes, produzindo um jato de sangue que me escorria da boca, enquanto eles pulavam na moto e desapareciam na névoa que se antecipava.
Fiquei ali, patético e humilhado, sem tomar qualquer atitude. Talvez devesse chamar a polícia ou queixar-me às autoridades competentes o fato de um cidadão de bem ser impedido de ficar observando a noite, cuja claridade se esvaía com o aumento da neblina. Neste ínterim, percebi a volta do rapaz eufórico, embora agora parecesse um tanto depressivo. Vinha acompanhado de um grupo de maltrapilhos, como se estivesse cercado por zumbis, cujas chamas iluminavam os olhos sem vida e a fumaça dos cachimbos se agregasse à cerração que ficava cada vez mais densa. Alguns carros paravam próximos ao grupo, dos quais desciam vários jovens. Alguns subiam nos muros do canalete e caminhavam sobre ele, bamboleando os corpos, numa ousadia que os transformava em verdadeiros equilibristas. Davam gritos, risadas e berravam palavras de ordem, que mais pareciam um amontoado de palavrões.
Eu os observava desiludido. As costas doíam, a cabeça, os ombros, todo o meu corpo e meus lábios cortados sangravam. Eles prosseguiam com a tépida chama dos cachimbos, fumando o crack e manifestando uma euforia semelhante ao do rapaz que urinara no canalete, embora bem mais agressivos. Eu esticava as pernas, na tentativa de levantar-me, quando outra motocicleta apareceu, descendo dois jovens, escondidos em capuzes escuros. Senti um arrepio, temeroso de ser agredido novamente ou talvez morto, caso fossem outros assaltantes. Entretanto, pude perceber que se tratava dos encarregados da venda das drogas. Um dos rapazes que descera do carro, puxou a carteira do bolso e pagou a compra, como se estivesse procendendo uma simples operação financeira.
Em dado momento, aproximaram-se de mim, oferecendo-me as drogas, que pareciam ser gratuítas naquele momento. Eu poderia pagar num outro dia qualquer. Esforcei-me em argumentar que não usava drogas de modo algum, eu estava ali com outra finalidade: ver o monstro que todos comentavam, eu queria enfrentá-lo, conhecer a sua ferocidade e a fraqueza. Eu queria vencê-lo. Eles sorriram, dizendo-me que estava no caminho certo, bastava usar um comprimido apenas. Podia esquecer o crack, a cocaína ou qualquer outra pílula da felicidade. Eles tinham a saída para todas as minhas dores, tanto físicas quanto psíquicas.
Por um momento, tentei levantar-me, fugir daquele grupo que me cercava e me deixava atônito, mas se mostravam tão amigos e companheiros que não havia como refutar. Eu, que me sentia tão sozinho, estava ali, entre amigos.
Por fim, ofereceram-me o tal comprimido e naquele instante seguinte, alcancei um excesso de felicidade, quase êxtase, um upgrade no desejo sob todas as formas, energia e bem-estar. O mundo girava a meu favor e a vida rendia perdão aos meus sofrimentos, como se a gratidão se antecipasse à dor ou a qualquer infortúnio. Eu estava feliz. Então, pediram-me o número do celular roubado, eu já nem lembrava, mas isso não importava muito, pois logo, logo saberiam. Como parceria aos meus atos, correram até os bandidos que me assaltaram, fizeram buscas, investigações e com uma pertinácia, quase obsessão, acionaram todas as ferramentas para atingir o objetivo e reouveram os meus pertences, meu celular, a carteira e até os poucos trocados que ainda restavam.
Eles me ajudaram com a mais alta competência. Porém, com o passar das horas, percebi que alguma coisa diferente acontecia comigo. Era como se o mundo debandasse às minhas costas e a vida se tornasse insossa e cada vez menos visível. Como se estivesse envolto em feno e era apenas o seu sabor e cheiro que sentisse. Não tinha a impressão de nada, mas tinha a intuição apurada a ponto de perceber o que sempre sonhara: o monstro se aproximava e desta vez, estava bem perto, me encarando.
quarta-feira, julho 26, 2017
O VIGÉSIMO ANDAR
Às vezes, tenho a impressão de que as paredes do elevador se aproximam e me acolhem com delicada impaciência. Passam por meu corpo faminto e suado e me dizem coisas desconexas, que somente elas entendem.
Seguro-as com força: as mãos espalmadas, o peito encostado em suas carnes metálicas. Sinto um leve arrepio.
Não consigo afastar-me, como se estivesse irremediavelmente preso, quase fundido em suas fibras e entranhas.
O elevador para no décimo andar.
Um homem entra e finge não me ver.
Ao mesmo tempo, as paredes se afastam, tal como eu, que me encosto no ângulo da esquerda. Ali, a minha visão é privilegiada.
Olho em torno, retribuindo a distração.
Ele abre uma maleta, retira um notebook e examina qualquer coisa, sem muita atenção.
Observo-o firmar os olhos na direção da porta. Parece ansioso.
Reparo que tem olhos claros e frios.
Talvez seja um executivo, um professor de línguas, um advogado.
Não é, porém, um cidadão de bem.
Percebo a aflição que paira inquieta em seus olhos.
Um olhar oblíquo, dissimulado.
As mãos magras e ossudas.
De vez em quando, lambe os lábios, ressequidos, e se eu não estivesse ali, talvez lambesse os dedos. Ou coçasse a cabeça, ou limpasse o nariz com o mindinho.
Sei que se comporta em atitude imóvel, porque estou aqui, bem a sua frente.
O elevador para no vigésimo andar.
Ele tenta abrir a porta. Espalma as mãos, com força, mas nada acontece.
Emperrada. Decidida. Mais forte do que ele.
Às escondidas, dou um meio sorriso.
Sei como são estas coisas e como acabam.
Ele empurra com o joelho, esfola a perna.
Debate-se na parede.
Então, se volta para mim, aturdido.
Pergunta:
― Que está acontecendo? – não respondo, também tenho meus caprichos.
Aquela sofreguidão na fala, a total insegurança, o medo estampado no rosto, me deixam quase feliz.
Ele me olha cada vez mais apavorado. Aperta todos os botões. Grita por socorro.
Por fim, eu vaticino, despreocupado:
― Já estou acostumado.
__ Acostumado com o que? Que quer dizer?
—Que tudo é possível, quando se está assim, sozinho dentro desta caixa, não há como sair, escapar, fugir. É inevitável.
— Como assim? Por que diz isso? Eu quero sair daqui, imediatamente! Pelo amor de Deus, eu quero sair! Aqui dentro – afirma ofegante – Eu fico louco!
― É tudo uma questão de hábito. Com o tempo, tudo fica normal.
—Como “normal”?! Nada é normal preso aqui dentro. Escuta, eu quero sair, dessa porra! Pelo amor de Deus!
— Sinto muito, meu amigo. Não posso fazer nada.
— Por que está tão tranquilo? Por que não pede ajuda?
— Porque nunca mais sairemos daqui. Estamos no vigésimo, não?
—E daí, você é louco! Claro que vou sair. Alguém tem que nos ajudar! Socorro! Socorro! – Dá pontapés na porta, em absoluto desespero.
— Não adianta, ninguém vai ouvir você daqui!
— Não diga bobagens! É só uma questão de tempo. Faça alguma coisa, você também!
— Não posso, porque chegamos ao vigésimo!
— O que isso tem a ver? Não me interessa em que andar estou, quero é sair dessa merda, não ta me entendendo?
—Uma pena, que você não possa entender.
—Então me explique, pelo amor de Deus! O que quer dizer com isso?
— Que o vigésimo não existe! Do décimo nono, saltamos para o vigésimo primeiro.
— Como assim?
— Muito simples. O vigésimo é uma porta sem saída, para o nada. Quando chegamos aqui, devemos ser pacientes e esperar, apenas.
— Você é louco, não vou entrar na sua insanidade! Vou pedir socorro pelo celular, vou ligar para um amigo, para polícia, para minha mulher, alguém que resolva esta merda!
— Perda de tempo. Aqui não há conexão. A conexão é outra. O mundo é outro.
Ele digita um número com os dedos trêmulos. Por certo, o sofrimento ainda nem começou, mas aos poucos se dará conta que não há como fugir. As coisas são o que são e acontecem de maneira determinada. Não há o que fazer.
Gosto de ver, o quanto a fisionomia deste homem mudou, do olhar frio e dissimulado, passa a ser atarantado, um animal acuado na armadilha. Pânico em suas atitudes, refletindo-se na postura desequilibrada, que se espalha pelo piso do elevador.
Sei que não devo ajudá-lo, é preciso que absorva a realidade. Sua mente deve encher-se do novo. Não adianta esbravejar porque o sinal do celular não funciona. Nem se apavorar com o temor da prisão. Isso é somente o começo.
Iolanda desligou o celular e desceu as escadas devagar.
Na rua, um silêncio absurdo parecia isolar a praça do resto do mundo.
Espiou pela porta do prédio e viu o ambiente amplo, completamente vazio.
Sombras de árvores deitavam em bancos de pedra. Alguns caminhos irregulares.
Afastou a porta devagar, deslocando-se em ritmo lento pela calçada. Sôfrega. Um cansaço parecia acumular-se nos ombros.
Aflita dirigiu-se à praça, atravessando rapidamente a avenida deserta.
Que horas seriam? Mais de três horas num dia ermo de semana, sem qualquer possibilidade de movimento.
Cães ladravam ao longe e uma pequena brisa começava a sacudir as folhas das árvores.
Olhou para o alto.
A lua desaparecia lenta, por entre nuvens e o céu tomava um negrume extraordinário.
Se não fossem as luzes da cidade, tudo estaria numa escuridão total.
Sentia-se estranhamente calma apesar de tudo.
Nem mesmo aquele deserto humano a assustava, não fosse o fato de precisar voltar para casa.
Mas faria isso?
Esperaria aquele elevador infinito que a aturdia, que a impelia a pensar sempre a mesma coisa?
Até quando continuará tão solitária ao lado daquele homem de olhar frio e dissimulado?
Se tivesse coragem, conversaria com o ascensorista para tomar uma atitude extrema. Ele sim, sabia portar-se como um gentleman, desses que não existem mais hoje em dia.
Ah, se tivesse coragem, por certo, Ricardo não atravessaria a porta de casa.
Nunca mais alcançaria o vigésimo primeiro andar.
segunda-feira, julho 10, 2017
O despertar do brinde

Saber como se adequar às coisas, como se apropriar da vida, como sobreviver. Poderiam ser frases de um reality show de desafios, mas nos dias em que vivemos, parece que os desafios são mais reais e incongruentes do que qualquer programa desse gênero.
As pessoas já não se encaram, nem mesmo quando estão do outro lado do balcão. Basta-lhes a tela do computador ou o visor do celular. Buscam, pesquisam, navegam, incluem números e documentos e quase não se olham. Um trabalho qualquer numa loja é suficiente para se observar estas facetas dos funcionários, bem como dos clientes.
O sistema é o deus onipotente de qualquer trabalho. O sistema abrange desde a contabilidade das empresas e bancos, até o humor dos empresários ou do passante distraído na avenida. Mesmo no transporte, não existe nada mais importante, nem mesmo os sinais de trânsito do que o gps e o celular.
Isso sem falar nas redes sociais. Ali tudo é possível, a mídia virtual manisfesta a todo o momento as necessidades mais urgentes ou menos importantes dos usuários.
Por um momento, penso, como nos apropriarmos de nós mesmos, das coisas que observamos na rua, da natureza, das construções antigas, da beleza das fortalezas, dos faróis, dos mares, dos navegantes, do povo.
Como nos adequarmos ao simples, ao verdadeiro e real? Como ver apenas, sem registrar para os outros, como assistir o show com a intensidade de sua perfomance, sem lançá-lo instantaneamente para o mundo através de milhões de bites, sem aproveitá-lo na íntegra?
É agradável mostrar aos amigos os nossos prazeres, como viagens e festas, mas de um modo tranquilo, registrado sem perder o momento, a espontaneidade da alegria, o despertar do brinde.
Que brindemos à experiência da vida e somente a partilhemos num registro posterior.
Viver é experienciar no ato.
terça-feira, fevereiro 07, 2017
Uma bomba e a aeromoça gaúcha
— Capaz!, tu não acha que o caso é sério? Tri responsável o rapaz avisar dessa coisa. Vai ver que é uma bomba, mesmo!
quarta-feira, novembro 09, 2016
A fotografia da vida de Santa - CAP. 18
Nosso folhetim dramático encaminha-se para os últimos capítulos. A seguir o capítulo 18, mas logo, logo chegaremos ao desfecho final.
As cores estavam esmaecidas. Paredes descascadas, velhas. Quando ele entrou e avistou a cena melancólica sentiu as pernas estremecerem e um rubor estranho percorrer-lhe o rosto. Aquele cheiro de coisa velha, mofada, o ar sofrido que o envolvia. Deu meia volta, pensando em fugir, mas desistiu. Parou na porta, segurando o marco, talvez para evitar afastar-se de vez. Seus olhos estavam perdidos. Não queria ver aquela coisa dissoluta que se transformara a sua casa. A sua vida, o seu passado.
Entrou devagar atravessando a sala em direção ao corredor que desembocava numa área que outrora fora verde. Quem sabe, respiraria melhor, ali. Seu coração estava agitado. Suas mãos suavam.
Procurou por alguma coisa no quarto. Sim, o quarto, antes de chegar a área. Era o seu quarto.
Aproximou-se da cama, deitou-se e ficou olhando para o teto. Estava tudo sujo, com teias de aranha e um cheiro de mofo que exalava dos cantos úmidos.
As palavras de Santa ainda martelavam em sua cabeça. Sabia que precisava ficar de um lado e estava com muitas dúvidas.
Fernando recostou-se na cabeceira e segurou a cabeça com as mãos. Por que sofria tanto, afinal a tia não significava muito para ele, a não ser que o havia ajudado a trabalhar naquela casa. Fizera-lhe um bem, é verdade, mas estava sempre ao seu encalço, rondando com uma certa ameaça, dizendo-lhe que um dia precisaria dele e que não poderia falhar. Se não a ajudasse, muito mais do que perder o emprego, seria perder a liberdade.
Na verdade, ela o usava, mas deixava o barco correr. Não podia fazer nada mesmo, estava bem daquele jeito. Tinha um trabalho, ninguém o incomodava.
Mas agora, havia aquele segredo que ele sabia e que talvez pudesse livrá-lo de seu jugo.
Por outro lado, teria de ajudar a patroa e fazer o que lhe pedira. Tinha que pensar.
Fazia tempo que não dormia naquela casa, que um dia fora de sua família e que agora estava abandonada.
Fazia tempo que não retornava ao seu quarto, às suas coisas, que deixara para trás, quando fora preso.
Ele agora senta-se na cama e revira as gavetas do criado mudo. Uma série de papéis, documentos, bulas de remédio. Talvez ainda houvesse alguma droga, mas não era isso que precisava naquele momento.
Levanta-se então e procura numa cômoda, abre várias gavetas e numa delas, encontra um embrulho com um elástico envolvendo-o.
Abre-o devagar, pensativo. Sabe do que se trata. Rasga o papel e retira uma arma, examina-a, engata o silenciador e fica apontando-a na direção da janela. Talvez precise usá-la.
Atira-se na cama novamente, e aponta várias vezes para o teto.
De repente, seus olhos se anuviam e sente uma forte raiva por Linda, ao mesmo tempo em que detesta Santa.
Afinal, as duas estão manipulando-o para conseguir os seus objetivos. O que ele nem desconfiava é que a tia tivera um filho no passado com o patrão. Onde estaria este rapaz?
O celular dá um alarme do whatsApp. Desbloqueia rapidamente a tela e vê a imagem de Alfredo surgir instantânea.
Pensa se deve responder-lhe. Fica em silêncio.
Em seguida, decide tomar a iniciativa que vinha protelando. Responde a mensagem. Alguns segundos depois, ele informa o endereço.
Solta o celular ali mesmo, na cama e sorri.
Quem sabe, as coisas podem melhorar para o seu lado, pensa.
Há tempos, o filho de dona Santa o olha de um modo estranho que parece convidá-lo a alguma coisa proibida.
Ao mesmo tempo em que se aproxima, também se afasta e o deixa entre os jardins, como se fosse um acessório que devesse observar e talvez achar bonito.
Algumas vezes, trocaram algumas palavras, nada demais, mas percebia em seu olhar uma intensidade que produzia muitas interrogações, nunca respondidas. Quem sabe, estava na hora de descobrir e encontrar um caminho para a sua vida que não estava nada tranquila, ultimamente.
Fernando já estava pensando em ir embora, quando tocaram a campainha.
Foi até a porta da frente e abriu-a para Alfredo, que o olhava angustiado.
Convidou-o a entrar, mas Alfredo exitava, dizendo que estava confuso e talvez fosse melhor conversarem noutro lugar.
— Mas qual é o problema? Esta casa era de meus pais, eu morei muito tempo aqui, agora estava abandonada e estou decidido a vir para cá. Por que você não quer entrar?
— Não é isso, quero dizer. Acho que deveríamos sair para um lugar público. Quem sabe, tomarmos uma cerveja.
— Do que é que você tem medo?
Alfredo olhou para os lados. Na esquina, um homem parecia observá-lo, caminhando pela calçada e voltando para o que ele supunha ser uma farmácia. Tudo, no entanto, parecia deserto.
— Eu não tenho medo de nada. É que nós nos vemos na casa de minha mãe, trocamos uma ou duas palavras, aliás, pouco vou lá.
— Mas então, o que você quer de mim?
Alfredo estremece. Olha novamente para esquina e observa que o homem se afastou em definitivo. Prossegue, ansioso:
— Você sabe, conversar um pouco. Mas acho que me enganei, forcei a barra com você, me desculpe, acho que fui longe demais.
— Não, espere, onde quer ir? Eu vou com você.
Alfredo se surpreende e responde, um pouco mais calmo:
— Estou com o carro aí na frente.
Fernando responde que é só o tempo de fechar a casa. Ao entrar, reflete no encontro que tivera com Santa e agora enfrenta o filho.
Sorri. Parece que a família está fechando o cerco.
Devem ter bons motivos para procurá-lo, principalmente Alfredo, pensa irônico.
Guarda a arma no bolso da calça e após fechar a casa, corre na direção do carro.
Alfredo o espera, sorrindo.
sábado, outubro 22, 2016
A fotografia da vida de Santa - CAP. 13
No capítulo décimo segundo, a família acabou concordando com a proposta de Sandoval de considerar Santa como incapaz, para que ela não conseguisse mexer no patrimônio. No entanto, Sandoval jamais poderia imaginar que Linda gravara toda a conversa e que faria chantagem, a ponto de também impor as suas condições. É o que veremos no capítulo a seguir de nosso folhetim dramático. Boa leitura!
Capítulo 13
Linda olha em torno, como se aqueles móveis que há tanto tempo convivera, também fossem seus, de direito. Por fim, responde a pergunta de Sandoval com muita segurança.
— Quero que me considere da família, afinal temos um filho juntos. Faço questão que o assuma e repasse a parte da fortuna que lhe cabe de direito. E depois que dona Santa estiver fora do páreo, eu pretendo tomar conta da casa. Nada mais junsto, não acha? E depois, quem sabe um dia não casamos oficialmente?
— Você é mesmo uma desvairada! Eu jamais cometeria uma sandice destas! Fique sabendo de uma coisa, Linda eu posso chamar qualquer empregado e ele arranca este celular
de suas mãos e a mando embora desta casa para sempre. — Se eu fosse o senhor, não faria isso. Em primeiro lugar, porque já enviei a mensagem gravada para outro celular e em segundo, se o senhor olhar pela janela, vai ver um belo rapaz caminhando pelo jardim. É meu filho, ou melhor, o nosso filho e ele sabe de tudo que está acontecendo aqui.
— Sua desgraçada, você quer acabar comigo. Quer destruir a nossa família. Mas fique sabendo que não conseguirá levar este plano maluco adiante, não pense que uma simples ameaça destas vai me convencer!
Linda fica calada. Dá alguns passos até a janela e olha por um instante para fora. Em seguida, volta-se para ele e pergunta em tom de ameaça:
— Então o que o senhor pretende fazer? Quer que eu conte à Dona Santa tudo o que está acontecendo? Quer que eu lhe diga o que a família está planejando contra ela?
— E como você foi parar aí, sua infeliz, eu não acredito que esta ideia tenha sido sua!
Linda ri, irônica.
— Para o senhor ver o grau de confiança que dona Santa tem no senhor, foi ela quem pediu para que eu me escondesse e lhe contasse tudo o que estava sendo decidido na reunião. Acho que ela foi mais esperta que o senhor.
— Eu não preciso das suas opiniões. O que aquela idiota estaria planejando? Só podia juntar-se com uma gente como você! E está traindo-a, veja, que bela amiga ela arranjou!
— Ela também arranjou um marido que a traiu e pior do que isso, está traindo-a pelas costas convencendo a família de que é uma louca. Nós somos iguais, Sandoval, nós lutamos pelas mesmas coisas, com as mesmas armas!
Sandoval, de repente, tem um acesso de tosse, que o deixa quase engasgado. Os olhos enchem-se de lágrimas e ele vai até a janela. Lá avista o rapaz que senta-se num dos bancos. Volta-se, muito vermelho. O coração aos pulos. Um ódio que o assola, mas que precisa controlar, para contornar o problema. Acha que deve fazer uma trégua, quem sabe, um pacto.
— Pois muito bem, digamos que eu aceite as condições insanas que você está me propondo, você acha que a minha família acreditaria que eu chegaria ao ponto de me sujeitar à chantagem de uma simples empregada?
— O senhor foi bem convincente com eles. Então use o seu grau de convencimento para que entendam que eu não estou brincanco. Agora, depende do senhor, não de mim. Eu proponho que dona Santa vá parar no hospital psiquiátrico. É a única maneira de resolvermos esta situação. O resto se acomoda, com o passar do tempo!
— Você hem, tao prestativa, tao religiosa, acompanhando a minha mulher na igreja, ajudando-a, você a odeia, isso sim! Você quer acabar com a vida dela, quer destruí-la!
— Sim, eu a odeio com todas as forças do meu coração. Ela me humilhou durante todos estes anos! Ela me transformou numa figura apagada, alienada da vida, somente esperando o momento certo da minha vingança! O senhor não sabe quanto eu esperei por esta oportunidade, por este momento!
— Ela era boa pra você, sua ingrata!
— Era conveniente apenas. Eu era a sombra que a acompanhava, eu era sempre a pessoa que estava ao seu lado, em todos os momentos, bastava um chamado para que eu corresse para o seu lado. Era a empregada disponível, 24 horas por dias, quase uma escrava. Na verdade, dona Santa nunca foi minha amiga, ela não suportava a ideia de eu ter um filho com o marido dela. E o que ela fez? Lidou com a situação com dignidade? Me correu de casa? Não, ela abafou a história, para manter as aparência da família aristocrática e extremamente religiosa. Ela me transformou na criada intima, para que o segredo ficasse só entre nós. Ela nunca pensou na vida que o meu filho levava longe de mim, nunca teve piedade pelas minhas noites de desespero quando ele estava doente e eu não podia encontrá-lo, enquanto os filhos dela estavan fortes e sadios ao seu lado! Eu odiava dona Santa, ah como a odeio! Ela me roubou o melhor de minha vida, a convivência com o meu filho.
— Você só quer vingança.
— Não, quero muito mais, quero a minha vida de volta, e somente o senhor pode conseguir isso.
— Mas você não acha que é um objetivo inglório? Acha que é possível enlouquecer uma pessoa? E depois, não acha desumano demais, Linda? Eu não acredito que vivendo tanto tempo ao lado de Santa, você tenha esta coragem! É muito cruel!
— Mas não é o que a família decidiu?
— Não, não é verdade. Nós apenas queremos que ela seja considerada incapaz para tomar decisões quanto ao patrimônio, decisões financeiras. Você quer enlouquecê-la realmente. Você quer inclusive que ela seja hospitalizada numa clínica.
— Mas não é o mais correto? Por que perder tempo, se a coisa pode andar mais depressa? Eu sou considerada sua amiga, ela jamais vai perceber, se eu ministrar medicamentos e o senhor sabe muito bem como consegui-los, além disso, podemos fazer com sofra ameaças, a ponto de não suportar mais!
— Você pensou em tudo, Linda. Você é muito cruel.
⁃
— Será melhor para todos. Pense bem – neste momento, Linda passeia pela biblioteca muito segura, como se tivesse as cordinhas nas mãos, para manipulá-lo – a sua filha esquecerá para sempre as sacanagens do marido, afinal, a situação da mãe é mais importante. Porá uma pedra no passado. O Tavinho vai continuar na dele, malandrão, como de hábito. O Alfredo vai viver a vida que sempre quis, já que contou que é viado, com certeza agora vai sair do armário de uma vez!
— Cale a boca, sua vagabunda!
— É melhor se acalmar, Sandoval, não vou mais chamá-lo de senhor, a partir de agora, só na frente da família. É melhor se acalmar, porque está nas minhas mãos.
Sandoval vai até a prateleira, arrasta um livro e retira uma garrafa de bebida. Serve-se no copo que está sobre a mesa e senta-se, desolado. Tenta acalmar-se.
— Meus filhos nunca admitirão essa situação, você sabe, Letícia é uma promotora, uma mulher das leis, inteligente, esperta, não engolirá essa loucura! Sem dúvida, eles entrarão na justiça contra você.
— Se o senhor oficializar a paternidade de meu filho, nada poderão fazer.
Sandoval cala-se aterrado. Nunca imaginara que pudesse ouvir tantas elucubrações de uma mente tão deturpada como a de Linda. Ela só pode ter enlouquecido, pensa.
Afinal, depois de tanto tempo, trazer essa história à baila, fazer chantagem e imaginar este plano mirabolante para livrar-se de Santa, chegava a ser imoral.
Alguém estaria por detrás de tudo isso, certamente Linda não planejara tudo sozinha. Ele precisava descobrir.
Tenta pensar numa saída, mas não vê nada ao seu alcance. Por fim, um pensamento lhe vem à mente, uma ideia que pode ser a sua salvação, a salvação da família.
Aproxima-se da janela e espia ao longe. O rapaz, agora, caminha pelo jardim, de braços cruzados.
Sandoval fecha lentamente a persiana e vai para atrás da escrivaninha, pensativo. Santa o observa intrigada.
Ele senta-se, abre a gaveta da escrivaninha e retira um talão de cheques.
— Linda, eu sei que você deseja muito mais do que isso, mas eu posso lhe adiantar alguma coisa para você me dar um tempo. Você sabe, eu não posso convencer a família de uma hora para outra, eu não posso fazer o que você me pede em relação a este rapaz. Pelo menos, por enquanto. – mostra-se que está convencido e que fará o que ela deseja – até mesmo essa possibilidade de enlouquecer Santa, não é de uma hora para outra, você sabe disso.
— E o que você propõe?
— Um tempo, seis meses por exemplo, para eu poder colocar tudo em dia. Precisarei esquecer a história da incapacidade dela por um tempo, também, terei que me conformar… bem, você sabe, vou ter que agir de outro jeito.
— Seis meses é muita coisa. Três meses, eu lhe dou três meses.
— E você acha que vamos conseguir … sabe, deixar Santa doente, como você quer?
— Como nós queremos. Como a família quer, não se esqueça.
— Não é bem assim, é diferente, mas … que seja. Você acha que teremos tempo?
— Deixe comigo, eu sei o que faço. Mas antes de tudo, já que me ofereceu dinheiro, quero o suficiente para comprar uma casa para o meu filho.
— Está bem, é justo, é justo.
— Um milhão. É o mínimo para comprar uma casa modesta.
— Você está louca? Acha que vou dispor de uma quantia assim de uma hora para outra?
— Sandoval, vamos ser bem honestos. O nosso pacto começa agora. É pegar ou largar. Se pegar, siga as minhas regras. Só isso.
Sandoval abaixa a cabeça sobre a escrivaninha, num suspiro. Neste momento, alguém bate à porta.
Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/smartphone-mão-telefone-mobile-1445490/acessado em 22/10/16.
terça-feira, outubro 18, 2016
A fotografia da vida de Santa - CAP. 12
No décimo primeiro capítulo Sandoval presidiu a reunião da família, na qual a matriarca Santa não estava presente, muito menos o convidado bispo Martim e Linda, a empregada que Santa fazia questão da presença. Neste encontro, Sandoval conseguiu finalmente convencer os filhos que a mulher estava muito doente, na verdade uma doença mental que a levava a ter visões como a da Virgem e por conseguinte as mensagens que elaborara com a intenção de mudar o comportamento de todos. Para não perder a forturna, a considerariam incapaz de administrar os bens ou decidir qualquer coisa ligada a testamentos. Não sabiam porém, que Linda gravara toda a conversa em seu celular, escondida atrás de uma cortina. A seguir o desenrolar do nosso folhetim dramático, nesta terça-feira, 18/10/16. Todas as terças e sábados, são publicados os capítulos da história “A fotografia da vida de Santa”. Boa diversão.
Capítulo 12
Todos conversam em tom acalorado, após terem tomado a difícil decisão.
Em seguida, porém, a energia adquirida foi se dissipando e seus gestos fragmentados revelavam que seus corações estavam instáveis e confusos.
Aos poucos os filhos e o genro se despediram de Sandoval, deixando-o sozinho na biblioteca.
Sandoval não levantou-se da poltrona, imaginando-os afastarem-se jardim à fora, na ânsia de pegarem os seus carros e correrem para as suas vidas particulares, provavelmente esquecidos rapidamente de tudo que acontecera ali. Afinal, o que importava eram as finanças, os seus bons empregos e o patrimônio que não podiam perder.
Suspirou fundo e sorriu animado. Agora não tinha mais porque se preocupar.
De repente, ouve um barulho e volta-se assustado. Não há ninguém, a não ser ele, na biblioteca. Será que algum dos filhos teria esquecido alguma coisa? Ou Santa havia voltado da igreja?
Levantou-se e passeou pela biblioteca, dando uma olhada para os jardins.
Quando voltou para o lado oposto da janela, surpreendeu-se com a visão de Linda que surgia por entre as cortinas, encarando-o com extrema segurança.
Não disse nada, apenas o observa, enquanto guardava um objeto na bolsa.
— O que significa isso, Linda? O que está fazendo aqui? – Fez uma pausa e concluiu, desolado – Meu Deus, você estava atrás das cortinas! Estava aqui o tempo inteiro!
— Estava sim, Seu Sandoval.
— Mas por quê? Quem lhe mandou ficar ai, sua desgraçada?!
— Talvez eu tenha mais motivos do que o senhor pensa para ficar aqui.
— Ora não seja ridícula, sua empregada de quinta categoria! Vocês está me desrespeitando, isso sim!
— É o que o senhor pensa, né? Eu fui desrespeitada toda a minha vida e agora o senhor se sente assim, que bom!
— O que você quer vivente? Me aborrecer ainda mais!?
— Eu também tenho meus planos, inclusive uma proposta a lhe fazer.
— Quem é você para me fazer propostas, sua infeliz? Saia imediatamente daqui. Hoje mesmo, você será despedida! Vou conversar com Santa e mandá-la para o olho da rua!
— Isso é o que o senhor pensa. Eu não vou sair daqui, até que o senhor ouça o que eu tenho para dizer. E não vou sair desta casa, não.
— É? E por que tem tanta certeza, sua idiota?
— Porque o senhor vai ter que escolher: Ou ouve a minha proposta, ou dona Santa saberá tudo que está acontecendo nesta casa!
Sandoval dá uma risada irônica:
— E você vai lhe contar? Ora, não seja idiota, Santa jamais acreditaria numa criada como você. Saiba que Santa é carola, boazinha para os miseráveis, mas é uma mulher aristocrata, uma mulher que sabe que está numa classe superior! Pensa que é muito esperta, sua imbecil!
— Talvez não seja tão esperta a ponto de contar a todos que nós temos um filho, um filho meu e seu, esqueceu, seu Sandoval?
— Não me chame assim, me respeite, e vá, vá embora daqui. Não quero ouvir a sua voz, não tenho nada a falar com você.
— Mas eu tenho, como lhe disse, tenho uma proposta e acho bom o senhor me ouvir!
— Está me ameaçando?
— Estou sim, porque tenho comigo a gravação de tudo que se passou nesta biblioteca. E vou correndo mostrá-la a dona Santa, ao menos que o senhor ouça o que eu tenho a lhe propor.
— Eu não acredito, eu não acredito que isto está acontecendo na minha casa!
Ele aproxima-se um pouco, e Linda o avisa a parar, porque a gravação do celular já foi enviada para outro número. Neste caso, mesmo que ele a apague, ela já tem uma cópia.
Sandoval fica desesperado.
— Você está louca, Linda. Completamente louca! Pensa que vai ter alguma vantagem em me fazer chantagens? Você não sabe que está num nível inferior, numa classe baixa, muito distante da de nossa família? Você não é nada e mesmo que tenha alguma prova contra mim, nenhum juiz a aceitará. Pense bem.
Linda, no entanto, não parece ouvi-lo. Está muito calma e ciente de seus objetivos.
— Muitas coisas estão acontecendo, que o senhor não sabe. Esta noite um cara entrou no jardim, pulou a área e entrou na copa, deixando propositadamente um cartão com a mensagem de Dona Santa. Ela já anda bem apavorada. Quem sabe a loucura se concretiza?
— O quer dizer com isso?
— O senhor não disse que ela está ficando louca? Pois bem, os seus argumentos são bastante fracos. Mas hoje, ela se mostrou bem assustada. Eu até poderia dizer que havia um traço de loucura na sua fisionomia.
Faz-se um silêncio. Sandoval pensa por um minuto. Encara Linda com raiva, mas entende que ela sabe de alguma coisa sobre Linda.
— Quem era este cara? O que ele queria? Você sabe?
— Calma, seu Sandoval, talvez não soubesse de nada. Talvez fosse apenas uma armação para assustar a pobre coitada.
— Então quer dizer… Linda, você planejou isso?
— Digamos que eu planejei. Agora o senhor já sabe do que sou capaz. Quer ouvir a minha proposta?
Sandoval está transtornado. Seu olhar é de fúria e de espanto. Nunca imaginaria que Linda fosse capaz de elaborar uma história tão maquiavélica.
Ela, no entanto, parece segura, ao ponto de enfrentá-lo, no aguardo paciente de quem conhece os seus limites. Olha-o impassível, com o trunfo nas mãos.
Sandoval a ouve com a argúcia, não convencido ainda de suas artimanhas.
Ele que poderá reverter a situação, afinal, Linda não é nenhuma expert em alinhavar planos mirabolantes. Aí está o seu ponto fraco, não tem dúvidas.
— Você contratou um homem para assaltar a casa, jogar a mensagem de Linda que era dirigida ao bispo Martim e fugir, para deixá-la apavorada, como se a pessoa pretendesse se vingar.
— Mais ou menos isso.
— Em quem era esse homem?
— Meu sobrinho, o senhor conhece, ele já trabalhou aqui, como jardineiro. Conhece a casa como a palma da mão.
— Gentalha! – Respira fundo, com raiva, mas continua – Me diga, quer dizer que este homem que você contratou, este seu sobrinho, como você disse, tinha a incumbência de enlouquecer Santa, de deixá-la transtornada, para que eu aceite tudo o que você planejou.
— Exatamente e quando ela estiver fora do páreo, eu serei a dona desta casa.
Sandoval dá uma gargalhada forçada, com a intenção de menosprezá-la, ao mesmo tempo para deixar claro que é uma hipótese impossível. Linda prossegue, animada:
— É a minha chace de ser a dona desta casa. O senhor nem precisa viver aqui, comigo, basta que me deixe reinar sozinha e absoluta.
— Com que você aprendeu este palavreado? Com a própria mulher que você quer enlouquecer, tirar do seu caminho?
— Dona Santa me ensinou muito, é verdade, mas nunca me apoiou quando soube que estava grávida, obrigou-me a levar o meu filho para bem longe de mim, preocupou-se apenas com o bom nome da família, com as aparências do seu casamento. Sabe, seu Sandoval, eu acho que chegou a minha vez.
— E você acha que vai ser assim tão fácil? Que vou deixar que tome conta do meu patrimônio, que se torne a dona da casa? Era só o que faltava, meu Deus! Eu querendo livrar-me da loucura de Santa e vem essa vadia querer a mesma coisa! Ora vá se enxergar, Linda!
— Acho que é o mínimo que pode fazer pelo tempo todo em que me dediquei a esta casa.
— Mas você não entendeu, sua louca? Santa está viva! Você quer matá-la também?
— Vocês querem enlouquecê-la, eu só queria ajudar. Basta que façam o que combinaram, afinal, o que a família combinou, não apenas o que uma simples empregada deseja. Todos estavam de acordo em acabar com o reinado da mamãe!
— Não fale desse jeito sua megera!Você é muito dissimulada, mesmo!
— Eu? Dissimulada? É que o senhor não olhou para si próprio, não observou bem os seus queridos filhos, mas se quiser, eu tenho tudo gravado e posso lhe refrescar a memória. Eu, de minha parte, só estou querendo o meu quinhão! Quero o que de fato me pertence!
— E o que você realmente quer, sua demente?
Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/casa-construção-in%C3%ADcio-arquitetura-540796/FrankWinkler
terça-feira, agosto 02, 2016
Alfredo Martins: o homem ideal e as várias formas de amar
Todas as noites Alfredo Martins fechava a porta de ferro do velho cartório, sempre de maneira metódica, puxando-a devagar para não desengatar o trilho e agachando-se enquanto trazia até o chão, para finalmente engatilhar o trinco e o cadeado ao mesmo tempo. Era de praxe. Era o modelo deixado por seu pai. Era o correto.
Alfredo Martins era na vida pessoal, como agia em seu trabalho: um tabelião responsável e rígido. Tinha a pontualidade e a responsabilidade no trabalho como modelo indispensável para uma integridade ética e moral em suas relações profissionais. Casado, sem filhos e afeito a servir à comunidade através de missões filantrópicas de forte poder ético, o abonavam como um homem de qualidade familiar e social. Religioso e pacato em sua vida particular, Alfredo Martins tinha um único único hobbie, que era a pesca e o fazia apenas acompanhado da esposa, porque considerava de bom tom experienciar também os prazeres como um casal.
Naquela manhã porém, Alfredo Martins sentia que alguma coisa havia quebrado dentro de si, quando antes de abrir a cortina de ferro do cartório, retirou o cartaz de aviso fúnebre. Leu a frase, como se desconhecesse o conteúdo e depois dobrou-o, guardando o pedaço de papel no bolso. Em seguida, levantou a porta com cuidado, como de hábito, mas suas mãos tremiam. Seu corpo parecia debilitado e um suor frio escorria por sua coluna vertebral, invadindo além das costas, as nádegas, que agora, agachadas, sentiam o frio instalar-se como se estivesse molhado. Levantou-se com esforço.
Antes de abrir a porta de vidro, que ficava um pouco além da cortina levantada, parou um momento, observando o próprio rosto, parecendo um desconhecido. Acenou triste, a cabeça e abriu a segunda porta, dirigindo-se para o interior do cartório.
Levantou a portinhola do balcão e sentou-se em sua mesa, como de hábito.
Daqui a pouco, chegariam os cinco funcionários que trabalham consigo.
Jarbas, o mais velho de todos, que fora inclusive contratado por seu pai, nos anos 70 e que já deveria ter se aposentado.
Luís, um bonachão que aparentava quarenta anos, que dizia ser casado, mas passava as noites divertindo-se com mulheres e bebidas. Tinha um certo rancor por essas demonstrações de alegria e obscenidades que ele tanto desaprovava.
Nataliya deveria ser a mais nova, embora às vezes parecesse uma mulher tão velha quanto Eva, requisitando a todos, exigindo provas e justificativas, assoberbada como se estivesse prestes a ter um colapso nervoso. Raramente parecia calma e controlada. Será que Nataliya era casada? Nunca soubera de sua vida pessoal, a não ser o que um ou outro comentava, como por exemplo, que tinha vindo da Ucrânia e morava com uma mulher idosa que ajudara a cuidar. Diziam as más línguas que ela pretendia ficar com o apartamento da velha. Mas quem poderia afirmar tal coisa? Às vezes, vinha-lhe na mente o pensamento de que ela era lésbica e não podia evitar uma certa repulsa.
Depois deles, dois estagiários, uma jovem muito bonita, mas um tanto intrometida nos assuntos do cartório e segundo alguns, um tanto desfrutável. Por último, um rapagão de seus 18 anos, muito tímido, mas bem responsável.
Alguns dias atrás, também havia seu pai, que gostava de ficar algumas horas no lugar onde passara a vida trabalhando, tal como ele, um tabelião tão bem conceituado na cidade. Hoje porém, ele tirava o aviso fúnebre avisando que seu pai não viria mais. Era por isso a fisgada no peito, o suor destemperado, o tremor nas pernas. Alguma coisa se quebrava dentro de Alfredo Martins.
Tinha vontade de tomar um café, mas não iria na padaria da esquina. Não queria ver ninguém, muito menos conversar.
Olhou para o relógio e percebeu que ainda faltava uma hora para o início do expediente.
Não conseguira dormir toda a noite, ficara o tempo remoendo pensamentos confusos, situações que lhe vinham à mente, problemas que o perturbavam, mas dos quais não poderia tentar nenhuma solução. Ah, fora uma noite terrível.
Lá fora, agora começava a garoar. Tinha a ver com a atmosfera triste. Garoa e frio. Daqui a pouco, quem sabe, uma chuva torrencial.
Voltou-se para o velho relógio da parede, devia ter uns cem anos, no mínimo, afinal passara de geração a geração e continuava lá firme, badalando as horas, as meia-horas, o tempo passando. As pessoas vindo e saindo, vozerio lá fora, buzinas, apitos, roncos de carros, conversas animadas, brigas, violência. Tudo passava à frente de sua porta envidraçada.
Virou o rosto para a porta, tendo a impressão que ouvira uma batida fraca. Era verdade. Havia alguém na porta, um homem aparentando uns trinta anos, de casaco preto e bastante alto.
Tinha vontade de não atender, mas alguma coisa lhe dizia que devia fazê-lo.
Aproximou-se da porta e abriu uma folha, perguntando o que queria.
O homem o fitou longamente como se o conhecesse. Depois, num meio suspiro, fez-lhe um pedido: — Pode me emprestar o celular?
Alfredo emudeceu. Seria um assaltante àquela hora da manhã?
O outro prosseguiu, esclarecendo, ansioso, a voz falhava de vez enquanto, o olhar sempre fixo no de Alfredo, como se tentasse provar que não lhe faria mal.
— Desculpe, meu nome é Jean Marques. Tive um pequeno acidente na esquina aqui perto e fiquei sem bateria. Preciso falar com uma pessoa, mas como vê, a cidade está vazia. Então percebi que havia alguém aqui, no cartório e decidi pedir ajuda.
Alfredo fez um gesto apontando o telefone fixo.
Jean sorriu, com um comentário.
— Não tinha percebido que havia um. Que bom. Será bem rápido, está bem?
Alfredo levantou-se e encostou-se no balcão, olhando para a rua, enquanto o outro se aproximava do telefone na mesa próxima. De canto de olho observa a cena: o homem falando com uma ansiedade exarcebada. Percebeu que estava bem vestido, roupas de grife e parecia bem apessoado.
A ligação não demorou muito, mas parece que não teve um bom resultado, pois Jean se mostrava desanimado.
Desta vez, Alfredo interviu: — Aconteceu alguma coisa?
— Aconteceu. Quero dizer, não se preocupe. Eu vou dar um jeito, com certeza.
— Como foi o seu acidente? – completou, justificando-se – Desculpe, ouvi alguma coisa sobre isso...
— Na verdade, eu não bati em ninguém nem fui batido. O meu carro caiu num buraco, uma verdadeira cratera na esquina. Rebentou o pneu e o aro entortou. Agora terei que esperar o guincho para que tirem o carro de lá e perderei muito tempo.
— E como pretendia resolver a situação?
— Queria que um amigo me ajudasse tomando essa responsabilidade para si, mas não foi possível. O cara não me ajudou, sei lá, deu uma desculpa. É que não tenho ninguém na cidade, apenas ele, entende? Agora vou perder o meu compromisso.
— Não pode adiar para outro dia?
— Infelizmente não. Era uma entrevista de emprego. São três candidatos selecionados, eu era um deles, minha entrevista seria a segunda e não poderia perder de forma alguma.
— Acha que não dá mais tempo?
— Meu amigo, tenho 12 minutos para percorrer 50 quilômetros. Acabou. Perdi. – terminou a frase em total desamparo.
Alfredo o olhou intrigado. Pretendia perguntar alguma coisa, mas viu a decepção estampada no rosto do homem. Então, acrescentou que sentia muito. Se pudesse ajudá-lo, faria de bom grado.
— Não tem problema, isto é, problema tem e bem grande, mas agora não há o que fazer. Vou tentar ligar para uma oficina mecânica para levarem o carro. Não posso deixá-lo lá, abandonado.
Alfredo observou que a joalheria defronte começava a abrir as portas, então a hora do início do expediente não demoriaria muito. De certa forma, a proximidade do movimento do dia o incomodava, principalmente porque estava sendo inútil em sua atividade rotineira. Auxiliar aquele homem o perturbava, forçava-o a sair dos trilhos do trabalho.
Quando voltou-se para o homem, na expectativa de que se afastasse, percebeu que ele cambaleou um pouco, parecendo sentir alguma tonteira.
— Ei, está se sentindo mal?
— Só me faltava essa. Eu não to bem mesmo, acho que vou desmaiar.
— Espere aí, quem vai desmaiar não anuncia – mas ao terminar a frase, o homem foi amolecendo o corpo e segurando-se no balcão para não cair.
Alfredo correu ao seu encontro, tentando levá-lo para a parte traseira do cartório, onde ficava um pequeno refeitório e um quarto onde seu pai às vezes, costumava tirar uma soneca. Com muito esforço, segurou o rapaz pela cintura e foi carregando-o até o quarto, quase puxando-o pois seu corpo se transformava frágil e ao mesmo tempo muito pesado. Pedia que ele o ajudasse, que não se apagasse, que lutasse para ficar alerta, bem atento, mas quase não conseguia seu intento.
Felizmente, deu tempo para que o deitasse na cama. O homem não desmaiara e em dado momento, seu corpo ficou muito próximo ao de Alfredo, porque a coberta presa sob o corpo o impelia ao seu encontro.
Alfredo ainda tentou se afastar, sentindo os lábios do rapaz roçando os seus e teve um estremecimento, quase um abalo. Num salto, levantou-se, enquanto o homem se queixava de muito frio.
Alfredo foi até uma cômoda velha, retirou um cobertor de lã e cobriu o rapaz.
Afastou-se um pouco e o observou da porta, tendo uma sensação estranha que o incomodava.
Retirou-se rapidamente e dirigiu-se para a frente do cartório, acomodando-se no balcão.
Em seguida, os funcionários começaram a chegar. Alguns o cumprimentavam pela perda do pai, outros apenas acenavam a cabeça e se dirigiam ao cartão-ponto.
Alfredo reuniu-os num círculo e elaborou um pequeno discurso, pedindo que fizessem o trabalho como de hábito, como se seu pai estivesse ali. A vida continuava e ele tinha que tocar o negócio em frente.
Quando acabara a conversa, Jean que deixara o quarto e em passos firmes apareceu na porta.
Todos o olharam intrigados.
Alfredo, constrangido, tentou esclarecer o motivo daquela presença ali, em seu cartório. Embasbacou-se na explicação e exigiu que se afastassem e começassem as suas tarefas. O dia estava apenas começando, incentivou.
Jean aproximou-se de Alfredo, que o olhou enviesado, irritado por aquela aparição inadequada. Que dia, meu Deus, pensou, tudo acontecia ao mesmo tempo.
— Desculpe o incômodo, meu amigo. Mas acho que me restabeleci, foi uma tontura idiota, certamente pelo nervosimo da situação, mas estou bem agora e preciso resolver os meus problemas.
— Acho que tem razão.
— Gostaria de saber o seu nome. Afinal, você foi muito solidário comigo, jamais vou esquecer a sua atitude – e completou, com um olhar profundo, ao qual Alfredo evitou – muito obrigado.
— Todo mundo me conhece por aqui. Se você perguntar em qualquer esquina, descobriria o meu nome – respondeu ríspido. Em seguida, emendou – Alfredo Martins é o meu nome.
— Prazer Alfredo, mais uma vez quero agradecer pelo que fez por mim – estendeu-lhe a mão e ficou à espera de Alfredo, que demorou a estender a sua. Jean ainda completou: — Espero sinceramente que nos encontremos novamente. Em seguida, pegou a mochila que havia deixado numa cadeira e afastou-se ante o olhar de Alfredo e dos funcionários que da outra sala espiavam curiosos.
Um zum-zum se formou, a princípio um ruído moderado, mas logo se transformando numa algazarra de vozes e sorrisos. Alfredo, irritado, dispersou o grupo mandando que voltassem ao trabalho.
Entretanto, durante todo o dia, Alfredo tinha a sensação de que alguma coisa nova e desagradável interferia em seus pensamentos, de modo a tornar-se angustiado, como se o mundo andasse para trás.
Já não bastava a morte do pai, surgia uma ausência não conhecida, uma saudade de alguma coisa que não vivera, uma estranha melancolia.
Decidiu ir ao quarto, para verificar se estava tudo em ordem. Percebeu que a coberta estava dobrada sobre a cama estendida.
Sentou-se e fez um afago sentindo ainda o calor do corpo que ali estava. Retirou a mão, como se esta queimasse numa chama ardente.
Levantou-se, andou pelo aposento e de repente avistou um objeto no chão. Abaixou-se e pegou um pequeno cartão com o nome e o telefone de Jean Marques. Pensou em jogá-lo fora, na lixeira, mas num pequeno lapso de tempo, decidiu guardá-lo no bolso.
À noite, ao voltar para casa, a vida de Alfredo transcorria normal. Tudo como era antes, sem qualquer vestígio de sentimentos confusos, a não ser o luto natural pelo pai.
Jantou com a mulher, teceu alguns comentários sobre o trabalho, sobre o tempo injusto de garoa e frio ou sobre qualquer coisa que justificasse um comentário insignificante.
Também assistiu TV e fez críticas ferrenhas ao governo, mas só quando foi dormir que a coisa voltou.
No quarto escuro, a mulher dormindo ao seu lado, um tilintar de chuva no telhado, a persiana batendo com o vento e aquela sensação de abandono e dor.
A melancolia de um passado que não foi seu, de uma história não vivida e uma leve excitação o deixava ainda mais confuso.
A imagem do homem vinha ao seu encontro, o olhar profundo, a barba rala e o seu jeito de passar a mão leve pelos lábios, como se precisasse tocá-los para pensar no que diria, a voz grave e serena.
Além disso, aquele leve roçar de lábios, aquele gesto pecaminoso e devasso. Por que aquela imagem não lhe saía da cabeça?
Alfredo não conseguia dormir.
Levantou-se e dirigiu-se para a janela da sala. Olhou pela vidraça e a chuva se tornava cada vez mais insistente.
O mundo parecia desabar naquele momento.
Talvez o seu mundo interior também começasse a ruir.
Afastou-se da janela, foi ao banheiro para urinar e teve uma ereção.
Sentiu seu corpo tremer e de repente, como um adolescente, começou a masturbar-se e o fez com tanta intensidade e furor, que um jato intenso de esperma atingiu a parede, deixando-o com as pernas trêmulas e o coração assustado.
Abaixou a cabeça na pia, lavou o rosto com água fria e chorou.
Olhou-se no espelho e via Jean sorrindo, agradecendo a ajuda. Socou o espelho com raiva até ferir a mão e fazer um traço no vidro quebrado.
Voltou para a sala, pegou o celular e deixou-se ficar, mexendo a esmo nos aplicativos, como se assim, liberasse o sofrimento que o invadia. Mas nada o afastava de seus pensamentos, de sua aflição.
Sabia que alguma coisa havia mudado dentro de si ou talvez apenas houvesse um despertar de um desejo latente, que nunca fora liberado.
Deixou o celular sobre a mesa e voltou para o quarto. Precisava dormir porque no dia seguinte, tudo voltaria ao normal.
Alfredo Martins era na vida pessoal, como agia em seu trabalho: um tabelião responsável e rígido. Tinha a pontualidade e a responsabilidade no trabalho como modelo indispensável para uma integridade ética e moral em suas relações profissionais. Não destoava em nada a sua vida pessoal de homem bem casado e benemérito da sociedade.
Olhou mais uma vez para o relógio da parede que devia ter mais de cem anos, as badaladas nas horas certas, nas meia-horas, o tempo passando, o mundo girando, a vida assumindo o seu espaço e ele como o seu pai assistindo o passar das horas, dos dias, da vida.
No bolso, um cartão queimava-lhe os dedos.
Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/homem-solitário-parque-noite-1394395/
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