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sexta-feira, outubro 21, 2022

Quando não cabemos no mundo

“O mundo inteiro terá que se transformar para eu caber nele.”

Esta frase de Clarice Lispector nos remete a vários significados dentro do panorama social e político que vivemos no mundo e no Brasil. Parece-me que o mundo interior das pessoas, aquilo que pensam e professam durante toda a sua vida, independente do que realmente praticam, desemboca nas suas articulações políticas e sociais. Talvez mesmo, uma coisa não se possa separar da outra. E falo tanto no aspecto conservador, de costumes e práticas sociais, quanto no aspecto de vanguarda, de mudança de uma sociedade que avança gradualmente, quer queiramos ou não. Que avance para a melhoria do ser humano, no seu significado e significante em relação à vida atual, ou retroceda conforme o pensamento conservador extremo e neste caso, há uma luta de comportamento de modo estrutural e articulado. Explico melhor: o homem nasceu para crescer, evoluir em ambição à liberdade de se expressar, de se distinguir em diversos aspectos, de ser apenas. Isso talvez o leve ao que chamamos humanidade e nos aproximemos, conforme a crença de cada um, de Deus.

Entretanto, há sentimentos muito controversos que se chocam com estas mudanças previsíveis e inevitáveis. Por quê? Quando nos identificamos com este pensamento ultraconservador, em que a pauta dos costumes é rígida e nos agasalha numa presumível segurança, tudo que diverge destes parâmetros, torna-se uma ameaça, seja na sexualidade, no casamento normativo, na própria individualidade que não reconhece a diferença. Numa sociedade conservadora e repressora como a nossa, aquilo que não se submete ao nosso controle e a ideia de que tais costumes divergentes do padrão conservador sejam liberados, o processo se torna extremamente ameaçador. Isto acontece, porque o próprio desvio pode ser reconhecido, sentindo-se o sujeito alijado do grupo que o protege e com o qual se identifica.

Certa vez, perguntei a uma professora de literatura, num curso de escrita criativa, por que as histórias de Nelson Rodrigues nos incomodam tanto, transmitem um estranhamento e uma sensação de desamparo em relação àqueles conteúdos. Então, refletiu que se ocorre um incômodo é porque há a expressão de um sentimento muito próximo ao qual não queremos ou fingimos não existir dentro de nossa realidade íntima ou em nosso círculo social. Quanto mais nos conhecemos, mais entendemos as mazelas humanas. Não é necessário que aceitemos todas, mas que entendamos que existem e que, identificando-as, as olhemos de frente sem que signifiquem qualquer ameaça.

Voltando à Clarice, ou o mundo inteiro se molda para que caibamos nele, ou o encaremos sem medo, com a certeza de que podemos reconhecer as diferenças e entendamos o outro que pode estar também no nosso convívio.

quarta-feira, julho 11, 2018

Literatura aliada

A literatura é conceituada e avaliada em seus aspectos estilísticos, estéticos, filosóficos e sociais. Aqui, no entanto, falo da literatura como uma aliada, uma companheira que exerce um papel fundamental na vida das pessoas.

Mesmo que não percebamos, é através da literatura, que mostramos o que somos, o que queremos da vida, o que sonhamos. Sabemos que a literatura é uma manifestação artística e para muitos escritores, ela se esgota nesta proposta. Para outros, porém dos quais eu me incluo, a literatura deve ser um registro da realidade que recria, como uma tentativa constante de transformação do mundo em que vivemos.

Na minha opinião ela só tem verdadeira importância, se for crivada dos anseios de seu povo, se tiver um viés político. O mínimo que se espera é que haja, em alguma medida, o pensamento crítico sendo colocado em jogo, sendo trabalhado e compartilhado.

A arte da escrita não é puramente estética. A despeito do que escrevemos, haverá sempre a intencionalidade do autor com a conexão do mundo real, da sociedade e também com o seu mundo interior, moldado em suas experiências e apreensão da vida. Faz-se política em qualquer gesto e tenho comigo que este brado deve corresponder ao clamor das minorias, dos excluídos, dos que não tem os privilégios, dos trabalhadores invisíveis.

Acho que o homem é o algoz do próprio homem e a literatura está aí, para redimir esta sequela humana, para transformar o bruto, no belo, no artístico, no lírico, no imponderável, mas acima de tudo, mostrar que o rústico, o pobre, o ausente das benesses é tão intenso e dramático e pertencem ao mesmo mundo em que vivemos. Basta olhar para o lado.

Não me interessa uma literatura calada, amordaçada, padronizada no senso comum, amarrada apenas à lógica literária e aos padrões estilísticos e de gênero. Interessa-me a literatura que não se cala às adversidades, aos desmandos, às ditaduras, à mídia manipulada e manipuladora.

Interessa-me uma literatura que mostra o seu povo, que enaltece a sua linguagem e que acima de tudo, produza a reflexão. E que por fim, seja, além de tudo puramente literatura, na qual a emoção e o sonho se completem no lirismo e na beleza. Acho, inclusive que o autor é um ser dividido e complexo, como todo ser humano, mas que ao refletir sobre isso, extravasa sua emoção e sentimentos no seu ofício e talvez sofra com essa dicotomia.

O poema “Traduzir-se” de Ferreira Gullar, musicado por Chico Buarque, exemplifica bem esta singularidade do escritor, quando diz:

“Uma parte de mim é todo mundo: outra parte é ninguém: fundo sem fundo. Uma parte de mim é multidão: outra parte estranheza e solidão.

Uma parte de mim pesa, pondera: outra parte delira.

Uma parte de mim é só vertigem: outra parte, linguagem.

Traduzir-se uma parte na outra parte – que é uma questão de vida ou morte – será arte?”

Fonte: Kalsgirl do link: https://pixabay.com/pt/users/kasgirl-1427481/

sexta-feira, abril 20, 2018

Ando tão à flor da pele

Ontem assisti ao vídeo da Gal Costa, em que ela apresentava o Zeca Baleiro com a composição "Vapor barato”, uma interpretação por excelência.

O tema trata da angústia e o desespero do provável amor não correspondido, mas os versos tocam tão profundamente que podemos adaptá-los a qualquer situação, desde que estejamos emocionalmente envolvidos.

O verso em que diz “ Ando tão à flor da pele, qualquer beijo de novela me faz chorar, ando tão à flor da pele, que teu olhar me faz morrer…” e por aí vai, nos remete a uma gama de sentimentos.

Ando tão à flor da pele, quando assisto em documentários em canais pagos, que centenas de crianças brasileiras viveram longe de seus pais, em outros países, e agora, na idade adulta, lutam para encontrar vestígios de sua vida passada. Pais que foram sequestrados, torturados, mortos pela ditadura que grassou no País.

Ando tão à flor da pele quando vejo questões fundamentais na política externa serem discutidas via Twitter, como o caso da Síria em que Trump ameaça com mísseis e o embaixador da Rússia promete derrubar estes mesmos mísseis, enquanto vidas são destroçadas.

Ando tanto à flor da pele quando vejo um Nobel da Paz sendo proibido de visitar um preso político em nosso Brasil.

Fico à flor da pele, quando assisto à regionalização de nosso país ser padronizada por uma cultura pasteurizada através de um modelo midiático, sob vários aspectos, obedecendo cega e servilmente ao imperialismo da mídia maior, principalmente da TV, enquanto quarto poder, introjetada pela maioria do povo brasileiro.

Fico ainda mais à flor da pele, quando imaginam que estes senhores, poucas famílias que mandam no setor, estejam financiando a educação e a cultura do povo brasileiro, quando na verdade estão deformando e rindo de nossa cara, preocupados apenas com os bilhões que depositam em contas da Suíça.

Fico à flor da pele, quando estes mesmos senhores lutam por liberdade de expressão, quando de fato, somente temos uma verdade, a verdade dita e exacerbada por estes mesmos donos do monopólio.

Fico tão à flor da pele, quando nossa programação regional é limitada a pequenos blocos, sucintos, relegados a segundo plano e em horas onde a audiência é mínima.

Fico tão à flor da pele, quando os estilos de vida, de moda, de arte são ditadas de acordo com modelos adaptados ao poder do consumo, do marketing da beleza padronizada e da falta de integração social, na qual a liberdade de escolha é tolhida e dirigida a uma sociedade imprevidente. E o lamentável é que muitos consideram esta conduta correta e condenam um rigor na regulação dos meios de comunicação e o governo com seus interesses de manutenção no poder, furta-se a este processo. Há os que são a favor do monopólio da mídia por puro desconhecimento, porque só veem um lado da questão, acreditando que o grupo midiático está em consonância com a Constituição, o que não é verdade. A sociedade incauta, por sua vez, dia a dia se afunda, chafurdando na lama do marketing televisivo, adquirindo hábitos que muitas vezes ferem suas crenças mais íntegras e, tentando seguir a corrente pseudomoderna, perseguem caminhos que a transformam num caldo inodoro, pronto para estatísticas padronizadas.

Criam para si, formas de pensamento, estilos que contrariam seus pares, esquecendo as suas raízes, suas tradições, sua cultura e seu relacionamento harmonioso com a cultura regional.

Esquecem os grandes compositores, os poetas, a arte, a literatura. O que vale são as novas formas de interação com o público a partir de monossílabos exaustivamente repetidos, uma forma enviesada de música, além da veneração por livros de autoajuda, ou acerca de sub-celebridades.

Aparecer, sob qualquer hipótese, é o que realmente importa.

Mas fico tão à flor da pele também, quando assisto a Gal, a Bethania, a Maria Rita, o Lenine, o Criolo, só para falar de alguns.

Fico à flor da pele em ler e reler um Kafka, um Machado, um Dostoievsky, Florbela Espanca, Mia Couto, também para falar de alguns.

Ou ler um artigo de um Leonardo Boff, um Gustavo Moreira, Alberto Villas, Menalton Braff, também só para citar alguns.

A estes, e muitos, muitos outros, meu coração se arrepia, e fico emocionado à flor da pele.

Uma emoção boa.

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/users/geralt-9301/autor: Geralt

quarta-feira, abril 04, 2018

Para não dizer que não falei das flores II

Rosas se espalhavam pelo alambrado, tingindo de vermelho o cenário, no qual se avistavam pequenos pedaços de azul da parede do prédio.

Quase não se via o outro lado da cerca, tão fortes estavam as rosas.

Tínhamos a impressão que o verde era apenas um adereço à beleza e ao perfume que revelavam.

Houve momentos em que cresceram tanto, que atingiram o jardim por trás da cerca, envolvendo-se nas margaridas, nas frágeis papoulas ou nos vigorosos cravos amarelos.

Achávamos que o vermelho suplantava as cores da discórdia, do ódio, da intolerância.

Pensávamos que o desafio estava tomado, que o sangue vertido nas lutas pela democracia representava os anseios de uma sociedade fragilizada por anos e anos de dissociação cidadã de sua pátria.

Pensávamos por fim que a sociedade estava madura.

Mas as pétalas foram caindo aos poucos, lentamente, no subterrâneo dos insetos devoradores, minando as raízes, as folhas, os galhos. Minando o verde da esperança até chegar no vermelho. O vermelho símbolo de tantas lutas, para estas formigas, pulgões e toda a sorte de predadores estimula o ódio, a intolerância, o desamor, o desrespeito, o embate furioso contra as leis, contra a democracia, o golpe.

Pois as pétalas se espalhavam, as rosas vermelhas que enfeitavam e transformavam milhares de cenários cinzas e pobres em espaços de esperança e melhoria, hoje estão sendo dizimadas através da mão canhestra do carrasco, até mesmo dos alienados que seguem o fluxo dos desinformados (ou manipulados).

Mas o mundo gira, e as flores tem a temperança da natureza, há tempo de brotar e por certo nem todas serão destruídas, porque a terra é fértil e o adubo está aí, pra ser espalhado.

quinta-feira, janeiro 12, 2017

Criei um fake

Criei um fake

Certa vez criei um fake de mim mesmo. Isso é normal, me perguntaram alguns amigos, não sei, nem mesmo sei o que realmente pode ser considerado normal. Afinal, as pessoas apresentam comportamentos distintos das normas concebidas como dentro da normalidade e tudo parece extraordinário, elegante, vanguardista, até pós-moderno (se é que isto existe).

Enfim, tudo depende do contexto em que se insere a situação ou o comportamento.

De todo modo, por um tempo, fui muito feliz com o meu fake, ou melhor, fui contemplado com alguns benefícios.

O meu fake participava de muitas redes sociais. Era esperto, inteligente, adequado às novas tendências tecnológicas e artísticas, além de ser politicamente posicionado, e no final das contas, um grande filósofo.

Mas era um fake, uma figura criada para me proteger, como uma bengala para me amparar, um personagem para dividir comigo as informações mais estrambólicas, para discutir os problemas sociais, para compartilhar as dúvidas existenciais, para tomar atitudes objetivas em relação aos mais diferentes pontos de vista. Sim, porque ele tinha um ponto de vista.

Ele possuía assertivas bem argumentadas, sabia expor suas ideias com incomparável maestria. Era um verdadeiro gênio na arte de examinar, avaliar, abalizar, confrontar situações, encontrar as mais diversas saídas e intervir despudoradamente nas conclusões de outrem, mostrando outros caminhos, outras maneiras de olhar o mundo. Olhares diferentes não lhe faltavam. Alegria e bem humor também. Era perfeito. Educado. Paciente, paciencioso, parcimonioso, contemporizador, elegante. Um gentleman.

Por um tempo, eu o acompanhei em suas elucubrações, suas ideias diversificadas, seus pontos de vista únicos, que fogem do senso comum e desacomodam as coisas.

Afinal, do alto de seus amplos conhecimentos, de suas vivências e sua atribulada trajetória mundana, espraiava pelas cercanias toscas das redes sociais, as mais amplas doses de novas descobertas, de novas maneiras de situar as lacunas, enchendo-as com experiência, conteúdo e ação.

Eu me acostumei com ele.

Habituei-me com o seu jeito de retribuir o que eu pensava, de compartilhar comigo as descobertas, de sinalizar os mesmos caminhos, de alargar horizontes que ao mesmo tempo nos pareciam tão próximos, tão atingíveis que bastava que esticássemos a mão, aquele dedo indicador, aquele que julga, que aponta, para chegarmos mais e mais perto, do objetivo alardeado, quem sabe da verdade.

Era assim que nos comportávamos quase arrogantes. Um entregando ao outro, de mão beijada, a contribuição precisa no momento certo. Como num jogo de dupla, onde um depende do outro. Jogo de tênis, preciso, tenso, concentrado, silencioso. Só o barulho da raquete, do suspiro da plateia, do grito de vitória.

Uma coisa que brilhava no céu empoeirado e nublado do facebook ou de qualquer outra rede social. Qualquer coisa que disséssemos valia milhões de acessos, por nós, é claro, que não estávamos interessados em frases de Arnaldo Jabor [sic], em comentários sobre bebida, cozinha, aquele churrasquinho íntimo, lavado na caipirinha e nos olhares vermelhos e estrábicos de quem abusou da alegria, coisas que só dizem respeito a quem posta na rede, ou na moto usada, no cachorrinho fazendo xixi no sofá, na sogra esticada na rede, mostrando as coxas disformes, ou nas mensagens melosas, instigando culpas e medos, procuras e respostas de correntes intermináveis.

Não, não era nada disso que procurávamos. Isso era coisa do falecido Orkut.

Mas, de repente, o fake foi sendo conectado por outros amigos, foi sendo abordado em pedidos de amizade, de compartilhamento, e cada vez mais assediado por suas ideias e manifestações impunes.

Todos queriam conhece-lo, saber mais do seu perfil, pesquisar suas fotos, seu mural. Queriam acompanha-lo, segui-lo, encontrar nele o caminho que parecia abrir tantas portas, tantas saídas e tantas maneiras de achar a verdade.

Nem todos, é claro. Não aqueles da caipirinha, das fotos pessoais, da mostra diária de seus afazeres, desde a comida do meio dia até a dor de barriga da tarde. Estes não. Estes estavam interessados em curtir outra coisa e compartilhar consigo a mesmice do dia a dia.

Aquela novidade era pra poucos.

Mas estes poucos iam se multiplicando, o que me deu algum medo. Medo de ser ultrapassado pelo fake.

Os meus amigos já nem me ouviam mais, nem compartilhavam o que eu postava, embora concordassem comigo, ah, só porque eu compartilhava com o fake, concordava com o fake, alimentava-me do fake. Eles queriam fazer o mesmo.

Foi um tempo de muito sofrimento. Uns diziam, porque que ele só compartilha contigo? Por que só concorda contigo? Porque descreve em pormenores, com muito mais argumentos, alicerçado em artigos de especialistas, em leituras adequadas, em conhecimentos científicos ou em suas próprias vivencias o que tu enuncias? Por que não colabora conosco, não compartilha conosco?

Então tive que dividir o fake. Ou melhor, tive que escrever por ele para os amigos também.

Então começara a chover  pedidos para acrescentá-lo em suas redes sociais.

Eles o queriam, eles o amavam.

Não era a mim que seguiam, não era o que eu pensava que valia, era o que ele afirmava, eram as suas atitudes que importavam. Ele era o rei da festa. Eu passei a ser só um coadjuvante.

Então tive uma ideia: decidi eliminar o fake.

Resolvi dar um basta naquelas atitudes arrogantes, naquele modo de pensar vanguardista, pós-moderno, aqueles pontos de vista avançados, aquele jeito ousado de fugir do senso comum.

Eu precisava eliminar o fake. Acabar com ele, acabar com sua fama, seu jeito desinibido de ser, sua intimidade cada vez mais exacerbada junto aos meus amigos, que agora eram mais seus do que meus.

Não havia saída. A única saída era acabar com ele.

Foi o que fiz.

Eliminei o fake.

Voltei a ser eu mesmo. A discutir os mesmos assuntos, a política, a sociedade, os movimentos sociais, a beleza da natureza e a luta por sua conservação, a busca pela igualdade étnica, a luta pelo fim dos preconceitos, a filosofia em suas mais diversas vertentes, a música clássica, a boa musica, o teatro, a literatura, a vida cultural... Também fugi do senso comum, vi e revi valores, avaliei outros caminhos...

Os amigos se afastaram, um que outro postava um “curtir” ou compartilhar alguma foto ou desejar uma boa noite, um bom dia, um boa tarde, um bom fim de semana...

E todos voltaram a mostrar as suas casas bonitas, recém-adquiridas, os seus carros último modelo, as suas motos, os seus casacos de couro, os seus churrasquinhos de fim de semana...

Enfim, a mediocridade que faz parte de suas vidas.

Acho que vou criar o fake novamente. 

terça-feira, outubro 18, 2016

Por que escrevemos? Por que lemos?


Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/trabalho-workaholic-escritor-1627703/

Bem, é uma questão um tanto difícil, levando-se em conta as diferentes possibilidades, desejos e experiências de cada um. Escreve-se para viver, às vezes, respirar, transformar a poeira dos ossos em energia para alcançar os degraus onde o sol pisa.

Considero que os escritores de todas categorias, seja em que suporte expressem a sua arte, tem como fundamento interno uma procura constante da verdade, com suas buscas visando partidas ou encontros, ou seja, mostrar que outra realidade é possível.

Afinal, o que se deseja se não desmitificar a pretensa realidade? Uma realidade revelada a partir de milhares de padrões, tanto midiáticos, políticos, religiosos, científicos, empíricos ou sociais.

Uma realidade que se metamorfoseia dia a dia de acordo com as conveniências e as máscaras que lhe impõe a sociedade com interesses diversificados.

A literatura, portanto tem esta função social e política de resgatar a realidade, porque a arte é independente.

O escritor deve lutar por exercer a faculdade de enfrentar a realidade sem máscaras, retirando todo o entulho que a sociedade, como um todo, a recobre. A verdade está na mostra social, pura e cristalina, sem os adornos da pílula elitizada e batizada pelo poder.

A literatura é uma só. É este erguer-se e olhar o horizonte e ver além das fronteiras do senso comum, da vida padronizada, do olhar midiático, do politicamente correto.

O leitor descobrirá na verdadeira literatura, aquele engajamento com a verdade e não com o poder, seja em que patamar se estabeleça.

Ler é fundamental para abrir veredas, para multiplicar e sair da mesmice, mas fiquem atentos, leitores: estas serão bloqueadas se impedirem a retomada do pensamento, do discernimento humano e seu direito de escolha.

Quem lê, absorve, introjeta, interage e escolhe o seu próprio caminho.

terça-feira, agosto 02, 2016

Alfredo Martins: o homem ideal e as várias formas de amar

Todas as noites Alfredo Martins fechava a porta de ferro do velho cartório, sempre de maneira metódica, puxando-a devagar para não desengatar o trilho e agachando-se enquanto trazia até o chão, para finalmente engatilhar o trinco e o cadeado ao mesmo tempo. Era de praxe. Era o modelo deixado por seu pai. Era o correto.

Alfredo Martins era na vida pessoal, como agia em seu trabalho: um tabelião responsável e rígido. Tinha a pontualidade e a responsabilidade no trabalho como modelo indispensável para uma integridade ética e moral em suas relações profissionais. Casado, sem filhos e afeito a servir à comunidade através de missões filantrópicas de forte poder ético, o abonavam como um homem de qualidade familiar e social. Religioso e pacato em sua vida particular, Alfredo Martins tinha um único único hobbie, que era a pesca e o fazia apenas acompanhado da esposa, porque considerava de bom tom experienciar também os prazeres como um casal.

Naquela manhã porém, Alfredo Martins sentia que alguma coisa havia quebrado dentro de si, quando antes de abrir a cortina de ferro do cartório, retirou o cartaz de aviso fúnebre. Leu a frase, como se desconhecesse o conteúdo e depois dobrou-o, guardando o pedaço de papel no bolso. Em seguida, levantou a porta com cuidado, como de hábito, mas suas mãos tremiam. Seu corpo parecia debilitado e um suor frio escorria por sua coluna vertebral, invadindo além das costas, as nádegas, que agora, agachadas, sentiam o frio instalar-se como se estivesse molhado. Levantou-se com esforço.

Antes de abrir a porta de vidro, que ficava um pouco além da cortina levantada, parou um momento, observando o próprio rosto, parecendo um desconhecido. Acenou triste, a cabeça e abriu a segunda porta, dirigindo-se para o interior do cartório.

Levantou a portinhola do balcão e sentou-se em sua mesa, como de hábito.

Daqui a pouco, chegariam os cinco funcionários que trabalham consigo.

Jarbas, o mais velho de todos, que fora inclusive contratado por seu pai, nos anos 70 e que já deveria ter se aposentado.

Luís, um bonachão que aparentava quarenta anos, que dizia ser casado, mas passava as noites divertindo-se com mulheres e bebidas. Tinha um certo rancor por essas demonstrações de alegria e obscenidades que ele tanto desaprovava.

Nataliya deveria ser a mais nova, embora às vezes parecesse uma mulher tão velha quanto Eva, requisitando a todos, exigindo provas e justificativas, assoberbada como se estivesse prestes a ter um colapso nervoso. Raramente parecia calma e controlada. Será que Nataliya era casada? Nunca soubera de sua vida pessoal, a não ser o que um ou outro comentava, como por exemplo, que tinha vindo da Ucrânia e morava com uma mulher idosa que ajudara a cuidar. Diziam as más línguas que ela pretendia ficar com o apartamento da velha. Mas quem poderia afirmar tal coisa? Às vezes, vinha-lhe na mente o pensamento de que ela era lésbica e não podia evitar uma certa repulsa.

Depois deles, dois estagiários, uma jovem muito bonita, mas um tanto intrometida nos assuntos do cartório e segundo alguns, um tanto desfrutável. Por último, um rapagão de seus 18 anos, muito tímido, mas bem responsável.

Alguns dias atrás, também havia seu pai, que gostava de ficar algumas horas no lugar onde passara a vida trabalhando, tal como ele, um tabelião tão bem conceituado na cidade. Hoje porém, ele tirava o aviso fúnebre avisando que seu pai não viria mais. Era por isso a fisgada no peito, o suor destemperado, o tremor nas pernas. Alguma coisa se quebrava dentro de Alfredo Martins.

Tinha vontade de tomar um café, mas não iria na padaria da esquina. Não queria ver ninguém, muito menos conversar.

Olhou para o relógio e percebeu que ainda faltava uma hora para o início do expediente.

Não conseguira dormir toda a noite, ficara o tempo remoendo pensamentos confusos, situações que lhe vinham à mente, problemas que o perturbavam, mas dos quais não poderia tentar nenhuma solução. Ah, fora uma noite terrível.

Lá fora, agora começava a garoar. Tinha a ver com a atmosfera triste. Garoa e frio. Daqui a pouco, quem sabe, uma chuva torrencial.

Voltou-se para o velho relógio da parede, devia ter uns cem anos, no mínimo, afinal passara de geração a geração e continuava lá firme, badalando as horas, as meia-horas, o tempo passando. As pessoas vindo e saindo, vozerio lá fora, buzinas, apitos, roncos de carros, conversas animadas, brigas, violência. Tudo passava à frente de sua porta envidraçada.

Virou o rosto para a porta, tendo a impressão que ouvira uma batida fraca. Era verdade. Havia alguém na porta, um homem aparentando uns trinta anos, de casaco preto e bastante alto.

Tinha vontade de não atender, mas alguma coisa lhe dizia que devia fazê-lo.

Aproximou-se da porta e abriu uma folha, perguntando o que queria.

O homem o fitou longamente como se o conhecesse. Depois, num meio suspiro, fez-lhe um pedido: — Pode me emprestar o celular?

Alfredo emudeceu. Seria um assaltante àquela hora da manhã?

O outro prosseguiu, esclarecendo, ansioso, a voz falhava de vez enquanto, o olhar sempre fixo no de Alfredo, como se tentasse provar que não lhe faria mal.

— Desculpe, meu nome é Jean Marques. Tive um pequeno acidente na esquina aqui perto e fiquei sem bateria. Preciso falar com uma pessoa, mas como vê, a cidade está vazia. Então percebi que havia alguém aqui, no cartório e decidi pedir ajuda.

Alfredo fez um gesto apontando o telefone fixo.

Jean sorriu, com um comentário.

— Não tinha percebido que havia um. Que bom. Será bem rápido, está bem?

Alfredo levantou-se e encostou-se no balcão, olhando para a rua, enquanto o outro se aproximava do telefone na mesa próxima. De canto de olho observa a cena: o homem falando com uma ansiedade exarcebada. Percebeu que estava bem vestido, roupas de grife e parecia bem apessoado.

A ligação não demorou muito, mas parece que não teve um bom resultado, pois Jean se mostrava desanimado.

Desta vez, Alfredo interviu: — Aconteceu alguma coisa?

— Aconteceu. Quero dizer, não se preocupe. Eu vou dar um jeito, com certeza.

— Como foi o seu acidente? – completou, justificando-se – Desculpe, ouvi alguma coisa sobre isso...

— Na verdade, eu não bati em ninguém nem fui batido. O meu carro caiu num buraco, uma verdadeira cratera na esquina. Rebentou o pneu e o aro entortou. Agora terei que esperar o guincho para que tirem o carro de lá e perderei muito tempo.

— E como pretendia resolver a situação?

— Queria que um amigo me ajudasse tomando essa responsabilidade para si, mas não foi possível. O cara não me ajudou, sei lá, deu uma desculpa. É que não tenho ninguém na cidade, apenas ele, entende? Agora vou perder o meu compromisso.

— Não pode adiar para outro dia?

— Infelizmente não. Era uma entrevista de emprego. São três candidatos selecionados, eu era um deles, minha entrevista seria a segunda e não poderia perder de forma alguma.

— Acha que não dá mais tempo?

— Meu amigo, tenho 12 minutos para percorrer 50 quilômetros. Acabou. Perdi. – terminou a frase em total desamparo.

Alfredo o olhou intrigado. Pretendia perguntar alguma coisa, mas viu a decepção estampada no rosto do homem. Então, acrescentou que sentia muito. Se pudesse ajudá-lo, faria de bom grado.

— Não tem problema, isto é, problema tem e bem grande, mas agora não há o que fazer. Vou tentar ligar para uma oficina mecânica para levarem o carro. Não posso deixá-lo lá, abandonado.

Alfredo observou que a joalheria defronte começava a abrir as portas, então a hora do início do expediente não demoriaria muito. De certa forma, a proximidade do movimento do dia o incomodava, principalmente porque estava sendo inútil em sua atividade rotineira. Auxiliar aquele homem o perturbava, forçava-o a sair dos trilhos do trabalho.

Quando voltou-se para o homem, na expectativa de que se afastasse, percebeu que ele cambaleou um pouco, parecendo sentir alguma tonteira.

— Ei, está se sentindo mal?

— Só me faltava essa. Eu não to bem mesmo, acho que vou desmaiar.

— Espere aí, quem vai desmaiar não anuncia – mas ao terminar a frase, o homem foi amolecendo o corpo e segurando-se no balcão para não cair.

Alfredo correu ao seu encontro, tentando levá-lo para a parte traseira do cartório, onde ficava um pequeno refeitório e um quarto onde seu pai às vezes, costumava tirar uma soneca. Com muito esforço, segurou o rapaz pela cintura e foi carregando-o até o quarto, quase puxando-o pois seu corpo se transformava frágil e ao mesmo tempo muito pesado. Pedia que ele o ajudasse, que não se apagasse, que lutasse para ficar alerta, bem atento, mas quase não conseguia seu intento.

Felizmente, deu tempo para que o deitasse na cama. O homem não desmaiara e em dado momento, seu corpo ficou muito próximo ao de Alfredo, porque a coberta presa sob o corpo o impelia ao seu encontro.

Alfredo ainda tentou se afastar, sentindo os lábios do rapaz roçando os seus e teve um estremecimento, quase um abalo. Num salto, levantou-se, enquanto o homem se queixava de muito frio.

Alfredo foi até uma cômoda velha, retirou um cobertor de lã e cobriu o rapaz.

Afastou-se um pouco e o observou da porta, tendo uma sensação estranha que o incomodava.

Retirou-se rapidamente e dirigiu-se para a frente do cartório, acomodando-se no balcão.

Em seguida, os funcionários começaram a chegar. Alguns o cumprimentavam pela perda do pai, outros apenas acenavam a cabeça e se dirigiam ao cartão-ponto.

Alfredo reuniu-os num círculo e elaborou um pequeno discurso, pedindo que fizessem o trabalho como de hábito, como se seu pai estivesse ali. A vida continuava e ele tinha que tocar o negócio em frente.

Quando acabara a conversa, Jean que deixara o quarto e em passos firmes apareceu na porta.

Todos o olharam intrigados.

Alfredo, constrangido, tentou esclarecer o motivo daquela presença ali, em seu cartório. Embasbacou-se na explicação e exigiu que se afastassem e começassem as suas tarefas. O dia estava apenas começando, incentivou.

Jean aproximou-se de Alfredo, que o olhou enviesado, irritado por aquela aparição inadequada. Que dia, meu Deus, pensou, tudo acontecia ao mesmo tempo.

— Desculpe o incômodo, meu amigo. Mas acho que me restabeleci, foi uma tontura idiota, certamente pelo nervosimo da situação, mas estou bem agora e preciso resolver os meus problemas.

— Acho que tem razão.

— Gostaria de saber o seu nome. Afinal, você foi muito solidário comigo, jamais vou esquecer a sua atitude – e completou, com um olhar profundo, ao qual Alfredo evitou – muito obrigado.

— Todo mundo me conhece por aqui. Se você perguntar em qualquer esquina, descobriria o meu nome – respondeu ríspido. Em seguida, emendou – Alfredo Martins é o meu nome.

— Prazer Alfredo, mais uma vez quero agradecer pelo que fez por mim – estendeu-lhe a mão e ficou à espera de Alfredo, que demorou a estender a sua. Jean ainda completou: — Espero sinceramente que nos encontremos novamente. Em seguida, pegou a mochila que havia deixado numa cadeira e afastou-se ante o olhar de Alfredo e dos funcionários que da outra sala espiavam curiosos.

Um zum-zum se formou, a princípio um ruído moderado, mas logo se transformando numa algazarra de vozes e sorrisos. Alfredo, irritado, dispersou o grupo mandando que voltassem ao trabalho.

Entretanto, durante todo o dia, Alfredo tinha a sensação de que alguma coisa nova e desagradável interferia em seus pensamentos, de modo a tornar-se angustiado, como se o mundo andasse para trás.

Já não bastava a morte do pai, surgia uma ausência não conhecida, uma saudade de alguma coisa que não vivera, uma estranha melancolia.

Decidiu ir ao quarto, para verificar se estava tudo em ordem. Percebeu que a coberta estava dobrada sobre a cama estendida.

Sentou-se e fez um afago sentindo ainda o calor do corpo que ali estava. Retirou a mão, como se esta queimasse numa chama ardente.

Levantou-se, andou pelo aposento e de repente avistou um objeto no chão. Abaixou-se e pegou um pequeno cartão com o nome e o telefone de Jean Marques. Pensou em jogá-lo fora, na lixeira, mas num pequeno lapso de tempo, decidiu guardá-lo no bolso.

À noite, ao voltar para casa, a vida de Alfredo transcorria normal. Tudo como era antes, sem qualquer vestígio de sentimentos confusos, a não ser o luto natural pelo pai.

Jantou com a mulher, teceu alguns comentários sobre o trabalho, sobre o tempo injusto de garoa e frio ou sobre qualquer coisa que justificasse um comentário insignificante.

Também assistiu TV e fez críticas ferrenhas ao governo, mas só quando foi dormir que a coisa voltou.

No quarto escuro, a mulher dormindo ao seu lado, um tilintar de chuva no telhado, a persiana batendo com o vento e aquela sensação de abandono e dor.

A melancolia de um passado que não foi seu, de uma história não vivida e uma leve excitação o deixava ainda mais confuso.

A imagem do homem vinha ao seu encontro, o olhar profundo, a barba rala e o seu jeito de passar a mão leve pelos lábios, como se precisasse tocá-los para pensar no que diria, a voz grave e serena.

Além disso, aquele leve roçar de lábios, aquele gesto pecaminoso e devasso. Por que aquela imagem não lhe saía da cabeça?

Alfredo não conseguia dormir.

Levantou-se e dirigiu-se para a janela da sala. Olhou pela vidraça e a chuva se tornava cada vez mais insistente.

O mundo parecia desabar naquele momento.

Talvez o seu mundo interior também começasse a ruir.

Afastou-se da janela, foi ao banheiro para urinar e teve uma ereção.

Sentiu seu corpo tremer e de repente, como um adolescente, começou a masturbar-se e o fez com tanta intensidade e furor, que um jato intenso de esperma atingiu a parede, deixando-o com as pernas trêmulas e o coração assustado.

Abaixou a cabeça na pia, lavou o rosto com água fria e chorou.

Olhou-se no espelho e via Jean sorrindo, agradecendo a ajuda. Socou o espelho com raiva até ferir a mão e fazer um traço no vidro quebrado.

Voltou para a sala, pegou o celular e deixou-se ficar, mexendo a esmo nos aplicativos, como se assim, liberasse o sofrimento que o invadia. Mas nada o afastava de seus pensamentos, de sua aflição.

Sabia que alguma coisa havia mudado dentro de si ou talvez apenas houvesse um despertar de um desejo latente, que nunca fora liberado.

Deixou o celular sobre a mesa e voltou para o quarto. Precisava dormir porque no dia seguinte, tudo voltaria ao normal.

Alfredo Martins era na vida pessoal, como agia em seu trabalho: um tabelião responsável e rígido. Tinha a pontualidade e a responsabilidade no trabalho como modelo indispensável para uma integridade ética e moral em suas relações profissionais. Não destoava em nada a sua vida pessoal de homem bem casado e benemérito da sociedade.

Olhou mais uma vez para o relógio da parede que devia ter mais de cem anos, as badaladas nas horas certas, nas meia-horas, o tempo passando, o mundo girando, a vida assumindo o seu espaço e ele como o seu pai assistindo o passar das horas, dos dias, da vida.

No bolso, um cartão queimava-lhe os dedos.

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/homem-solitário-parque-noite-1394395/

terça-feira, julho 12, 2016

O cofre e as moedas

Seguir certas crenças ou talvez quaisquer delas, cristãs ou não, têm-se a impressão de que muitas vezes, Deus situa-se longe demais, num espaço tão distante que se equipara a estrelas inatingíveis. Pelo menos, o Deus do amor que Cristo nos revelou.

Nestas religiões ou crenças, o contato com Deus exige muitos caminhos e a maioria deles tem meandros que desembocam em labirintos, aos quais não temos acesso ou nos perdemos na viagem.

Para este contato, ficamos a sós, despidos de qualquer humanidade ou desejo, onde os conceitos se constroem nos percalços de uma sociedade idiotizada, na qual o ser humano parece o último da hierarquia animal.

Para elas, as crenças e seus idealizadores, atingir este contato exige sobrepujar a dor, exaltar a imagem em detrimento do conteúdo, reproduzindo um ambiente de felicidade.

Para ter o contato com Deus é preciso ser aceito na clã e equilibrar-se em cabos sob precipícios, sem rede de apoio, perdidos na fé cega de quem alcança apenas a palavra blindada. Na verdade nada é tão inseguro quanto a trajetória ditada.

Caminhar limpo pela estrada, decidido e verdadeiro, uma verdade padronizada dos que se encharcam nas medidas dos cofres, cujas moedas tilintam à beira do altar.

Talvez este contato não dê em nada, nem o homem seja feliz, nem se sinta solidário. Ao contrário, cruel e determinado no julgamento, na intolerância e no ódio.

Talvez o único contato com Deus, seja o avesso de tudo isso, das crenças, das religiões que pregam a ruptura do ser humano em sua plenitude, quando o querem dividido e parcial, um indivíduo no grupo e outro na sociedade.

Ou quando o preconceito ameaça a falência da humanidade, embora enalteçam o pecado como elemento de temor e incerteza.

Será que o néctar e o perfume se unem na natureza e não podemos aprisionar em nossas narinas, se eles são de Deus?

Talvez o contato se dê no viés do amar, arriscar-se e até errar, porque a substância é de Deus.

Às vezes, tudo é muito pouco, quando este tudo é apenas um rascunho de princípios contra a humanidade. O homem é muito mais do que seguir o que outros homens pregam.

Talvez o contato se dê mais simples, quando nos despirmos de nossas vestes surradas e pesadas de conceitos que nos apropriem de uma única faceta, a qual jamais seremos capazes de revelar e apresentemos a alma leve, tão leve que a inspiração de Deus a toque e transforme.

Fonte da ilustração: Gerd Altmann, de Freiburg/Deutschland, do site https://pixabay.com/

quinta-feira, março 31, 2016

PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI EM FLORES II

Rosas se espalhavam pelo alambrado, tingindo de vermelho o cenário, no qual se avistavam pequenos pedaços de azul da parede do prédio.

Quase não se via o outro lado da cerca, tão fortes estavam as rosas.

Tínhamos a impressão que o verde era apenas um adereço à beleza e ao perfume que revelavam.

Houve momentos em que cresceram tanto, que atingiram o jardim por trás da cerca, envolvendo-se nas margaridas, nas frágeis papoulas ou nos vigorosos cravos amarelos.

Achavamos que o vermelho suplantava as cores da discórdia, do ódio, da intolerância.

Pensávamos que o desafio estava tomado, que o sangue vertido nas lutas pela democracia representava os anseios de uma sociedade fragilizada por anos e anos de dissociação cidadã de sua pátria. Achávamos por fim que a sociedade estava madura.

Mas as pétalas foram caindo aos poucos, lentamente, no subterrâneo dos insetos devoradores, minando as raízes, as folhas, os galhos. Minando o verde da esperança até chegar no vermelho. O vermelho símbolo de tantas lutas, para estas formigas, pulgões e toda a sorte de predadores estimula o ódio, a intolerância, o desamor, o desrespeito, o embate furioso contra as leis, contra a democracia, o golpe.

Pois as pétalas se espalhavam, as rosas vermelhas que enfeitavam e transformavam milhares de cenários cinzas e pobres em espaços de esperança e melhoria, hoje estão sendo dizimadas através da mão canhestra do carrasco, até mesmo dos alienados que seguem o fluxo dos desinformados (ou manipulados).

Mas o mundo gira, e as flores tem a temperança da natureza, há tempo de brotar e por certo nem todas serão destruídas, porque a terra é fértil e o adubo está aí, pra ser espalhado.

sexta-feira, janeiro 08, 2016

Uma diretora valente

Amlid era diretora de uma escola de periferia. Lutara muito pela escola, nos tempos indefinidos, quando o aproveitamento dos alunos era zero, a liberdade era totalmente cerceada e poucos tinham acesso ao conhecimento. Lutara com seu próprio sangue, dando a sua juventude e energia à causa da aprendizagem.

Muitos eram contra o acolhimento dos alijados da pequena sociedade, inclusive acusando-a de rebelde, de ir contra aos princípios e normas do Estado. Mas ela não se acovardava, ao contrário, procurava os meios de realizar o seu projeto.

Até que o dia da vitória finalmente chegou e a maioria teve acesso aos livros, à merenda escolar, ao lazer, ao conhecimento na íntegra, respeitando a individualidade de cada um, inclusive com acesso à informação digital.

Apesar disso, forças se moviam, esgueirando-se pelos cantos das noites negras da desinformação e ignorância cultural, quando não pelo puro preconceito. Fizeram tudo para excluir de vez a valente Diretora.

Lutaram para tirá-la da escola, vasculharam a sua vida, fizeram inventários e dossiês para encontrar algum fato que a incriminasse, para finalmente expulsá-la. Não interessavam os benefícios aos alunos e à comunidade escolar. Não importavam os inúmeros que haviam ascendido ao patamar do ensino e educação. A única coisa que tinha valor era o fato de ocuparem o mesmo espaço de um grupo que não toleravam. Um grupo que passavam a odiar com todas as forças.

Amlid não recuou. Ao contrário, em cada acusação, esforçava-se em encontrar o culpado e puni-lo como mandava o estatuto da escola. Porém, por mais que seguisse a lei, era achincalhada de todas as maneiras.

Não suportavam uma mulher na liderança, mesmo que numa escola de periferia, onde havia tantos indesejáveis a utilizar os mesmos instrumentos pedagógicos sem a capacidade dos eleitos, segundo seus conceitos retrógrados.

Talvez Amlide tenha errado, quando pensou que sua gestão seria fácil tendo prometido uma aprendizagem segura, sem a intervenção de pedagogias externas. Entretanto, nada pode vencer a maioria da comunidade da escola que exerceu o direito fundamental do cidadão, que é o voto livre e fundamentado. Afinal, entre professores, alunos e pais, ela recebeu como prêmio, a maioria dos votos. Sua eleição foi exemplar.

Entretanto, Amlid terá muito que lutar em 2016, porque as forças conservadoras e retrógradas ainda lutarão muito para retirar o que recebeu de direito pelo povo escolar. Esperemos que a verdade se estabeleça e que a democracia da pequena escola de periferia persista.

E que o mundo não dê marcha à ré.

sábado, agosto 15, 2015

PEQUENA CRÍTICA SOBRE O FILME A VIDA NO PARAÍSO (Så som i himmelen)

Certamente há centenas de críticas e resenhas sobre o filme “A vida no paraíso”, dirigido pelo sueco Kay Pollak, mas há sempre um aspecto a explorar e nunca é demasiado se falar de um bom filme. A vida no paraíso é um destes filmes em que os personagens são envolvidos na trama existencial de suas vidas, tão pacatas, mas borbulhantes de problemas e confrontos numa sociedade machista da pequena cidade em que vivem. É para lá, que o maestro famoso volta, Daniel, o protagonista, retomando uma busca que sempre se propusera, talvez de forma inconsciente. Uma retomada ao passado, à vida simples e também cheia de contradições desse lugarejo, aliás, o lugar onde nascera. Lá vivera os primeiros anos de sua vida e logo se mudara para a cidade grande, para tornar-se um grande maestro. Após uma transformação física e espiritual, volta à cidade natal, aos costumes, aos velhos conflitos. Não há nada aqui relatado que possa tirar a surpresa do filme, pois logo no início da película, surge a causa principal de seu retorno à cidadezinha, o qual não foi aqui explicitado. De todo modo, resta-nos ressaltar este retorno como um ajuste de contas pessoal, uma constatação que as coisas permanecem como eram e que as pessoas não mudaram, nem mesmo ele. Apenas assumira uma qualidade intelectual que talvez a maioria ainda não alcançara. Percebera que o amigo de infância continuava tão agressivo e truculento, e que certamente todos prosseguiam com suas singularidades internas, sem grandes avanços. No decorrer da história, organizando o coral em que as pessoas do lugarejo participam, a sua presença vai influenciando na vida de cada uma, cuja possibilidade de mudança se torna mais próxima a partir de suas ideias. Na verdade a mudança interior já está imbuída em suas mentes, dái o conflito interno, a tensão exterior, o desejo de enfrentar novos rumos e finalmente os avanços. Essas possiblidades tranformam a fisionomia da cidade, a trajetória de cada cidadão que se conhece e participa daquele clubinho outrora fechado. É um filme lindo, sensível, capaz de emocionar e de fazer-nos refletir na capacidade de crescimento que temos a nossa frente e muitas vezes, ou na maioria da vezes, precisamos de alguém para apontar-nos o caminho. Para mim, aí está a maior qualidade do filme. O protagonista de A vida no paraíso é interpretado por Michael Nyqvis, um grande ator, que já havia trabalhado na comédia Bem-vindos. Outros autores que participam com especial competência são Frida Hallgren, Lennart Jähkel, Ingela Olsson e Niklas Falk. É um filme, como citado, sueco, do ano de 2004 e foi indicado como melhor filme estrangeiro em 2005. Vale à pena embrenhar-se pelos meandros da sensibilidade e do afeto verdadeiro, onde pessoas comuns transformam a sua realidade e a dos demais.

sexta-feira, julho 10, 2015

Crônica sobre o filme Mon Oncle

Esticando um olhar mais aprofundado sobre os hilários e às vezes, patéticos personagens de Meu tio, “Mon Oncle”, com a direção de Jacques Tati (1958), observa-se, numa análise, ainda que de forma despretensiosa, características marcantes de personagens que talvez servissem apenas de contraponto para o desenrolar da trama. Na verdade, todo o conteúdo e análise dos diferentes tipos que tecem a urdidura da história já foram exaustivamente explanados em muitos artigos espalhados na rede ou mesmo publicados em periódicos especializados. Fica-nos, portanto uma pequena abertura, um buraco na fechadura, que em algumas vezes passa desapercebido, mas que ao conduzirmos a linha do olhar até o horizonte, acompanha-se, por certo, a trajetória do fio que enverga e sustenta a pandorga no ar. Falo de Gérard, o filho do casal, que ao lado do tio considerado subversivo aos conceitos da sociedade burguesa, e alienado da comunidade familiar, descobre novos horizontes em sua vida rasteira. Ao reunir-se aos meninos do outro lado da cidade, da periferia, montando as varetas de bambu, soltando pandorgas, atravessando caminhos íngremes, atirando pedras, escondidos atrás das montanhas e rindo-se sem parar, ao perceber as pessoas distraídas pelas pedras ou pelos gritos, chocam-se com o poste que lhes servia de obstáculo à passagem. Trata-se de uma alegria genuína, inocente, verdadeira, distante das armadilhas da pseudo-tecnologia ultra moderna, do padronizado exercitar- se na casa, do inalterado programa de todas as manhãs e noites, seguindo como de praxe, o senso comum. O progresso como fonte principal de satisfação, a ostentação, o luxo, a hipocrisia, a frustração, a humilhação, a padronização de procedimentos, o resvalar na mediocridade cotidiana. E lambuzar-se dela. O tio, Senhor Hulot, por seu lado, conduzindo o menino, conduz a sua própria identidade, evitando ser aviltada pelo emprego oferecido pelo cunhado. Emociona-se com a elegante inocência da jovem andando de bicicleta, com o sorriso generoso do sobrinho e seu olhar arguto e perspicaz, com a vida que brota lá fora. Ao ingressar no mundo sectário, dividido sem partilhas, não se ajusta aos padrões identificados pela sociedade. Marginaliza-se, mas aquieta o coração, quando observa que o sobrinho aprendeu alguma coisa. Deixou a pele vibrar com uma lufada de vida, que lhe permitira aos poucos abrir o coração. Quem sabe não influenciará os da casa, desde que suas mentes e corações não se acovardem com o conforto aparente de quem se sente assim protegido e forte?

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A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

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