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Quando não cabemos no mundo

“O mundo inteiro terá que se transformar para eu caber nele.”

Esta frase de Clarice Lispector nos remete a vários significados dentro do panorama social e político que vivemos no mundo e no Brasil. Parece-me que o mundo interior das pessoas, aquilo que pensam e professam durante toda a sua vida, independente do que realmente praticam, desemboca nas suas articulações políticas e sociais. Talvez mesmo, uma coisa não se possa separar da outra. E falo tanto no aspecto conservador, de costumes e práticas sociais, quanto no aspecto de vanguarda, de mudança de uma sociedade que avança gradualmente, quer queiramos ou não. Que avance para a melhoria do ser humano, no seu significado e significante em relação à vida atual, ou retroceda conforme o pensamento conservador extremo e neste caso, há uma luta de comportamento de modo estrutural e articulado. Explico melhor: o homem nasceu para crescer, evoluir em ambição à liberdade de se expressar, de se distinguir em diversos aspectos, de ser apenas. Isso talvez o leve ao que chamamos humanidade e nos aproximemos, conforme a crença de cada um, de Deus.

Entretanto, há sentimentos muito controversos que se chocam com estas mudanças previsíveis e inevitáveis. Por quê? Quando nos identificamos com este pensamento ultraconservador, em que a pauta dos costumes é rígida e nos agasalha numa presumível segurança, tudo que diverge destes parâmetros, torna-se uma ameaça, seja na sexualidade, no casamento normativo, na própria individualidade que não reconhece a diferença. Numa sociedade conservadora e repressora como a nossa, aquilo que não se submete ao nosso controle e a ideia de que tais costumes divergentes do padrão conservador sejam liberados, o processo se torna extremamente ameaçador. Isto acontece, porque o próprio desvio pode ser reconhecido, sentindo-se o sujeito alijado do grupo que o protege e com o qual se identifica.

Certa vez, perguntei a uma professora de literatura, num curso de escrita criativa, por que as histórias de Nelson Rodrigues nos incomodam tanto, transmitem um estranhamento e uma sensação de desamparo em relação àqueles conteúdos. Então, refletiu que se ocorre um incômodo é porque há a expressão de um sentimento muito próximo ao qual não queremos ou fingimos não existir dentro de nossa realidade íntima ou em nosso círculo social. Quanto mais nos conhecemos, mais entendemos as mazelas humanas. Não é necessário que aceitemos todas, mas que entendamos que existem e que, identificando-as, as olhemos de frente sem que signifiquem qualquer ameaça.

Voltando à Clarice, ou o mundo inteiro se molda para que caibamos nele, ou o encaremos sem medo, com a certeza de que podemos reconhecer as diferenças e entendamos o outro que pode estar também no nosso convívio.

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