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sexta-feira, outubro 21, 2022

Quando não cabemos no mundo

“O mundo inteiro terá que se transformar para eu caber nele.”

Esta frase de Clarice Lispector nos remete a vários significados dentro do panorama social e político que vivemos no mundo e no Brasil. Parece-me que o mundo interior das pessoas, aquilo que pensam e professam durante toda a sua vida, independente do que realmente praticam, desemboca nas suas articulações políticas e sociais. Talvez mesmo, uma coisa não se possa separar da outra. E falo tanto no aspecto conservador, de costumes e práticas sociais, quanto no aspecto de vanguarda, de mudança de uma sociedade que avança gradualmente, quer queiramos ou não. Que avance para a melhoria do ser humano, no seu significado e significante em relação à vida atual, ou retroceda conforme o pensamento conservador extremo e neste caso, há uma luta de comportamento de modo estrutural e articulado. Explico melhor: o homem nasceu para crescer, evoluir em ambição à liberdade de se expressar, de se distinguir em diversos aspectos, de ser apenas. Isso talvez o leve ao que chamamos humanidade e nos aproximemos, conforme a crença de cada um, de Deus.

Entretanto, há sentimentos muito controversos que se chocam com estas mudanças previsíveis e inevitáveis. Por quê? Quando nos identificamos com este pensamento ultraconservador, em que a pauta dos costumes é rígida e nos agasalha numa presumível segurança, tudo que diverge destes parâmetros, torna-se uma ameaça, seja na sexualidade, no casamento normativo, na própria individualidade que não reconhece a diferença. Numa sociedade conservadora e repressora como a nossa, aquilo que não se submete ao nosso controle e a ideia de que tais costumes divergentes do padrão conservador sejam liberados, o processo se torna extremamente ameaçador. Isto acontece, porque o próprio desvio pode ser reconhecido, sentindo-se o sujeito alijado do grupo que o protege e com o qual se identifica.

Certa vez, perguntei a uma professora de literatura, num curso de escrita criativa, por que as histórias de Nelson Rodrigues nos incomodam tanto, transmitem um estranhamento e uma sensação de desamparo em relação àqueles conteúdos. Então, refletiu que se ocorre um incômodo é porque há a expressão de um sentimento muito próximo ao qual não queremos ou fingimos não existir dentro de nossa realidade íntima ou em nosso círculo social. Quanto mais nos conhecemos, mais entendemos as mazelas humanas. Não é necessário que aceitemos todas, mas que entendamos que existem e que, identificando-as, as olhemos de frente sem que signifiquem qualquer ameaça.

Voltando à Clarice, ou o mundo inteiro se molda para que caibamos nele, ou o encaremos sem medo, com a certeza de que podemos reconhecer as diferenças e entendamos o outro que pode estar também no nosso convívio.

sexta-feira, julho 28, 2017

Meu padrinho, o turfe e a laguna

Meu padrinho estava sempre disposto a levar-me ao hipódromo, a sua paixão. Eu, guri de 12 ou 13 anos, não me interessava muito pelo esporte, entretanto, aquele passeio de certo modo, representava uma liberdade de ação, da qual não tinha acesso à época, em virtude da severidade da disciplina paterna.

Meus pais muito severos no encontro com os colegas ou na eventualidade de passeios com desconhecidos, não permitiam passeio sozinho pela cidade, principalmente em lugares diferentes dos que frequentava. A possibilidade de me relacionar com meninos desconhecidos, de jogar bola nos campinhos de várzea, de me embrenhar pelas dunas próximas à laguna, geralmente criavam muitos conflitos.

Pois bem, meu padrinho significava essa liberdade, essa possibilidade de passear com ele, mas com o direito de fazer o que quisesse, ou seja, não participar das carreiras com as quais tanto se encantava. Eu aproveitava o momento para encontrar os amigos.

Naquela tarde domingueira, fui como de hábito ao jóquei-clube ao seu lado. Para mim, era uma pequena viagem, pois demorávamos muito a chegar. Lá, meu padrinho se ocupava dos conhecidos e eu aproveitava para sair. Deixava-o tomando uma cerveja e confabulando sobre o cavalo que sinalizava o melhor prêmio, ou mais previsível ou o azarão e me afastava, indo ao encontro dos meus melhores momentos.

Ali, bem próximo ao hipódromo, ficava a laguna, cujas margens contornavam a cidade em toda a extensão e naquele espaço não havia casas, mas muitas dunas, algum pequeno campo com areia onde jogávamos futebol e depois nos refrescávamos nas águas da prainha, deixando o futebol improvisado para a natação mais precária ainda.

Atravessávamos o lamerão, o chamado lodaçal que se desenhava numa ampla faixa para chegarmos á agua límpida da laguna e ali nos envolvíamos nas marolas e passávamos tanto tempo que nem percebíamos se era tarde ou cedo.

O problema era sempre a volta, cujas explicações não convenciam em nada meus pais pela roupa encharcada e suja ou pelos tênis embarrados. Embora, muitas vezes, eu participasse do ambiente dos jogos, dos bilhetes, das apostas, da torcida, naquele cenário fervoroso do turfe, meu padrinho sabia que mais dia, menos dia, eu fugiria para aquele tufo de liberdade, do qual buscava como um cavalo marchador. Eu que me explicasse em casa. Sua alma, sua palma, dizia ele.

Outras vezes, saíamos pela cidade. Ele costumava tomar café no mercado público, tinha muitos amigos pelas redondezas e cercava-se do pessoal das ilhas ou mesmo dos amigos do turfe, que também frequentavam o lugar. Eu costumava observá-los e perceber que apesar da rudeza das argumentações, das conversas sobre a lida no campo ou no trato com os animais, ou mesmo entre aqueles, que como meu tio eram pequenos comerciantes, havia entre eles um elo de amizade muito grande, cuja sensibilidade revelava homens com maturidade humana muito forte. Percebia, nos discursos pouco estruturados, as informações que indicavam confiança na vida e no ser humano, que somente mais tarde a vida me revelaria.

Por vezes, observava-o sorver o café devagar, enquanto saboreava o pastel frito na hora e de vez enquanto, tentava me incluir nas conversas. Esse guri estuda muito, é muito dedicado, vai ser grande coisa na vida. E dava um meio sorriso que às vezes parecia revelar uma certa desconfiança, misturada com orgulho. Na verdade, ele acreditava que eu teria uma profissão digna, mas talvez não conseguisse projetar em suas percepções simples, o que realmente eu faria na vida. Estudar já bastava.

Era um homem tímido, mas ao mesmo tempo de muitos amigos. Eu gostava de sua presença, gostava da companhia e deixava outros companheiros para ficar ao seu lado.

Talvez aquele misto de liberdade, aquela volta na laguna, o encontro com os amigos, o encantamento nas corridas do jóquei-clube, simbolizassem para mim um homem que aproveitava o lado bom da vida com uma certa leveza difícil de se aceitar nos dias de hoje, e de certo modo, indicava um caminho, me deixando livre para também acolher o que a vida me oferecesse.

Um bom homem.

Fonte da ilustração: Escritor, poeta e fotógrafo Wilson Rosa da Fonseca.

domingo, janeiro 15, 2017

A barca e a biblioteca: um romance como livros foram sitiados também em tempos de recessão

É a trajetória de um homem que aos poucos vai se inteirando da verdadeira história de seu pai e o quanto ela ainda o influencia nos dias atuais, forçado a recorrer ao passado e reconhecer nele um caminho novo, de liberdade e orgulho, que não identificava anteriormente. Uma história que vai modificar e completar a sua. Com o conhecimento destas vivências, cresce como ser humano.

Tudo começa nos anos sessenta, cuja curiosidade infantil o impulsiona a conhecer determinados documentos que parecem comprometer o pai, e que tanto o angustiavam pelo forte conteúdo político que continham.

Ao mesmo tempo, levava a vida de menino, confrontando a fantasia de aventurar-se na barca à beira do cais, sempre impedido pela mão forte do pai, enquanto, que através de outros caminhos, imergia no mundo sagrado da biblioteca, batizado que fôra nas letras, podendo singrar os mares tal como os navegadores antigos, sem que houvesse qualquer intervenção. Aqui ocorre a metáfora da barca que não ousara entrar, mas que se materializava no ambiente dos livros.

Em meio a tudo isso, há a luta política do pai, como voluntário no movimento da legalidade, quando Brizola instalava a rádio nos porões do Palácio. Em decorrência destas atitudes, fôra perseguido e torturado, a partir da derrocada da liberdade pelo advento da ditadura.

Na fase adulta, envolvido com os documentos confidenciais do pai, misturam-se personagens que gravitam em torno deste mistério, na trama que ocorre no cenário de uma biblioteca, chegando ao ápice, a partir de um crime.

Nesta atmosfera misturam-se sentimentos muito fortes, mas bem distantes dos relacionamentos idealizados de sua infância.

terça-feira, dezembro 20, 2016

O peso da liberdade

O peso da liberdade Sentia as madrugadas se espraiarem e a sensação de que a vida se alongava, ali, naqueles momentos fugazes. Nada havia para impor: a natureza se completava. A vida estava além das paredes de seu quarto. Estirava-se nas sombras encardidas dos muros mal pintados, nas sacadas fragmentadas, nas quais figuras se expunham assim, descomedidas e sem pudor.Transformavam-se em manchas de água, nas calçadas limpas, sereno incrustado da umidade gélida produzida. Era assim. A natureza se esbaldava em fervor, em criação e criatura, em inventar a vida. Para ele, as madrugadas não passavam de um espiar solitário pelas persianas. Um olhar entrecortado em tiras. Um olhar apenas. Nada que impusesse uma vontade forte, que se derramasse em seu corpo e atingisse a alma. Que nada. Bastavam os sons difusos da noite insípida em que se resumiam suas horas. Uma coisa insossa. Uma coisa sua, mas que não compartilhava com ninguém. Melhor assim. Melhor deixar-se vesgo e perturbado ante o desconhecido que só vislumbrava às apalpadelas na vidraça. Na persiana. No frio da janela. Um olhar qualquer. Nada definitivo. Nada planejado. Nada. Pudesse seguir os instintos e atravessar as paredes, afundar-se na lama que jaz ao lado da janela. Chafurdar e encher-se de gozo. Para ele, porém, a vida era comedida. Não podia ultrapassar os limites. Não devia se arriscar. Pensar apenas. Imaginar. Quase sonhar. Um homem às vezes sonha de vesgueio, com cuidado para não destruir o mínimo de sonho. Um sonho frágil, pouco acalentado, logo acordado para a realidade. Mas um sonho. Na verdade, quisera ousar o sonho dos outros, daqueles além de seus limites, do outro lado de sua janela. Quisera sentir o orvalho mais perto, tão perto que encheria o nariz e os pulmões. A lua lambendo a pele, deixando-a quase translúcida. E um bem-estar de quem atinge a plenitude. Talvez um dia, transpusesse a sua janela e espiasse de perto o que acontecia, ali, ao lado e participasse também. Nem que fosse num salto, num segundo, mesmo que se arrependesse, que retrocedesse, que fugisse. Mas talvez cultivasse uma fresta na mente, que vez por outra se enchesse de luz, produzindo um caminho para viver em paz. Quando saiu de casa, sentiu o bafejo da brisa noturna. Mais do que brisa. Era um frio miúdo, que por vezes, arrepiava a testa e os cabelos. Olhou assustado para o nada. Escuridão total. Nem sabe exatamente o motivo do medo. Teria motivo? Talvez o de ainda estar vivo. As coisas se acomodavam, os dias se sucediam, as noites se alternavam em luzes acesas e latidos ao longe. Estava sempre só. Desanimado. Não era pra tanto, pensava. Devia sentir-se feliz, por alguns minutos. Devia sentir a alma elevada, o coração acalmado. Sua vida era como a de todos. Por que se sentia atribulado por picuinhas do espírito? Por que não desviar o desconforto e partir para a própria misericórdia? Isso, ter dó de si, é o que precisava. Mas não aquela piedade medíocre, aquele ar de pobre coitado. Ao contrário, uma piedade doída, verdadeira, do fundo da alma, que o alimentasse, que alicerçasse os pensamentos e a coragem. Quem sabe tendo dó de si, virava-se de frente para o mundo. E percebesse que ao descer as escadas do prédio, o porteiro tinha um modo aflitivo de o olhar, como se o alertasse para o perigo. Talvez porque pouco o visse sair, principalmente à noite. Que interessava ele, agora? Não passava de um velho amordaçado nas ondas do rádio. Sempre à espreita de uma tragédia. De certa forma, agora, sentia-se livre, pois pelo menos, ultrapassara a soleira da porta. Estava atravessando ruas, pisando nos paralelepípedos, enfrentando esquinas. Podia caminhar, sentir o sereno esfriar a testa, o cabelo molhar e avistar ao longe, figuras disformes que passeavam rápidas pelas calçadas circundantes. Na verdade, sentia a boca ressequida. Alguma coisa que o impede de absorver a liberdade em sua plenitude. Mas quem consegue? Quem realmente é livre? Melhor voltar até a garagem, pegar o carro, sentir-se mais protegido, encontrar um lugar para passar a noite. Talvez beber alguma coisa forte, que lhe queime a garganta e acione o cérebro. Então retirou o carro do estacionamento e dirigiu-se às ruas próximas. Não fazia muito que saíra de casa, mas tempo suficiente, para sentir-se angustiado. O tempo era o resultado de suas memórias. E elas permaneciam e se renovavam a cada calçada que atravessava, cada canteiro que avistava, cada praça que circundava. Lembranças da infância, da adolescência, de tempos marcantes. Tempos em que talvez não fosse tão solitário. Estacionou o carro sob a luz amarela do poste. A avenida ampla vislumbrava algum movimento de pedestres. Namorados que se deslocavam em direção aos cinemas ou a bares. Grupos de rapazes que se dirigiam para casa ou talvez para a universidade. Poucos velhos apressados, segurando as bolsas, entrando e saindo de farmácias, ansiosos em voltar para casa. Observava as pessoas, à sombra das árvores que deitavam os ramos sobre os veículos estacionados em oblíquo. Ouviu uma daquelas músicas antigas que o transportavam ao passado, "Perfídia" executada por Glenn Miller .“For I found you, the love of my life, in somebody else's arms”. Nada mais oportuno do que estes versos cheios de melancolia. Deixou-se ficar assim, introspectivo, absorvido pela linguagem lírica da melodia. Nada o atrapalhava, nada o transportava a lugar nenhum, ou o afastava daquele, no qual seu coração o pusera. Mas às vezes, o imponderável acontece. Nada é uma expressão muito forte, tanto que uma batida no vidro o despertou do sonho. Olhou transtornado para a imagem que se derramava no vidro como uma estampa disforme e não disse nada. Por um momento pensou que... não pensou em nada. Tentou voltar ao enlevo, ao passado, à melodia. Mas a voz ecoou enérgica e definitiva, como uma lâmina na carne. Um revólver calibre 38 raspando a vidraça e a voz ameaçadora exigindo que abrisse o carro. Ele obedeceu trêmulo. O mundo desabava em segundos. Ele vislumbrava uma mulher passeando com um cachorro na direção da praça e perdendo-se na escuridão salpicada de luzes indefinidas. Só neste momento percebera que três homens entraram no carro e o empurravam rapidamente para o banco detrás, enquanto um deles acionava a direção. Em segundos, o carro se afastava em disparada. Sua boca babava no assento do banco com uma arma apontada para a cabeça. Gritos, ordens, ameaças. Em poucos minutos, paravam numa rua escura, uma espécie de encruzilhada onde havia linhas de trens. Retiraram-no do carro, abriram o porta-malas e o enfiaram lá dentro, revelando a intenção definitiva de cumprirem o seu objetivo. O carro partia novamente. Ele sentia um calor constante no corpo, talvez do cano de descarga que ficava ali por baixo, não sabia, tudo se alternando entre tremor e pânico. Uma vontade de urinar que não conseguia adiar. O mijo humilhante alagou até seu pescoço, cujo corpo se dobrara numa postura fetal, a única que lhe cabia. O carro voou por estradas se afastando da zona urbana. Sua cabeça doía, sentindo o peso da lataria nas costas. As batidas cada vez mais fortes, produzidas por retornos mirabolantes, aliados à precariedade das estradas, além do alta velocidade desenvolvida. De repente, o carro parou. Os homens cochichavam. Portões com engrenagens enferrujadas se abriam e pacotes se amontoavam dentro do veículo. Os homens se espremiam nos bancos, como se outros entrassem e participassem da operação. Um deles se aproximou e abriu levemente o porta-malas: um vento frio encheu-lhe as narinas. Respirou fundo. A falta de ar passara. Resmungou entre dentes: – Por favor, deixa aberto... quase não respiro. – Cala a boca, não fala comigo. Só eu falo. Que tu tem ai pra botá gasolina? Essa porra tá vazia! Arrancou-lhe do pulso, o relógio, perguntando se a “bosta” tinha algum valor, ao mesmo tempo que avistara a corrente no pescoço, puxando-a com violência, já que o celular já era moeda de troca desde o início. Em seguida, lacrara a tampa do porta-malas, gritando palavras de ordem. – Cala a boca, tu vai morrê se não fechá essa trela! Tu vai morrê queimado, seu puto! Os demais resmungavam em tom cada vez mais baixo, quase um zunido. Alguém se encarregou de trazer a gasolina. Encheram o tanque. Dentro do porta-malas, ele tinha a impressão de que o líquido escorria pelo seu corpo. Ouvia comentários sobre incêndio do veículo. O desespero, aos poucos, dava lugar a uma intensa resignação. Tentou rezar, mas não conseguia. Não recordava as palavras, nem das pessoas. Quem se lembraria dele? Quem sentiria a sua falta? Quem investigaria para descobrir que morrera assim, transformado num monte de cinzas? O carro se afastava, antes, porém ele ouvia estampidos ao longe. Será que alguém fora assassinado? Talvez um vigia aparecesse e exercesse alguma reação? Eles apagaram um comparsa? O que queriam com ele, por que não o deixaram morrer? O carro disparava numa velocidade alucinante. A escuridão total denunciava a zona rural. De repente, luzes passavam aqui e ali, pelas frestas do porta-malas, como se atravessassem uma ponte. E se eles decidissem se livrarem do carro e o jogassem no rio? Não interessava. Estava morto. Sabia que seu destino estava selado. Era só questão de tempo. Agora, o carro parara novamente e o ruído abafado do motor se misturava a coaxos de sapos, o que significava que ainda estavam na zona rural. De imediato, decidiram livrar-se dos pacotes pesados ou caixas de dentro do veículo. Os homens se comunicavam em ruídos e somente um se aproximava dele. Percebera tratar-se de uma estratégia, para que não os reconhecesse. Mas de que adiantaria isso? Bastava apagá-lo de vez! Não teriam mais problemas. Ele não significava nada para eles. Há muito não tinha qualquer importância para ninguém. Aquele que costumava falar com ele, avisou, ameaçador: – O carro vai parar mais duas vezes, tu vai descer na segunda. A tampa vai tá aberta. Conta até 50, entra no carro e segue em frente. Não olha pra trás. Nós tamos de olho. Um deslize e tu vai sê apagado! Foram as últimas palavras, a ansiedade aumentou, um zunido nos ouvidos, um corte na testa que sangrava, a impossibilidade de articular as palavras, de mexer as pernas, de se sentir apto para sair do carro. Como faria isso? Nem pensava, nem engendrava qualquer imagem, porque sua mente não funcionava de modo racional. Seu coração batia exaltado. As costas contraídas, o corpo todo latejava, num misto de dormência e dor. Quando o carro parou numa rua escura, tentou ingenuamente contar, mas não conseguia articular na mente, os numerais. Não tinha o manejo adequado ao raciocínio. Um vento fino assombrava a fresta do porta-malas. Falou coisas desconexas, riu como se houvesse bebido ou usado uma droga forte, forçou as pernas para se levantar e pular para fora. Os ossos pareciam chocar-se desarticulados, deslocando-se pelo corpo, envolvendo as pernas, os braços e o pescoço. Então tropeçou na grama molhada de sereno e nem entendeu o peso da liberdade. Entrou no carro, seguiu em frente e nem sabe para onde foi.

sexta-feira, novembro 18, 2016

Bandeira do povo brasileiro

Quantas vezes, tremulaste abrandando as nuvens cinzas e deixando o céu mais azul.

Quantos olhos infantis te miravam, ensaiando teu hino e experimentando a emoção de teu emblema.

Quantas vezes, mãos juvenis te ergueram, levantaram no mastro, garbosa e alvissareira de novos rumos e esperanças da Nação.

Quantas vezes, foste chamada por vozes ufanistas, num patriotismo para poucos, num mundo de excessão. Foste assim usada, para ser um símbolo apenas de pensamentos restritos, não ligados ao povo, em períodos em que tua presença não era herança de todos.

Quantas vezes, cobriste ombros e corações de quem lutava por direito à liberdade e mostraste teu desempenho nas faces confiantes dos que lutavam por teu país.

Quantas vezes, lembram de ti nos hinos, nas glórias e nos feitos e esquecem quem teceu tuas entranhas e o vigor com que te vestes.

Hoje te vejo desperta no céu, bandeira, pavilhão de amor e glória e espero que representes o povo a quem te serve como discípulo fiel e não te trai.

Salve lindo pendão da esperança, como diz a letra de Olavo Bilac. E que esta esperança sejamos nós, somente nós, o povo brasileiro.

quarta-feira, novembro 09, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 18

Nosso folhetim dramático encaminha-se para os últimos capítulos. A seguir o capítulo 18, mas logo, logo chegaremos ao desfecho final.

Capítulo 18

As cores estavam esmaecidas. Paredes descascadas, velhas. Quando ele entrou e avistou a cena melancólica sentiu as pernas estremecerem e um rubor estranho percorrer-lhe o rosto. Aquele cheiro de coisa velha, mofada, o ar sofrido que o envolvia. Deu meia volta, pensando em fugir, mas desistiu. Parou na porta, segurando o marco, talvez para evitar afastar-se de vez. Seus olhos estavam perdidos. Não queria ver aquela coisa dissoluta que se transformara a sua casa. A sua vida, o seu passado.

Entrou devagar atravessando a sala em direção ao corredor que desembocava numa área que outrora fora verde. Quem sabe, respiraria melhor, ali. Seu coração estava agitado. Suas mãos suavam.

Procurou por alguma coisa no quarto. Sim, o quarto, antes de chegar a área. Era o seu quarto.

Aproximou-se da cama, deitou-se e ficou olhando para o teto. Estava tudo sujo, com teias de aranha e um cheiro de mofo que exalava dos cantos úmidos.

As palavras de Santa ainda martelavam em sua cabeça. Sabia que precisava ficar de um lado e estava com muitas dúvidas.

Fernando recostou-se na cabeceira e segurou a cabeça com as mãos. Por que sofria tanto, afinal a tia não significava muito para ele, a não ser que o havia ajudado a trabalhar naquela casa. Fizera-lhe um bem, é verdade, mas estava sempre ao seu encalço, rondando com uma certa ameaça, dizendo-lhe que um dia precisaria dele e que não poderia falhar. Se não a ajudasse, muito mais do que perder o emprego, seria perder a liberdade.

Na verdade, ela o usava, mas deixava o barco correr. Não podia fazer nada mesmo, estava bem daquele jeito. Tinha um trabalho, ninguém o incomodava.

Mas agora, havia aquele segredo que ele sabia e que talvez pudesse livrá-lo de seu jugo.

Por outro lado, teria de ajudar a patroa e fazer o que lhe pedira. Tinha que pensar.

Fazia tempo que não dormia naquela casa, que um dia fora de sua família e que agora estava abandonada.

Fazia tempo que não retornava ao seu quarto, às suas coisas, que deixara para trás, quando fora preso.

Ele agora senta-se na cama e revira as gavetas do criado mudo. Uma série de papéis, documentos, bulas de remédio. Talvez ainda houvesse alguma droga, mas não era isso que precisava naquele momento.

Levanta-se então e procura numa cômoda, abre várias gavetas e numa delas, encontra um embrulho com um elástico envolvendo-o.

Abre-o devagar, pensativo. Sabe do que se trata. Rasga o papel e retira uma arma, examina-a, engata o silenciador e fica apontando-a na direção da janela. Talvez precise usá-la.

Atira-se na cama novamente, e aponta várias vezes para o teto.

De repente, seus olhos se anuviam e sente uma forte raiva por Linda, ao mesmo tempo em que detesta Santa.

Afinal, as duas estão manipulando-o para conseguir os seus objetivos. O que ele nem desconfiava é que a tia tivera um filho no passado com o patrão. Onde estaria este rapaz?

O celular dá um alarme do whatsApp. Desbloqueia rapidamente a tela e vê a imagem de Alfredo surgir instantânea.

Pensa se deve responder-lhe. Fica em silêncio.

Em seguida, decide tomar a iniciativa que vinha protelando. Responde a mensagem. Alguns segundos depois, ele informa o endereço.

Solta o celular ali mesmo, na cama e sorri.

Quem sabe, as coisas podem melhorar para o seu lado, pensa.

Há tempos, o filho de dona Santa o olha de um modo estranho que parece convidá-lo a alguma coisa proibida.

Ao mesmo tempo em que se aproxima, também se afasta e o deixa entre os jardins, como se fosse um acessório que devesse observar e talvez achar bonito.

Algumas vezes, trocaram algumas palavras, nada demais, mas percebia em seu olhar uma intensidade que produzia muitas interrogações, nunca respondidas. Quem sabe, estava na hora de descobrir e encontrar um caminho para a sua vida que não estava nada tranquila, ultimamente.

Fernando já estava pensando em ir embora, quando tocaram a campainha.

Foi até a porta da frente e abriu-a para Alfredo, que o olhava angustiado.

Convidou-o a entrar, mas Alfredo exitava, dizendo que estava confuso e talvez fosse melhor conversarem noutro lugar.

— Mas qual é o problema? Esta casa era de meus pais, eu morei muito tempo aqui, agora estava abandonada e estou decidido a vir para cá. Por que você não quer entrar?

— Não é isso, quero dizer. Acho que deveríamos sair para um lugar público. Quem sabe, tomarmos uma cerveja.

— Do que é que você tem medo?

Alfredo olhou para os lados. Na esquina, um homem parecia observá-lo, caminhando pela calçada e voltando para o que ele supunha ser uma farmácia. Tudo, no entanto, parecia deserto.

— Eu não tenho medo de nada. É que nós nos vemos na casa de minha mãe, trocamos uma ou duas palavras, aliás, pouco vou lá.

— Mas então, o que você quer de mim?

Alfredo estremece. Olha novamente para esquina e observa que o homem se afastou em definitivo. Prossegue, ansioso:

— Você sabe, conversar um pouco. Mas acho que me enganei, forcei a barra com você, me desculpe, acho que fui longe demais.

— Não, espere, onde quer ir? Eu vou com você.

Alfredo se surpreende e responde, um pouco mais calmo:

— Estou com o carro aí na frente.

Fernando responde que é só o tempo de fechar a casa. Ao entrar, reflete no encontro que tivera com Santa e agora enfrenta o filho.

Sorri. Parece que a família está fechando o cerco.

Devem ter bons motivos para procurá-lo, principalmente Alfredo, pensa irônico.

Guarda a arma no bolso da calça e após fechar a casa, corre na direção do carro.

Alfredo o espera, sorrindo.

terça-feira, janeiro 19, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO IV

HOJE TERÇA-FEIRA, 19 DE JANEIRO DE 2016, PUBLICAMOS O QUARTO CAPÍTULO DE NOSSO FOLHETIM. ESPERO QUE GOSTEM E CONTINUEM LENDO A SEQUÊNCIA DOS CAPÍTULOS.A RELAÇÃO DE ÚRSULA E SUSANA, CADA VEZ A COLOCA FRENTE A FRENTE COM SEUS PROBLEMAS E COMO CONSEQUÊNCIA UM APRENDIZADO QUE VAI SE EFETUANDO. CONFLITOS QUE SURGEM E ENFRENTAMENTO COM SEUS MEDOS E ERROS DO PASSADO. UMA HISTÓRIA DE AMIZADE E AFETO.

Capítulo 4

Às vezes, me surpreendo pensando em meu pai. Nem sei se em virtude da visita, mas as lembranças me vêem tão nítidas, tão poderosas, que tenho a impressão de experimentar as mesmas sensações daquela época. Esta noite, eu até sonhei, imagine, eu sonhar, eu que permaneço eternamente em minha janela, olhando o mundo, deixando que as coisas aconteçam, esperando que os últimos rumores da noite sosseguem dando lugar ao silêncio perturbador. Você vê, Rita, como são as coisas: fico ouvindo os primeiros gorjeios das aves. Sabe aquela espécie de jacarandá, quase na esquina, defronte à farmácia, ela é um recanto de pássaros. Se eu dormisse, por certo me acordavam, não tenha dúvida. Eles começam devagarinho a fazer seus primeiros contatos. É um bem-te-vi daqui, uma alma de gato dali, uma tesourinha, lembra desse? Elas vivem aqui, nas cercanias. Mas esta noite, aconteceu algo impressionante comigo. Eu adormeci, nem sei quanto tempo, claro que não foi grande coisa, não. O fato é que desandei de minha janela. Adormeci sentada na poltrona, os braços apoiados no parapeito, como uma infeliz. Mas o bom disso tudo é que sonhei com meu pai. Há tanto tempo isso não acontecia comigo, que estou quase feliz. Nem Dulcina me tira do sério, hoje.

Meu pai era um homem extraordinário, tinha lá suas teimosias, suas crenças antigas, mas nós sabíamos qual era o seu limite. Como ele trabalhava na marcenaria, um galpão enorme que ficava no nosso quintal, estava sempre por perto. Tinha consigo que os móveis que reparava eram obras de arte. Usava de cuidado, esmero, carinho e nós nem sonhávamos em mexer em nenhuma daquelas peças. Quando punha o olhar numa peça, se detinha em cada detalhe, a ponto de transformar um móvel danificado, num outro objeto, que não aquele. Era perfeccionista, não arredava pé, até dar-se por satisfeito. Mas quando estava conosco, principalmente à mesa, quase não levantava a cabeça. Era muito severo, de poucas palavras, talvez o seu universo se resumisse no seu trabalho e as coisas da casa não inspiravam tanto desvelo. Chegava a ser ríspido, distante, mas eu o sentia sempre por perto. Talvez porque o compreendesse. São estas coisas, Rita, que somente a alma pode absorver.

Numa dessas noites em que nos preparávamos para a janta, ele apareceu à porta tão estranho que minha mãe virou-se de súbito de suas panelas, como se não reconhecesse aquele homem. Seu olhar pairou no ambiente, cenário taciturno, modelado ao momento de indecisão em que passávamos. Meu irmão nem percebeu nada de diferente e ficou manuseando soldadinhos de chumbo sobre a mesa, preocupado que estava com a estratégia de guerra que engendrava em sua mente. Eu larguei o livro da Senhora Leandro Dupré, quase escondendo-o como se o olhar de censura se dirigisse a mim, em virtude da história tratar-se de uma mulher desquitada. Aproximou-se e dirigiu-se a um canto da peça, encostando-se no parapeito da janela para dar uma última tragada no cigarro de palha. Ali, voltava o rosto para a rua e deixava-se ficar, perdido, perscrutando o silêncio da rua. Minha mãe aproximou-se e disse-lhe alguma coisa quase em sussurro, mas alertei os ouvidos e suas palavras ainda ressoam em minha mente.
¬

_Você está certo que deve abandonar o barco, homem? Você não é um rato que abandona o navio. Aquela casa é sua, é a sua vida.

_Mas não tenho como lutar. A hipoteca vence daqui um mês. Se não entregar, vão tomar o maquinário, as minhas ferramentas. De que a gente vai viver?

_Úrsula sabe do piano?

_Como assim? Ela é uma criança e eu proíbo a você que fale alguma coisa.

_Mas precisa saber do piano.

Eu estremeci, minhas pernas batiam uma na outra como se uma enfermidade produzisse aquele movimento involuntário. Não conseguia afastar os olhos daquele quadro, pendurado na janela, tendo como fundo os últimos raios do dia. A noite se dissipava, mas a penumbra não esmorecia com a lâmpada fraca que guarnecia nosso teto. Meu irmão voltou para os soldados de chumbo, aproveitando que a conversa não lhe interessava. Senti o olhar de meu pai pousado por um momento em nossas figuras, então baixei a cabeça e fingi folhear o livro.

_O piano não. O piano fica!

_Mas eles sabem que tem um piano na casa. Se está tudo hipotecado!

_Mas não vão hipotecar o sonho de Ursula! Ah, isso não.

_Você sonha demais, homem. Pois se é assim, lute, lute pra não entregar a casa. Vamos pensar numa maneira, tem que haver uma maneira!

Ao dizer isso, ela voltou para as panelas, encerrando o assunto. Provou o molho, temperando o dorso da mão e esbravejou, em seguida, impondo a arrumação na mesa. Que Carlos guardasse os soldados e eu levasse aquele livro para o quarto. Que pusesse a mesa, que a comida estava pronta. Meu pai jogou a bagana fora pela janela e afastou-se por algum tempo. Quando voltou, o rosto ainda molhado, sentou-se no lugar de costume, fez as orações de rotina e não mais levantou a cabeça. Eu suspirei aliviada, meu piano estava salvo. Na verdade, o que era de minha avó.

Mas, por hoje chega dessas lembranças de antanho, Rita. Quando a gente fica velha, parece que o passado bate a nossa porta, todo o tempo. Mas não pode ser assim, você não acha? O mundo precisa está aí, para mexer a sua engrenagem e tocar pra frente. Mesmo que pessoas como eu, não tenham mais esperança nesta vida. Pensando bem, viver do passado, ainda é uma forma de viver.

Daqui a pouco, sairei com Susana. Ela tem lá os seus problemas, suas dificuldades, mas nada que não possa ser resolvido, na idade dela, no mundo em que vive, na geração de liberdade em que foi criada. Somos mulheres muito diferentes, eu nasci num mundo em que a mulher era dedicada ao marido, que viera de uma escola de mãe para filha, em que a mulher vivia de suas lides domésticas, suas habilidades com o crochê, a culinária, o cuidado com os filhos. Imagine que a Senhora Leandro Dupre, assinava o nome do marido, nunca o de solteira para entregar-se à literatura. Mulher escritora era mal vista naquele tempo. A maioria usava pseudônimos. Eu gostava tanto dos livros dela. Diziam muito o que ia em nossa alma. E o romance de Tereza Bernad, ela discutia o tema da mulher desquitada, um escândalo para época. Depois, veio “Éramos seis” e eu não parei de lê-la. Dona Lola não era a mulher submissa que outros escritores pintavam, ao contrário, era uma mulher de sua época, que se dedicava ao marido e aos filhos, que compreendia o seu mundo, o mundo feminino sem questionar, apenas isso. Seus questionamentos eram contra a injustiça, a desumanidade, o poder da guerra, do dinheiro, do preconceito. Era uma mulher autentica.

Escute, Dulcina acaba de atender a porta. Não quero confianças com ela, é extremamente mal criada.

Dulcina afasta-se da cozinha, rapidamente, enxugando as mãos no avental e pára por um minuto e mira-se no imenso espelho do corredor. Limpa o suor da testa com o dorso da mão direita, enquanto que com a outra, ajeita a gola da blusa, por debaixo do avental. Imagina ser o entregador de gás e sente um certo frenesi. Aquele homem jambo, sorriso aberto, lhe desperta uma certa atração, que a desconcerta. Abre a porta e sorri, escancarada, mas logo cerra os dentes, irritada. Espantada, estica o pescoço, numa interrogação.

Abre a porta e pára espantada. Estica o pescoço numa interrogação.

_Bom dia, Dona Úrsula está me esperando.

_Pra que?

_Bem, temos um encontro.

_Aquela lá? Minha filha, ela não sai nem que o prédio pegue fogo.

_Mas eu posso falar com ela?

Dulcina faz um muxoxo. Em seguida, com a mão esquerda espalmada, pede que espere. Afasta-se alguns passos e acrescenta: _vou anunciar.

_Não é preciso, Dulcina.

Dulcina se surpreende com a chegada inusitada da patroa. Explica-se, embaraçada.

_Ah, a moça tá aqui, lhe esperando, eu ia...

__Não se preocupe Dulcina. Parece que você tem muito a fazer na cozinha.

_Ih, tem caroço neste angu! – e afasta-se rebolando os quadris.

_Não lhe dê importância, Susana. Dulcina é muito ousada. Às vezes, desconhece o seu lugar.
_Não estou nem um pouco preocupada, Dona Úrsula. Ela é um tipo bem engraçado. Mas como está a senhora?

Úrsula percebeu os traços negros sob os olhos acinzentados de Susana, que lhe realçaram sobremaneira a pele clara. Os cabelos, hoje melhor acomodados, num penteado despojado, sem aquele esticado para trás do primeiro dia. Caíam-lhe levemente no rosto, voltados para o lado esquerdo. Pareciam mais curtos.

_Você cortou o cabelo, Susana?

Susana sorri, um tanto desconcertada, não esperando a pergunta. Mas sente-se feliz, em ser notada.
¬

_A senhora percebeu?

Imagine, se eu perguntei... Às vezes, acho que esta menina não pensa o que diz. Mas vá lá, tenho que ter paciência. Tenho que ter tantos predicados, que me assusto. Como que ser paciente, sem ser arrogante, ser delicada, sem ser falsa, ser educada, sem ser bajuladora. Os velhos tinham de se libertar disso. Na verdade, acho que a mulher nunca se libertou de suas convenções. Por mais que se diga que a mulher evoluiu, ela nunca terá a mesma liberdade dos homens. Nunca teve uma liberdade real. Sempre deve alguma coisa.

_Então dona Úrsula, está preparada para sairmos? Por um momento, pareceu-me que ficou indecisa.

_Não, de modo algum. Estava apenas pensando. Na minha idade, a gente pensa muito, sabia? – já estou me justificando. Que fazer, fui criada para ser educada. Além disso, tenho os meus próprios valores. _ Estou até bem disposta.. Ainda há pouco estava dizendo à Rita ... – ah, não devia ter mencionado Rita, ela jamais entenderia – eu disse Rita?

_Disse.

_Ah, falava com minhas flores.

_Ah, sim.

_E dizia que há muito tempo não sonhava com meu pai. Hoje tive boas lembranças. Mas se está pronta, podemos ir.

Dulcina observa da janela do apartamento a saída das duas. Dona Úrsula encaminha-se até o carro, com dificuldade. Se não fosse tão esnobe, por certo levaria uma bengala. Uma velha daquelas não devia andar por aí, falseando o pé nas calçadas irregulares. Mas elas que são brancas, que se entendam. Dulcina desiste da cena e volta para a sua cozinha. Espera que o mundo lhe sorria com mais calma, mais leveza, principalmente porque está sozinha. Corre até a sala contígua, liga o aparelho e som e tira da bolsa um cd de pagode. Começa a canta e sacudir-se no sentido aivoso da música, à medida que pega uma almofada aqui, colocando-a na posição destinada, uma revista acolá, enquanto dirige-se para as atividades em que estava.

Da rua, Úrsula levanta a cabeça, através da janela do veículo, como se suspeitasse do descomedimento da empregada. Mas logo a esquece, afogueada pelos raios do sol que parecem queimarem-lhe a retina. Franze o cenho, destemperada, reclamando da dor, suspeitando precisar de oculista. Susana oferece-lhe óculos escuros, que recusa terminante. Aos poucos, se acostumará. É questão de tempo.

Susana tenta criar uma atmosfera amigável entre as duas, tentando ser espontânea. Fala de seu apartamento, do trabalho incessante na redação do jornal, da academia que costuma frequentar bem cedo. Úrsula, por sua vez, comenta sobre Dulcina, sobre o temperamento exacerbado, no despreparo nas atividades de empregada doméstica e finaliza falando de suas poucas qualidades. Sabe, que apesar de tudo, precisa de sua presença, mesmo que a incomode um pouco.

_Por que ela a incomoda?

Úrsula faz uma breve pausa. Certamente concluiria que a causa principal era o próprio comportamento de Dulcina, mas nem sabe porque motivo, resolve ser sincera.

_Na verdade, me sinto bem sozinha. Incomoda-me a presença de Dulcina, o seu vai-e-vem pela casa, a sua habilidade em contar histórias, em se relacionar com as pessoas. Sabe, Susana, talvez eu tenha um pouco de inveja dela.

_Inveja?

Úrsula observa as ruas atentamente, sem olhar para Susana. Fala como se confessasse a si mesma.

_Sim, esta peculiaridade em ser mais aberta, em relacionar-se com facilidade, até mesmo a ousadia... ela é uma mulher livre.

_E a senhora é livre?

_Você acha que existe alguma mulher livre neste mundo, na ampla acepção da palavra?

_Mas a senhora acabou de falar sobre Dulcina...

_Dulcina é exceção à regra. Talvez porque o seu mundo seja muito distante do meu, do seu. Dizem os sociólogos que há duas classes que se permitem a liberdade: a classe dos dominantes, a classe alta, dos muito ricos ou até mesmo artistas e os miseráveis, muito pobres. Obviamente, Dulcina se enquadra no segundo. Claro que ela não é uma miserável, mas vive no meio mais rude, mais tosco que um ser humano pode viver.

_E a senhora nunca pensou porque acontece isso?

_Acho que nunca pensei nisso. As coisas somente acontecem, não ficamos refletindo porque isso é assim, porque aquilo se dá daquela maneira.

_É verdade. Mas a mulher venceu muitas barreiras. Atualmente, nós buscamos a nossa liberdade.

_Você acha? Mas não quero fazer panfletagem. Não me interessa modismos, nem feminismos, nem levantar bandeiras de luta. Estou muito velha para isso.

_Mas voltando à Dulcina, diria que a senhora gosta muito dela, só não admite isso.

_É uma bobagem.

_Pode ser, concordo. Mas o fato de reconhecer que ela a incomoda, já é uma ponte para chegar até ela, para vir a gostar dela. Não acha?

_Dulcina é uma bárbara, inculta, grosseira.

_Talvez a incomode o fato dela ser assim, realmente. É um entrave para o relacionamento de vocês.

_E eu quero me relacionar com aquela lá? Só me interessa a faxina que faz na minha casa.

_Mas ela poderia ser uma companhia agradável. Não a deixaria tão solitária.

Úrsula irrita-se com a insistência de Susana. Intransigente, recusa-se a continuar com o assunto.

_Por favor, Susana, este é um tema encerrado pra mim. Não insista.

_Está bem dona Úrsula. Acho que me excedi.

_Se excedeu sim. Dulcina é problema meu. Aliás, nem é assunto a ser abordado.

Susana calou-se um tanto arrependida de ter insistido. Não quer causar danos à entrevista. Úrsula representa a principal fonte de sua pesquisa e precisa conquistá-la.

Ao chegar ao cemitério, descem no estacionamento. Úrsula, por um momento, torna-se de uma palidez intensa, fraquejando as pernas, encostando o corpo no carro, com dificuldade. Susana a ampara, perguntando se quer voltar atrás. Quem sabe voltam outro dia. Úrsula ressente-se da indisposição, pede uma água, mas não pretende desistir da visita. Na primeira melhora, resolve seguir caminho e desfilam pelos corredores em busca do mausoléu onde estão o marido e o filho sepultado. Susana segura-a pelo braço, apoiando-a. Por um momento, Úrsula retrai-se, considerando uma ajuda desnecessária. Mas evitou mostrar-se ingrata e deixou-se levar pela mão suave e firme da jornalista. Aos poucos, sentia-se protegida e segura.

No túmulo, separaram-se, porque Ursula se antecipou indo ao encontro da fotografia do filho. Aponta, mostrando-lhe, como se estivesse apresentando-o como se vivo estivesse.

Susana observa o comportamento metódico, a maneira cuidadosa como se aproxima, a mão clara e tremula que estende no granito escuro, acariciando levemente a fotografia do filho. Ao lado, uma foto do pai, que ela reconhece ser o grande jornalista, motivo de sua pesquisa. Fazem um silêncio cúmplice. Susana percebe que Úrsula enxuga uma lágrima, com o dorso da mão. Funga, ajeita-se no corpo frágil e faz uma pequena oração. Em seguida, volta-se para Susana e pergunta: _você já perdeu alguém, Susana?

_Sim, minha mãe. Faz muito tempo.

Abaixa os olhos e volta-se para a imagem na lápide.

_Ele é lindo, você não acha?

_Sim, era um rapaz muito bonito. Não lhe deixou netos?

Uma sombra perpassa o olhar de Úrsula, como se o sol se escondesse por minutos e a nuvem negra ocultasse as nuances da vida que brotavam aqui e ali, revelando apenas sombras. Não esconde o ódio que brota inevitável e se espalha pela face e todo o corpo, como um espírito maligno.

_Aquela lá era estéril, uma figueira maldita.

Susana não fez nenhum comentário. A ira já era de bom tamanho. Acomodou-se num degrau do mausoléu, sentando-se reticente. Procurava organizar as idéias, comportar-se de modo distanciado de suas aflições mais íntimas, mas o ambiente soturno a deixava ansiosa. De qualquer forma, respeitava a dor daquela mulher que de alguma maneira confiava seus sentimentos a ela. Procurou mergulhar no tema, como se fizesse parte de sua vida.

Úrsula prosseguiu no mesmo tom agastado, embora com alguma mágoa, um sofrimento escondido que não se limitava apenas ao filho.

_Ela nunca foi uma boa nora. Na verdade, nunca gostou de mim, apenas me aturava. Aliás, fez o que pôde para separar-me de meu filho. Por isso, ele morreu de desgosto.

_A senhora nunca mais a procurou?

_Não tenho motivos. Não vou lhe mentir, eu a procurei sim. Afinal, éramos duas abandonadas pela vida. Ela perdeu o marido, eu o filho. Achei que devíamos nos unir.

_E não o fizeram?

_Não houve clima. Até me aproximei, no inicio. Mas logo em seguida, acabamos discutindo. Não valia à pena. O único motivo que nos unia, não existe mais.

_Mas a lembrança pode uni-las. Talvez vocês tivessem coisas a resolver. Certamente, seriam mais felizes se conversassem, talvez até, se discutissem.

_Como você pode me sugerir isso? Você não sabe quem é aquela mulher.

_Realmente, não sei nada dela, mas diz a experiência que se houver diálogo, tudo pode se resolver.

_É muito fácil falar, é muito fácil. Na sua idade, tudo é possível, tudo se resolve na conversa. Mas não é bem assim, Susana. Há marcas intensas, que nada pode apagar. Há feridas que não curam.

Susana respira curto. Reflete que não é o caminho certo, que precisa de uma brecha para embrenhar-se no tema principal, que é motivo da entrevista. Então dispara à queima roupa. Quem sabe, uma sacudidela, resolve.

_Seu marido parecia um homem muito tranquilo.

_Jaime era um fascinado pela vida. Não deveria ter ido tão cedo.

_Mas foi um homem que viveu a plenitude da vida, que realizou-se como jornalista, como pai, esposo. A senhora o amava muito, não é verdade?

Úrsula adoça a voz. Fala em tom mais baixo e pausado.

_Sim, eu o amava muito – e retribui a pergunta, o que deixa Susana perplexa. Parece que há uma barreira, um obstáculo forte que ela interpõe, sempre que tenta aproximar o tema do marido – e você, ama alguém?

_Eu? Talvez não assim com esta intensidade.

_Mas o que sabe de minha vida? O que você sabe, Susana, leu nos jornais. Não é melhor ouvir mais fontes para conhecer melhor, para saber como era o meu relacionamento com Jaime?

_Sim, sem dúvida. Tem razão, tudo que sei é o que dizem por ai nas revistas, nos jornais ou até mesmo nas redações. Não se esqueça que ele sempre foi exemplo para muita gente.

_Mas você não me respondeu. Você tem namorado?

_Fui casada por dois anos. Felizmente, não tivemos filhos. Atualmente tenho um namorado, mas as coisas andam meio frias entre nós.

_Hoje em dia, as mulheres pulam de galho em galho, de cama em cama. Você acha isso liberdade? Querer ser igual aos homens?

–Não é um assunto para discutirmos neste ambiente, não acha?

_Talvez para você. Pra mim é o lugar ideal. Aqui estão os três homens que amei.

_Três?

_Sim, me refiro também a meu pai. Além disso, é aqui que quero ficar, quando morrer, ao lado de meu filho e de Jaime. Mas se aquela morrer, que fique bem longe de mim. Não a coloquem no mausoléu da família, ela não merece.

_A senhora se refere a sua nora?

_E quem haveria de ser?

_As perdas ficam maiores e mais pesadas, quando se tem amargura, rancor.

_E o que você sabe de amargura. Que experiência tem você da vida, para me dar lições? Ora vá pro diabo! – e afasta-se, resmungando, abandonando em definitivo a discussão que não admitia.

Susana percebe que o destempero de Úrsula é uma maneira de recusar-se a discussão do que considera ponto pacifico, do que não pretende afastar-se um milímetro em suas concepções. Tenta segui-la, mas um gesto de Úrsula a impede, deixando-a estagnada, sem mover um músculo. Empurra-a com o cotovelo, mexendo o corpo descompassado em direção a um banco de pedra, ali perto. Susana a acompanha com o olhar. Deixa-se ficar quieta, pensando numa provável saída. Talvez se pedisse desculpas, se voltasse a falar no filho, se perguntasse alguma coisa agradável sobre o marido. Mas o que dizer frente a uma atitude inóspita, inesperada? De repente, percebe que Úrsula a espia de soslaio, com uma expressão mais triste do que brava. Sente-se encorajada a aproximar-se. Ensaia alguns passos e pousa as mãos delicadas em seus ombros, produzindo uma leve massagem.

_Desculpe, Dona Úrsula. Não quis ofendê-la.

_Mas ofendeu. Eu não vim aqui pra isso, pra ficar escutando idiotices. O meu ouvido não é penico!

_A senhora tem razão. Meu objetivo não é esse, ao contrário, quero aproximar-me da senhora. Olhe, se deixar, posso ser sua amiga.

Úrsula levanta os olhos, amuada. Pergunta como uma criança emburrada. _E você acha que é possível? Não foi um bom começo.

Susana calou-se. Deu meia volta e perguntou: _Não trouxe flores?

_Não, apenas faço minhas orações.

Ficaram as duas, em silêncio. Úrsula se persignou e rezou por alguns minutos, no lugar onde estava. Depois, levantou-se lentamente, sugerindo irem embora. Antes que Susana respondesse, alguém exclamou o nome de Úrsula com indisfarçável surpresa.

sexta-feira, janeiro 08, 2016

Uma diretora valente

Amlid era diretora de uma escola de periferia. Lutara muito pela escola, nos tempos indefinidos, quando o aproveitamento dos alunos era zero, a liberdade era totalmente cerceada e poucos tinham acesso ao conhecimento. Lutara com seu próprio sangue, dando a sua juventude e energia à causa da aprendizagem.

Muitos eram contra o acolhimento dos alijados da pequena sociedade, inclusive acusando-a de rebelde, de ir contra aos princípios e normas do Estado. Mas ela não se acovardava, ao contrário, procurava os meios de realizar o seu projeto.

Até que o dia da vitória finalmente chegou e a maioria teve acesso aos livros, à merenda escolar, ao lazer, ao conhecimento na íntegra, respeitando a individualidade de cada um, inclusive com acesso à informação digital.

Apesar disso, forças se moviam, esgueirando-se pelos cantos das noites negras da desinformação e ignorância cultural, quando não pelo puro preconceito. Fizeram tudo para excluir de vez a valente Diretora.

Lutaram para tirá-la da escola, vasculharam a sua vida, fizeram inventários e dossiês para encontrar algum fato que a incriminasse, para finalmente expulsá-la. Não interessavam os benefícios aos alunos e à comunidade escolar. Não importavam os inúmeros que haviam ascendido ao patamar do ensino e educação. A única coisa que tinha valor era o fato de ocuparem o mesmo espaço de um grupo que não toleravam. Um grupo que passavam a odiar com todas as forças.

Amlid não recuou. Ao contrário, em cada acusação, esforçava-se em encontrar o culpado e puni-lo como mandava o estatuto da escola. Porém, por mais que seguisse a lei, era achincalhada de todas as maneiras.

Não suportavam uma mulher na liderança, mesmo que numa escola de periferia, onde havia tantos indesejáveis a utilizar os mesmos instrumentos pedagógicos sem a capacidade dos eleitos, segundo seus conceitos retrógrados.

Talvez Amlide tenha errado, quando pensou que sua gestão seria fácil tendo prometido uma aprendizagem segura, sem a intervenção de pedagogias externas. Entretanto, nada pode vencer a maioria da comunidade da escola que exerceu o direito fundamental do cidadão, que é o voto livre e fundamentado. Afinal, entre professores, alunos e pais, ela recebeu como prêmio, a maioria dos votos. Sua eleição foi exemplar.

Entretanto, Amlid terá muito que lutar em 2016, porque as forças conservadoras e retrógradas ainda lutarão muito para retirar o que recebeu de direito pelo povo escolar. Esperemos que a verdade se estabeleça e que a democracia da pequena escola de periferia persista.

E que o mundo não dê marcha à ré.

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A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

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