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sábado, abril 29, 2023

A tormenta

O silêncio dos passos na casa. O silêncio das vozes, das falas, dos risos. O silêncio das ondas, dos mares, dos pássaros. O silêncio das corujas na areia fria das dunas. O silencio dos ventos. Por que tudo é silêncio, quando o meu coração grita profundo, como a tormenta? Talvez porque as flores que vi, já não migram pelos mesmos caminhos, seus pólens não mais transitam entre os canteiros, e suas pelugens brancas não adornam meus ombros.

Quisera ouvir mais vozes, sentir mais aromas, perceber novos avanços, alcançar outras conquistas. Jamais ouvir o ribombar dos mísseis, mesmo que sejam apenas ecos que repercutem como lamentos em meus ouvidos.

Quisera ter a boca seca por gritar, usar a revolta dos oprimidos para bradar as falas mudas dos que morrem nos escombros, como animais submersos na poeira das tragédias. Quisera ser ouvido. Mas o silêncio me impede de falar. O silêncio dos que suportam as dores alheias e subornam a realidade. A dor que carregam é sempre mais pesada do que a do vizinho. Precisam fingir que nada além de suas fronteiras acontece. E tem razão nesse pensamento. Mas há razão num mundo em guerra? Por que tenho que sorrir, falar coisas alegres e vazias, se meu coração também sangra como os pedaços humanos arremessados à poeira das ruas destroçadas?



Ilustração: www.pixbay.com/johnhain

quinta-feira, agosto 04, 2022

A fronteira dos pensamentos

O que me pedes do alto de teus argumentos? O que exiges da fronteira de teus pensamentos dispersos e esparsos? O que defendes de um sistema de morte, de guerra, de armas e dor? O que permites em tuas condescendências mais simples? A quem desejas a vida e a paz? Quem merece teu brilho, tua alegria e tua contemplação? Por certo, os de tua classe, os que pensam como tu, os que zelam por teu pensamento único de família, propriedade e este deus ao qual veneras, quando vela apenas por teu grupo. Sei que há muito, excluíste os que pensam de modo diverso, sei que defendes a estranheza para amalgamar a homogeneidade de tuas ideias. Sei que o mundo pra ti é de uma cor apenas, um fastio de diversidade, de alegria e poder, que me dá preguiça.

Sei que enxergas os demais de acordo com a tua ótica semelhante, na qual apenas os que estão na tua bolha são os eleitos. Parece que teu deus os acomoda assim e os aparta dos maus. A bondade que revelas é útil apenas para locupletar os teus desejos de poder, de tradição e conservadorismo. Talvez, a evolução do mundo e das ideias não te interessa, porque temes balançar essa planície que está tão bem cimentada em tua perspectiva. E os demais, que fiquem se contorcendo nas escarpas dos precipícios, segurando-se para não se depararem com o fim, encontrando caminhos, refúgios que não permitam o acesso. E o ideal, que se destruam e desapareçam para sempre.

Mas o mundo não é assim. A natureza comporta as evoluções e o homem faz parte deste liame progressista que une anseios de vanguarda aos desafios da existência.

Torço que mudes, um dia, que não destruas o poder da natureza, que despertes para a vida mais ampla, mais plena e com mais diversidade. Torço que a ótica com que julgas, sirva para observares o outro lado da lente e assim, te vejas, tão diferente e estranho, quanto os demais. Quem sabe, quebres o paradigma e encontres o verdadeiro sentido universal, que pensas pregar.


Ilustração do texto: https://pixabay.com/pt/illustrations/pessoas-smilies-emoticons-máscaras-1602493/Café

quarta-feira, outubro 16, 2019

O que queria Dóris Fontaine?

A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de relance. Homens sedentos por seus segredos mais íntimos, suas intenções ocultas. Nem sabiam que nada era real. Sua vida era plana como o rio que circundava a cidade.

Naquela noite, na boate, alguma coisa violou seus sentidos quando o avistou, ali sentado à beira do palco, olhando-a como uma estrela. Imaginou o homem dos sonhos cujo olhar intuía em seu coração e no sexo dormente uma explosão antagônica: desejo e medo na mesma moeda. Uma fotografia que se projetava em várias dimensões.

Uma bebida desfilava entre as mesas e o suor da garrafa ficava nos dedos, como sequência slow motion. Tudo parecia cinema naquela noite, embora o mundo gritasse por promessas não vindas lá de fora. Soldados que se consideravam célebres numa guerra que nem era nossa. Ele, entretanto, era civil e sua farda não passava de um corpo ilustrado por um sorriso à luz negra que devolvia em flashes um olhar que a comia. Então sorriu, quase feliz, saindo de cena, fugindo do cenário, dublando o que nem ouvia; coração assaltado pelo novo que libertava por segundos o cinza de sua vida.

Soldados riam e gritavam, mencionando Castela, navios, o Getúlio, a ida, na chancela de serem os melhores. Um ou outro, dissimulava um sorriso. Ela percebia. Mas quem era ela? Apenas Dóris Fontana, porque Fontaine à la Joan ninguém conseguia pronunciar. Ela odiava quando a Chamavam de Dóris Fom-fom.

A música seguia seu compasso comezinho de sempre. O maestro engatava um tango num bolero e a vida seguia. Mas hoje, na presença dele, um blues anunciava anjos, como se os timbres e ritmos e tons se confundissem no prazer que a inspirava.

Ela desceu do palco e ele ofereceu um drinque. Nada extraordinário, era quase de praxe o hábito, mas a chamou de Dóris Fontaine, com uma pronúncia quase americana e seu olhar impreciso se perdeu em profusões de imagens que vinham de um passado distante. Talvez da infância, não sabia, mas alguma coisa que a deixava feliz. Quem sabe o carrinho de boneca que empurrava num jardim que não era seu?

Olhou-o e sorriu tão ingênua, que pensou voltar a ser a menina do interior, na virgindade dos sentimentos, mesmo no adiantado da hora. Ele a beijou suave, sem pressa e sem imposição. Nada pediu, nada deixou, nada procurou a não ser a liberdade de serem o que eram.

Sonhava? Ela se perguntava feliz. Beberam, dançaram, riram e ele foi embora, deixando promessas.

No cinema, numa tarde qualquer após a ressaca, Dóris observava o cartaz de “Soberba", com Anne Baxter no topo de uma escada, enquanto Joseph Cotten detinha-se na parte inferior, na espera do encontro. Talvez a história nada tivesse a ver com o que pensava, mas lembrava a sua interpretação sobre o palco. Talvez o seu Joseph Cotten fosse o homem que a visitava todas as noites.

E como nos filmes, ele trazia flores, lia os versos de Raimundo Correia, não importava se falava em pombas, cavalgada de fidalgos ou palavras que mal entendia, juntando moça e éter. O éter que conhecia é o que deixava tudo azul, nítido e forte aos ouvidos e a fazia dormir. Entretanto, o que falava, trazia um tom de primavera que a despertava para um sol que se descolara há tempos de seus ombros. Não mais vento, não mais chuva, não mais frio. Até os sons eram claros e festivos. Tiravam retratos. Passeavam no dia. Iam ao cinema, ao parque, à praia. Na noite tomavam uísque, vodca ou gim. Ela se desmanchava no jazz e revelava as garras no tango. Na madrugada, se amavam. E o mundo girava arriscando um futuro que se instalava em algum lugar.

A turnê porém seguia para resgatar o moral dos aliados na base aérea de Natal. Seu coração dividido. O mundo dividido. Era dinheiro a rodo e futuro promissor.

Então, ele chegou devagar, incendiou seus olhos com desejo e mágoa. Um foco de luz, uma energia que sustentava o ar e seu corpo bailava num mundo que a família sonhara: o de uma mulher direita. Assim diziam, assim queriam.

O desejo de ser rica e talvez casada com um americano ou outro estrangeiro ficava para trás. Ele chorou, ele a abraçou, ele pediu; eles casaram.

Como no filme, ele voltou como o príncipe que resgatou a sua vida e ela se desarmou em devaneios. Deixou a boate, esqueceu a turnê, o elenco, o futuro, deixou a vida. E se sustentou como uma esposa, sem sem música, sem poema, sem palco, sem ribalta, sem brilho, sem romance, sem luz. Só o éter.

domingo, outubro 04, 2015

REFUGIADOS EM SEUS SONHOS

Nem que se diga, que lhes faltou o peito, nem que a fome durou;
nem que se saiba que a vida é árdua e a escola seja talvez o único acesso à dignidade.

Nem que os pais não lhes provejam o amor ou que o abandono se torne perene.

As crianças deveriam sempre vencer as dificuldades, sobreviver e se tornarem homens e mulheres mais fortes e guerreiros.

No entanto, às vezes, o homem no seu poder canhestro e torpe, investe na vida dos povos, interferindo em sua trajetória. E o poder se revela na intolerância religiosa, na ganância dos modelos econômicos, no imperialismo dos governos.

Gostaria de falar de nossas crianças em seu dia, de seus sorrisos, suas procuras pelo abraço e carinho, seus encontros e descobertas.

Mas como esquecer as que aparecem em nossos monitores diariamente, pedindo socorro ou registrando a sua falência. Como esquecer entre tantas, a menina praticante de Candomblé que foi agredida na escola, vítima de preconceito religioso, por outras de sua idade, que também são vítimas, pois repetem a norma do preconceito arraigado de uma sociedade em decomposição moral? Pensei nos pais dessa menina.

Como esquecer o menino sírio Ailan Kurdi, cujo corpo apareceu numa praia da Turquia, em setembro. Seu corpinho frágil registrando o sectarismo grotesco da humanidade, destoante dos melhores sentimentos fraternos. Como esquecer o irmão de 5 anos anos que se perdeu no mar e morrera como tantos outros.

Pensei nas crianças do Brasil. Pensei nas crianças do mundo.

Pensei no pai do menino, que na tentativa de fugir da Síria, imaginava um futuro para a família. Lembrei então da música “Cantiga de ninar” de Raul Seixas, cuja última estrofe enfatiza o que meu coração doído expressa:

"Fiz meu rumo por essa terra

Entre o fogo que o amor consome

Eu lutei mas perdi a guerra

Eu só posso te dar meu nome”.

O pai sírio que lutou para chegar à ilha de Kos na Turquia, perdeu a guerra. Nada mais lhe restou, nem a mulher, nem os filhos. Apenas lhes deu o nome. O nome de refugiado. Refugiados são todas as crianças, cujo direito de viver a infância lhes é tolhido, quando a intolerância, o racismo, o ódio, a esquizofrenia sexual de alguns, a violência e a incompetência das instituições impedem que sejam realmente crianças e se tornem apenas uma trajetetória interrompida. Uma ruptura da lógica infantil. São refugiados em seus próprios sonhos.

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