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sexta-feira, julho 14, 2017

Uma saída para o nunca

Todos corríamos pela sala, excitados. Ríamos sem sabermos bem o motivo, talvez impulsionado pela adrenalina de sermos felizes.

Quando a professora chegou, o burburinho custou a desfazer-se, até que nossas almas se acomodassem nos corpos agitados.

Ela parecia mais severa do que de costume, mas de uma seriedade estranha, como se alguma coisa terrível houvesse acontecido. Os cabelos escondidos atrás de um lenço colorido, preso ao pescoço. Os óculos pesados e embaçados, um certo vermelho nos olhos parecendo conjuntivite.

Mas não demos muita importância. Estávamos demasiadamente felizes para nos preocuparmos com a fisionomia de Dona Glória.

Ela permaneceu parada num canto da sala, talvez esperando o momento adquado para dar a notícia.

Mas que notícia seria tão importante a ponto de nos fazer cúmplices de sua angústia.

Alguém gritou do fundo da aula, quase em desafio, perguntando se não teríamos aula, ao que ela, talvez aproveitando a brecha, rapidamente, respondeu que ele estava certo. Confirmou que não haveria aula porque Dona Agripina, a benemérita e devotada às causas nobres da comunidade, havia morrido.

Na verdade, nem a conhecíamos muito bem. Ouvíamos falar dela, sem qualquer deferência que a qualificasse perante a outras pessoas consideradas importantes pela paróquia.

Estudar naquela escola religiosa era participar ativamente da comunidade, mas não para nós, encantados que estávamos com a vida que se desenrolava dentro de nossa imaginação, sem refletir o que significavam todos os demais acontecimentos que não se coadunavam com nossos objetivos ligados ao nosso prazer.

A turma silenciou, colaborando ingenuamente com a professora.

Aí se sucedeu uma etapa nova, principalmente em minha vida.

Organizou-se uma fila e nos dirigimos à igreja, que ficava ao lado do pátio da escola.

Já o silêncio dera lugar aos rumores, cada um falando o que lhe vinha à mente, que lhe aprouvesse, tentando atrasar ao máximo os pensamentos tristes.

Eu estava acabrunhado. Mexia no cabelo rebelde, que me caía aos olhos. Fungava e vez que outra, dava uns espirros que me arrepiavam os pelos ralos dos braços.

A professora pedia silêncio, compungida.

Entramos na igreja e ficamos meio esparsos, entre as pessoas, certamente parentes e outros amigos, que se acotovelavam na fila, entrando rápidos, querendo avistar o que eu insistia em não ver.

Fiquei quieto, entre os colegas, que conversavam, aproveitando a balbúrdia da entrada.

Dona Glória insistiu no silêncio, desta vez irritada.

Todos silenciavam, mas por pouco tempo.

Logo voltavam às conversas ordinárias, preocupados em que estavam com o que fariam após saírem da missa, como o filme da TV, o jogo de futebol na pracinha ou as corridas de bicicleta.

Para mim, não havia estas preocupações, pois tudo se nublava ante meus olhos, que somente os levantava por absoluta curiosidade.

E só avistava os pés de Dona Agripina, sapatos que brilhavam, voltados para a saída da igreja, dividindo o corredor.

A missa parecia interminável e eu não conseguia afastar o olhar daqueles sapatos bem lustrados, enfeitados por rendas, sinalizando a saída que parecia longa demais, quase eterna. Pés que ficavam na minha memória, que se alternavam em meus pensamentos angustiados, que abrangiam um sentimento mais profundo, envoltos que estavam em aflição e medo.

Não entendia muito bem o que acontecia comigo, mas aqueles símbolos mexiam com minha estabilidade emocional.

A tampa do caixão, encostada na parede, com uma cruz dourada em alto relevo, as mulheres de preto fazendo coros de choro intermitente, o cheiro das velas, os paramentos fúnebres, as frases diferentes do ritual, onde se falava constantemente em descanso eterno.

E os pés de Dona Agripina, que apontavam inertes, fortes, mensageiros de uma saída para o nunca, um lugar que eu teimava em desconhecer.

Acho que naquele dia, eu tive a consciência da morte.

O dia que se exibia ensolarado lá fora, lançando rastros de luzes pelos vitrais coloridos, me parecia nublado e triste.

O jogo com os amigos, o passeio de bicicleta, a chegada em casa, numa rotina que agora perdera subitamente a graça, era um presságio de que as coisas mudaram e que eu, aos sete anos, acordara para a vida.

Ou para a morte.

Os pés de Dona Agripina foram os culpados.

sexta-feira, abril 21, 2017

Vem, morena, vem

Vida útil, vida inglória, ingrata, insólita, insana, imbróglio de leva e traz, impaciência, intolerância, dor, inútil. Tudo isso e muito mais pra te dizer, morena, que a dor que sentes agora, já senti com muito mais força e afinco, quando me deparaste na porta, de quatro, chorando feito um bezerro desmamado.

Poderias ter evitado aquilo, ser mais romântica, confiada e confiante, amada e amante, amiga e compreensiva. Só porque sou homem, que jogo futebol nos fins de semana e rebento meus meniscos, não era motivo pra me abandonares em plena quarta-feira. Em plena quarta-feira, morena, no dia que combinamos ir ao cinema, lembras do filme? Nem lembras mais, por certo. A raiva, a intolerância, o mau-humor já detonou teu cérebro, já fundiu tua mente, confundiu teus sentimentos.

Era um filme daqueles de amores transbordando, derramados, de paixões ardentes, de beijos pungentes em faces rosadas, de luzes de matizes doirados em cenários pastel. Havia até musicais, morena, e é raro um homem como eu, gostar de musical. Pensa bem, sou sensível até a flor da pele. Devia pesar estes meus bons sentimentos.

Lembras da tarde em que salvei a velhinha que estava estirada em plena avenida, cheirando a grama, nariz enfiado entre paralelepípedos irregulares e crateras emolduradas de pasto? Sei que não deu certo, morena, mas lembras, bem que tentei. Passei de carro pela avenida e vi a senhora despencar no chão, envergar-se como folha morta de outono, migrar no interior da terra, transformar-se em larva medíocre, alijada da dignidade, esperando a morte. Claro que foi noventa e nove por cento de imaginação, mas sabes, morena, sou assim, sensível e criativo. Voltei correndo, feito o Massa enfrentando a fórmula 1 e deu no que deu. A velha tinha se levantado com uma garrafa na mão e quase me jogara o vasilhame na nuca, não querendo ser internada porque não era louca. Eu declarei isso a ela, pelo contrário, tentei ajudá-la, dando a mão, revelando afeto. Mas que nada.

Deixa, pra lá, morena. Não vais entender nunca o meu ponto de vista. Se sou socialista, tu és extrema direita, se sou holístico, és radical opus dei, se sou zen, és estressante e estressada. Nossos pinos não batem. Mas nossos corações sim, ah, estes batem em uníssono.

Quando nossos corpos ficam assim, juntinhos, ressoam na mesma frequência, ah, bouquet de vinho dissipando-se nos lábios, escorregando suave pela boca, amaciando a língua e o espírito. Não tenho dúvida, morena. Nossas bocas se encontram devagarinho, na mesma intensidade, sinto teus lábios molhados, beijando meu pescoço, assim, obscena, faceira, atrevida, mordendo-me a orelha, auscultando meus ouvidos, enquadrando meu coração no compasso que esperas.

Também te sinto palpitar acelerada e teu peito arfar e teus seios juntarem-se ao meu corpo, afugentando os ruídos da rua, a poluição visual, as deformidades do dia. Ficamos assim, quietinhos, num pedaço de paraíso, temerosos que o tempo passe e que a mágica acabe. Somos assim, morena, unha e coração. Será que assim, que se diz? No nosso caso, sim. Sou mais coração e tu, mais unha. Aí, me deixas na sala como bode expiatório, exibindo chifres, dando razões ao mundo de servir de exemplo a teus caprichos. Um bode expiatório aos teus pecados.

Mas na quarta-feira morena, quando após o cinema, pegaríamos aquela pizzaria para passar as horas que restavam na noite rotineira de um casal suburbano, classe média, senso comum e meio medíocre. Na verdade, pizzaria, não. Sabes que detesto pizza. Mas todo mundo gosta. Como diz o Chico, naquela música, você não gosta de mim, mas sua filha gosta. Estou disperso, morena, delirando. Misturando as coisas. Me deixaste enfeitando a sala e destruindo a casa. Por que hoje, porque na quarta-feira? Podíamos pegar aquele barzinho de música ao vivo e conversar, colocar os pontos nos is, ajeitar nossas carências, ajustar nossas dificuldades.

No barzinho? Vê morena, tu me confundes. Barzinho é coisa pra louco. Ninguém conversa, só ingere cerveja porque é de praxe beber até em posto de gasolina, gritar para poder ser ouvido, entrar em fila de toalete e ouvir o cantor gritando um Fagner desalmado que mastiga as notas sem piedade. Eu por minha parte, finjo ouvir as conversas e dissimulo qualquer coisa, discutindo qualquer assunto e não dizendo nada. Tenho saudades daqueles bares em que o cara tocava um violão, baixinho, uma MPB tranquila e a gente ouvindo solitário, mesmo a dois, o que a poesia balbuciava.

Sei morena, que às vezes, não falamos a mesma língua, talvez porque nossos dialetos sejam diametralmente opostos. Eu falo galego e tu esperanto. Me querias o super-homem do Gil (quem dera, pudesse todo homem compreender, ó mãe, quem dera, ser o verão o apogeu da primavera e só por ela ser. Quem sabe, o super-homem venha nos restituir a glória, mudando como deus o curso da história , por causa da mulher) e eu seja apenas o malandro do Chico.

Eu também sonhava contigo, na figura suave que paira no ar, declarando amor, proclamando "com que com açúcar e com afeto, fizeste meu doce predileto pra eu parar em casa", mas de antemão sabias que "os amigos me esperavam, aquecias meu prato, beijavas meu retrato e me abrias os braços". Mas não somos nenhum desses, morena. Nem o Chico se enquadra, em nossos esquadros e descalabros. Nem que nossos ideais se misturem nestas imagens, nossos corações não ousam lutar para abrir as comportas que o presente fechou. Me deixaste assim, abandonado e bobo. Me roubaste um beijo e brincaste de menina em tempos de Capitu. Que pena, morena.

Somos assim, tu e eu, bobos, perdidos no emaranhado de sentimentos que não se coadunam com nossa realidade, assim, tão cheia de nós, que não fizemos e não ousamos desvendar.

Se eu pedisse, tu voltavas morena? Se eu pedisse, desvendavas junto comigo o nó cego da insegurança, do medo, do pavor de ser um quando sonhamos ser dois? Se eu pedisse, abandonavas o jeito arrogante, bamboleando quadris nas calçadas estreitas e voltavas, ensaiavas uns passos e refletias que não sou o Johnny Depp, mas também não sou o açougueiro gordo da esquina, que espanca a carne sonhando em fazer amor com a mulher? Ele faz, a gente vive. Não chegamos ser o casal da Valsinha do Chico, nem dançamos nem nos amamos na praça. Mas precisamos um do outro para não enlouquecer.

Pelo menos, não hoje, morena, não na quarta, por favor, não deixa o tempo passar, o mundo gira, a quinta chega tão depressa! Na quinta não tem cinema, nem barzinho, nem passeio à tarde. Na quinta pode ser tarde demais.

Vem, morena, vem.

domingo, outubro 30, 2016

Loiralice, o Opala vermelho e o futebol

Eu e meu amigo Saulo inauguramos nosso desejo de assistir um grande jogo de futebol. Acostumados com os times pequenos de nossa cidade, assistir Grêmio e Corinthians era uma verdadeira odisseia. Uma marca em nossa carreira de torcedores, que na época, antes das desilusões derradeiras, éramos fanáticos.

Saulo era um sujeito estranho. Gente boa, grande amigo, sempre disposto a apoiar em qualquer situação difícil, mas tinha uma conduta peculiar que  chamava à atenção.

Eu não conseguia convencê-lo de que as suas atitudes eram inadequadas, pelo menos, pois sempre dava um jeito de dar outro rumo à conversa.

Uma de suas extravagâncias, era a mania de interpretar papéis que destoavam de sua rotina. Se participávamos de uma reunião de jovens da igreja, ele demonstrava estar em êxtase, perdido nos trâmites iluminados do divino, ascendo à postura angelical, quase um santo. Mas quando estávamos juntos, toda a encenação se dissolvia e se transformava no jovem de classe média, com pouca espiritualidade e muita disposição para ser o que realmente não era.

Outras vezes, convencia a si mesmo, que era um intelectual. Participava de palestras de quaisquer assuntos, pois a todos tirava de letra, segundo seus pensamentos egocêntricos. Metia-se em polêmicas doutrinárias, ideologias, filosofias e demonstrava uma facilidade extrema para cercar-se de neologismos, sofismas e saídas rasteiras, onde se locomovia como um larápio nas noites escuras, deixando a todos de boca aberta. Às  vezes, até acreditava que ele tinha razão. Pelo menos, até cair a ficha.

Mas voltando ao futebol, o nosso assunto a partir daquele momento, passou a ser o jogo ao qual assistiríamos de camarote. Já imaginávamos o povo se acotovelando nos metrôs, os carros pipocando nas avenidas, milhares de pessoas nas passarelas, vestidas em uniformes, tingindo de azul preto e branco, numa mistura de cores que dosavam os matizes dos times em disputa.

Víamos também nossa imagem, refletida em nossa mente fantasiosa. Eu, vislumbrando o cenário, imaginando uma história a contar, olhares argutos, coração e mente atentos, ouvindo o rugir da torcida e o trovoar dos foguetes, na entrada dos jogadores.

Ele, ao meu lado, levantando a todo o tempo, antes mesmo de comemorar qualquer coisa; cabelo curto, pois se considerava um tipo formal, nariz adunco e olhar investigativo, numa performance nova, talvez até torcendo pelo inimigo.

Mas eram só conjecturas, pois ainda estávamos em nossa cidade natal.

Ele chegou com a novidade, de que iríamos num carro novo, tinindo, zero quilômetro, um Opala vermelho, com todos os acessórios considerados de luxo para a época. Disse-me que havia alugado o carro, pois não iríamos no ônibus de excursão, com àquela gente cheirando à cachaça, misturada a desodorante Mistral.

Sorri e percebi que o Saulo havia incorporado outro papel.Tentei dissuadi-lo da ideia, pois não tinha muita prática em direção, mas ele me saiu com uma proposta mais absurda ainda:

— Não, não, nada disso. Teremos um motorista.

— Um motorista? – perguntei intrigado.

Ele pousou aquela mão enorme sobre o meu ombro e concluiu, confiante.

— Deixa comigo. Amanhã é o grande dia.

E assim foi. No dia seguinte, estava à espera, olhando pela vidraça. Um sol forte produzia flashes no para-brisa do imponente opala. Olhei para direção para verificar se havia o tal motorista e qual minha surpresa, uma morena depositava as unhas vermelhas no volante, fitando-me de uma maneira tão incisiva, que parecia exigir que eu entrasse, sem fazer perguntas. Obedeci, sentando no banco detrás, largando a mochila e olhando surpreso para o meu amigo, que virava o pescoço comprido para trás, perguntando se eu lembrava da Loiralice.

Ela atravessou o olhar pelo retrovisor, fuzilando como defesa, antes de qualquer investida.

Claro que me lembrava, no meu machismo pós-adolescente, Loiralice era apenas a morena gostosa, das festas do colégio, que segundo as conversas de corredor, já havia conhecido a intimidade da maioria dos guris. Tinha esta qualidade, mas a profissão de motorista era uma novidade, pelo menos pra mim.

Hoje, ela já passava dos trinta, bem mais velha do que nós, já que na época da escola, ainda estávamos no primário e ela já avançava no ginásio, se bem, que quase a pegamos, no bom sentido, porque via de regra, repetia de ano.

Loiralice não era do ramo. Estudar não era sua melhor aptidão. Quem sabe, como motorista, revelaria dotes desconhecidos. Devia dar uma chance, afinal, como ser preconceituoso, só por ser a Loiralice? Pois Loiralice arrancou de primeira.

O carro não corria, deslizava. Era uma suavidade só, uma sensibilidade, uma coisa feminina, que norteava seus gestos, suas mudanças, seus retornos ou paradas em sinaleiras. Sutil, sóbria, tranquila. Cada adjetivo que eu pensasse se encaixava nas mãos de Loiralice.

Ela obedecia as regras da direção com tanto cuidado e recato, que mal desconfiávamos que era a mesma Loiralice que conhecíamos.

Meu amigo sorria, satisfeito, boca grande, dentes irregulares, nariz quase batendo no queixo. Achava que fizera uma ótima aquisição.

Loiralice era excelente motorista. Consciente, cuidadosa, preocupada com os animaizinhos soltos na rua, com os velhinhos que atravessavam descuidados, com as meninas das escolas, passinhos amiúde, ocupadas em suas histórias, quem sabe os cuidados com os cadernos e as primeiras paixões da infância.

E vá adjetivos à Loiralice.

Loiralice era assim, quase uma mãe. Logo ela, tão exuberante, voz altiva, boca bem desenhada e pintada de vermelho sangue, olhos delineados, com aquele traço preto que quase atravessava a fronte em direção à orelha.

E os trajes? Loiralice não tinha recato, nem qualquer censura. Usava os decotes como arma de sedução, abusava das saias curtas, revelando pernas bem torneadas e tão lisas, que tinha-se a impressão de que qualquer objeto deslizaria por elas infinitamente.

Assim era Loiralice: esta faceta sensual bem mais conhecida.

Mas agora, parecia outra pessoa. Tal como Saulo, que se metamorfoseava em distintas situações, ela agora se investira na mulher sensata e cumpridora dos deveres e das leis.

Entretanto, havia um senão, um detalhe que envolvido naquele mar de novidades, passara desapercebido: Loiralice estava lenta demais. O carro não passava dos sessenta.

A cidade parecia nos puxar para dentro, ao invés de nos afastarmos, como naquela poesia em que as ruas acenam, despedindo-se da moça no trem, as casas ficam distantes,  os automóveis, as crianças, os cachorros de rua, os gatos despreparados, tudo se dilui na distância.
 

Nós, ao contrário da moça do trem, éramos atraídos para o interior da cidade e não para a zona rural.

A sensatez de Loiralice deixava que o mundo passasse por nós, até o ônibus de excursão, com centenas de torcedores pendurados às janelas, acenando bandeiras, soprando instrumentos, batendo tambores e gritando.

Aos poucos, as latas velhas do ônibus desapareciam na poeira da estrada e nós ficávamos, ali, à mercê de Loiralice, quase uma traição de nossos desejos mais profundos.

Nos olhamos de soslaio, respiramos fundo, gaguejamos, resmungamos alguma coisa, fizemos mímica e nos entendemos com profusão.

Decidimos chamar a atenção de Loiralice, a principio com sutileza, com delicadeza para não ofendê-la.

Começamos informando sobre a potência do veículo, que gastaria muita gasolina, caso a velocidade exigida pelo motor estivesse aquém e que por fim, demoraríamos muito tempo e ela fatalmente se cansaria demais.

Ela então, inesperadamente, parou o carro, numa freada brusca. Não era a freada de Loiralice.

Ficamos em silêncio absoluto.

Não questionamos, não abrimos a boca, mas nossos corações palpitavam desenfreados, um dizendo para o outro, que o cruzamento havia chegado.

Loiralice iria desfazer o nó. Ou aceitava a nossa proposição ou ... Não sabíamos a sua reação.

Quando íamos abrir a boca, soou aquela voz sonora, melodiosa e forte de cantora de pagode:

— Olha aqui, pessoal. O meu trato é esse. Dirigir até Porto Alegre. Mas eu não arrisco a minha vida. Se querem correr, se querem se matar, que vão sozinhos. Tenho dito.

Loiralice tinha desses caprichos, como as expressões antiquadas de políticos.

Tentamos então convencê-la, argumentamos de todas as maneiras, imploramos até, mas ela era radical e definitiva. Desceu do carro, dizendo que voltaria de ônibus.

Ficamos paralisados por um momento, assistindo-a dirigir-se até uma parada que ficava alguns metros adiante.

Então, num ímpeto, corremos até ela e pedimos que voltasse, aceitaríamos, com reservas, é claro, as suas determinações.

Ela aceitou, arrumou o penteado, ajeitou o vestido amarelo-queimado nas nádegas, acertou o passo na sandália dourada e voltou para o carro. Então, prosseguiu suave, sutil, deslizando no asfalto, delicadamente e sendo ultrapassada por todos os meios de transporte imagináveis, desde caminhões e ônibus até carroças e bicicletas. O cúmulo do desespero foi quando um corredor, que avistamos na saída da cidade, passava por nós e acenava satisfeito. Cuspimos com raiva pela janela, ouvindo um trovoar de palavrões.

Com o passar do tempo, tanto eu quanto o meu amigo, suávamos de ansiedade. Então, perguntei porque ele não dirigia, já que eu não poderia, pois não tirara carteira.

Ele confessou que nem sabia dirigir, o que confirmou mais uma de suas fantasias. Não sabia se me indignava com Loiralice ou com ele.

As horas passavam. No rádio, comentavam sobre trio de arbitragem e nós nem tínhamos chegado ao paradouro, um local que praticamente divide o percurso.

Em dado momento, Loiralice desviou o automóvel da rodovia, pegando um atalho. Perguntamos atônitos para onde ia.

Ela pairou o olhar em nossas fisionomias desesperadas e afetuosa, comentou:

— Vamos fazer um lanchinho, não?

— Não! – gritamos em uníssono.

Mas fizemos o tal lanche e assistimos a entrada dos dois times pela televisão do bar à beira da estrada.

segunda-feira, outubro 24, 2016

MAESTRIA DE MATAR

Percorro este corredor repleto de livros e fico me perguntando se valeu à pena. É só por um momento, mas vez que outra me vem esta dúvida.

Não sei, agora nos meus 81 anos de idade, pensando no passado, faria tudo de novo, do mesmo modo impensado, ou talvez excessivamente planejado.

De qualquer maneira, sinto um vazio imenso, olhando para estas estantes cheias e sentindo o coração apertado, por não saber ao certo, se o que fiz dará frutos verdadeiros.

Guardar livros, raspar o tacho das pesquisas, me parece uma coisa divina e ao mesmo tempo perigosa.

Às vezes, podemos nos deparar com algum livro, que traga oculto em suas paginas um segredo terrível. Foi o que aconteceu comigo e que me levou a tantos devaneios.

Agora, cansado, percorro estes corredores escuros e sinto uma ponta de orgulho, não fossem os fatos acontecidos, o peso da culpa e o medo de ser descoberto no final da vida.

E se descobrirem que este amante dos livros, também amante da vida e das mulheres, foi um amante da morte.

Planejar com cuidado dias a fio, cada gesto, cada movimento mais leve, cada passo em falso das pessoas que elegi e aproximar-me devagarinho do seu final.

Não foi uma coisa fácil e ainda não é para mim. Mas sinto que tudo pode acontecer novamente, a qualquer momento.

Mesmo sozinho, viúvo, após tantos anos de convivência, vivendo quase à prestação, ainda temo estas coisas.

Só me restam poucos sons na casa. Poucas vozes que vem ao anoitecer, temerosos que eu morra a qualquer momento. Não sabem então que tenho uma saúde de ferro?

Hoje me foi apresentada uma senhora diferente: nada demais na figura. Era idosa, cabelos pintados de loiro, roupas discretas e felizmente de pouco falar.

Meu filho, que não via há anos, me veio com a novidade.

— Papai, esta é Dona Berenice. Vai ficar com o senhor à noite. Vai ajudá-lo a tomar os remédios ou mesmo preparar o seu banho ou caso precise de alguma coisa, um café na cozinha. É melhor que ela lhe ajude e assim o senhor não ficará sozinho.

Era só isso? Ela pensa que sou idiota. Ficará ali, sentada na sala, na melhor poltrona, lendo revistas fúteis, de fofoca, aguardando a minha morte. Quem sabe esta noite? Ou no próximo domingo? Sei que só se preocupam com isso.

Não fica bem, o filho, um empresário de renome, morando na capital, deixando o velho pai, viúvo e solitário nesta casa enorme, sozinho, aos 81 anos de idade. Não sabe ele que sou muito forte e sadio e quando a minha hora chegar, não é preciso de tutores, de alcoviteiras esperando o desfecho.

Mas tudo bem, ela que fique e ele vá embora, tratar de seus negócios.

Felizmente agora estou sozinho, durante o dia, me dão mais liberdade. Posso passear pelos meus livros, arrumar as estantes devagar, examinar cada capa nova ou antiga, reler os clássicos, a bíblia, os livros proibidos. Será que ainda existem livros proibidos para a minha idade?

Gosto de ficar por aqui, sentar-me nestas mesas de verniz escuro onde tantas pessoas exerceram a intimidade com os livros, pesquisaram em suas páginas, apropriaram-se de seus conhecimentos, seus encontros com a verdade.

Lembro de Laura e não faz tanto tempo assim. Ela chegou um dia, com olhar tímido, gestos hesitantes, fala macia e diminuta. Precisava fazer uma pesquisa para uma monografia, não lembro bem do que se tratava.

Deve fazer 10 anos, é verdade, foi na copa de 96 e os horários estavam meio truncados, por causa dos jogos.

Ela veio num horário destes, em que a biblioteca estava fechada. Bateu na porta, vigorosa, eu atendi, do jeito que estava vestido, pijama e chinelos de lã.

Aproximei-me da vidraça da janela e espiei por detrás da cortina. Pensei irritado, porque não ia para uma biblioteca pública ou da Universidade. A minha não passava de um arranjo de livros particular, que não se limitava a determinadas áreas do conhecimento, mas a qualquer coisa que aparecesse por lá.

Voltei as costas para a janela e regressei ao meu quarto, mas aquela batida intermitente me incomodava.

Retornei irritado, disposto a despachá-la de uma vez por todas. Mas não o fiz, ela parecia bem desesperada. Parece que queria mais do que livros. Queria falar comigo.

— Se o senhor puder abrir, atender-me nem que seja por um minuto, para orientar-me para outra visita, por favor, lhe suplico.

Dizia tudo de súbito, quase sem respirar. Percebi que era uma jovem bonita, de estatura média, cabelos negros e meio despenteados, talvez em virtude do vento que fazia um zunido sinistro no corredor que conduzia ao quintal da casa.

Explicou-me em seguida sobre o trabalho pesado que teria pela frente, na área de história, agora me recordo, mas que precisava, antes de mais nada falar comigo, pessoalmente.

Eu lhe expliquei do horário alterado, a cidade estava deserta, só as folhas farfalhando, fazendo barulho pelas calçadas.

Ninguém se atrevia a sair em dia de jogo do Brasil. Ela não se importava com o jogo. Eu também.

Entrou agradecida, pedi-lhe que sentasse na poltrona que ficava bem defronte onde eu acabara de sentar.

Fiquei quieto, observando-a. Vestia-se com discrição e na mão, um bolsa pequena, mas repleta de sabe Deus o que, que fazia barulho a qualquer movimento. Vez que outra, ela enfiava a mão, como se para certificar-se que tudo estava em ordem. Puxou os cabelos para trás, respirou fundo e começou.

Primeiramente desculpou-se por ter insistido e logo em seguida, deu o recado:

— Trata-se de sua mulher.

Estremeci. Minhas pernas e joelhos batiam descontrolados. Por que falava de minha mulher, que ela tinha a dizer sobre ela, que havia se suicidado há três anos? Quase a despachei dali mesmo, sem querer saber nada, mas me contive, calado.

Minhas mãos tremiam e minha cabeça parecia imitar o movimento, pois estremecia sem que eu pudesse controlá-la.

— Ela não se suicidou. Na verdade, foi arrebatada, compelida por uma leitura.

Quando ela afirmou isso, levantei-me com esforço da poltrona, mas o fiz irritado, pedindo uma explicação. Depois calei-me. Estava exausto, não tanto pela idade, mas pela intromissão em minha vida, assim, de forma tão repentina.

Ela começou a falar em solidão, em buscas desconhecidas, em fenômenos aleatórios, em destino.

Pedi, supliquei que parasse.

Era tarde demais. Tarde no adiantado da hora, tarde para saber.

Que me interessava agora, naquele momento, qualquer revelação; nada tinha sentido.

Nada adquiria sentido há muito tempo. Melhor era deixar para trás.

Olhei para a porta, esperando que ela saísse.

Fazia um silêncio danado na rua.

Os ponteiros do relógio se arrastavam, um passando pelo outro, esperando uma resposta. Uma resposta que não mais significava nada.

Ela saiu desiludida, atrapalhada numa chuva de pingos grossos que começava a cair.

Avistei-a correndo, saltando entre as poças, pisando nas calçadas de lajotas quebradas, que emparelhavam com a rua alagada.

Hoje sei que se a tivesse ouvido, não teria esta sensação de vazio, de abandono.

Tudo que ela relataria, descobrira mais tarde no diário de minha mulher. Mergulhada nas teorias suicidas de um velho livro de bruxarias, coisas espúria e sem qualquer nexo científico, mas extremamente arrebatador, a levara ao desfecho final.

A partir daí, fui me tornando cético, tendo de aprender as técnicas que levassem à morte, não por feitiçarias ou qualquer outra forma de magia, mas as diversas maneiras de matar que aprendera nos livros. Livros de todas as áreas, todos os temas, mas que exclusivamente tratavam do assunto que me encantava.

Por isso, hoje, sou mestre nesta arte.

E esta mulher, esta Dona Berenice que virá aqui, esperar a minha morte, contar os minutos para livrar-se do estorvo, arriscar-se nas suas leituras medíocres imaginando-me alienado e frágil, não perde por esperar.

Seguirei meus rituais, exercerei em sua estrutura vulgar, a maestria do conhecimento inexorável: o ato de matar.

Percorro este corredor repleto de livros e fico me perguntando se valeu à pena. É só por um momento, pois vez que outra me vem esta dúvida. De todo modo, fico numa euforia há muito não experimentada, embora não saiba ao certo , se o que farei dará frutos verdadeiros.

quinta-feira, outubro 20, 2016

Pai na bicicleta: uma acrobacia de alegria

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/bicicleta-sombra-desporto-hispânico-233379/


Houve tempo em que te vi sorrindo, orgulhoso, satisfeito, encontrando nos filhos a certeza inabalável da vida, do se fazer pai e amigo.

Houve tempo em que me puseste no colo e abriste a página do jornal, ensinando-me a ler. Ali conheci o valor das palavras, da leitura e mais ainda, o prazer de ser amado e protegido.

Houve tempo em que te vi assim, cabisbaixo, olhando pros lados, insatisfeito. Talvez refletisses o que fazer diante dos problemas: da chamada do professor em casa, da briga costurada com o colega, da ordem desobedecida ao cruzar a rua e ver a bola picando, campo à fora, meninos ruidosos, na luta aguerrida do futebol. Sei, que na verdade, me querias na escrivaninha, pequeno troféu, que criaste, mais perto dos estudos e bem distante dos chamados “guris de rua”, daquela época. Benditos guris, nada semelhantes aos de hoje.

Houve tempo em que te vi desconfiado com a política, com os homens do poder, com a autoridade e autoritarismo. Houve o tempo do silêncio.

Houve tempo em que te vi criança, deslizando matreiro nas calçadas vazias de um feriado deserto da semana-santa, bamboleando o corpo numa coreografia imaginada para me mostrar outra face: a da alegria.

Houve o tempo em que me mostraste o cinema de rua, filmes do Sesi azulando as paredes das casas, enchendo-nos de euforia e imaginação.

Houve tempo em que me levaste à igreja, em que me mostraste o sacrário, em que dobraste teus joelhos nas noites de adoração. Houve tempo em que não se ligava o rádio, quando a sexta-feira anunciava a morte de Cristo, mas neste tempo, também eu procurava no Cine Real os clássicos da paixão.

Houve tempo em que te vi torcendo, solitário, por um time que evitavas mostrar preferência, mas via nos teus olhos um matiz diferente quando o vermelho entrava em campo.

Houve tempo em que assumias o Natal e revelavas o prazer de viver em família e sorrir e presentear, participando do que era doce e afável.

Houve tempo em que te vi amigo, solidário e irmão, acolhendo pessoas em casa, pleiteando vagas a amigos no trabalho, cuidadoso e responsável, acalentando as feridas e dores de meus avós em sua jornada final, sensibilizado e sensibilizando.

Houve tempo em que te vi feliz e reconhecido, profissional disciplinado, sendo laureado como operário padrão. Aí, o salto de qualidade estava além do padronizado, do igual, porque expressava na alma a gratidão dos colegas, resultado do desempenho intenso e honesto no que fazias.

Houve tempo em que te vi mais velho, marido, pai, avô. Houve tempo em que o te vi chorar, ressaltando tua humanidade intrínseca, um pedaço de ti te faltava, produzindo uma mágoa silenciosa.

Houve tempo em que te vi brilhar na finitude da vida, convivendo na família em plena lucidez, sobrevivendo aos percalços naturais da idade e apontando uma centelha de luz, mesmo que não o demonstrasses concretamente, víamos em teu olhar assim, tão intenso, dizendo coisas que às vezes não expressavas, mas que tua alma plena identificava.

Sei pai, que vivesses com dignidade até o fim. Sei que não deixaste mágoas, porque não permitiste desunião, desacordo ou preferências.

Sei que soubesses tão bem amar em toda a tua existência, que assumiste a família como dom maior e absoluto em tua opção de vida.

Sei que deixaste o exemplo, pedra fundamental de tua personalidade generosa.

Só não te tenho aqui, agora, mas te carrego comigo em todos os momentos nas ladeiras em que deslizo, tal como tu, na bicicleta de meus sonhos, te vejo ali, na bagageira, indicando os caminhos e rindo do meu medo absurdo das acrobacias que fazias.

Um dia desprendo o pé da roda, pai e faço como tu, sigo em frente e levo apenas a alegria simples de viver.

Mas por certo, te sinto mais intensamente, toda vez que te imito no papel que desempenhaste tão bem: o de pai.

domingo, outubro 11, 2015

A MENSAGEM

Camilo tinha esta desagradável mania de não gostar do que tinha ou do que havia para fazer. Se levava merenda de casa, para a escola, preferia a comprada, de preferência a dos amigos. Se havia futebol, preferia jogar dama, num canto do pátio e para isso, incitava um de nós a ficar com ele, possessivo que era, fingindo sempre precisar de um amigo. Caso tivéssemos educação física, a malfadada ginástica, dava um jeito de investirmos num futebol de salão, convencendo o professor, seja em que pé estivessem os seus humores.

Mas ele era assim, alegre, persuasivo, companheiro. Gostávamos de andar juntos, dar boas risadas de tudo e de todos, imaginar a professora assustada, puxando a saia godê, ao passar na esquina, fugindo do vento insolente que insistia em desafiar a sua paciência. E agradar nossa fantasia.

Tínhamos prazer em assistir o filme que a escola proporcionava nos finais de semana, especialmente, nos domingos, como continuidade da educação religiosa, obrigando-nos desta forma a participar da missa.

Camilo, entretanto, além de extrovertido e alegre, era um pouco cínico. Ele sabia como agradar aos padres, às professoras, ao diretor da escola. Tinha um jeito especial de se comunicar e deixar tudo tranquilo, leve e solto para o seu lado. Eu, ao contrário, gostava das coisas todas no lugar, muito bem esclarecidas, apesar de que fazia das minhas, sem me importar contudo em agradar a ninguém. Temia ser descoberto, pego em flagrante, como nas diversas vezes em que fugíamos na hora do recreio, pelo simples prazer de fazermos um lanche num bar, fora da escola. Apenas comer um queque e tomarmos refrigerante. Voltar depois, sorrateiramente, coração assaltado, boca seca, passarmos pelo porteiro, escondidos sob a portinhola que separava o balcão de entrada e que conduzia ao pátio, para entrar na sala de aula, como se nada houvesse acontecido.

Na verdade, o porteiro fazia vistas grossas para nossas escapulidas, mas esta condição amistosa jamais nos vinha à tona, felizes que estávamos em nossa arrogância de enganar os superiores. Nada restituía nossa liberdade, nada a interrompia nem desempenhava qualquer atenuante para nossa felicidade, que nos enchia os corações e disso nem nos dávamos conta.

Nunca me deparara com o lado triste da vida. Nossa infância era povoada de sonhos e certezas absolutas, que nos deixavam tão cansados que nada víamos, à noite, a não ser dormir para acordar no dia seguinte e recomeçar tudo de novo. Novas risadas, novas estripulias, novas escapadelas, novos confrontos com o porteiro, novas explicações. E finalmente a saída triunfante de quem vence todo e qualquer obstáculo.

Mas naquele dia, nada disso aconteceu. A não ser uma mensagem em casa, um outro colega anunciando uma tragédia, uma coisa triste, palavra que não havia em nosso vocabulário. A morte chegara, assim de improviso, sem pedir licença ou antecipar a sua vinda com um presságio qualquer. Viera exclusivamente para Camilo, dotado de uma doença qualquer que levara consigo a alegria que sentíamos e da qual eu não dispunha de meios para me afastar. Por isso, olhei para o colega, elucidei como pude a mensagem, irritei-me com a riqueza de detalhes, bordados de curiosidade e desliguei a cena. Não fui ao enterro. Não vi Camilo pela última vez. Acovardei-me. Pelo menos, de Dona Agripina, eu vi os pés no meio do corredor da igreja, na missa de corpo presente. Foi a minha primeira e tênue visão da morte. Mas de Camilo, guardei o jeito alegre de se portar, de sorrir, de fingir-se solícito e brilhante, de ser o que era e o que queria ser. Não foi desta vez que enfrentei a morte. Deixei-a passar, covarde, sentido, dizendo para mim mesmo que tudo continuava como antes.

sábado, setembro 12, 2015

As rádios locais e as tvs regionais, os sonhos e as mudanças culturais

Quando crianças, via de regra, temos um mundo interno muito rico, e um tanto dissonante com a realidade. As crianças vivem num mundo imaginário e interagem de acordo com a interpretação que estabelecem para si mesmas. Para os dias de hoje, é absurdo se pensar que alguém, até mesmo uma criança, possa imaginar que uma rádio local possa ter um elenco refinado de artistas, cantores, atores e atrizes que lá permancem para executar suas obras, fazer suas perfomances e encantar os ouvintes. Sabe-se que atualmente, tudo é gravado e a maioria dos programas vem dos grandes centros, principalmente do eixo Rio-São-Paulo onde a dramaturgia e os grandes shows musicais acontecem. Onde a música tem realmente importância comercial e os grandes artistas se salientam a partir destas “trincheiras" de arte e marketing. Por essa cultura dos grandes centros, as crianças de hoje e as pessoas em geral, sabem que a maioria dos sucessos vem de lá, que a arte regional é praticamente esquecida, com raríssimas excessões. As crianças, na verdade, nem pensam nisso. Elas assimilam esta situação, bem como os adultos em geral, que procuram nas páginas de seus jornais locais, notícias e fofocas de celebridades das grandes emissoras do centro do País, sem contar os sites que as popularizam e transformam em celebridades, pessoas que tem muito pouco ou nada a oferecer em termos de arte e cultura.

Mas, antigamente, muito antigamente, pelos idos dos 60 e 70, as coisas eram um pouco diferentes. A cultura regional era diversificada e havia programas regionais nas rádios locais e estaduais com muita audiência. A própria tv da capital tinha a sua programação regional nos horários nobres. A TV Gaúcha, por exemplo tinha uma programação de shows depois da novela das oito (novela que não era apenas da Globo, mas de outras emissoras, como a Excelsior, até se formar a sinistra rede nacional, onde se perdeu a criatividade regional e o povo brasileiro se padronizou conforme a ideologia doutrinária da emissora). Aliás, a TV Excelsior é um capítulo à parte na história da TV brasileira, pois foi banida do cenário televisivo porque seus administradores se opunham à ditadura. Mas isto, pode ser tema de outra crônica. Outras emissoras, como a TV Piratini, produzia peças teatrais com atores locais e shows aos sábados e domingos em horários que hoje são preenchidos pela programação das grandes redes, incluindo os programas religiosos aviltantes, uma troca fabulosa de benefícios financeiros.

Voltando à TV Piratini, que foi pioneira no Rio Grande do Sul, nos anos 60, ela apresentava uma programação regional extensa, incluindo o Repórter Esso, que era transitido em Porto Alegre por Ênio Rockenbach. Também havia o programa sobre futebol, chamado em "Mangas de Camisa”. Na culinária, o programa de Mimi Moro, além de outros programas populares, como o ‘Clube do Guri”, "TV Samba", com Sayão Lobado, "Grande Show Wallig", um programa realizado ao vivo, nos domingos, com astros da música local e até internacional, acompanhados de uma orquestra.
Na década de 70, havia o programa feminino "Elas por elas”, apresentado de segunda à sexta às tardes, cuja abertura trazia o tema “Un homme et une femme” de Paul Mauriat, do filme com o mesmo título. . Aliado à programação regional, havia a programação nacional através da TV Tupi. Por outro lado, a TV Gaúcha (atual RBS), trazia atrações ao vivo, como o Show do Gordo, com Ivan de Castro, GR show, com Glênio Reis, o show de luta livre, aos domingos, o programa Cidades frente a frente, na qual Rio Grande concorreu com Canoas e muitos outros programas. Na Tv Difusora (atual Band), entre outros, se destacava o "Programa Júlio Rosemberg", com atrações locais e nacionais, “bem como alguns programas infantis, como o "Recreio", apresentado pela Tia Bita e o menino Fabiano ” e mais tarde, o Carrossel Bandeirantes, apresentado pelo mágico Tio Tony. À noite, um programa de reportagens, chamado Camera 10 e ao meio-dia, um programa que ficou muito conhecido, chamado Portovisão que concorria diretamente com o Jornal do Almoço da TV Gaúcha.

Embora houvesse muita participação popular, as rádios locais também tinham a sua programação bem estruturada e com sucesso, inclusive oferencendo dramaturgia, que na época, era ao vivo. Na Rádio Minuano, havia uma peça teatral apresentada aos domingos, que se destacava na programação e os atores eram rio-grandinos. Havia programas de auditório, com calouros, nos quais se apresentavam muitos cantores da cidade e outros até seguiam em frente na carreira. Na rádio Cultura Riograndina, um dos seus maiores sucessos era o “Cafezinho telefone”, no qual fazendo juz ao título, a comunidade interagia pelo telefone, solicitando músicas. A característica músical, como se dizia na época, a música que identificava a abertura do programa era “”Os milionários”, dos Incríveis. Era um programa no qual o apresentador conversava tranquilamente com os ouvintes, que solicitavam músicas e entre uma e outra, ele fazia os anúncios de praxe, os ditos reclames (propagandas) e comentava curiosidades relacionadas à música ou alguma notícia. Também havia um programa muito ouvido pela comunidade lusitana, cuja pauta era de músicas portuguesas, principalmente o fado, com muitos comentários do apresentador que também falava com sotaque. Outro programa tradicional e muito ouvido no interior do Município era o “Alô Zona Sul”, que informava as notícias através de anúncios pagos pelos ouvintes, como convites para missas, enterros, casamentos, etc.

Além disso, havia a programação esportiva das duas rádios locais da época, que tinha grande força na região. Tudo aos poucos foi se modificando, a partir das primícias oriundas das programações nacionais, seja por influência dos patrocinadores, seja pela falta de audiência local, o que obrigava aos programadores trazer as novidades dos grandes centros. De todo modo, as rádios locais sempre pautaram pelo jornalismo durante todo o dia e pela programação musical, bem como o jornalismo esportivo, especialmente, o relacionado ao futebol. Entretanto, percebe-se, que apesar dos esforços de muitos produtores de rádio e jornalistas envolvidos nas transmissões, há uma decadência gritante, em virtude das inúmeras mídias que atualmente se tem em mãos, mas principalmente, pela fuga indiscrimida que ocorreu a partir do final da década de 70 para a grande mídia nacional, que monopolizou toda a programação das emissoras, tanto de rádio, quanto tv, seja no fator econômico e mercadológico, seja no fator de supremacia da cultura da região central do país em detrimento das culturas locais. O mundo foi mudando e até esta cultura está debilitada, porque agora, há muito mais oportunidades de acesso, a partir de paradigmas internacionais, com a internet e as tvs pagas.

Mas, voltando ao passado, sabia-se o quanto eram importantes as rádios para as crianças da época, talvez não propriamente pela programação exibida, mas pelo fato de acompanharem diariamente com os pais, de uma forma ou de outra, mesmo envolvidos em outras atividades. Em consequência, estabeleciam ao rádio uma dimensão, que os tornava participante de suas vidas, o que para os dias atuais, seria um absurdo. Lembro de uma colega de escola que ao passar pela Cultura Riograndina, na Silva Paes, dizia ter curiosidade em subir as escadas para encontrar algum cantor ou artista da rádio. Era uma ilusão infantil, quase inconcebível, mas o sonho só foi abalado, quando ela precisou pagar um aviso para o programa do meio-dia, em virtude do falecimento de sua avó. Subiu rapidamente as escadas e se deparou com um guichê vazio, onde uma presumível secretária apareceria a qualquer momento. Próximo à parede, um sofá antigo, surrado. Alguns homens conversavam nos bastidores, sendo que se ouvia a voz de um dos locutores famosos e as conversas desandavam para o mais banal e simplório do cotidiano. Quando a secretária chegou, pediu o tradicional anúncio, feito à mão para datilografar em sua escrivaninha. Cobrou e dispensou minha amiga com a indiferença dos que estão cumprindo uma tarefa rotineira e desgastante. Minha amiga até olhou para trás, na esperança de assistir uma conversa mais alvissareira, com vozes impostadas e conversas inteligentes. Quem sabe um cenário luminoso, onde houvesse pessoas discutindo os grande anseios da humanidade, a chegada do homem à lua ou a nulidade do processo civilizatório? Nada disso acontecia. Não havia glamour, nem elegância, muito menos alguma deferência aos visitantes. O sonho acabara. Como na vida virtual de hoje, o sonho só se concretizava ali, pertinho do alto-falante, a cabeça próxima ao rádio, ouvindo aquelas vozes aveludadas e temas românticos ou intelectualizados. Mas assim era a vida. Talvez com o tempo, ela tenha entendido, que eles eram tão iguais quanto ela, gente do povo, gente que sonha também, que tem seus ídolos e suas paixões, seus aborrecimentos, suas iras, suas esperanças. Que bom que as pessoas percebessem nos dias atuais, que as celebridades e os atores eloquentes em suas falas são tão iguais ou piores que todos nós. Em geral, os espectadores são semelhantes àquela menina dos anos 70 e vêem nos ídolos dos dias de hoje, apenas as qualidades que enxergam. O personagem criado para vender discos, shows, fazer sucesso em novelas, teatro, etc. O estereótipo do homem. O que todos veem, mas que na realidade, na sua intimidade, somente o próprio conhece. Mas assim era a rádio e a TV. E assim a vida segue até hoje. Só mudaram os formatos. O mundo gira igual. E as ilusões… bem, estas, talvez mais pueris.

quinta-feira, maio 15, 2014

Não se preocupem com a relação copa – eleição

Não se preocupem com a relação copa – eleição


A copa só teve influência no moral dos brasileiros, em 1970, porque o Brasil era um país de esquecidos. O povo não era nada, não votava, não elegia, não falava, era amordaçado. Mas precisava ser feliz. Era necessário que transbordasse de alegria e acreditasse que tudo estava maravilhoso. Era um país de faz de conta e nada melhor para ocultar nos porões, a  extrema miséria que grassava, a derrocada da cidadania, a morte da liberdade. Nada melhor do que mostrar a todo mundo que éramos um povo feliz, um povo que tinha o melhor futebol do mundo, que conseguira assistir ao vivo pela tv, ao lado da novela Irmãos Coragem que dava 100 pontos de audiência à Globo, a mantenedora cúmplice do status quo de nossa vida política. Neste quesito, a mídia foi talentosa:  realçava a nossa alegria, o  nosso viver bem, embora milhares de pessoas morressem de fome e estivéssemos criando uma dívida pública estratosférica, com uma rodovia fantasma que se dizia ligaria o Brasil de ponta a ponta e enaltecida diariamente por Amaral Neto, o maior publicitário da ditadura. Nosso povo adormecido nem sonhava que se gerava a maior corrupção da história, que somente agora alguns fatos vão surgindo e revelando a sangria em nossa economia. Tudo era tão fácil, que os torturadores tinham um cartão de crédito para gastarem o que quiserem para manter a organização (e hoje, há os que se revoltam contra as bolsas sociais). Tudo era samba e alegria. Mas agora, não se preocupem. O futebol não influencia não tem a menor influência nas eleições, porque tudo é transparente, todos podem democraticamente pensar e opinar o que quiserem sem a mordaça do poder. Em 2002, o Brasil sagrou-se campeão, num ano de eleição e Fernando Henrique perdeu. Portanto, fiquem tranquilos. Se a Dilma ganhar, será por uma contingência politica de aceitação de seu governo pela população, vença ou não a seleção brasileira.  Senhoras nervosas com a seleção, divididas em seu amor pelo nosso maior representante esportivo do País, não fiquem tristes e desiludidas. Não sofram com essa dicotomia. Um coração que arde, que sofre, que torce e ao mesmo tempo sonha com a perda de seu bem amado, o Brasil. Não se punam. Vistam a camiseta verde e amarela. Torçam, torçam à vontade, pois pode ocorrer a vitória de seu candidato. Basta que ele mostre a que veio e seu compromisso com a população, inclusive informando os benefícios de sua administração no passado. Torçam e sejam felizes. O Brasil é maior do que estas picuinhas. Ah, mas se fizerem algum protesto, por favor, não derrubem ônibus, nem queimem pneus ou destruam caixas eletrônicos. Nem participem da famigerada marcha pela família, um velório anunciado. O País não merece.

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A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

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