
Eu e meu amigo Saulo inauguramos nosso desejo de assistir um grande jogo de futebol. Acostumados com os times pequenos de nossa cidade, assistir Grêmio e Corinthians era uma verdadeira odisseia. Uma marca em nossa carreira de torcedores, que na época, antes das desilusões derradeiras, éramos fanáticos.
Saulo era um sujeito estranho. Gente boa, grande amigo, sempre disposto a apoiar em qualquer situação difícil, mas tinha uma conduta peculiar que chamava à atenção.
Eu não conseguia convencê-lo de que as suas atitudes eram inadequadas, pelo menos, pois sempre dava um jeito de dar outro rumo à conversa.
Uma de suas extravagâncias, era a mania de interpretar papéis que destoavam de sua rotina. Se participávamos de uma reunião de jovens da igreja, ele demonstrava estar em êxtase, perdido nos trâmites iluminados do divino, ascendo à postura angelical, quase um santo. Mas quando estávamos juntos, toda a encenação se dissolvia e se transformava no jovem de classe média, com pouca espiritualidade e muita disposição para ser o que realmente não era.
Outras vezes, convencia a si mesmo, que era um intelectual. Participava de palestras de quaisquer assuntos, pois a todos tirava de letra, segundo seus pensamentos egocêntricos. Metia-se em polêmicas doutrinárias, ideologias, filosofias e demonstrava uma facilidade extrema para cercar-se de neologismos, sofismas e saídas rasteiras, onde se locomovia como um larápio nas noites escuras, deixando a todos de boca aberta. Às vezes, até acreditava que ele tinha razão. Pelo menos, até cair a ficha.
Mas voltando ao futebol, o nosso assunto a partir daquele momento, passou a ser o jogo ao qual assistiríamos de camarote. Já imaginávamos o povo se acotovelando nos metrôs, os carros pipocando nas avenidas, milhares de pessoas nas passarelas, vestidas em uniformes, tingindo de azul preto e branco, numa mistura de cores que dosavam os matizes dos times em disputa.
Víamos também nossa imagem, refletida em nossa mente fantasiosa. Eu, vislumbrando o cenário, imaginando uma história a contar, olhares argutos, coração e mente atentos, ouvindo o rugir da torcida e o trovoar dos foguetes, na entrada dos jogadores.
Ele, ao meu lado, levantando a todo o tempo, antes mesmo de comemorar qualquer coisa; cabelo curto, pois se considerava um tipo formal, nariz adunco e olhar investigativo, numa performance nova, talvez até torcendo pelo inimigo.
Mas eram só conjecturas, pois ainda estávamos em nossa cidade natal.
Ele chegou com a novidade, de que iríamos num carro novo, tinindo, zero quilômetro, um Opala vermelho, com todos os acessórios considerados de luxo para a época. Disse-me que havia alugado o carro, pois não iríamos no ônibus de excursão, com àquela gente cheirando à cachaça, misturada a desodorante Mistral.
Sorri e percebi que o Saulo havia incorporado outro papel.Tentei dissuadi-lo da ideia, pois não tinha muita prática em direção, mas ele me saiu com uma proposta mais absurda ainda:
— Não, não, nada disso. Teremos um motorista.
— Um motorista? – perguntei intrigado.
Ele pousou aquela mão enorme sobre o meu ombro e concluiu, confiante.
— Deixa comigo. Amanhã é o grande dia.
E assim foi. No dia seguinte, estava à espera, olhando pela vidraça. Um sol forte produzia flashes no para-brisa do imponente opala. Olhei para direção para verificar se havia o tal motorista e qual minha surpresa, uma morena depositava as unhas vermelhas no volante, fitando-me de uma maneira tão incisiva, que parecia exigir que eu entrasse, sem fazer perguntas.
Obedeci, sentando no banco detrás, largando a mochila e olhando surpreso para o meu amigo, que virava o pescoço comprido para trás, perguntando se eu lembrava da Loiralice.
Ela atravessou o olhar pelo retrovisor, fuzilando como defesa, antes de qualquer investida.
Claro que me lembrava, no meu machismo pós-adolescente, Loiralice era apenas a morena gostosa, das festas do colégio, que segundo as conversas de corredor, já havia conhecido a intimidade da maioria dos guris. Tinha esta qualidade, mas a profissão de motorista era uma novidade, pelo menos pra mim.
Hoje, ela já passava dos trinta, bem mais velha do que nós, já que na época da escola, ainda estávamos no primário e ela já avançava no ginásio, se bem, que quase a pegamos, no bom sentido, porque via de regra, repetia de ano.
Loiralice não era do ramo. Estudar não era sua melhor aptidão. Quem sabe, como motorista, revelaria dotes desconhecidos. Devia dar uma chance, afinal, como ser preconceituoso, só por ser a Loiralice? Pois Loiralice arrancou de primeira.
O carro não corria, deslizava. Era uma suavidade só, uma sensibilidade, uma coisa feminina, que norteava seus gestos, suas mudanças, seus retornos ou paradas em sinaleiras. Sutil, sóbria, tranquila. Cada adjetivo que eu pensasse se encaixava nas mãos de Loiralice.
Ela obedecia as regras da direção com tanto cuidado e recato, que mal desconfiávamos que era a mesma Loiralice que conhecíamos.
Meu amigo sorria, satisfeito, boca grande, dentes irregulares, nariz quase batendo no queixo. Achava que fizera uma ótima aquisição.
Loiralice era excelente motorista. Consciente, cuidadosa, preocupada com os animaizinhos soltos na rua, com os velhinhos que atravessavam descuidados, com as meninas das escolas, passinhos amiúde, ocupadas em suas histórias, quem sabe os cuidados com os cadernos e as primeiras paixões da infância.
E vá adjetivos à Loiralice.
Loiralice era assim, quase uma mãe. Logo ela, tão exuberante, voz altiva, boca bem desenhada e pintada de vermelho sangue, olhos delineados, com aquele traço preto que quase atravessava a fronte em direção à orelha.
E os trajes? Loiralice não tinha recato, nem qualquer censura. Usava os decotes como arma de sedução, abusava das saias curtas, revelando pernas bem torneadas e tão lisas, que tinha-se a impressão de que qualquer objeto deslizaria por elas infinitamente.
Assim era Loiralice: esta faceta sensual bem mais conhecida.
Mas agora, parecia outra pessoa. Tal como Saulo, que se metamorfoseava em distintas situações, ela agora se investira na mulher sensata e cumpridora dos deveres e das leis.
Entretanto, havia um senão, um detalhe que envolvido naquele mar de novidades, passara desapercebido: Loiralice estava lenta demais. O carro não passava dos sessenta.
A cidade parecia nos puxar para dentro, ao invés de nos afastarmos, como naquela poesia em que as ruas acenam, despedindo-se da moça no trem, as casas ficam distantes, os automóveis, as crianças, os cachorros de rua, os gatos despreparados, tudo se dilui na distância.
Nós, ao contrário da moça do trem, éramos atraídos para o interior da cidade e não para a zona rural.
A sensatez de Loiralice deixava que o mundo passasse por nós, até o ônibus de excursão, com centenas de torcedores pendurados às janelas, acenando bandeiras, soprando instrumentos, batendo tambores e gritando.
Aos poucos, as latas velhas do ônibus desapareciam na poeira da estrada e nós ficávamos, ali, à mercê de Loiralice, quase uma traição de nossos desejos mais profundos.
Nos olhamos de soslaio, respiramos fundo, gaguejamos, resmungamos alguma coisa, fizemos mímica e nos entendemos com profusão.
Decidimos chamar a atenção de Loiralice, a principio com sutileza, com delicadeza para não ofendê-la.
Começamos informando sobre a potência do veículo, que gastaria muita gasolina, caso a velocidade exigida pelo motor estivesse aquém e que por fim, demoraríamos muito tempo e ela fatalmente se cansaria demais.
Ela então, inesperadamente, parou o carro, numa freada brusca. Não era a freada de Loiralice.
Ficamos em silêncio absoluto.
Não questionamos, não abrimos a boca, mas nossos corações palpitavam desenfreados, um dizendo para o outro, que o cruzamento havia chegado.
Loiralice iria desfazer o nó. Ou aceitava a nossa proposição ou ... Não sabíamos a sua reação.
Quando íamos abrir a boca, soou aquela voz sonora, melodiosa e forte de cantora de pagode:
— Olha aqui, pessoal. O meu trato é esse. Dirigir até Porto Alegre. Mas eu não arrisco a minha vida. Se querem correr, se querem se matar, que vão sozinhos. Tenho dito.
Loiralice tinha desses caprichos, como as expressões antiquadas de políticos.
Tentamos então convencê-la, argumentamos de todas as maneiras, imploramos até, mas ela era radical e definitiva. Desceu do carro, dizendo que voltaria de ônibus.
Ficamos paralisados por um momento, assistindo-a dirigir-se até uma parada que ficava alguns metros adiante.
Então, num ímpeto, corremos até ela e pedimos que voltasse, aceitaríamos, com reservas, é claro, as suas determinações.
Ela aceitou, arrumou o penteado, ajeitou o vestido amarelo-queimado nas nádegas, acertou o passo na sandália dourada e voltou para o carro. Então, prosseguiu suave, sutil, deslizando no asfalto, delicadamente e sendo ultrapassada por todos os meios de transporte imagináveis, desde caminhões e ônibus até carroças e bicicletas. O cúmulo do desespero foi quando um corredor, que avistamos na saída da cidade, passava por nós e acenava satisfeito. Cuspimos com raiva pela janela, ouvindo um trovoar de palavrões.
Com o passar do tempo, tanto eu quanto o meu amigo, suávamos de ansiedade. Então, perguntei porque ele não dirigia, já que eu não poderia, pois não tirara carteira.
Ele confessou que nem sabia dirigir, o que confirmou mais uma de suas fantasias. Não sabia se me indignava com Loiralice ou com ele.
As horas passavam. No rádio, comentavam sobre trio de arbitragem e nós nem tínhamos chegado ao paradouro, um local que praticamente divide o percurso.
Em dado momento, Loiralice desviou o automóvel da rodovia, pegando um atalho. Perguntamos atônitos para onde ia.
Ela pairou o olhar em nossas fisionomias desesperadas e afetuosa, comentou:
— Vamos fazer um lanchinho, não?
— Não! – gritamos em uníssono.
Mas fizemos o tal lanche e assistimos a entrada dos dois times pela televisão do bar à beira da estrada.
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