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quarta-feira, maio 24, 2017

Nunca ao entardecer

Nunca ao entardecer, pensava ela, estirando-se na grama do parque. Olhava para o céu, desconfiada de que choveria. Nuvens corriam, e a impressão é que se chocariam conforme o vento aumentasse. Mas ficava ali, quase adormecida, olhando para o céu. Se pudesse, ficaria até a noite. Mas não arriscaria a vida, num capricho desses.

Por certo, seria melhor levantar-se, tirar as folhas das árvores que se grudavam no jeans, olhar para os lados, desapercebida, e seguir em frente.

Talvez pegar o metrô, tirar da mochila aquele livro do Sartre e ficar folheando, fingindo que lê. Há tempos faz isso. Pensa que um dia acabará a leitura, mas não acaba nunca. Sartre pensa demais. Nada aproveitável, diria sua avó.

O piercing recém colocado causava certa ardência no umbigo. Dava uma leve coceira, também. Nada que fosse levá-la ao desespero.

Na verdade, se desesperava por poucas coisas. Ainda bem. Afinal a vida é uma eterna turbulência. Pra que ficar se angustiando.

Ouviu o barulho do metrô na estação.

Decidiu ficar ali, mais um pouco. Gostava de manter-se ocupada consigo mesma. Cuidar de seus movimentos. Analisava os braços que ora pendiam corpo afora.

A calça justa, cintura caída. A blusa solta no corpo, branca, de um algodão fino que deixava ver o sutiã escuro. Fixava o céu. Era de um azul quase lilás, esbranquiçado, transformado pelo sol frouxo que perdurava nestes dias sonolentos.

Pudera ficar mais tempo, esquecida do mundo, das coisas, dos seus pensamentos mais íntimos. Sabia que, como manda a filosofia budista, devia esperar. Esperar que os pensamentos debandassem, assim como vinham, desavisados. Vertentes inefáveis do medo. Sairiam, deixando-a vazia. Tudo girava de revés. Era só esperar. E esperar era o que mais fazia atualmente. Esperar o fim do assédio moral, sexual e discriminação no trabalho. Esperar que a respeitassem como mulher. Mais do que isso: resistir.

Afinal de contas, sua geração era a de resistir. Geração, não, a herança maldita de gênero, diria a mãe. Afinal, a mulher parece estar sempre em teste contínuo, tentando provar a todo momento que pode sobreviver, nem que seja por instrumentos.

quinta-feira, janeiro 12, 2017

Criei um fake

Criei um fake

Certa vez criei um fake de mim mesmo. Isso é normal, me perguntaram alguns amigos, não sei, nem mesmo sei o que realmente pode ser considerado normal. Afinal, as pessoas apresentam comportamentos distintos das normas concebidas como dentro da normalidade e tudo parece extraordinário, elegante, vanguardista, até pós-moderno (se é que isto existe).

Enfim, tudo depende do contexto em que se insere a situação ou o comportamento.

De todo modo, por um tempo, fui muito feliz com o meu fake, ou melhor, fui contemplado com alguns benefícios.

O meu fake participava de muitas redes sociais. Era esperto, inteligente, adequado às novas tendências tecnológicas e artísticas, além de ser politicamente posicionado, e no final das contas, um grande filósofo.

Mas era um fake, uma figura criada para me proteger, como uma bengala para me amparar, um personagem para dividir comigo as informações mais estrambólicas, para discutir os problemas sociais, para compartilhar as dúvidas existenciais, para tomar atitudes objetivas em relação aos mais diferentes pontos de vista. Sim, porque ele tinha um ponto de vista.

Ele possuía assertivas bem argumentadas, sabia expor suas ideias com incomparável maestria. Era um verdadeiro gênio na arte de examinar, avaliar, abalizar, confrontar situações, encontrar as mais diversas saídas e intervir despudoradamente nas conclusões de outrem, mostrando outros caminhos, outras maneiras de olhar o mundo. Olhares diferentes não lhe faltavam. Alegria e bem humor também. Era perfeito. Educado. Paciente, paciencioso, parcimonioso, contemporizador, elegante. Um gentleman.

Por um tempo, eu o acompanhei em suas elucubrações, suas ideias diversificadas, seus pontos de vista únicos, que fogem do senso comum e desacomodam as coisas.

Afinal, do alto de seus amplos conhecimentos, de suas vivências e sua atribulada trajetória mundana, espraiava pelas cercanias toscas das redes sociais, as mais amplas doses de novas descobertas, de novas maneiras de situar as lacunas, enchendo-as com experiência, conteúdo e ação.

Eu me acostumei com ele.

Habituei-me com o seu jeito de retribuir o que eu pensava, de compartilhar comigo as descobertas, de sinalizar os mesmos caminhos, de alargar horizontes que ao mesmo tempo nos pareciam tão próximos, tão atingíveis que bastava que esticássemos a mão, aquele dedo indicador, aquele que julga, que aponta, para chegarmos mais e mais perto, do objetivo alardeado, quem sabe da verdade.

Era assim que nos comportávamos quase arrogantes. Um entregando ao outro, de mão beijada, a contribuição precisa no momento certo. Como num jogo de dupla, onde um depende do outro. Jogo de tênis, preciso, tenso, concentrado, silencioso. Só o barulho da raquete, do suspiro da plateia, do grito de vitória.

Uma coisa que brilhava no céu empoeirado e nublado do facebook ou de qualquer outra rede social. Qualquer coisa que disséssemos valia milhões de acessos, por nós, é claro, que não estávamos interessados em frases de Arnaldo Jabor [sic], em comentários sobre bebida, cozinha, aquele churrasquinho íntimo, lavado na caipirinha e nos olhares vermelhos e estrábicos de quem abusou da alegria, coisas que só dizem respeito a quem posta na rede, ou na moto usada, no cachorrinho fazendo xixi no sofá, na sogra esticada na rede, mostrando as coxas disformes, ou nas mensagens melosas, instigando culpas e medos, procuras e respostas de correntes intermináveis.

Não, não era nada disso que procurávamos. Isso era coisa do falecido Orkut.

Mas, de repente, o fake foi sendo conectado por outros amigos, foi sendo abordado em pedidos de amizade, de compartilhamento, e cada vez mais assediado por suas ideias e manifestações impunes.

Todos queriam conhece-lo, saber mais do seu perfil, pesquisar suas fotos, seu mural. Queriam acompanha-lo, segui-lo, encontrar nele o caminho que parecia abrir tantas portas, tantas saídas e tantas maneiras de achar a verdade.

Nem todos, é claro. Não aqueles da caipirinha, das fotos pessoais, da mostra diária de seus afazeres, desde a comida do meio dia até a dor de barriga da tarde. Estes não. Estes estavam interessados em curtir outra coisa e compartilhar consigo a mesmice do dia a dia.

Aquela novidade era pra poucos.

Mas estes poucos iam se multiplicando, o que me deu algum medo. Medo de ser ultrapassado pelo fake.

Os meus amigos já nem me ouviam mais, nem compartilhavam o que eu postava, embora concordassem comigo, ah, só porque eu compartilhava com o fake, concordava com o fake, alimentava-me do fake. Eles queriam fazer o mesmo.

Foi um tempo de muito sofrimento. Uns diziam, porque que ele só compartilha contigo? Por que só concorda contigo? Porque descreve em pormenores, com muito mais argumentos, alicerçado em artigos de especialistas, em leituras adequadas, em conhecimentos científicos ou em suas próprias vivencias o que tu enuncias? Por que não colabora conosco, não compartilha conosco?

Então tive que dividir o fake. Ou melhor, tive que escrever por ele para os amigos também.

Então começara a chover  pedidos para acrescentá-lo em suas redes sociais.

Eles o queriam, eles o amavam.

Não era a mim que seguiam, não era o que eu pensava que valia, era o que ele afirmava, eram as suas atitudes que importavam. Ele era o rei da festa. Eu passei a ser só um coadjuvante.

Então tive uma ideia: decidi eliminar o fake.

Resolvi dar um basta naquelas atitudes arrogantes, naquele modo de pensar vanguardista, pós-moderno, aqueles pontos de vista avançados, aquele jeito ousado de fugir do senso comum.

Eu precisava eliminar o fake. Acabar com ele, acabar com sua fama, seu jeito desinibido de ser, sua intimidade cada vez mais exacerbada junto aos meus amigos, que agora eram mais seus do que meus.

Não havia saída. A única saída era acabar com ele.

Foi o que fiz.

Eliminei o fake.

Voltei a ser eu mesmo. A discutir os mesmos assuntos, a política, a sociedade, os movimentos sociais, a beleza da natureza e a luta por sua conservação, a busca pela igualdade étnica, a luta pelo fim dos preconceitos, a filosofia em suas mais diversas vertentes, a música clássica, a boa musica, o teatro, a literatura, a vida cultural... Também fugi do senso comum, vi e revi valores, avaliei outros caminhos...

Os amigos se afastaram, um que outro postava um “curtir” ou compartilhar alguma foto ou desejar uma boa noite, um bom dia, um boa tarde, um bom fim de semana...

E todos voltaram a mostrar as suas casas bonitas, recém-adquiridas, os seus carros último modelo, as suas motos, os seus casacos de couro, os seus churrasquinhos de fim de semana...

Enfim, a mediocridade que faz parte de suas vidas.

Acho que vou criar o fake novamente. 

terça-feira, novembro 29, 2016

A percepção da subjetividade na filosofia e na literatura

Com a Modernidade, houve gradativamente uma mudança de paradigma na literatura filosófica e em muitos aspectos da história da humanidade. Por exemplo, havia a crença de que o sentido das coisas decorria da essência do objeto. A partir de René Descartes, que contribuiu grandemente para a história das ideias, ocorre a relevância do sujeito, ou seja, o sentido passa a estar na consciência do sujeito. Essa nova maneira de pensar, este novo olhar filosófico implica em grandes transformações nas artes, nas ciências, na cultura, enfim, no novo mundo que se insurgia.
 

Na literatura abrangente da filosofia, pode-se dizer que num primeiro momento, no que concerne à época antiga e medieval, que todo o pensamento estava centrado no objeto.

Na modernidade, há a inserção do sujeito, mais do que isso, a ascensão do sujeito dando sentido à consciência, contrariando à supremacia da essência do objeto.

Finalmente, na filosofia contemporânea, afirma-se uma intersubjetividade, ou seja, a relação entre sujeito e / ou objeto. Neste caso, o relacionamento entre indivíduos ocorre no campo da liberdade de ação, o que implica a negociação com o outro. 

Mas voltando ao início, houve nos primeiros momentos da filosofia, uma passagem do paradigma do objeto para o do sujeito. Com a ênfase na subjetividade, descobriu-se que tudo que nos cerca existe além da percepção do objeto, porque na verdade, o objeto não existe apenas em sua essência, sem que haja uma ligação permanente, ou seja, uma relação com o sujeito. O sujeito é que tem a faculdade de transmitir o conhecimento de alguma coisa (objeto), através de sua percepção. O filósofo passa a olhar para a sua própria consciência e a supremacia passa a ser do sujeito.

Neste casos, ocorre uma transição da objetividade para a subjetividade.

Na Antiguidade, o homem contemplava a natureza e na Modernidade, o homem quer controlar a natureza através da ciência, pois considera ter autonomia no processo de construção do seu conhecimento. Acredita-se que o mundo não é algo dado, passivo, mas sim algo construído.
 

No literatura como arte, houve a ascensão do realismo e do naturalismo. Aqui a  questão da racionalidade ocorre ao lado do sujeito extremamente racional, através de um indivíduo que se impõe sobretudo como um sujeito racional seguindo a teoria positivista. Deste modo, ocorre uma ênfase extrema no sujeito, como se este surgisse por acaso, onipotente, com um olhar absoluto para a história.

Na verdade, o sujeito não surge, ele é construido através de sua formação, com a tradição, o relacionamento com outros indivíduos, expressando a sua realidade através de sua origem local, espacial e participando da história.

O homem tem uma história que o precede com uma cultura, uma linguagem e os sentidos da existência.

A literatura expressa a compreensão do mundo através dos sentidos, do subjetivismo e embora no realismo, que propõe uma leitura positivista, percebe-se que o objetivismo não tem primazia sobre o subjetivismo, nem o inverso (muito menos neste caso), porque o sujeito se funde na linguagem. A objetividade não subverte o sujeito. Na verdade, os dois coexistem perfeitamente. Verifica-se esta dualidade em Machado de Assis, Gustave Flaubert, Tolstói, Eça de Queiroz, para citar alguns. 

Conclui-se, deste modo, que embora o realismo aborde temas com um tratamento objetivo da realidade, há na literatura essa integração onde o sujeito é destacado pelo seu estar no mundo, como ser participante da história.
 

segunda-feira, julho 18, 2016

A identidade subjetiva, a alteridade e as diferenças

Na obra “A escada dos fundos da filosofia", do filósofo Wilhelm Weischedel, observa-se que o autor apresenta a ideia do outro como fundamental para se chegar a uma concepção dos direitos humanos. Ao pousar o olhar no tu, no outro, o homem incorpora o pensamento de que precisa do outro para sobreviver como ser humano, adquirindo assim um contexto de pluralismo das identidades. A isso chama-se alteridade, afastar-se do pensamento antigo da subjetividade, do eu, e amparar-se à ação pessoal no outro.

A concepção da filosofia ocidental sobre a identidade, a expressão subjetiva do eu, descuidado-se da importância do outro, revela uma falta de sentido, à proporção de que homem em grande parte de sua vida, depende do outro para sobreviver. Freud reiterava este desamparo radical que ocorre desde que o homem nasce, cuja sobrevida depende deste reconhecimento no outro e pelo outro. Tanto Freud, como Heidegger e outros tantos filósofos ratificam este conceito.

Pela definição de alteridade, derivada do latim, conclui-se que é o esforço de se colocar no lugar do outro (alter= outro), ou seja ter consciência da existência da outra pessoa e respeitá-la como é, e não de acordo com o que refletimos a partir de nossa vaidade, quando a julgamos apenas conforme a nossa compreensão do mundo.

Na maioria das vezes, construímos uma relação de identidade comum, o que nos torna semelhantes, de forma que que ouvimos o outro em todas as linguagens ou nos calamos, ratificando o que para nós individualmente é a verdade.

Alteridade é uma destas ideias que desafia o espírito humano em todas as áreas do conhecimento e da história, nas artes, na filosofia, na ciência e nas religiões. Isso ocorre à medida que o homem tem dificuldade em lidar com as diferenças, porque na verdade todos os seres humanos são diferentes em sua essência formadora. Entretanto, a humanidade desenvolveu a ideia de que todos devem ser iguais, com entendimentos únicos.

No entanto, é necessário distinguirmos o conceito de igualdade como a igualdade num espaço, ou seja na esfera pública, que segundo Jürgen Habermas, é apreciada como um valor, que define a nossa convivência com os demais.

Por outro lado, há outro conceito de igualdade, diversa deste primeiro, que remete à cultura da dificuldade de lidar com as diferenças, como por exemplo, no evento da Segunda Guerra Mundial, que produziu a morte de mais de 50 milhoes de pessoas, sendo cerca de 6 milhões de judeus e a estimativa de cerca de 10 milhões de ciganos, que foram exterminados nos campos de concentração.

Até hoje, a humanidade se pergunta como explicar esta cultura que pretendia ser um padrão para o mundo civilizado, cujos ideais da Revolução Francesa não impediram a geração do nazismo. Provavelmente, essa dificuldade em entender as diferenças seja consequência de que, em algum momento da nossa história, confundimos a igualdade segundo os dois conceitos distintos citados acima, ou seja, a igualdade como um espaço de convívio com as nossas diferenças confundida com a igualdade de reduzirmos o outro aquilo gostaríamos que ele fosse.

Conviver exige a visão de que cada um apresenta um pontencial para fazer coisas extraordinárias ou não, mas que são desconhecidas por nós. Do mesmo modo, é preciso compreender que a outra pessoa não se trata de um semelhante, ao ponto de construirmos a ideia de igualdade que tenta formatar o outro como desejaríamos. Na verdade, devemos entender que o outro é o próximo, não um igual no sentido do entendimento do mundo e das coisas, porque jamais podemos transformar as pessoas em espelhos que reflitam o que pensamos, segundo as nossas expectativas.

Infelizmente, conclui-se que nos dias atuais, o homem engendra verdadeiros monólogos, propondo ideias sem ouvir as do outro, porque acaba apenas olhando a si próprio. Ele acha que constrói a igualdade, mas na verdade, somos diferentes.

Bibliografia.

Weischedel, Wilhelm. A escada dos fundos da filosofia: a vida cotidiana do pensamento de 34 grandes filósofos. São Paulo: Raimundo Lulio, 2006.

Barros, A. P. A importância do conceito de esfera pública de Habermas para a análise da imprensa- uma revisão do tema. Universitas: Arquit. e Comun. Social, Brasília, v. 5n. 1/2, p. 23-34, jan./dez. 2008

Silva, Sérgio Luiz Pereira da. Sociedade da diferença: formac’ões identitárias, esfera pública e democracia na sociedade global. Online: http://www.academia.edu/3829490.

quinta-feira, junho 23, 2016

CONHECIMENTO E EXPERIÊNCIA

Kant, fundamentado em seu modelo do Apriorismo, afirma que todo conhecimento tem sua origem na experiência, mas não exclusivamente isso, porque a experiência somente é estabelecida através do conhecimento tácito, preliminar do homem, pelo menos no sentido mais raso do termo, destituído de qualquer investigação mais minuciosa.

Na verdade, segundo ele, o conhecimento se inicia com a experiência, mas esta sentença, de certa forma é arbitrária e não prova que o conhecimento em sua plenitude se deriva exclusivamente dela.

Se não vejamos, esta interpretação suscita uma série de questionamentos.

É aquela velha história do ovo e da galinha. Ainda existe esta controvérsia? Afinal após a descoberta do DNA, foi comprovado que o ovo veio antes da galinha, ou melhor, a pobre da galinha não passava de um ovo.

Esta seria sua primeira forma de vida. Afinal, a famigerada ave é uma espécie inglória, uma ave que não voa, não canta, tem um aspecto parvo e dorme em cima dum poleiro.

Mas deixemos estas minúcias para os especialistas. Não é nossa seara, aliás, a nossa nem tem nada a ver com Kant, pelo menos na precisão e rigor filosófico.

Tem a ver com a escrita e tudo que se relaciona ao ajuntamento de letrinhas.

O que nos interessa, enquanto especuladores da filosofia kantiana, refere-se à dúvida incessante que nos atinge na plenitude do nosso conhecimento (plenitude?), visto que o conhecimento adquirido se dá através da experiência de nossos erros e acertos, de nossas reivindicações junto à existência, cuja natureza transforma a cada segundo nossas vidas.

Por outro lado, é de bom alvitre admitir que uma dose extra de conhecimento é transmitida por nossos antepassados, apreendido através da herança genética de neurônios elitizados, robustos, cheirando a leite materno do bom.

Toda esta aplicação científica nos induz à tese anteriormente citada e massacrada, relativa à herança genética da galinha. Ela é o próprio ovo, não tem essa de ser galinha antes ou ovo depois ou vice-versa.

Nós somos a própria experiência de nossos pais, avós, tataravós portugueses e demais colonizadores, ou escravos.

Mas verdade seja dita, este mesmo conhecimento não se deu ao acaso. Também eles tiveram a aprendizagem através de experiências adquiridas.

Ou não?

sábado, junho 13, 2015

O PROFESSOR E O GOLPE

O professor de filosofia observava a pequena multidão que se aglomerava em frente à prefeitura, naquele 31 de março de 64. Percebeu que na sacada, reuniam-se muitos representantes do partido trabalhista. Caixas de som ligadas, microfone instalado e discursos inflamados se seguiam. Havia um burburinho grande e vários carros estacionados próximos à praça. Um dos motoristas ouvia atento, a rádio nacional. As ondas curtas vinham e iam, produzindo ruídos na compreensão das notícias. O professor afastou-se de um grupo mais animado e aproximou-se do motorista que ouvia rádio, percebendo a dificuldade com que tentava assimilar o que ouvia. Mesmo assim, tentou saber se o que tinha apreendido das conversas itinerantes tinham algum fundamento. Conversaram alguns minutos. O assunto não podia ser outro. Brasília estava em pé de guerra e as notícias assinalavam que João Goulart seria deposto. Um dos políticos falava no microfone a altos brados. Parecia antecipar-se aos acontecimentos.

O professor encostou-se no carro e observou o cenário que de repente se descontruía a sua frente. As pessoas se olhavam e discutiam com a convicção de que não entendiam o que acontecia. Estavam confusas, desarmadas. O pequeno grupo que estava na sacada começou a dispersar-se. Em menos de cinco minutos, as caixas de som sumiram e o microfone calou-se. As informações que surgiam eram desencontradas, inclusive falavam em um presumível triunvirato de poder no Brasil, com as três forças armadas. O professor logo lembrou de Roma, que no ano de 59 a.C, Gaius Julius César, Pompeu e Marco Lucínio Crasso se uniram para governar Roma. A história estaria dando marcha à ré? Em seguida, o professor tal como os demais retirou-se de frente do paço municipal, despedindo-se do motorista e agradecendo as informações. Voltou para as suas aulas, para o seu trabalho, sua família.

À noite, a lua nova dava seus ares de despedindo, dando lugar à minguante para os próximos céus nublados. O mundo amanheceu cinzento. A cidade parecia outra, na qual se temia conversar nas esquinas, falar em política ou articular a palavra golpe. Na rádio, Brizola resistia com a campanha da legalidade, mas logo percebeu que seria um terrível derramento de sangue e desistiu. Alguns dias mais tarde, cassaram o prefeito. A imprensa salientou, garbosa, que a prefeitura não estava acéfala, pois assumira o vice. Não por muito tempo, pois renunciara e logo assumiu um capitão reformado do exército. Havia um interventor. Começava a operação limpeza. Muitas pessoas foram presas, levadas para o navio Canopus, um presídio improvisado, aclamado pela imprensa da época como belonave, abarrotado de líderes vermelhos e agitadores. Professores eram retirados da sala de aula, pais de família investigados e estudantes perseguidos; isso acontecia a quem pensasse diferente da força reacionária que surgia enfurecida pelo Brasil, ou que aos olhos do poder, expressasse alguma faceta que os contrariasse. Muito simples: é contra o regime, é vermelho, comunista. Deve ser punido. E tudo acontecia com as bençãos de várias instituições, inclusive da Igreja Católica, com excessão de algumas dissidências que honravam as palavras de Cristo. O professor de filosofia era um dos conspiradores do bem comum. Tanto, que foi taxado de terrorista e mal exemplo aos alunos e à sociedade.

Em dado momento, foi interrogado em sua casa, com a intenção clara de o prenderem. Seria mais um preso político jogado naquele navio, para aprender a ser um homem que não envergonhasse a nação. Nem percebiam que a nação chorava constrangida e mal conceituada pelo mundo afora.

Naquele momento, reuniram a família, a mulher e os filhos, citando todos os seus crimes contra o País, inclusive rechaçando o seu conhecimento científico e acadêmico, que para eles não valia nada. Deram voz de prisão, fizeram-no juntar seus pertences, ante o olhar apavorado dos parentes. Examinaram minuciosamente todos os objetos para se certificarem que estavam de acordo com as normas da prisão que estavam efetuando. Apenas uma muda de roupa, um par de sapatos sem cadarços, um barbeador elétrico, alguns objetos de higiene. Nisso, perceberam que havia um livro entre os pertences. Um deles, mais afoito, aproximou-se, abriu-o e estupefato, perguntou: – O senhor pretende levar este livro? Não se da conta que é uma confissão de que não passa de um comunista?

O segundo, que parecia mais calmo, aproximou-se, pegou o livro e largou-o sobre a mesa. Deu um leve sorriso, de quem não entendeu nada, mas concordou com o colega. Ainda ouviu a pergunta irônica do primeiro: – O que tu acha Aristides? O homem não tá encrencado?

Aristides concordou com um aceno de cabeça.

O professor, apesar da aparência amarga, ainda esboçou um sorriso pelo absurdo da pergunta. Asseverou que levaria o livro. Por fim, perguntou o motivo por que tanto ódio contra Machado de Assis. Nisto, o soldado deu dois passos para trás, como se iniciasse uma marcha, na qual daria meia volta. Mas não o fez: estancou e segurou o livro, abrindo-o na página do título. Começou a lê-lo, a princípio devagar, depois, releu palavra por palavra, quase declamando e para cada uma dava uma explicação.

– Memórias póstumas … Memórias, coisa de comunista! tu não acha Aristides?

Silêncio absoluto. Ele proseguu: — de Brás, isso é coisa de petrobrás, eletrobrás, monopólio, tu não acha Aristides?

O outro esboçou a primeira reação, tentando articular uma frase, talvez lembrando que a briga da petrobrás vinha desde o Getúlio, onde o Jango, como ministro na época não aceitava a interferência americana, mas nada disse, foi interrompido pelo soldado leitor, que exclamou vitorioso, os olhos muito vermelhos, a voz embargada de forçada nacionalidade — Cubas! Aqui não tem mais conversa, amigo! Comunista puro! Vermelho de merda! Tu tá lendo um livro que fala em Cuba!

Aristides, desta vez sorriu, franco. O amigo sabia o que dizia!

O professor foi preso, torturado e mais tarde exilado no Chile. Se fosse vivo, talvez fizesse um estudo sociológico, antropológico ou seja lá que viés percorresse para encontrar algum motivo, por menor que fosse, de que Memórias póstumas de Brás Cuba é um livro comunista. Ou enlouquecesse de vez!

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