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sexta-feira, julho 14, 2017

Uma saída para o nunca

Todos corríamos pela sala, excitados. Ríamos sem sabermos bem o motivo, talvez impulsionado pela adrenalina de sermos felizes.

Quando a professora chegou, o burburinho custou a desfazer-se, até que nossas almas se acomodassem nos corpos agitados.

Ela parecia mais severa do que de costume, mas de uma seriedade estranha, como se alguma coisa terrível houvesse acontecido. Os cabelos escondidos atrás de um lenço colorido, preso ao pescoço. Os óculos pesados e embaçados, um certo vermelho nos olhos parecendo conjuntivite.

Mas não demos muita importância. Estávamos demasiadamente felizes para nos preocuparmos com a fisionomia de Dona Glória.

Ela permaneceu parada num canto da sala, talvez esperando o momento adquado para dar a notícia.

Mas que notícia seria tão importante a ponto de nos fazer cúmplices de sua angústia.

Alguém gritou do fundo da aula, quase em desafio, perguntando se não teríamos aula, ao que ela, talvez aproveitando a brecha, rapidamente, respondeu que ele estava certo. Confirmou que não haveria aula porque Dona Agripina, a benemérita e devotada às causas nobres da comunidade, havia morrido.

Na verdade, nem a conhecíamos muito bem. Ouvíamos falar dela, sem qualquer deferência que a qualificasse perante a outras pessoas consideradas importantes pela paróquia.

Estudar naquela escola religiosa era participar ativamente da comunidade, mas não para nós, encantados que estávamos com a vida que se desenrolava dentro de nossa imaginação, sem refletir o que significavam todos os demais acontecimentos que não se coadunavam com nossos objetivos ligados ao nosso prazer.

A turma silenciou, colaborando ingenuamente com a professora.

Aí se sucedeu uma etapa nova, principalmente em minha vida.

Organizou-se uma fila e nos dirigimos à igreja, que ficava ao lado do pátio da escola.

Já o silêncio dera lugar aos rumores, cada um falando o que lhe vinha à mente, que lhe aprouvesse, tentando atrasar ao máximo os pensamentos tristes.

Eu estava acabrunhado. Mexia no cabelo rebelde, que me caía aos olhos. Fungava e vez que outra, dava uns espirros que me arrepiavam os pelos ralos dos braços.

A professora pedia silêncio, compungida.

Entramos na igreja e ficamos meio esparsos, entre as pessoas, certamente parentes e outros amigos, que se acotovelavam na fila, entrando rápidos, querendo avistar o que eu insistia em não ver.

Fiquei quieto, entre os colegas, que conversavam, aproveitando a balbúrdia da entrada.

Dona Glória insistiu no silêncio, desta vez irritada.

Todos silenciavam, mas por pouco tempo.

Logo voltavam às conversas ordinárias, preocupados em que estavam com o que fariam após saírem da missa, como o filme da TV, o jogo de futebol na pracinha ou as corridas de bicicleta.

Para mim, não havia estas preocupações, pois tudo se nublava ante meus olhos, que somente os levantava por absoluta curiosidade.

E só avistava os pés de Dona Agripina, sapatos que brilhavam, voltados para a saída da igreja, dividindo o corredor.

A missa parecia interminável e eu não conseguia afastar o olhar daqueles sapatos bem lustrados, enfeitados por rendas, sinalizando a saída que parecia longa demais, quase eterna. Pés que ficavam na minha memória, que se alternavam em meus pensamentos angustiados, que abrangiam um sentimento mais profundo, envoltos que estavam em aflição e medo.

Não entendia muito bem o que acontecia comigo, mas aqueles símbolos mexiam com minha estabilidade emocional.

A tampa do caixão, encostada na parede, com uma cruz dourada em alto relevo, as mulheres de preto fazendo coros de choro intermitente, o cheiro das velas, os paramentos fúnebres, as frases diferentes do ritual, onde se falava constantemente em descanso eterno.

E os pés de Dona Agripina, que apontavam inertes, fortes, mensageiros de uma saída para o nunca, um lugar que eu teimava em desconhecer.

Acho que naquele dia, eu tive a consciência da morte.

O dia que se exibia ensolarado lá fora, lançando rastros de luzes pelos vitrais coloridos, me parecia nublado e triste.

O jogo com os amigos, o passeio de bicicleta, a chegada em casa, numa rotina que agora perdera subitamente a graça, era um presságio de que as coisas mudaram e que eu, aos sete anos, acordara para a vida.

Ou para a morte.

Os pés de Dona Agripina foram os culpados.

sábado, setembro 03, 2016

Sabrina

Sabrina desligou a tv analógica e ouviu ainda um ruído, que demorava a sumir. Talvez a tv estivesse úmida, pensou. Sempre que acontece uma chuva forte, tudo fica meio atrapalhado. Houve dias em que até o liquidificador parou de funcionar. Quando compraria uma tv digital? Era coisa que não podia pensar, neste momento.

Os meninos na escola, indo a pé, caminhando mais de 5 km e ela preocupada com a televisão. Mas deixa pra lá, melhor procurar os tais panos de prato, que passou o dia atabalhoada e os perdeu. Sabe que os guardou, tem certeza, mas onde estarão?

Precisava sair antes que os meninos voltassem para vendê-los no armazém de Seu Oliveira. Lá costumava deixá-los até que alguém os comprasse. Às vezes, ninguém adquiria nada, mas na feira sempre dava certo. Na feira era venda segura. Ou na igreja, mas na igreja não gostava de vender não. O padre pedia silêncio, porque o mulherio fazia um burburinho na porta da igreja até começar a missa. Ele andou proibindo que ela vendesse, até que se arrependeu e liberou novamente.

Mas e os meninos que não chegam? E os guardanapos que não aparecem? Guardanapos, panos de prato, toalhas, tudo bem bordado em pontos de cruz. Eram bonitos, com estampas que tirava das revistas ou ela mesma desenhava. Tinha esse atributo desde criança. Não podia desperdiçar. Procurou os óculos de perto pela mesa da cozinha, pois achava que os tinha deixado lá, quando vira a hora no celular. Estava assim absorvida, procurando-os, quando a porta se abriu de sopetão. Olhou assustada para a porta da cozinha.

Um homem entrou, olhos ensanguentados, boca entreaberta, uma barba mal feita e uns riscos no rosto, que mais pareciam cicatrizes. Não teve coragem de falar, mas ele se dirigiu a ela com muita aflição, quase desespero.

— Não se mexe moça, nao vou fazer nada com você, mas me deixe entrar e fique quieta. Vou me esconder no quarto. Quando a polícia chegar, você nao me viu. Se não te mato, ta ouvindo?

Sabrina ficou paralisada. Não sabia o que fazer. Concordava com um aceno de cabeça. Quando o homem passou por ela, sentiu uma náusea pelo odor que despertava, um misto de sujeira misturada com sangue. Percebeu que a mão sangrava, bem a mão que segurava a arma. Ainda a encostou no seu pescoço e repetiu: — Tá ouvindo?

Ficaria no seu quarto o dia todo? E se os meninos voltassem? E se o marido aparecesse de uma hora pra outra? Sabrina começou a chorar. Puxou a toalha da mesa e limpou os olhos e assoou com energia o nariz. Não sabia se arrastava pé. Ele podia voltar a qualquer momento.

Nisso, ouviu o barulho de um carro. Deu um passo e espiou pela janela. Um giroflex ligado e homens da polícia desciam correndo do camburão em direção a sua casa. Entraram de arma em punho. Gritaram que não se mexesse.

Ela queria falar, dizer que o homem estava lá dentro. Queria fugir, pedir socorro, ajuda, mas o que fez foi pegar a faca de pão que estava sobre a mesa, empunhou-a na direção do quarto para avisar em silêncio de que o bandido estava no quarto. Mas um tiro a silenciou. O sangue jorrou da boca, o corpo tonteou e Sabrina caiu sobre a mesa enfiando a cabeça na toalha de crochê.

A polícia então examinou o ambiente, verificou que a mulher estava morta e um deles fez sinal para que fossem embora. Não havia nada a fazer ali. Correram para o carro e saíram em disparada na investigação. Atravessaram cercas de arame farpado. Tudo observado pelo homem que voltava do quarto.

quinta-feira, junho 16, 2016

A ARANHA

A crônica "A aranha" está na antologia "Outras águas" e foi vencedora na categoria, juntamente com a crônica "A palestra" publicada neste blog.


Fonte da ilustração: Westermann, Johannes do site https://pixabay.com/pt/users/Westi2605-2708584/

Quando acordei, pensei que o mundo houvesse acabado, tão grande a agonia que sentia. Coração aos saltos, lábios trêmulos, língua paralisada. Estaria eu no fim? De repente, um assobio que se finava ao longe indicava drasticamente que estava vivo. Não tão desperto, como imaginava.

Sentei-me devagar, com dificuldade, procurando os óculos sobre o baú, entre frascos de comprimidos, colírios e livros. Passei a mão, ainda perturbado, empurrando tudo que se opunha ao meu gesto. Até que o estalido no chão obrigou-me a dobrar a coluna para encontrar o objeto de minha dependência.

Deitei-me de bruços na cama, enfiei um pé entre os cobertores ainda quentes e espiei pelo lado oposto onde estava deitado.

Mergulhei a mão, enveredei por cantos obscuros do parquê e embaracei os dedos em teias de aranhas.

Tirei a mão irritado, sem ter atingido o objetivo, mas neste gesto, bati em alguma coisa metálica.

Eram eles que se instalaram a poucos centímetros de meu caminho de busca.

Organizei novamente a expedição e os puxei resoluto.

Quando os engatei no nariz, olhei o mundo num relance, tendo agora certeza absoluta de que ainda estava vivo.

Um pesadelo resgatava um mundo oculto, funesto, cheio de pequenas obsessões não ditas, doses de concupiscência não manifestada, traços de egoísmo não declarados e desejos jamais confessados.

Por isso, esta aflição, este jeito de enfrentar a realidade e a fantasia, colocando-as em mundos opostos, como fazemos no dia a dia, mas que por um pequeno espaço de tempo, ao acordarmos, pendemos mais para o lado do sonho, que talvez seja muito mais real do que imaginamos.

E ao nos darmos conta, caímos no mundo que pensamos como único, verdadeiro e concreto.

Em vista disso, essa dor nas costas, este resfolegar de mãos suadas, torcendo uma na outra, como querendo limpar a sujeira do subconsciente.

Agora, tento levantar-me, olhando de frente, ou de soslaio, se for sincero, o meu mundo insípido, neste quarto sujo de teias de aranha.

E vejo-as passear pelo piso, fazendo tiro-ao-alvo de suas redes, prendendo-as aos pés da cama, esperando insetos incautos que se atrevam a bisbilhotar suas vidas ou mesmo integrar o mesmo espaço que tomam como direito. O meu espaço.

Se pudesse, as eliminaria de minha vida, tal como as teias de aranha que ficam em minha mente nebulosa, assustada pelos direitos que me dou a ser tão lascivo, enquanto durmo, tão ousado em meus devaneios, tão despojado de qualquer sentimento de culpa.

Por que agora me sinto tão culpado, examinando seus passos, seus caminhos subterrâneos, suas gosmas viscosas que grudam a qualquer estrutura, menos a suas patas.

Sinto-me assim, grudado ao meu mundo real, tão longe daquele idealizado, no qual o destino me atinge com suas tramas, como aranhas gigantes, largando sobre mim as teias que me deixam alienado, preso ao chão rasteiro de minhas dúvidas e temores, enquanto suas patas saltam livres e prosseguem a sua jornada.

Se pudesse ao menos, me desgrudar de suas teias, e tramas tão fechadas que me prendem como mosca tonta na busca frenética do alimento.

Se pudesse alçar vôos mais altos, sem preocupar-me com a queda ou a apreensão dos cuidados, sem a censura dos descaminhos.

Ah, se pudesse provar deste alimento que a aranha me induz para caçar-me, me deixa livre para decidir, sem que possa saborear a fruta que escolhi e se o faço, me lança à rede implacável, me prende na gosma e me tolhe, de joelhos a bendizer a morte que vaticina.

Tenho medo da aranha, mas muito mais de minhas escolhas.

segunda-feira, maio 30, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 1º CAPÍTULO

Talvez não fosse o momento adequado para Rosa participar da reunião pela formação do novo coral da igreja. Estava decepcionada com o andamento das coisas. Nem mesmo Pe. João parecia muito entusiasmado com a ideia. Estavam tão acostumados com os velhos munícipes que a chegada do pessoal da nova hidrelétrica parecia um tanto incomum. Eram pessoas diferentes, tinham hábitos estranhos que não condiziam com os aceitos pela comunidade. Na verdade, a maestrina Rosa sabia que se tratava de puro preconceito.

Aquela cidade pequena e conservadora não aceitava nada que destoasse de seus princípios. Uma coisa, porém a deixava feliz: a presença de Raul, um membro não participante dos cultos religiosos, mas que se tornava a cada dia mais integrado ao grupo. Era simpático, sempre pronto a apreender os acordes novos, as diferentes nuances das músicas e aceitar presumíveis críticas. Era, além de tudo, muito entusiasmado com a nova tarefa que abraçara.

Rosa tinha certa atração por ele. Não propriamente uma atração física, mas um afeto que a despertava de algum modo mais vibrante do que com os demais. Nem sabia muito bem o motivo, talvez pela maneira carente com que se comportava, sentindo-se sempre sozinho desde que a mulher o abandonara há dois anos. Provavelmente suas manifestações fossem muito sinceras, o que chamava a atenção de Rosa e de alguns outros representantes do coral.

Havia outros três novos integrantes, de outras paragens, que não eram muito bem aceitos. Rosa pensava o quanto os seus colegas de coral eram cabeça dura. Afinal, preocupavam-se com a falta de novos participantes no grupo e agora que surgiram interessados, alguns faziam cara feia. De todo modo, tomaria uma atitude. Marcaria uma reunião para esta noite e exigiria a presença de todos.

Deixou o hotel onde trabalhava por longos 15 anos, comprou ração para o seu velho labrador que a acompanhava há tanto tempo, passou pela biblioteca pública para tirar cópias de uns jornais históricos da cidade, pois fazia uma pesquisa da música através do tempo, na sua cidade natal e voltava para casa.

Já passavam das sete da noite, estava esfriando e a escuridão tomava conta da rua. As árvores formavam figuras estranhas enfeitando as calçadas. De repente, aquele caminho que costumava fazer durante tantos anos, parecia mais longo e assustador. Sentia um certo temor como se alguém estivesse à espreita, esperando-a para atacá-la. Sabia que era só uma impressão absurda, mas mesmo com esta certeza, sentia-se insegura. Por sorte, não estava tão longe de casa e quando se deu conta, já podia atravessar a rua e entrar rapidamente no velho portão de ferro.

Percorreu a calçada estreita de lajotas irregulares, abriu a porta e olhou em torno. Nada havia de estranho, a não ser a mesma decoração despojada de quadros de pintores locais e a sala com móveis tão gastos que pareciam do século passado. Uma cortina pesada pendia do teto com um pé direito exagerado, denotando a arquitetura antiga da casa. A janela de postigos de madeira, pintados de verde e as vidraças coloridas compunham o ambiente um pouco descompassado. No canto da sala, uma mesa de mosaico. Nada mais a não ser um piano antigo e uma estante com livros, estranhamente fora do lugar. Não parecia uma sala de visitas, talvez uma biblioteca ou um gabinete de música ou de estudos.

Talvez fosse tudo isso. Ligou o interruptor, deu alguns passos atravessando outra pequena sala, com uma TV e algumas poltronas, quase vazia, a não ser um porta-revistas e um velho abajur perto da poltrona. Na poltrona, um notebook preso a uma tomada na parede recarregando a bateria. Numa mesinha de aproximação, os óculos esquecidos, talvez à espera de alguma leitura ou da próxima pesquisa no controle remoto. Olhou em torno, como se quisesse se certificar que tudo estava em ordem. Rosa era meticulosa, burocrática. Deixou uma pasta com partituras sobre a mesinha. Afastou-se de vez em direção à cozinha. Espiou pela janela que dava na pequena área e teve um sobressalto, com a sensação de que seu cão estivesse morto. Abriu a porta e correu ao seu encontro. O animal respirava, mas estava num sono profundo, como se houvesse tomado um sedativo potente. Chamou-o várias vezes, levantou com esforço a cabeça pesada do animal, mas este abria os olhos enviesados e voltava a dormir.

Rosa estremeceu. Seu cão de guarda, seu amigo de todas as horas estaria morrendo? Havia sido envenenado, talvez.

Então, correu até o armário da lavanderia, retirou uma lanterna, para examiná-lo melhor. Trouxe consigo também o celular, chamaria o veterinário imediatamente, descreveria o que estava acontecendo com o cachorro.

Na verdade, o que diria? Que ele estava dormindo? Não havia sinais de que estava doente.

Mas estava muito estranha esta dormideira toda. Um animal tão ágil, principalmente na sua presença e agora, ele nem se animava a mexer a cabeça em sua direção. O máximo que fazia era olhá-la de esgueiro e cerrar imediatamente os olhos, como se não conseguisse mantê-los abertos. Estava ali, caído, estático. Quando tentou ligar, um suor frio invadiu sua testa e um mal-estar geral a fez cambalear, quase desequilibrando-se do modo de como estava agachada junto ao animal. De repente suas costas pesavam toneladas e não conseguia se mover, paralisada. Temia voltar-se na direção da voz que soava ao seu lado, mas sabia que a reconhecia.

O vulto se esgueirava no outro lado da área, próximo à janela que dava para o quarto.

––Rosa, por favor...

Com muito esforço, virou-se, empunhando com a mão trêmula a lanterna na direção da pessoa que estava em sua casa. Num suspiro de alívio e pânico ao mesmo tempo, numa confusão de sentimentos, exclamou, apavorada:

–– Raul, o que está fazendo aqui? Como entrou na minha casa?

Raul esfregou os olhos, sentido o peso da luz. Pediu desculpas, afastou-se um pouco apoiando-se na parede oposta. Depois, aproximou-se e agachou-se ao seu lado, acariciando o cão.

–– Me diga, como se chama?

–– Nada original, D’tartagham, um dos três mosqueteiros.

Raul sorriu e continuou afagando o animal. Por fim, comentou:

–– Ele era apenas um aspirante. Não chegou a mosqueteiro, mas cresceu tanto na trama que Alexandre Dumas o promoveu aos poucos, ao almejado posto de mosqueteiro.

––Você conhece tudo dos três mosqueteiros?

––Não, imagina, quem sou eu pra ter tanto conhecimento. Só que gosto de investigar algumas coisas que me agradam. Sabia que a missão de D’artagham era apenas introduzir os demais na história? Ele não passava de um personagem secundário. Mas depois, teve muito realce.

Rosa levantou-se ficando ao lado do animal, como se o quisesse protegê-lo. Apesar da conversa um tanto absurda, manteve-se razoavelmente calma, controlando o nervosismo em que se encontrava. Queria explicações. Queria saber como o colega entrou na sua casa. Ele a observava, ainda sorrindo, levantando a cabeça com certo esforço. Em seguida, completa:

–– Ah, desculpe, minha amiga. Você nem vai acreditar. Acho que eu dei uma pirada legal.

––Por favor, Raul, seja mais explícito. Eu não estou entendendo nada. Além disso, estou muito preocupada com o meu cachorro. Olha o estado em que ele se encontra.

–– Não se preocupe, não é nada.

––Como não é nada? D`artagham quase não se mexe. Ele está estático, atordoado, parece fora do mundo.

–– É verdade.

— Mas então?

––Vamos começar do início.

Rosa cruza os braços, num gesto forçado, como pronta para repreendê-lo.

––Estou esperando.

Ele parece encabulado, olhando-a meio por baixo dos olhos.

Rosa desconfia, no entanto, que tudo não passa de encenação.

Raul prossegue:

––Bem, Rosa, sei que agi mal e espero sinceramente, que você me desculpe. Afinal de contas, invadi a sua casa. Mas é que eu estava num mato sem cachorro, desculpe o trocadilho. Eu estava esperando você, estou muito chateado com algumas coisas que estão acontecendo no nosso grupo, ouvi algumas coisas que não gostei, me senti ofendido, enfim. Bom, como disse, queria muito falar com você.

–– Está bem, por isso entrou aqui, não sei como. Mas depois me explica. Quero dar um jeito no D`artagham, preciso chamar o veterinário.

––Eu acho que não é preciso.

–– Por que você diz isso?

–– É o que eu ia explicar a você. Bom, resumindo o papo, eu estava aqui fumando um baseado. Acho que ele … bom ele fumou junto, só isso. E até acabou mastigando alguma bagana, sabe, deixei cair e ele...

–– O que você está dizendo? Entrou na minha casa para fumar maconha? E ainda diz que drogou o meu cachorro?

–– Não é bem assim, fique calma. Eu acho que ele estava muito perto e adormeceu, entende? Alguns cães ficam intoxicados. Outros, apenas meio lesados, entende? Então, não é pra se preocupar, daqui a pouco, ele fica bem.

Rosa o encarava, indignada. Não sabia se pelo estado do cachorro ou pela invasão em sua casa, com o agravo dele estar usando drogas. Ou tudo junto.

–– Por favor, Raul, saia daqui.

––Mas você não vai ouvir o que me aconteceu?

––Não. Outro dia, você me conta. Vá embora.

––Então, está bem. Tome a chave.

–– Como você tinha a minha chave?

––É o que queria explicar-lhe.

–– Você tem muito a me explicar realmente. Mas amanhã, na reunião, nós conversamos. Por favor, saia daqui.

Pegou a chave e seguiu-o até a porta da frente. Viu-o afastar-se na luz do poste até sumir totalmente na noite escura. Rosa estava confusa e irritada. Afinal o que teria acontecido para Raul agir daquela maneira? E esta história de maconha? Se ele era usuário, como nunca havia percebido? Se bem, que não se percebe claramente estas coisas, a não ser que a pessoa esteja sob o efeito da droga. E ela não tinha nenhuma experiência no assunto. Voltou para dentro, ensimesmada e com muita raiva pelo ocorrido. Tentou ligar para o veterinário, mas não conseguiu encontrá-lo. O celular sempre com a monótona mensagem de fora de área. Certamente, ele estava viajando ou metido em uma de suas reuniões, já que costumava se afastar por vários dias da cidade. Diziam as más línguas, que é engajado num grupo de ultraconservadores, que pretende dar um fim aos avanços sociais da humanidade, pelo menos nos representantes de sua cidade. Falácias do povo. O problema é que não conseguia contatá-lo àquela hora.

Rosa lembrou de Ricardo, o jovem médico que chegara à cidade e que estava hospedado no hotel em que trabalhava. Mas chamar um médico para tratar do seu cão, seria uma medida meio absurda. Certamente, ele se recusaria.

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