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Sabrina

Sabrina desligou a tv analógica e ouviu ainda um ruído, que demorava a sumir. Talvez a tv estivesse úmida, pensou. Sempre que acontece uma chuva forte, tudo fica meio atrapalhado. Houve dias em que até o liquidificador parou de funcionar. Quando compraria uma tv digital? Era coisa que não podia pensar, neste momento.

Os meninos na escola, indo a pé, caminhando mais de 5 km e ela preocupada com a televisão. Mas deixa pra lá, melhor procurar os tais panos de prato, que passou o dia atabalhoada e os perdeu. Sabe que os guardou, tem certeza, mas onde estarão?

Precisava sair antes que os meninos voltassem para vendê-los no armazém de Seu Oliveira. Lá costumava deixá-los até que alguém os comprasse. Às vezes, ninguém adquiria nada, mas na feira sempre dava certo. Na feira era venda segura. Ou na igreja, mas na igreja não gostava de vender não. O padre pedia silêncio, porque o mulherio fazia um burburinho na porta da igreja até começar a missa. Ele andou proibindo que ela vendesse, até que se arrependeu e liberou novamente.

Mas e os meninos que não chegam? E os guardanapos que não aparecem? Guardanapos, panos de prato, toalhas, tudo bem bordado em pontos de cruz. Eram bonitos, com estampas que tirava das revistas ou ela mesma desenhava. Tinha esse atributo desde criança. Não podia desperdiçar. Procurou os óculos de perto pela mesa da cozinha, pois achava que os tinha deixado lá, quando vira a hora no celular. Estava assim absorvida, procurando-os, quando a porta se abriu de sopetão. Olhou assustada para a porta da cozinha.

Um homem entrou, olhos ensanguentados, boca entreaberta, uma barba mal feita e uns riscos no rosto, que mais pareciam cicatrizes. Não teve coragem de falar, mas ele se dirigiu a ela com muita aflição, quase desespero.

— Não se mexe moça, nao vou fazer nada com você, mas me deixe entrar e fique quieta. Vou me esconder no quarto. Quando a polícia chegar, você nao me viu. Se não te mato, ta ouvindo?

Sabrina ficou paralisada. Não sabia o que fazer. Concordava com um aceno de cabeça. Quando o homem passou por ela, sentiu uma náusea pelo odor que despertava, um misto de sujeira misturada com sangue. Percebeu que a mão sangrava, bem a mão que segurava a arma. Ainda a encostou no seu pescoço e repetiu: — Tá ouvindo?

Ficaria no seu quarto o dia todo? E se os meninos voltassem? E se o marido aparecesse de uma hora pra outra? Sabrina começou a chorar. Puxou a toalha da mesa e limpou os olhos e assoou com energia o nariz. Não sabia se arrastava pé. Ele podia voltar a qualquer momento.

Nisso, ouviu o barulho de um carro. Deu um passo e espiou pela janela. Um giroflex ligado e homens da polícia desciam correndo do camburão em direção a sua casa. Entraram de arma em punho. Gritaram que não se mexesse.

Ela queria falar, dizer que o homem estava lá dentro. Queria fugir, pedir socorro, ajuda, mas o que fez foi pegar a faca de pão que estava sobre a mesa, empunhou-a na direção do quarto para avisar em silêncio de que o bandido estava no quarto. Mas um tiro a silenciou. O sangue jorrou da boca, o corpo tonteou e Sabrina caiu sobre a mesa enfiando a cabeça na toalha de crochê.

A polícia então examinou o ambiente, verificou que a mulher estava morta e um deles fez sinal para que fossem embora. Não havia nada a fazer ali. Correram para o carro e saíram em disparada na investigação. Atravessaram cercas de arame farpado. Tudo observado pelo homem que voltava do quarto.

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