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terça-feira, agosto 22, 2017

Uma história em comum

Ele fechou a porta devagarinho e ficou se perguntando se era capaz. Capaz de olhar aquele quadro degradante. Capaz de perguntar-se a si mesmo se havia tido uma história em comum. Se tomara café junto. Se partilhara dos mesmos sonhos, mesmas esperanças, mesmas expectativas.

Lágrimas corriam involuntárias. Mas não tinha aquele sofrimento todo. Uma náusea incólume, que inundava a alma, o espírito. Vontade de sair, de respirar, de tomar ar puro.

Temia abrir a porta e presenciar a cena, ver o corpo estendido no chão, a garrafa de bebida ao lado, espargindo-se entre os ladrilhos brilhantes, límpidos, impolutos. Os dedos longos, frios, finos, anéis, comprimidos, cenário grotesco, comum, teatro barato. Pena. Sentia pena dela. Pena pela fragilidade, penúria.

Ainda ontem, haviam se encantado pelas calçadas, avistado luzes novas no horizonte, ventos favoráveis que sopravam. Deram esmola a pedintes, abrigo a velhos desamparados. Sorriram felizes com a desgraça alheia. Estavam quase felizes. Burocráticos, fiéis ao senso comum. Ao dar para receber. Aparências. Caminhar juntos, fingir que pensavam. Fingir que sentiam-se próximos, vivos. Talvez estivessem mais mortos do que ela, hoje.

Agora aquele vento frio da rua, o barulho das buzinas, o zunzum intermitente do trânsito, as vozes apressadas soando aos ouvidos. Crianças que correm, patins na calçada, skates, bicicletas. Sorrisos francos. Felizes. Por que se sentir assim, alijado desta felicidade? Arremessado ao mundo tenebroso, fúnebre, espectador do outro: cheio de luzes, lá fora, com risos, mãos carinhosas, que se enlaçam, bocas que se tocam sorrateiras, brincando, balbuciando palavras doces, gestos leves e brejeiros. Um mundo distante que avista pela janela.

Por que ficar tão longe, inatingível. Atingido pela dor, pela saudade do que já foi, do que passou ou do que nunca viveu.

Entrou num bar, pediu café, vasculhou no celular pela enésima vez o e-mail. Tomou o café demorado, lento, mãos presas na xícara, como garras, lábios trêmulos, a barba crescida coçando no queixo. Acendeu um cigarro.

De repente, um silêncio quase absoluto no recinto. As bocas pararam devagar, como se mastigassem mingau em câmera lenta. Olhares surpresos, assustados.

Ele, gesto louco que não fazia há tanto tempo. Guardara a carteira para uma ocasião como esta. Sabia disto. Cigarro amassado no canto dos lábios.

Uma batidinha no balcão. Cinzeiro de vidro. Coisa antiga. Objeto obsoleto. Incrível que ainda tivessem ali, naquele bar de quase não fumantes. Olhares de censura. Acenos de cabeça, quase pedidos, súplicas para não cometer aquela loucura.

Acuado, dirigiu-se à porta e tragou mais uma vez. Retornou ao balcão e apagou o cigarro.

Em seguida, levaram o cinzeiro, aliviados. Alguns sorriram, complacentes. Outros voltaram ao assunto usual. Conversas de costume: política, futebol, mulheres, trabalho, não necessariamente nesta ordem. Capricharam nos verbos, nos gestos, na fala alterada.

O barulho do bar ficou ensurdecedor. Voltou ao normal. Doíam-lhe os ouvidos. Ouvia, naquela barafunda toda, a voz da mulher, também pedindo, suplicando por uma nova chance.

Oportunidade única para exercer a bondade.

Cansara de ser bom, de ver os dois lados da moeda, de discutir todos os aspectos das situações e avaliar todos os pontos de vista.

Queria ser egoísta, autoritário, arrogante, malicioso e mau, infinitamente mau, como todos os outros. Como ela. Por isso saiu do bar e não a ouviu mais.

Mas o vento fustigava-lhe o rosto e trazia com ele vozes absurdas, lembranças tão vívidas que temia um retorno ao passado. Um passado que enterrara para sempre.

Via-se sentado, em frente à máquina de escrever, dedos tiritando de frio, noite de inverno e medo. Treze anos de vida e uma carga emocional quase adulta. Via a mãe na janela do quarto, que desembocava no pátio, caminhando pelas vielas do jardim, pesquisando ervas de chá, remédios que curassem a eterna dor da alma, da solidão. Ele batendo os dedos, cada vez mais forte, para não lhe ouvir os passos. Não sentir as mãos pousadas no ombro, pedindo que contasse as noticias do dia, as histórias que escrevia, os trabalhos de aula e aquele cheiro de uísque barato inundando o ambiente. Tinha náusea e sentimento de culpa por não compreender tão grande dor. De ter ódio do pai, de sabê-lo distante, esquecido deles.

Aquele ritual se repetia e as histórias se acumulavam. Muitas das que contava nada tinha a ver com o que escrevia. Ele mesmo as inventava, na hora e punha um ponto final trágico para inspirar suspiros.

A mãe nem ouvia, embalada que estava no teor de suas próprias alucinações. Suas histórias eram bem mais sinistras do que as dele. Um dia a viu morta, inchada, olhos esbugalhados, congestionados de álcool.

Quase a ouvia chamando, pedindo socorro, tal como a mulher o fizera, mas batia tão forte na máquina que não a escutara.

Estava assim, absorto, num passado morto e enterrado, que nem percebera o quanto tinha se afastado de casa.

A noite já chegava depressa. Ouvia o burburinho da volta, os ônibus superlotados, filas imensas nas estações do metrô. Pessoas sozinhas, sem mais aquele brilho de felicidade. Tão solitárias e tristes quanto ele. Apenas sem a tragédia imediata. Somente a tragédia de suas vidas vazias.

Então lembrou em voltar para casa, executar os trâmites necessários, chamar um médico, talvez até a polícia.

Voltou ansioso, coração aos saltos.

Avistou o prédio em polvorosa. Comentários à solta. Porteiros, faxineiras, condôminos conversando, quase aos gritos. Um corpo enrolado em lençóis, numa maca, saindo do elevador. Alguém chamou a polícia.

Eles estavam ali, à espera, à espreita. Que queriam? Correu para a cena, ingressou no cenário e sentiu o feixe de luzes dos refletores na cara.

Uma voz firme, um gesto autoritário e a pergunta fatal:

— É o marido?

Vontade de fugir, afastar-se dali e esconder-se do drama. Argumentar qualquer coisa, fingir desconhecimento.

Era tarde. As mãos se juntaram, o metal brilhante doía, latejavam as veias dos pulsos. E a voz soava mais firme, mais forte:

— Está preso.

sexta-feira, agosto 04, 2017

De cara com o monstro

O monstro se aproximava devagar. Ninguém sabia de onde viera e qual o seu objetivo. Todavia era um monstro singular. Um monstro que se moldava de acordo com nossos desejos ou esperanças, às vezes tentativas de mudança.

Certa vez eu caminhava pela avenida que atravessava a cidade de ponta a ponta, o trânsito já diminuira e a iluminação começava a ficar precária, conforme eu me afastava do centro. Sabia que mais cedo ou mais tarde, eu o encontraria por ali. Diziam que ele costumava ficar naquelas redondezas do grande canalete que dividia a cidade. Talvez entrasse pelas águas turvas e se lambuzasse na sujeira que por dias alimentava aquela travessia aquática. Eu nem tinha certeza se o canalete tinha como objetivo livrar a cidade das enchentes, porque o povo costumava jogar entulhos, garrafas plásticas e além da poluição gerada, por certo um daqueles objetos iria parar numa saída de água obstruindo-a e facilitando a inundação.

Fiquei assim pensativo e decidi sentar num dos bancos, que margeavam os muros do canalete. O monstro daqui a pouco surgiria, mas eu não o temia. Nunca o tinha visto, porém tinha comigo que aquele monstro tão questionado por sua conduta perigosa, não passava de um monstrinho assustado por toda agonia aquática e seu poder de destruição. No fundo, ele tentava apavorar os homens para esquecer o próprio medo.

Mas estava ali, esperando-o e fiquei por horas a fio, nao sei quanto tempo. A lua desapareceu, dando lugar a nuvens escuras e eu temia que chovesse ou ocorresse uma ventania fora de hora, fazendo redemoinhos de folhas e poeira.

Um homem passou correndo por mim, usava boné, moleton escuro e bermudas. Não vi o seu rosto, mas percebi que fugia de alguma coisa ou de alguém. Talvez do monstro. Não por muito tempo, apenas o suficiente para voltar com uma fisionomia diferente, como se fosse outra pessoa. Parecia transtornado e demasiado eufórico, a ponto de gritar coisas sem nexo e me encarar com olhos sanguinolentos, embora revelasse uma total ausência de minha figura. Atingiu com pontapés uma coluna que projetava alguns degraus para o fundo do canal, descendo-os em seguida e ali mesmo aliviou-se, enquanto simulava articular um funk que somente ele entendia. Como chegou, desapareceu sem deixar vestígios.

Continuei sentado, procurando mensagens no celular, mas logo o guardei no bolso, pois não havia nada de novo, a não ser as mesmas publicações das redes sociais, as eternas correntes religiosas do whatsapp e os incontroláveis votos de boa noite. Fiquei ainda mais pensativo, imaginando o monstro e suas ações. Certamente, se encontrasse aquele rapaz, o golpearia com suas patas enormes e após arremessá-lo ao chão, montaria no seu corpo frágil e enfiaria as garras na garganta até sufocá-lo com o próprio sangue em golfadas.

Estava tão absorto que nem percebi que uma motocicleta se aproximava, subindo sobre a calçada e estacionando num rodopio, em frente ao banco em que eu estava. Aquele banco de pedra já me doía a bunda e eu havia decidido afastar-me de vez daquele cenário vazio, quase absurdo, numa noite de outono. Entretanto, um dos motoqueiros, rápido como um flecha, deu um salto da motocicleta e espetou uma faca em minha garganta, de tal modo que eu sentia a ponta quase rasgando a pele, tendo a sensação de que ele a cortaria. A primeira ameaça, a primeira exigência, o grito de guerra, enquanto o outro puxou o celular do bolso, bem como a carteira, examinado algumas notas que ainda sobraram após a compra de uma cerveja. Logo em seguida, o da faca, golpeou-me a cabeça com o cotovelo e deu-me outro soco para arrematar a ação, quebrando-me os dentes, produzindo um jato de sangue que me escorria da boca, enquanto eles pulavam na moto e desapareciam na névoa que se antecipava.

Fiquei ali, patético e humilhado, sem tomar qualquer atitude. Talvez devesse chamar a polícia ou queixar-me às autoridades competentes o fato de um cidadão de bem ser impedido de ficar observando a noite, cuja claridade se esvaía com o aumento da neblina. Neste ínterim, percebi a volta do rapaz eufórico, embora agora parecesse um tanto depressivo. Vinha acompanhado de um grupo de maltrapilhos, como se estivesse cercado por zumbis, cujas chamas iluminavam os olhos sem vida e a fumaça dos cachimbos se agregasse à cerração que ficava cada vez mais densa. Alguns carros paravam próximos ao grupo, dos quais desciam vários jovens. Alguns subiam nos muros do canalete e caminhavam sobre ele, bamboleando os corpos, numa ousadia que os transformava em verdadeiros equilibristas. Davam gritos, risadas e berravam palavras de ordem, que mais pareciam um amontoado de palavrões.

Eu os observava desiludido. As costas doíam, a cabeça, os ombros, todo o meu corpo e meus lábios cortados sangravam. Eles prosseguiam com a tépida chama dos cachimbos, fumando o crack e manifestando uma euforia semelhante ao do rapaz que urinara no canalete, embora bem mais agressivos. Eu esticava as pernas, na tentativa de levantar-me, quando outra motocicleta apareceu, descendo dois jovens, escondidos em capuzes escuros. Senti um arrepio, temeroso de ser agredido novamente ou talvez morto, caso fossem outros assaltantes. Entretanto, pude perceber que se tratava dos encarregados da venda das drogas. Um dos rapazes que descera do carro, puxou a carteira do bolso e pagou a compra, como se estivesse procendendo uma simples operação financeira.

Em dado momento, aproximaram-se de mim, oferecendo-me as drogas, que pareciam ser gratuítas naquele momento. Eu poderia pagar num outro dia qualquer. Esforcei-me em argumentar que não usava drogas de modo algum, eu estava ali com outra finalidade: ver o monstro que todos comentavam, eu queria enfrentá-lo, conhecer a sua ferocidade e a fraqueza. Eu queria vencê-lo. Eles sorriram, dizendo-me que estava no caminho certo, bastava usar um comprimido apenas. Podia esquecer o crack, a cocaína ou qualquer outra pílula da felicidade. Eles tinham a saída para todas as minhas dores, tanto físicas quanto psíquicas.

Por um momento, tentei levantar-me, fugir daquele grupo que me cercava e me deixava atônito, mas se mostravam tão amigos e companheiros que não havia como refutar. Eu, que me sentia tão sozinho, estava ali, entre amigos.

Por fim, ofereceram-me o tal comprimido e naquele instante seguinte, alcancei um excesso de felicidade, quase êxtase, um upgrade no desejo sob todas as formas, energia e bem-estar. O mundo girava a meu favor e a vida rendia perdão aos meus sofrimentos, como se a gratidão se antecipasse à dor ou a qualquer infortúnio. Eu estava feliz. Então, pediram-me o número do celular roubado, eu já nem lembrava, mas isso não importava muito, pois logo, logo saberiam. Como parceria aos meus atos, correram até os bandidos que me assaltaram, fizeram buscas, investigações e com uma pertinácia, quase obsessão, acionaram todas as ferramentas para atingir o objetivo e reouveram os meus pertences, meu celular, a carteira e até os poucos trocados que ainda restavam.

Eles me ajudaram com a mais alta competência. Porém, com o passar das horas, percebi que alguma coisa diferente acontecia comigo. Era como se o mundo debandasse às minhas costas e a vida se tornasse insossa e cada vez menos visível. Como se estivesse envolto em feno e era apenas o seu sabor e cheiro que sentisse. Não tinha a impressão de nada, mas tinha a intuição apurada a ponto de perceber o que sempre sonhara: o monstro se aproximava e desta vez, estava bem perto, me encarando.

segunda-feira, julho 03, 2017

O medo intrínseco

Não gosto de comentar notícias policiais, muito menos ficar dissecando as informações, investindo em cada detalhe e transformar o fato numa dramaturgia barata. Mas às vezes, a realidade dura nos obriga a pelo menos refletir e sofrer as consequências da falta de humanidade.

O bebê baleado no útero da mãe, em Caxias, na Baixada Fluminense vai contra qualquer percepção de realidade, como se o surrealismo ou a ficção concentrasse seus valores em nossa realidade. Como não se comover, como não sentir na pele o arrepio da dor e do medo ao assistir um fato tão doloroso. Como acreditar na humanidade e imaginar que ainda há futuro?

Quando vemos nossos filhos longe, ficamos com o coração na mão e quando estão perto permanecem em total abandono, porque as balas perdidas não são excessões, ao contrário, são a regra em muitos recantos do Brasil, como na escola em Porto Alegre, onde os alunos precisaram fugir para não ser atingidos.

Parece que o homem fica cada vez menos homem, menos ser humano e talvez não tanto animal, mas um ser perdido na desumanidade, um ser que enxerga no outro apenas o reflexo de seu desejo de ganância, de ódio e do medo intrínseco de se enxergar no espelho alheio.

É triste. Uma involução que avança em várias áreas e repercute nas comunidades mais frágeis. Uma involução nos costumes, na política fascista que avança, na ilegimidade dos governos, no despropósito das ações alavancadas na não-constituição.

Onde chegará o homem?

Quem cuidará de nossas crianças?

Quem olhará por nossa vida?

terça-feira, novembro 29, 2016

A fotografia da vida de Santa -CAP. 24

NESTA TERÇA-FEIRA 29 DE NOVEMBRO, PROSSEGUE O NOSSO FOLHETIM DRAMÁTICO, AGORA COM O CAPÍTULO 24.

Capítulo 24

Santa estava muito nervosa com o sofrimento de Linda. Afinal, o sobrinho havia sido assassinado. De repente, as situações revelavam um caminho bem diferente do que Santa tinha imaginado. Ela agora, arrependia-se por ter pedido ao rapaz que descobrisse o que Linda estava tramando contra ela em conluio com o próprio marido. Precisava provar aos filhos que o seu objetivo era torná-la uma incapaz. Mas não era essse o caminho que queria para a família, ao contrário, queria o bem para todos. Por que tudo desandara dessa maneira? Até ela se envolveu nessa intriga. Por que não foi clara com Sandoval, com os filhos, por que não abriu o jogo. Isso tudo a deixava mortificada. Não era o que a Virgem lhe indicara, ao contrário, afastava-se cada vez mais dos objetivos de união e credenciamento de novos rumos para a família.

Estava assim, perdida em seus pensamentos, quando Sandoval entrou na sala. Observou que ele estava com um ar cansado, como se não tivesse dormindo toda a noite. Por um momento, lembrou das jogatinas, das festas longe de casa, mas poderia ser outro motivo. Quem sabe, ele também não estava triste pela morte do jardineiro.

Ele aproximou-se e sentou-se ao seu lado. Santa pensou em falar tudo que estava pensando. Naquele instante, sentiu uma certa ternura pelo marido, uma coisa antiga, que já não sentia há muito tempo. Entretanto, reprimiu o sentimento. Sandoval não lhe despertava confiança, como antes.

Ele a olhou amargurado e perguntou:

– O que está acontecendo nesta casa Santa? O que está acontecendo com nossa família?

– É isso que me pergunto Sandoval, a todo momento. Mas você estava tão bem, afinado com a família, fazendo uma reunião sem a minha presença. Parece que tudo está nos conformes, não?

– Não diga isso, Santa. E por favor, não vamos brigar, eu preciso conversar com você, com calma.

– Eu sei, eu também estou muito aflita com tudo que está acontecendo. A morte desse rapaz…

– E você sabe que Alfredo foi chamado para depor?

– Alfredo? O que você está dizendo, Sandoval? Por que meu filho teria que depor sobre a morte de Fernando?

– Não sei. Só sei que as câmeras da rua registraram o carro dele ou um vizinho chamou a polícia, coisa assim.

– Mas o que Alfredo estava fazendo lá?

– Ele encontrou o rapaz morto. E tem mais, depois chegaram Letícia e Tavinho. Por enquanto, a polícia não os chamou, mas não vai demorar muito, porque as câmeras pegaram a imagem de outro carro, certamente o deles.

– E como você sabe de tudo isso?

– Acabei de chegar do escritor de Letícia, ela está muito nervosa. Daqui a pouco, tenho certeza, vão começar os interrogatórios.

Santa não consegue conter as lágrimas.

– Meu Deus, como pode chegar a esse ponto. Não era isso que eu queria que acontecesse para a nossa família.

– Sinto muito lhe dizer isso, Santa, mas você foi a culpada. Foi você que veio com esta história de dividir o nosso patrimônio com aquela gentalha da ilha isolada, e esse desejo de modificar as nossas vidas. você começou com essa loucura!

– E o que isso tem a ver com o pedido de Nossa Senhora?

– Letícia me contou, que foi pedir ajuda ao rapaz. Ela e Tavinho estavam desesperados, porque você os instruiu contra mim. Mas você sabe, Letícia é estômago frio e acabou me contando tudo.

– Eu pedi que eles descobrissem o que você está tramando contra mim. Você induziu a família a pensarem que estou louca!

– E isso não é uma loucura? Acabar com o patrimônio da nossa família, dar dinheiro para essa gente, se misturar com eles, sei lá que insanidade você está planejando.

– Cale a boca, Sandoval! Cale a boca! Porque você ia muito mais longe, você queria me deixar uma incapaz, uma mulher que não pode decidir nada. Não pense que sou uma idiota, eu sei de tudo.

Sandoval tenta acalmar-se. Sabe que precisa de tempo para convencer a mulher e muito mais do que tempo, paciência. Talvez seja necessário mostrar-se arrependido do que fizera e até pedir-lhe perdão. Santa prossegue, indignada. Decidiu dizer tudo o que sabe, às claras, chega de mentiras, de meias-palavras. Chegou o momento da verdade.

– Eu sei que você fez um acordo com Linda.

– Como assim, de onde você tirou essa bobagem?

– Eu percebi quando ela começou a me tratar como se eu fosse uma demente, que esquecesse o passado, que esquecesse por exemplo que não tem um filho com você. Ela queria me fazer acreditar que eu estava fantasiando e me trazia chás com calmantes, eu tenho certeza disso. Um dia escondi os comprimidos e mostrei-os ao doutor Oliveira. Ela não deve estar fazendo isso sozinha, Sandoval. Você está nisso.Não tente me enganar, pelo amor de Deus.

Sandoval percebe que precisa fazer da mulher uma aliada. Então, decide contar-lhe toda a verdade. Levanta-se, fecha a porta da sala e volta a sentar ao seu lado. Fala em tom mais baixo.

– Santa, você tem razão. Eu vou contar-lhe toda a verdade.

– Eu sabia que você seram cúmplices!

– Mas agora, você precisa me ouvir, com calma. Temos que nos unir contra esta mulher, principalmente agora, que ela está fragilizada. Precisamos agir de uma maneira, que ela fique encrencada com a polícia e vá embora desta casa!

– Mas o que vocês estavam tramando contra mim?

– Começou com você, quando a mandou gravar a nossa reunião.

– E o que você queria que eu fizesse. Uma reunião que não teria a minha presença. Você acha justo isso?

– Santa, agora não é mais momento de pensarmos se é justo ou não. O fato é que ela gravou, mandou a gravação por mensagem para alguém para se assegurar que eu não tiraria dela a tal prova.

– A prova de que você convenceria os meus filhos a me considerarem louca.

– Não fale nestes termos.

– Mas é verdade. Não foi isso que foi tratado naquela reunião?

– Sim, foi, mas olhe. Vou ser sincero com você Santa, todos acabaram concordando comigo. Os nossos filhos pensaram bem e viram que eu tinha razão.

Santa emudece. Uma lágrima corre rápida dos olhos. Sente-se desolada. Os filhos concordaram que ela não deveria decidir sobre mais nada em sua vida.

– Sinto muito Santa, mas não posso omitir nada de você. Bem, quero falar de Linda. Ela fez uma chantagem comigo, disse que mostraria a gravação para você se eu não fizesse o que ela queria.

– Ela quer o quê? Acabar comigo?

– De certo modo, sim. Ela quer que eu assuma o nosso filho, que lhe dê o meu nome, que divida a fortuna com ele também. Ela quer ser a dona desta casa!

– Então quer me matar realmente.

– Não, o combinado era deixar você cada vez mais incapaz. Ela sugeriu isso, até você não ser mais nada nesta casa, até… bem quem sabe, se afastar daqui, de uma vez por todas.

– E você concordou com isso?

– Claro que não, eu fiquei louco, mas acabei concordando, pedi um tempo de 6 meses para poder por em prática o plano, até conseguir fazer o que ela queria.

– Até me enlouquecerem! Você é tão cruel quanto ela! Você é um criminoso, Sandoval!

– Mas eu não faria isso.

– Seja sincero. Você deixaria que ela tomasse as rédeas, como tentou fazer e me enlouquecer, me deixar tão fraca que acabaria pensando que estava louca realmente.

Sandoval não responde e Santa percebe que está em plena solidão, naquele vendaval de mentiras e planos criminosos.

– Seu miserável! Você é tão indigno quanto ela! Eu o odeio! E odeio aquela mulher!

– Santa, Santa, por favor, eu mudei de ideia, você está vendo. Eu não quero mais fazer isso, precisamos acabar com esta mulher, mandá-la embora. Por isso estou aqui, com você, ao seu lado.

– Nunca mais você estará ao meu lado, como não está agora Sandoval. Você está no seu lado. Você está com medo desta mulher, porque apesar de tanta covardia e sujeira, você nào queria que tudo viesse à tona, que nossos filhos soubessem e principalmente, você não quer dar nada a ela. Pois eu lhe digo, só há uma solução: você legalizar a situação do seu filho, dar-lhe algum dinheiro e a mandar embora. Você não precisa casar com Linda para fazer isso, então não se preocupe tanto com a situação.

– Mas você acha justo? E se este rapaz não for meu filho realmente?

– Faça o DNA. Vá para a justiça. Ela existe para isso.

– E quanto ao sobrinho? Ela tinha algum plano contra nós através dele?

– Sim, naquele dia em que um homem apareceu em nossa casa e deu um susto em você, foi tudo arranjado por ela. Era o tal sobrinho, que se fez de estranho para assustar todo mundo.

– Mas e o bilhete do bispo Martin?

– Linda o tinha pego no dia da reunião o e deu para ele, para parecer mais real.

– Então esta mulher é muito perigosa.

– Sim, por isso, precisamos nos unir, Santa.

– Eu já lhe disse o que fazer. Faça a coisa legal. Quanto a ela, não temos provas de que esteja tramando coisas contra nós, contra mim, principalmente. Não podemos chamar a polícia. Mas o que interessa agora é quanto aos nossos filhos, que parecem implicados com este crime. Afinal, por que mataram o rapaz? Você sabe alguma coisa Sandoval?

sábado, novembro 26, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 23

Capítulo 23

Naquela noite, a polícia foi chamada porque havia um movimento suspeito na casa que estivera há tempo tempo desabitada. Encontraram o corpo de Fernando estirado no chão e nenhuma impressão digital. Entretanto, investigaram com afinco as redondezas e descobriram quem tinha chamado a polícia.

O vizinho do prédio à frente, havia visto as pessoas entrarem e sairem da casa e tinha a impressão de que havia algo errado. Os policiais também examinaram as câmeras de segurança na rua, mas não conseguiram ver as placas dos carros. Entretanto, o final de uma delas estava bem nítido e o vizinho ainda auxiliara, dizendo que anotara a placa de um carro, embora não coincidisse com a parte da placa que surgia nas câmeras. Já no âmbito da polícia, analisando detidamente as cenas, puderam constatar que a placa anotada era de um dos carros que parara no local.

Dali em diante, foi fácil encontrarem o dono do carro, Alfredo Sampaio. Na manhã seguinte, Alfredo recebe uma intimação para ir à Delegacia. Apavorado, liga para Letícia.

– Letícia, o que vou dizer agora? Vão pensar que matei Fernando! Como chegara até mim?

– Calma, Alfredo, você está me deixando nervosa. Não se esqueça, que nós três estávamos lá naquele momento, que nós três fizemos a limpeza das digitais. Meu Deus, se eu for envolvida nisso, estarei perdida!

–E o que devemos fazer?

– Em primeiro lugar, manter a calma. Tente descobrir como eles ligaram você ao crime.

– Não me ligaram a nada. Não diga besteiras. Alguém deve ter me visto por ali.

– E o seu carro? Alguém pode ter anotado a placa, ou quem sabe, viram através de alguma câmera da rua?

– É verdade, pode ser isso. Estou apavorado.

– Já lhe disse que não pode ficar assim. Diga-lhes que foi pedir um favor, afinal ele não era o jardineiro de mamãe?

– Sim, mas não posso dizer isso. Eu não posso contar o que eu queria dele.

– Então diga o óbvio.

– A que você se refere?

– Que vocês tinham um caso.

– Você está louca?

– Não, estou tentando ajudar você, seu bobo. E pense bem no que vai dizer, não vá nos envolver nisso. Eu não deveria ter ido lá, foi uma loucura!

Ele desliga o celular ainda mais confuso do que estava antes. Decide vestir-se e ir até a delegacia. Precisa acalmar-se, pensar numa solução para o problema. Afinal de contas, ele não deve nada à justiça. Pensando nisso, tomou um banho rápido e preparou-se para sair.

Quando chegou, o delegado Santos pediu que aguardasse. Alfredo estava muito nervoso. Olhava em torno, tentando encontrar um motivo coerente para o encontro com Fernando, mas nada lhe vinha à mente e o fato de seu carro estar estacionado em frente à casa e principalmente ter sido filmado, o deixava apavorado.

Um policial o encaminhou para a sala do delegado e afastou-se, deixando-os às sós. Pela vidraça que separava da outra sala, Alfredo observava o movimento dos funcionários, computadores e conversas ao celular. Alguns grupos se posicionavam próximos à parede de vidro, numa conversa animada, como se estivessem na mesma sala. Entretanto, não se ouvia o que diziam.

– Muito bem. O seu nome é Alfredo Sampaio.

– Sim, senhor.

– Nós fizemos uma pequena pesquisa a seu respeito: sabemos que é um empresário no ramo de celulose.

– É verdade.

– Senhor Alfredo, o senhor sabe o motivo desta intimação ou pelo menos, imagina, não é mesmo?

– Na verdade, delegado, eu fiquei muito surpreso. Sei que ocorreu um crime, que o rapaz daquela casa foi assassinado. Mas eu não tenho nada a ver com isso.

– Engraçado. Eu não tinha falado sobre nenhum crime.

– Não? É que pensei…

– Pode falar, senhor Alfredo, fique à vontade.

– Ah, senhor delegado, estou muito confuso, essa história toda está me deixando com os nervos à flor da pele.

– A que história o senhor se refere?

– Bem, o senhor mandou me chamar por causa de Fernando?

– Parece que o senhor sabe muito mais do que a polícia. Por isso, o chamamos até aqui.

– Não, eu não sei de nada. Mas o senhor se refere a este caso, não? Ao rapaz que foi assassinado.

– E o nome dele era Fernando?

– Sim.

– E morava na rua Dutra, 53.

– Ele havia se mudado para lá há pouco. Eu sei de tudo, porque ele é o jardineiro de minha família.

– Ah, sim. E é parente de uma empregada de sua família. Neste momento, a polícia está entranto em contato com ela.

– Meu Deus, pobre Linda!

– Pois é, senhor Alfredo, como o senhor mesmo disse, houve um crime na casa deste rapaz, sendo que ele mesmo é a vítima. Nós estamos investigando e por isso, o chamamos.

– O senhor deve ter me chamado, porque ele trabalha conosco, quero dizer, com a minha família, mas eu não posso lhe adiantar muita coisa. Quase não o conhecia.

– Tem certeza de que não o conhecia?

– Na verdade, algumas vezes eu o vi por lá. Poucas, sabe.

– Mas então, o senhor pode me dizer o que fazia em sua casa, ontem à noite, quando ocorreu o crime?

– Foi uma terrível fatalidade. Quando entrei, eu o encontrei atirado no chão, ensanguentado. Tentei reanimá-lo, mas ele já havia morrido.

– Então quer dizer que o senhor esteve lá realmente?

– Não, quero dizer. Eu fui lá porque precisava levar um recado de minha mãe, mas … o senhor está me deixando confuso, delegado.

– Eu estou sendo absolutamente claro, senhor Alfredo. Sabemos que ocorreu um crime, que segundo o que o senhor mesmo afirmou, a vítima estava estendida no chão e tinha levado um tiro.

– Eu acho que foi um tiro.

– Sim, foi um tiro. O senhor tentou reanimá-lo.

– Eu fiquei muito nervoso, chamei por ele. Acho que tentei, agora estou tão nervoso, que nem sei de nada.

– Então, procure acalmar-se, senhor Alfredo. O senhor percebeu que o rapaz estava morto. Por que não chamou a polícia?

– Porque não podia fazer mais nada. Fui embora, apavorado. Foi isso que fiz.

– Mas é muito estranho. Não havia nenhuma impressão digital, como se quem estivesse ali, houvesse apagado todas as impressões.

– No meu caso, eu não toquei em nada.

– Nem na maçaneta?

– Não, a porta estava entreaberta.

– A porta estava entreaberta e o senhor entrou, chamando pelo rapaz, o nome dele era Fernando, não?

– Sim. Fernando.

– Recapitulando: o senhor viu a porta aberta, o que é muito estranho também, chamou por Fernando e não obteve resposta. Então aproximou-se do corpo, deve ter se abaixado para verificar se ele estava vivo ainda.

– Sim, mas não toquei nele, não toquei em nada. Em seguida, fui embora.

– O senhor sabe que havia outro carro estacionado na frente da casa?

– Não, eu não vi ninguém. Mas como o senhor pode afirmar que eu estava de carro? Podia ser o carro de outra pessoa.

– Um vizinho anotou a placa e nas câmeras aparece o seu carro e também o outro.

– Sim, eu vim no meu carro, eu não estou negando que estive lá. Mas como o senhor pode ver, delegado, alguém chegou antes de mim e matou o rapaz. É preciso verificar estas câmeras antes de eu chegar, talvez muitas horas antes.

– Talvez o senhor tenha razão.

– E como viu, não há nenhuma impressão digital, eu praticamente entrei e saí daquela casa. Fui na hora errada, no dia errado. O senhor sabe o que me deixa mais indignado? É que o assassino deve estar andando por aí, rindo da nossa cara, e nós perdendo tempo. O senhor me intimando como se eu tivesse alguma coisa a ver com este crime. Eu nem conhecia o rapaz, direito, como lhe falei!

– Mas apesar de toda a limpeza, achamos alguma coisa que mantém ainda as impressões digitais de alguém, talvez possamos descobrir o DNA através dela.

– Como assim?

– Uma lente de contato. O senhor usa lentes de contato, senhor Alfredo?

terça-feira, novembro 01, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 16

No capítulo anterior, após o desmaio, Santa não conseguiu comentar com Linda sobre a conversa que tivera, na qual ela havia negado o próprio passado, pois voltou a sentir-se mal. No dia seguinte, porém, estava decidida a fazer alguma coisa, que deixava Linda preocupada. Pedira para falar pessoalmente com o jardineiro, o sobrinho de Linda. A seguir o décimo sexto capítulo de nosso folhetim dramático.

Capítulo 17

Ao chegar no gabinete, o jardineiro mostrava-se preocupado por ter sido convocado pela patroa. Sentou-se numa cadeira, sentindo-se desconfortável. Santa, no entanto, parecia muito segura e com uma intenção objetiva.

— Bem, Fernando, o que tenho a lhe dizer é bem simples e fácil de resolver.

— Eu fiz alguma coisa errada, dona Santa?

— Não, você não fez nada errado, não se preocupe. Ao contrário, gostamos muito de seu serviço.

— Então, não estou entendendo porque a senhora me chamou aqui.

— Por que vocês acham que sempre que são chamados é para serem advertidos?

Ele tentou responder, mas ela o interrompeu, prosseguindo o assunto que pretendia tratar:

— O que eu pretendo de você Fernando é uma coisa que deve ficar em absoluto segredo. Você não pode contar para ninguém, até chegar a hora, nem mesmo para a sua tia Linda.

— Que coisa estranha, dona Santa. Desculpe falar assim, mas é que ninguém me pediu um segredo, principalmente em se tratando da patroa.

— Então me diga, Fernando, por que está aqui?

— Como assim? Eu preciso trabalhar.

— Eu sei, todos precisam, principalmente agora com esta crise econômica, com tanto desemprego.

— Pois então, é por isso.

— Mas você não precisava estar aqui como um jardineiro. Você poderia trabalhar dentro de sua profissão.

— Não sei o que a senhora quer dizer, dona Santa. – Neste momento, ele se mostra nervoso, movendo as pernas num gesto quase involuntário. – Santa prossegue, incisiva. – Você é um engenheiro, Fernando.

Ele não diz nada, mas empalidece rapidamente. Santa aproveita para complementar com mais ênfase:

— Você poderia trabalhar numa empresa de construção, sei lá. Por que está aqui, volto a perguntar. Qual é o seu interesse em trabalhar como jardineiro, recebendo um salário modesto. Quero que seja muito sincero, Fernando.

— Bem, dona Santa, acho que depois da nossa conversa, com certeza vai me mandar embora.

— Vai depender da sua honestidade. Quero que abra o jogo.

— A senhora sabe que sou sobrinho da Linda, e que ela a convenceu a me contratar.

Santa concordou com um aceno e permaneceu em silêncio.

— Pois bem, ela na verdade me criou depois que minha mãe faleceu, eu tinha uns 14 anos.

— Como assim, Linda sempre morou nesta casa.

— Criou é maneira de dizer, ela me ajudou nos estudos, na manutenção da casa. Morávamos eu e minha irmã e ela sempre nos visitava aos domingos. Ela nos ajudou muito.

— E seu pai?

— Meu pai? Bem, eu não o conheci, dona Santa.

— Muito bem, quer dizer que Linda ajudou a família de sua mãe. Era irmã dela?

— Sim, elas eram irmãs.

— Muito bem, Fernando. Eu só não estou entendendo o que tudo isso tem a ver com a pergunta que lhe fiz.

— É que eu queria mostrar que ela sempre se importou muito comigo, com a gente. Minha irmã hoje é casada e mora no interior.

— E você se formou em engenharia civil. Há quanto tempo?

— Uns sete anos.

— E nunca trabalhou na área?

— Trabalhei sim, tabalhei numa empresa durante dois anos, mas é que eu fui demitido.

— Por quê?

— Dona Santa, eu não entendo o seu interesse. Eu sou um bom jardineiro, não me meto na vida de ninguém. Por que tudo isso, agora?

— Porque você está na minha casa, trabalhando para a minha família e eu preciso saber com quem estou lidando.

— Mas minha tia deve ter lhe falado sobre mim. Ela sabe que sou gente de bem.

— Por que você foi demitido? É por isso que não pode voltar a trabalhar como engenheiro?

— Eu fui preso, a minha ficha é suja e ninguém me aceita em lugar nenhum, é isso que a senhora queria saber? – Pergunta, indignado, levantando-se da cadeira e se aproximando da mesa, na qual Santa está do outro lado, sentada. Ela também altera a voz – Acalme-se rapaz, eu não estou julgando ninguém, por enquanto.

Ele volta a sentar-se e abaixa a cabeça, desolado. Depois, a olha com indisfarçável ansiedade. Santa volta à carga e pergunta qual fora o motivo de sua prisão.

— Eu sabia que não ia dar certo, mais dia, menos dia, a coisa ia estourar. Mas, Linda insistiu, achou que poderia segurar as pontas, olha no que deu!

— Por enquanto, não deu em nada. Eu também tenho um segredo, uma coisa que preciso que faça para mim, mas tem que ser honesto comigo. Tenho que saber tudo.

Ele fica um pouco pensativo, mas em seguida, parece estar disposto a falar:

— Bem, eu me envolvi com uma turma da pesada, eu usava drogas e precisava deles. Não era nada muito forte, sabe, cocaína, mas eu não tinha vício, não era dependente. Mas aos poucos, fui sendo convencido a ter mais dinheiro, muito dinheiro. Eles tinham um plano, arrombar o caixa eletrônico da firma em que eu trabalhava. Eu sabia tudo, conhecia toda a estrutura da firma, o dia em que o dinheiro chegava, quem ficava nas câmeras, a hora que trocava o turno. Então dei as dicas, e eles planejaram entrar na empresa numa noite, mas alguma coisa deu errado, pois apareceu um vigilante que me conhecia e ele havia trocado de turno, naquele dia. Então, eu o matei. Não tinha outro jeito. Foi aí que tudo desandou, a polícia foi acionada, eu ainda fugi, mas era tarde demais. Dois membros do bando foram presos e eu fui logo em seguida. Passei cinco anos e estou na condicional.

Santa fica petrificada. Tudo acontecendo a sua volta e ela não sabia. Agora ela teria a chance de pôr o seu plano em ação. Aproximou-se de Fernando e pediu que se acalmasse. Disse-lhe que preferia a verdade do que ser enganada o tempo todo.

Ele então, olhando-a ainda desconfiado, perguntou:

— Qual é o segredo? O que a senhora quer de mim?

Fonte da ilustração:https://pixabay.com/pt/jardineiro-trabalhador-jardinagem-1435463/

sábado, setembro 03, 2016

Sabrina

Sabrina desligou a tv analógica e ouviu ainda um ruído, que demorava a sumir. Talvez a tv estivesse úmida, pensou. Sempre que acontece uma chuva forte, tudo fica meio atrapalhado. Houve dias em que até o liquidificador parou de funcionar. Quando compraria uma tv digital? Era coisa que não podia pensar, neste momento.

Os meninos na escola, indo a pé, caminhando mais de 5 km e ela preocupada com a televisão. Mas deixa pra lá, melhor procurar os tais panos de prato, que passou o dia atabalhoada e os perdeu. Sabe que os guardou, tem certeza, mas onde estarão?

Precisava sair antes que os meninos voltassem para vendê-los no armazém de Seu Oliveira. Lá costumava deixá-los até que alguém os comprasse. Às vezes, ninguém adquiria nada, mas na feira sempre dava certo. Na feira era venda segura. Ou na igreja, mas na igreja não gostava de vender não. O padre pedia silêncio, porque o mulherio fazia um burburinho na porta da igreja até começar a missa. Ele andou proibindo que ela vendesse, até que se arrependeu e liberou novamente.

Mas e os meninos que não chegam? E os guardanapos que não aparecem? Guardanapos, panos de prato, toalhas, tudo bem bordado em pontos de cruz. Eram bonitos, com estampas que tirava das revistas ou ela mesma desenhava. Tinha esse atributo desde criança. Não podia desperdiçar. Procurou os óculos de perto pela mesa da cozinha, pois achava que os tinha deixado lá, quando vira a hora no celular. Estava assim absorvida, procurando-os, quando a porta se abriu de sopetão. Olhou assustada para a porta da cozinha.

Um homem entrou, olhos ensanguentados, boca entreaberta, uma barba mal feita e uns riscos no rosto, que mais pareciam cicatrizes. Não teve coragem de falar, mas ele se dirigiu a ela com muita aflição, quase desespero.

— Não se mexe moça, nao vou fazer nada com você, mas me deixe entrar e fique quieta. Vou me esconder no quarto. Quando a polícia chegar, você nao me viu. Se não te mato, ta ouvindo?

Sabrina ficou paralisada. Não sabia o que fazer. Concordava com um aceno de cabeça. Quando o homem passou por ela, sentiu uma náusea pelo odor que despertava, um misto de sujeira misturada com sangue. Percebeu que a mão sangrava, bem a mão que segurava a arma. Ainda a encostou no seu pescoço e repetiu: — Tá ouvindo?

Ficaria no seu quarto o dia todo? E se os meninos voltassem? E se o marido aparecesse de uma hora pra outra? Sabrina começou a chorar. Puxou a toalha da mesa e limpou os olhos e assoou com energia o nariz. Não sabia se arrastava pé. Ele podia voltar a qualquer momento.

Nisso, ouviu o barulho de um carro. Deu um passo e espiou pela janela. Um giroflex ligado e homens da polícia desciam correndo do camburão em direção a sua casa. Entraram de arma em punho. Gritaram que não se mexesse.

Ela queria falar, dizer que o homem estava lá dentro. Queria fugir, pedir socorro, ajuda, mas o que fez foi pegar a faca de pão que estava sobre a mesa, empunhou-a na direção do quarto para avisar em silêncio de que o bandido estava no quarto. Mas um tiro a silenciou. O sangue jorrou da boca, o corpo tonteou e Sabrina caiu sobre a mesa enfiando a cabeça na toalha de crochê.

A polícia então examinou o ambiente, verificou que a mulher estava morta e um deles fez sinal para que fossem embora. Não havia nada a fazer ali. Correram para o carro e saíram em disparada na investigação. Atravessaram cercas de arame farpado. Tudo observado pelo homem que voltava do quarto.

terça-feira, agosto 09, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 19º CAPÍTULO

Capítulo 19

Rosa depõe na polícia e confessa que tentara matar Ana porque achava que ela sabia que Paulo usara o carro do médico na noite do crime.

Para o delegado Borba, não há mais dúvidas de que o rapaz é o verdadeiro assassino de Taís, já que foi comprovado de que ele estava no local do crime e Rosa praticamente o acusou, na tentativa de defendê-lo.

Parece enfim, que todas as peças se encaixam e que o verdadeiro culpado é mesmo o mecânico. Afinal, ele era namorado de Taís, tinha muitos ciúmes e segundo a própria Rosa, certa vez, ele a tinha ameaçado de morte, após uma briga calorosa. Com o passar do tempo, no entanto, as coisas haviam se acalmado e cada um do seu lado, foi tocando a própria vida.

O problema, segundo Rosa, é que ele a havia encontrado algumas vezes e Taís, leviana que era, estava novamente tendo um caso com o antigo namorado.

Ela era muito ligada ao o grupo de Ana, onde conseguia as drogas que utilizava, embora a menina mais jovem fosse a mais arisca e não se envolvesse tanto com os demais. Não gostava da presença de Taís e seus encontros se davam apenas com os amigos mais chegados, que constituía um grupo de quatro pessoas.

Eram Miguel, o mais velho que devia ter uns 21 anos, Henrique, o ruivo, quase adolescente, Carlos, o filho do prefeito, que segundo os comentários era o que organizava os luais à beira do rio, com muita droga e verdadeiras orgias sexuais, festas estas em que Taís muitas vezes, participava, além de uma garota de programa que vinha de vez em quando da Capital para incrementar as festas. Todos na cidade sabiam, mas como eram de famílias importantes, faziam vistas grossas. Apenas Ana era uma desgarrada no mundo. Vivia praticamente sozinha, morando com um tio bêbado que nem sabia de sua existência.

No dia seguinte, quando Paulo chegou na rodoviária, a polícia já o esperava. Preso, ele só fazia negar o crime e chorar como uma criança.

Enfim, tudo estava resolvido. O crime da jovem Taís solucionado. Agora Júlio finalmente decidiria se permaneceria na cidade por mais algum tempo. Talvez retomasse as terras onde seus pais moravam, nos quais não havia mais nenhuma residência e o mato selvagem já tomava conta de tudo. Quem sabe construiria uma casa e moraria em definitivo na cidade. Escreveria a sua biografia ou não. Quem sabe criaria outras histórias de ficção ou descreveria casos que já passaram por suas mãos. Eram alternativas que poderia utilizar. Estava cheio de planos e isso era bom. Sentia-se feliz em estar de volta à ativa, o que liberava uma certa euforia em sua mente, dando-lhe vontade de fazer coisas novas, de tomar outros rumos.

Porém, as coisas estavam tão claras e se encaixavam tão adequadamente nos rumos do caso, que lhe despertavam algumas dúvidas.

Primeiramente, o pai sofrido, odiando o médico que enganara a sua filha, uma moça humilde de cidade pequena que fora iludida por um jovem esperto da cidade, que lhe oferecera mundos e fundos, apenas com a finalidade de seduzi-la. Isso era tão clichê que parecia coisa de novela de rádio dos anos 60.

Aos poucos, porém, foi se descobrindo que a menina tão recatada e simples, não passava de uma jovem que participava de festinhas regadas a drogas e muito sexo. Pelo menos, foi o que foi parar no depoimento do delegado e até agora ninguém decidiu desmentir, nem mesmo o pai, que se mantém em silêncio.

Em seguida, o contato foi com o médico, o suposto assassino, que havia namorado a moça e que decidira matá-la para não atrapalhar seus negócios com a família da noiva na capital.

Agora já era uma história meio dramalhão de tv, porém com uma história mais plausível, apesar de simplória demais. O povo daquela cidade tinha muita imaginação.

Com o interrogatório, percebeu-se que era um jovem assustado com a situação e que a moça que se dizia assediada, era ao contrário, quem o perseguia. Segundo ele, não lhe faria mal algum, mas a odiava, a ponto de não querer qualquer aproximação com ela. Tudo era possível, a partir dessa constatação.

A seguir, surgiu Ana, a menina que observava tudo, que ouvira o grito e presenciara alguma coisa surgir nas águas correntes do rio. Chamara ajuda dos amigos e descobrira que havia sido uma tragédia. Também vira o carro do médico pelas redondezas e por isso, o acusara e a história fora parar nas ruas até chegar às autoridades competentes. Azar para o médico Ricardo Silveira, que não tinha um álibi para não ser incriminado.

Mais tarde, foi a vez de Rosa, a mulher que tentava proteger o rapaz que mora em seu apartamento alugado, que para os habitantes da cidade, não passa de seu amante.

Um caso estranho de se entender. Tanto o quis proteger, que acabou acusando-o, pensando que Ana soubesse que ele estava com o carro do médico, na noite do crime, ali, pelas proximidades. Sendo assim, quem estava no carro que Ana vira, quem morria de ciúmes pela antiga namorada e que seria capaz de matá-la, era o mecânico.

Tudo então parecia ter chegado a um termo, à medida de que se descobrira quem era o assassino. O tal de Paulo.Na verdade, pouco se conhecia dele e o pouco que falava era para negar que a tivesse matado. Dizia-se inocente, mas todas as provas estavam contra ele, inclusive o depoimento de Rosa.

Júlio, insatisfeito com o desfecho da situação, dirigiu-se ao delegado Borba, tentando um encontro com Paulo, na prisão. A princípio, foi-lhe negado. Não havia motivo para interrogatório. A polícia já estava ciente de tudo e tinha feito a sua investigação completa. Mas, com certa habilidade, Júlio convenceu o delegado a fazer uma única visita, nada oficial, para que pudesse conversar com o homem.

Depois de algumas recusas, ocorreu finalmente a concessão ao pedido.

Paulo era um homem de estatura baixa, atarracada, com braços que aparentavam força e energia. Segundo os comentários, costumava exercer o trabalho exaustivo na oficina com esmero e muita disposição.

Tinha uma fisionomia apagada, um olhar parvo e desligado. A boca ficava entreaberta e suas mãos estavam sempre se contorcendo, como se precisasse aquecê-las ininterruptamente.

Júlio aproximou-se e sentou-se à mesa, a sua frente. Estavam sozinhos na sala, embora houvesse uma janela de vidro para a peça ao lado, de onde era possível observá-los.

O delegado Borba parecia enfadado. Aproveitou a conversa para retirar-se e fumar um cigarro à beira da calçada, observando os transeuntes.

Nenhum dos dois policiais que restavam interessou-se pela conversa e, ocupados em seus objetivos pessoais, nem passavam por ali. Para eles, o caso estava resolvido. Era só frescura de detetive particular, com mania de protagonista de filme policial. Nem se preocupavam com os demais casos de assassinatos por aplicação em dose errada de insulina, pois estavam arquivados e não havia mais nada a fazer.

Júlio tomou um copo de água e serviu outro para Paulo. Este aceitou e abaixou imediatamente a cabeça, pensativo. Vez que outra, levantava a cabeça e olhava enviesado para a vidraça, como se perguntasse a si mesmo o que estava fazendo ali. Júlio então, começou a interrogá-lo.

– Paulo, sei que a sua situação não é das melhores, mas há coisas que ainda não foram bem elucidadas. Me refiro a coisas que não ficaram bem claras, entende?

– Não, não entendo nada. Só sei que estão me acusando por um crime que não cometi. Eu sou inocente, delegado, não tenho nada a ver com isso.

– Olhe, me chame de detetive. Eu não sou delegado e nem trabalho aqui nesta delegacia.

— Mas então, por que está me interrogando? Eu não quero ficar aqui, quero que chame os policiais, quero ir pra minha cela.

— Espere, Paulo, se acalme. Eu sou um detetive particular contratado por Lucas, o pai de Taís e não estou aqui para julgar ninguém. Só quero a verdade. Eu não o acusei de nada, por enquanto.Talvez até com este interrogatório, eu o ajude. Você não acha que foi tudo muito rápido? A solução para o problema foi a sua acusação. Não estou dizendo que você é inocente, mas precisamos averiguar mais. Fazer mais investigações.

— Eu já lhe disse que sou inocente!

— Então, que tal conversarmos sobre isso. Você tem que ser absolutamente sincero comigo. Tem que me dizer a verdade, se quiser que eu o ajude.

— Mas o senhor não é meu advogado, eu nem tenho advogado. O senhor é contratado pelo farmacêutico, só quer me ferrar!

— Não é nada disso, Paulo. Eu quero a verdade. Mas não posso obrigá-lo. Se você não quiser se abrir comigo, não posso fazer nada. Você é quem decide, mas tenha certeza de uma coisa, não há muita chance para você. As coisas se ajustaram perfeitamente com a sua prisão.

Paulo o fita intrigado. Fica em silêncio alguns segundos, depois volta a abaixar a cabeça e resmunga: — O que o senhor quer de mim?

— Ótimo, Paulo. Fazer umas perguntas muito claras. Vamos começar do início. Me diga com sinceridade, qual é a sua relação com Rosa?

— Meu Deus, o que isso tem a ver com o que aconteceu?

— Aparentemente, nada. No fundo, tem muito a ver. Nós podemos fazer o perfil de uma pessoa através da estrutura de sua personalidade e descobrir, inclusive se ela é capaz de cometer um crime ou não. Um relacionamento afetivo, o envolvimento familiar atribuem traços à personalidade de uma pessoa. Você me entende?

Ele não responde, mas concorda com um aceno de cabeça.

– Pois então, para isso, é preciso que se conheça bem a pessoa. E olhe, eu não sou psicólogo, nada disso. Mas anos de experiência e alguns estudos periféricos me possibilitaram a conhecer bem o ser humano - faz uma pausa para que ele absorva tudo o que dissera, enquanto o observa detidamente. Paulo não levanta os olhos. Para de contorcer as mãos e deixa-as sobre a mesa, fixando-as, como se pudesse rever nelas o seu trabalho, a sua atividade, agora truncada. As unhas enegrecidas revelam a atividade descuidada.

Júlio continua - por isso, eu volto a perguntar: você tinha uma relação mais intima com Rosa?

Paulo suspira e ainda sem levantar os olhos, exclama de uma maneira quase infantil: — Rosa é a minha mãezinha! Ela me ajuda, me protege, me alimenta, me dá casa pra eu morar.

– Como assim? Você trabalha, paga aluguel pra ela, não é isso?

– Sim, mas é outra coisa. Eu procurei a minha vida inteira por minha mãe, sempre me disseram que ela era daqui, desta cidade, mas nunca a encontrei. Rosa então me apoiou, me ajudou a sobreviver.

– Só isso?

– E você acha pouco? Ela foi a única pessoa que me olhou como gente, que não se afastou quando eu procurei – e prossegue, emocionado – a única pessoa que ouviu e me entendeu.

— Fora isso, profissionalmente falando, ela aluga um quarto para você.

– Sim.

– E qual é o apoio que ela lhe dá? – tenta colocá-lo em conflito.

– Eu já disse, ela cuida das minhas coisas, ela me protege, me deu abrigo quando precisei, é isso! Não basta pra você? Não basta pra todo mundo? Ninguém entende, não é? Ninguém entende quando alguém faz um bem pra gente! - fica agitado, agora mexendo as mãos, passando-as pelo cabelo e cobrindo o rosto, quase em desespero.

Júlio dá uma leve batidinha em seu braço e pede que se acalme. Sorri amistoso e percebe que pela primeira vez, Paulo o encara. Por fim, respira com sofreguidão, mas aos poucos volta ao normal. Júlio aguarda um pouco que se restabeleça para voltar à carga.

– Eu entendo mais do que você imagina, Paulo. Sei o quanto esta mulher o ajudou e o quanto você a preza. Não fique molestado pelo que eu disse, apenas ouça e tente também entender as minhas perguntas. Como lhe disse, é preciso analisar o perfil das pessoas. É preciso entender as suas atitudes com profundidade, caso contrário não chegamos a lugar nenhum.

Um pouco mais calmo, Paulo pousa as mãos sobre as pernas, que se agitam intermitentes. Júlio prossegue o interrogatório, como se fizesse uma análise terapêutica.

– Então me diga, de acordo com o que você me descreveu sobre o seu reconhecimento do valor de Rosa, sobre o carinho que tem por ela, você seria capaz de fazer qualquer coisa para defendê-la, para ajudá-la. Afinal, ela é a sua protetora, a sua amiga, a sua – faz uma pausa providencial – como voce diz, a sua mãezinha.

–Sim, eu faria tudo por ela e ela por mim. Ela tentou me defender. Ela sabe que eu não matei ninguém.Ela só disse aquilo porque ficou puta da cara com a menina, que andou espalhando que eu estava com o carro do doutor, Claro que ia sobrar pra mim, não ia? A corda rebenta sempre na parte mais fraca, não é assim que acontece, detetive?

— Nem sempre, Paulo. Ao menos que a verdade não apareça. É preciso que haja justiça. Mas me explique, se Rosa o ajuda tanto, por que você está aqui? – a cartada que esperava.

Paulo entretanto possui outra lógica e responde rápido, embora um pouco confuso: — Porque ninguém acredita em mim, precisam de um culpado.

Júlio decide ser mais incisivo e argumenta: — Nem Rosa acreditou em você. Ela desconfiou tanto, que como você usou o carro do médico, ela pensou que você teria matado a moça para por a culpa no rapaz.
— Isso é o que tentaram atribuir a ela. eu já expliquei, que ela ficou furiosa com a Ana. Ela só pensou em me ajudar, em me defender - e fica se repetindo várias vezes. Júlio o interrompe, enérgico.

— Esta bem, não fique nervoso. Como você disse, você seria capaz de fazer tudo por ela.

— Eu já disse. tudo!Tudo! Quer me enlouquecer?

— Até matar?

— Eu não matei ninguém, foi uma cilada que vocês armaram.

—Mas você mataria por Rosa, pela mulher que você ama!

— Mataria!

— Então você confessa que a ama, Paulo.

— Você esta me confundindo, eu não quero mais esta conversa!

Tenta levantar-se, mas Júlio o impede, segurando-o firmemente pelo braço. Pede que sente, insiste em dizer-lhe que quer ajudá-lo, que precisa enfrentar a situação. Afinal, se é inocente, não perde nada em responder as suas perguntas, ao contrário, poderá haver uma saída, até uma possibilidade de atenuação da pena. Aos poucos, Paulo parece entender a proposta e volta a sentar-se. Júlio prossegue.

— Está bem, não vamos mais falar em Rosa. Fique tranquilo. Se é um assunto que o deixa chateado, não quero aumentar ainda mais o seu sofrimento. Mas preciso saber algumas coisas em relação à Taís, afinal ela foi sua namorada. Quero que você me fale do grupo que ela participava, com o qual fazia as festinhas na ponte. Você conhece esse pessoal?

Ele responde imediatamente, como se o tema sugerisse pessoas que ele detestava e por isso, tinha prazer em denunciá-los.

— Sim, são gente muito baixa, todos drogados, metidos com traficantes, vagabundos. A Rosa tinha horror daquela gente.

— O que sabe deles?

— Todos são uns marginais, uns pederastas, só se salva o ruivo…

— Ruivo?

— É, o Henrique, ele está sempre com medo de tudo, ele só vai porque não consegue sair do círculo vicioso, como traficou drogas, tem medo, eles podem acabar com ele. O cara é um adolescente, tá na pior.

— E acha que neste caso, eles podem ter culpa no cartório?

— Não sei, só sei que naquele dia, eles estavam numa festa muito grande, uma verdadeira orgia, ninguém era de ninguém, rolava droga, cocaína, crack, tudo que você possa imaginar, além de muito sexo!

—Como sabe? Por acaso, você os estava espiando do carro do médico? Agora todos já sabem, por que você não me conta?

Contar o quê, detetive? Em que enrascada o senhor quer me meter?

— Pelo contrário, quero que você saia da enrascada em que se meteu. Quero que me diga, que você assistiu a festa que tanto reprova, que você viu Tais participar, que eles a obrigaram a alguma coisa, não foi isso? Por que você não conta?

— Eu não sei, não sei de nada.

— Mas você pode se livrar da prisão se a gente imputar alguma suspeita a eles, se você contar o que eles fizeram. Eles mataram Taís, eles a obrigaram a ingerir drogas pesadas, a beber muito, a fazer sexo, você viu tudo, você talvez tenha até se masturbado…

— Pare com isso! Pelo amor de Deus, pare com isso! - neste momento, Paulo parecia no auge do desespero. Entretanto, não conseguia livrar-se das imagens que Júlio realçava, como se acontecessem ali, naquele momento, na frente de sua retina. Suas mãos tremem, seu corpo todo treme, sua voz falha.

— Então é verdade, você se masturbou dentro do carro.

— Eu já tinha saído. Eu não faria uma coisa dessas, não sou um depravado. Vivo com minha mãezinha, a mulher que me ajuda, que me consola, que me leva a igreja, uma mulher que professa a fé, que não suporta o pecado!

— Mas você se masturbou, Paulo. Encontramos esperma no carro do médico e fizemos o exame de DNA e consta como seu! Você não pode negar, Paulo. Isso depôs contra você. Não sei se você sabia, mas isso comprovou que você estava lá, não foi só a palavra de Rosa, foi a prova cabal de sua presença! Depois disso, foi um passo para a acusação, ainda mais com o depoimento de Rosa. Para a polícia, você se masturbou vendo a moça e como ela o repeliu, você a matou. Mas nós sabemos que você só presenciou a cena, não é mesmo?

— Por favor, eu não sou um louco, eu não queria assistir aquela atrocidade.

— Então eles mataram Tais? Eles a empurraram? Quem foi? MIguel, Henrique, Carlos, o filho do prefeito, a garota de programa que vinha ilustrar o lual ou a própria Ana? Quem a matou? Ou foram todos juntos?

— Não, não, não foram eles! Não foi ninguém! Não foi nenhum deles. Estavam drogados demais para fazerem qualquer coisa, não se sustentavam nem nas pernas. Não foram eles, eu juro!

— Então a acusação recai sobre você. Você é o assassino! Você matou uma moça indefesa, que foi sua namorada, uma moça frágil que foi empurrada covardemente para o fundo do rio. Que mal ela fez a você, afinal? Deixou-o por outro? Que importava isso? Há centenas de moças que gostariam de namorar você, de se apaixonarem por você. Por que você fez este ato covarde, Paulo?

— Ela era leviana, fraca, andava com todo mundo, ela me jogou na lama.

— Por isso a matou!Você matou uma pessoa inocente, uma jovem cheia de vida, que deixou um pai em sofrimento absoluto. Que deixou uma cidade toda odiando você! Você é um assassino, Paulo!

— Não fui eu! Não fui eu! Foi Rosa! Rosa!

sexta-feira, julho 29, 2016

UM CRIME NA CIDADE QUE SABIA DEMAIS - CAPÍTULO 16

Capítulo 16

Júlio sentou-se na poltrona e observou que as paredes de certo modo revelavam uma falência inevitável no sistema carcereiro da cidade. Era como se ali houvesse o registro do abandono pelo Estado pelo sistema policial: no próprio prédio, havia pichações de todo o tipo, além de profundas deteriorações nas paredes internas, com o surgimento dos tijolos sob o reboco frágil. Na poltrona, cortes de canivete, nos quais inevitavelmente afundava os dedos.

Estava assim pensativo, quando o Delegado Borba surgiu, fechando com firmeza a porta. Júlio voltou-se com o olhar perplexo. O outro sorriu e comentou, irônico: — Detetive Júlio, para um homem da lei está se portando como um medroso. Não devia se assustar assim com a minha chegada.

Júlio levantou-se e apertou-lhe a mão, confiante.

— Não estou assustado, delegado. Só estava aqui, mergulhado nos meus pensamentos.

O delegado discursava, enquanto ajustava a cadeira para sentar-se atrás da escrivaninha.

— Quem pensa muito não age. O contrário da polícia, que não tem tempo de pensar.

Júlio sorriu e completou: — Trilhamos caminhos diferentes delegado Borba, mas temos os mesmos objetivos.

O delegado não respondeu. Acionou o mouse, revelando a página da web em que estava navegando, sem levantar os olhos, embora parecesse atento às palavras do detetive. Este, prosseguia, enfático: — Ainda bem que somos assim, obstinados no caminho da lei, não é mesmo?

O delegado ficou-o por alguns segundos, mostrando dúvida. — Não sei não, meu amigo. Nossos métodos são oficiais, a gente não brinca de mocinho e bandido – fez uma pausa e prosseguiu, deixando o mouse – mas parece que voltou aqui para trabalhar.

— Podemos dizer que sim, mas não totalmente. Eu já tinha interesse em voltar, pelo menos, passar um tempo aqui, na minha terra natal.

— Então, o que o traz aqui?

— Quero uma ajuda da polícia.

— Uma ajuda, detetive? O senhor já não é pago para o seu trabalho? Se nós o ajudarmos, como é que fica? Quem vai nos pagar?

— Como lhe disse, delegado, andamos por caminhos paralelos. Sei que a polícia pode fazer oficialmente, o que eu na minha modesta atividade, não posso.

— Podemos esclarecer os crimes.

— Não quero entrar nesta seara, delegado. No que concerne a profissões, cada um sabe da sua. Eu precisava que o senhor me fornecesse alguns dados, ou melhor, que fizesse uns interrogatórios.

O delegado Borba ficou observando-o, como se refletisse no que dizia. Não suportava a ideia de dividir o serviço da polícia com um detetive particular, principalmente porque atrapalharia ainda mais as investigações.

— O senhor acha que pode me pedir isso, detetive Júlio?

— Oficialmente, não. Mas em nome de nossa amizade, delegado.

Borba sorriu levemente. Em seguida, levantou-se e foi até a porta, verificando se estava bem fechada. Depois, dirigiu-se à janela e ficou algum tempo olhando para a rua. Júlio coçou a cabeça, inseguro. Sabia que o delegado era osso duro de roer, mas devia insistir, por isso acrescentou: — Sei que é um homem muito ocupado, mas nestes últimos casos que estão acontecendo na cidade... – o delegado o interrompeu, friamente, ainda em pé, próximo à janela – o que está vendo por aqui, detetive?

Júlio perguntou, indeciso : — Como assim?

Voltando a sentar-se, Borba retoma a pergunta: — vou lhe perguntar novamente, o que o senhor observa aqui, nesta delegacia?

Júlio olhou para as paredes descascadas, as infiltrações e os rasgos na poltrona. Nada respondeu. Borba, então concluiu: — Percebi que estava muito atento ao estado deprimente desta delegacia. É a isto mesmo a que me refiro, detetive. O senhor reparou nas portas com maçanetas desengonçadas, nas paredes sem pinturas, aparecendo o reboco. O senhor observou tudo isso e vem me pedir ajuda? Por acaso pensa que além deste cenário maravilhoso, o senhor vai encontrar um contigente ideal para auxiliá-lo nas suas investigações? Onde o senhor vive, detetive? Na Suécia?

— Por favor, delegado, claro que eu sei de tudo isso. Agora mesmo, quando o senhor chegou eu estava refletindo exatamente sobre o estado do prédio, mas o que eu preciso de uma pequena ajuda, nada que vá ocupar o seus homens por muito tempo.

— Os meus homens, detetive? Sabe com quantos homens disponho? Dois policiais e um escrivão, que agora, neste momento, está conversando na internet com a namorada, ou seja lá com que raio de gente ele conversa, mas acabei de ver quando fechei a porta.

— Não sei o que dizer, delegado.

— Pois não diga nada, meu amigo. Fique certo de uma coisa: eu não vou fazer o meu trabalho duas vezes só para ajudá-lo. Acho que deve usar as suas próprias armas.

— O senhor é um homem beligerante.

— E o senhor é assim tão pacífico?

— Eu só queria que tivesse uma conversa informal com os suspeitos, tenho alguns.

— A que crimes o senhor se refere?

— Acredito que tenham alguma relação, os crimes dos turistas assassinados e o da jovem Taís.

—O processo relativo aos turistas foi arquivado. Não posso reabrir o inquérito policial, se não há nenhuma novidade.

— A menos que tenha alguma relação.

— Por que diz isso?

— Tenho as minhas ferramentas, delegado. Mas acho, que deveria fazer um interrogatório com Rosa, a maestrina, com o mecânico Paulo, com Ana, adolescente que diz que ouviu o grito da moça, quando caíra no rio e dos garotos do grupo dela.

— Garotos?

— Especialmente Carlos, o filho do prefeito. Tenho certeza de ser for investigado, muita coisa pode sair daí.

terça-feira, julho 19, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 16º CAPÍTULO

No capítulo 14, percebemos que Ricardo abriu-se com Raul, na tentativa de saber alguma coisa sobre o crime que o acusavam. Raul comentara sobre o grupo de jovens que costumava fazer luais à beira do rio, nos quais havia envolvimento de drogas e sexo. Entre eles, estava Taís, a jovem que sentia-se atraída por Ricardo a ponto de assediá-lo e para seu azar, sendo assassinada. Quem seria o culpado ou os culpados por tal crime? O grupo de jovens, dos quais fazia parte Carlos, o filho do prefeito que organizava as festas? Ou os quatro jovens juntos, numa noite de loucura regada à bebida e drogas? Ou seria mesmo o médico, que lutava para ficar ileso? Também havia o antigo namorado da moça, o mecânico Paulo que tinha muito ciúme por ela. E Rosa, que papel teria nesta trama toda? A seguir o 15º capítulo de nosso folhetim policial.Divirtam-se.
Capítulo 16

Júlio sentou-se na poltrona e observou que as paredes de certo modo revelavam uma falência inevitável no sistema carcereiro da cidade. Era como se ali houvesse o registro do abandono pelo Estado pelo sistema policial: no próprio prédio, havia pichações de todo o tipo, além de profundas deteriorações nas paredes internas, com o surgimento dos tijolos sob o reboco frágil. Na poltrona, cortes de canivete, nos quais inevitavelmente afundava os dedos.

Estava assim pensativo, quando o Delegado Borba surgiu, fechando com firmeza a porta. Júlio voltou-se com o olhar perplexo. O outro sorriu e comentou, irônico:

— Detetive Júlio, para um homem da lei está se portando como um medroso. Não devia se assustar assim com a minha chegada.

Júlio levantou-se e apertou-lhe a mão, confiante.

— Não estou assustado, delegado. Só estava aqui, mergulhado nos meus pensamentos.

O delegado discursava, enquanto ajustava a cadeira para sentar-se atrás da escrivaninha.

— Quem pensa muito não age. O contrário da polícia, que não tem tempo de pensar.

Júlio sorriu e completou:

— Trilhamos caminhos diferentes delegado Borba, mas temos os mesmos objetivos.

O delegado não respondeu. Acionou o mouse, revelando a página da web em que estava navegando, sem levantar os olhos, embora parecesse atento às palavras do detetive. Este, prosseguia, enfático:

— Ainda bem que somos assim, obstinados no caminho da lei, não é mesmo?

O delegado ficou-o por alguns segundos, mostrando dúvida.

— Não sei não, meu amigo. Nossos métodos são oficiais, a gente não brinca de mocinho e bandido – fez uma pausa e prosseguiu, deixando o mouse – mas parece que voltou aqui para trabalhar.

— Podemos dizer que sim, mas não totalmente. Eu já tinha interesse em voltar, pelo menos, passar um tempo aqui, na minha terra natal.

— Então, o que o traz aqui?

— Quero uma ajuda da polícia.

— Uma ajuda, detetive? O senhor já não é pago para o seu trabalho? Se nós o ajudarmos, como é que fica? Quem vai nos pagar?

— Como lhe disse, delegado, andamos por caminhos paralelos. Sei que a polícia pode fazer oficialmente, o que eu na minha modesta atividade, não posso.

— Podemos esclarecer os crimes.

— Não quero entrar nesta seara, delegado. No que concerne a profissões, cada um sabe da sua. Eu precisava que o senhor me fornecesse alguns dados, ou melhor, que fizesse uns interrogatórios.

O delegado Borba ficou observando-o, como se refletisse no que dizia. Não suportava a ideia de dividir o serviço da polícia com um detetive particular, principalmente porque atrapalharia ainda mais as investigações.

— O senhor acha que pode me pedir isso, detetive Júlio?

— Oficialmente, não. Mas em nome de nossa amizade, delegado.

Borba sorriu levemente. Em seguida, levantou-se e foi até a porta, verificando se estava bem fechada. Depois, dirigiu-se à janela e ficou algum tempo olhando para a rua. Júlio coçou a cabeça, inseguro. Sabia que o delegado era osso duro de roer, mas devia insistir, por isso acrescentou:

— Sei que é um homem muito ocupado, mas nestes últimos casos que estão acontecendo na cidade... – o delegado o interrompeu, friamente, ainda em pé, próximo à janela – o que está vendo por aqui, detetive?

Júlio perguntou, indeciso :

— Como assim? V

oltando a sentar-se, Borba retoma a pergunta:

— vou lhe perguntar novamente, o que o senhor observa aqui, nesta delegacia?

Júlio olhou para as paredes descascadas, as infiltrações e os rasgos na poltrona. Nada respondeu. Borba, então concluiu:

— Percebi que estava muito atento ao estado deprimente desta delegacia. É a isto mesmo a que me refiro, detetive. O senhor reparou nas portas com maçanetas desengonçadas, nas paredes sem pinturas, aparecendo o reboco. O senhor observou tudo isso e vem me pedir ajuda? Por acaso pensa que além deste cenário maravilhoso, o senhor vai encontrar um contingente ideal para auxiliá-lo nas suas investigações? Onde o senhor vive, detetive? Na Suécia?

— Por favor, delegado, claro que eu sei de tudo isso. Agora mesmo, quando o senhor chegou eu estava refletindo exatamente sobre o estado do prédio, mas o que eu preciso de uma pequena ajuda, nada que vá ocupar o seus homens por muito tempo.

— Os meus homens, detetive? Sabe com quantos homens disponho? Dois policiais e um escrivão, que agora, neste momento, está conversando na internet com a namorada, ou seja lá com que raio de gente ele conversa, mas acabei de ver quando fechei a porta.

— Não sei o que dizer, delegado.

— Pois não diga nada, meu amigo. Fique certo de uma coisa: eu não vou fazer o meu trabalho duas vezes só para ajudá-lo. Acho que deve usar as suas próprias armas.

— O senhor é um homem beligerante.

— E o senhor é assim tão pacífico?

— Eu só queria que tivesse uma conversa informal com os suspeitos, tenho alguns.

— A que crimes o senhor se refere?

— Acredito que tenham alguma relação, os crimes dos turistas assassinados e o da jovem Taís.

—O processo relativo aos turistas foi arquivado. Não posso reabrir o inquérito policial, se não há nenhuma novidade.

— A menos que tenha alguma relação.

— Por que diz isso?

— Tenho as minhas ferramentas, delegado. Mas acho, que deveria fazer um interrogatório com Rosa, a maestrina, com o mecânico Paulo, com Ana, adolescente que diz que ouviu o grito da moça, quando caíra no rio e dos garotos do grupo dela.

— Garotos?

— Especialmente Carlos, o filho do prefeito. Tenho certeza de ser for investigado, muita coisa pode sair daí.

terça-feira, junho 07, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 3º CAPÍTULO

Capítulo 3

No carro, Ricardo ainda pensava nas palavras do amigo, mas por pouco tempo. Em seguida, chegou no hospital, teve a entrevista com o diretor e em pouco tempo já estava em franca atividade. Um hospital pequeno, com muitos problemas estruturais, não se podia dar ao luxo de priorizar algum espaço de tempo para reconhecimento. Ricardo deveria dar mãos à obra e foi o que se sucedeu durante todo o dia e nos que se seguiram. Ainda procurava um apartamento pequeno, mas a cidade não dispunha de muitas acomodações, por isso, permanecia no hotel, até porque o tempo escasso não permitia contatar as imobiliárias.

Aquela noite, estava especialmente cansado. Participara de uma cirurgia difícil e o andar das emergências estava literalmente ocupado. Tomou um banho, deitou e dormiu por um longo tempo. Quando acordou, já era de madrugada. No celular, algumas mensagens da namorada e de outros colegas, aos quais não fazia muito questão de conversar, naquele dia. Leu as mensagens, respondeu algumas. Respondeu alguns e-mails e tentou comunicar-se com a namorada.

Louise, por certo estaria dormindo àquela hora, mas devia, pelo menos, deixar alguma mensagem, esclarecer que estava exausto e que dormira, sem se dar conta da hora. Fora o que fizera. Depois, levantou-se, tomou água, olhou pela janela. Dobrou um pouco o corpo e espiou para a esquina, onde podia ver o parque que Raul lhe falara. Por um momento, veio-lhe a história à tona, a mensagem do jornal, a angústia do amigo. Esquecera-o completamente.

O que havia acontecido com ele, afinal? Nunca mais o procurara.

Uma aragem fria invadia a janela, empurrando a cortina para os lados.

Ricardo afastou-se e sentou-se na cama, fechando a janela. Pensou em ligar para Raul, mas seria melhor deixar as coisas como estavam. Provavelmente, se falasse com ele, não o deixaria em paz, embora a esta hora, talvez estivesse dormindo.

A notícia do jornal, entretanto não lhe saía da mente. Era uma coisa tão absurda, mas ao mesmo tempo tão plausível, por tudo que lhe contara. “As pessoas que possuem animais de estimação estão assustadas, porque junto ao corpo das vítimas, é deixado uma folha de papel com uma assinatura em forma de “S” ao lado do nome do animal de estimação.”

Ricardo lembrava da cara assustada de Raul, um pânico estampado no olhar, quando afirmou que haviam deixado uma folha no seu bolso, com as mesmas características.

“ ––No meu bolso, havia a mesma assinatura e o nome da Susi. Mas eu me salvei, aí esta a diferença!

––Mas o que a polícia diz disso?

––Ela não admite, acham tudo uma besteira imensa. Não acreditam no que a população fala, no que a população sente.

––Mas então?

––Então, eu quero solucionar este caso. Não sou detetive, mas não quero morrer, entende? Você, que não é daqui e nem é conhecido, pode me ajudar. Você tem que pedir uma necropsia das vítimas.

––De forma alguma, apenas um inspetor ou advogado das famílias das vítimas é que pode solicitar isso.

––Por favor, eu só tenho você, eu só confio em você. Tem que me ajudar. Não pode deixar que me matem, principalmente agora, que eles acham que eu sei de tudo. Eu falei para um policial, ele riu na minha cara e andou espalhando por ai, tenho certeza. Outro dia, um cara da pet esteve na minha casa, fazendo perguntas. Você tem que me ajudar, Ricardo, pelo amor de Deus.

–Está bem, deixe eu acertar a minha vida. Vou fazer umas pesquisas e quem sabe eu descubro o que você quer saber. Além disso, preciso achar um lugar para ficar, tenho que sair daquele hotel.

––Você pode ficar na minha casa, até que consiga encontrar um apartamento. Pode ficar na minha casa o tempo que quiser.

–Eu lhe agradeço, Raul, mas pretendo trazer minha namorada.

––Só até você encontrar o apartamento ideal pra você. Por favor, aceite. É uma boa casa, herança de minha mãe. Eu quero ajudá-lo também.

––Vou pensar, mas agora, preciso ir.

––Esta bem. Ficarei esperando a sua mensagem. Sei que não vai esquecer o meu problema. Não vai me deixar nas mãos deste assassino”

Ricardo abriu uma cerveja, agora um pouco ansioso por ter lembrado detalhes da história de Raul. Afinal, não tinha movido uma palha para ajudá-lo. Sentia-se culpado por ter esquecido completamente o amigo, nestes três dias em que esteve tão envolvido no hospital. E se tivesse acontecido alguma coisa com ele? E se tudo fosse verdade? Se alguém da pet shop estivesse envolvido com os crimes ocorridos? Por um momento, sentiu-se um canalha. Como abandonar uma pessoa que lhe pediu ajuda, quase em desespero, à própria sorte? E se ligasse para ele? Quem sabe, poderia ainda fazer alguma coisa. Daria uma desculpa, diria que tem investigado, pensado muito no seu caso. Foi o que fez. Procurou no celular o número e ligou. Esperou um pouco, apenas uma mensagem. Tentou mais duas vezes e nada. Ele não estava com o telefone ligado ou talvez estivesse dormindo. Sim, provavelmente estava dormindo, afinal, já passavam das duas horas da manhã. Mas, se estivesse morto? Se a desconfiança que tinha se confirmasse? Se eles o tivessem matado e desta vez, não apenas com a insulina, mas uma droga mais forte e letal? Seu coração disparava, assustado. Não podia dar crédito a estas loucuras. Isso só acontecia, porque perdera o sono, porque havia dormido antes da hora, porque andava muito cansado. Não devia mais pensar nisso e sim, tomar outra cerveja e tentar dormir. Neste momento, o telefone tocou. Mas não era Raul. Uma voz de mulher perguntava por que ele havia ligado para aquele número.

–– Desculpe, deve ter sido engano. É que estava tentando falar com um amigo.

–– E com quem você queria falar? –– Interrogava a voz rouca do outro lado.

–– Você não deve conhecer. Foi um equívoco, sim. Devo ter digitado o número errado.

–– Por acaso, não queria falar com Raul?

–– Raul? –– Por um instante, pensou em dizer tratar-se de outra pessoa, e se fossem os assassinos, se tivessem matado Raul e agora, quisessem saber que ligações ele tinha com o morto? –– Raul, você disse?

–– Sim, a pessoa para quem você acabou de ligar.

–– Não, quero dizer… mas quem está falando?

–– É uma pena, ele precisa tanto de ajuda.

–– Conhece Raul?

––Então era ele mesmo. Não me enganei.

–– Não, não se enganou. Onde ele está? Por que não me atendeu?

–– Porque ele não está nada bem. Mas se você quiser, poderá vir visitá-lo.

––A esta hora da noite?

–– E por que não? Não é onde você passa a maior parte do seu dia?

–– Como assim? Não estou entendendo.

–– Raul está no hospital, por isso não pode atendê-lo.

Ricardo calou-se por um momento, se perguntando como a pessoa sabia que se tratava dele.

–– Mas o que aconteceu com ele? Quem é que está falando?

––Ele teve mais um desses acessos de hiperglicemia. Sabe como é, ele não se cuida. Há dias que eu noto que ele vem se alimentando menos. Acho que vai se recuperar logo. É o que espero.

––Ele está consciente?

–– Agora sim, mas anda nervoso, muito assustado. Acho que isso provocou o desencadeamento da doença. Meu filho precisa muito de ajuda. Você prometeu ajudá-lo e o que fez? Abandonou-o à própria sorte.

“Meu filho”, Ricardo repete mentalmente. Raul morava em sua cidade natal, como residia agora em Sul Braga, possuindo segundo ele uma casa herdada pela mãe. Uma situação estranha, pois nunca o havia encontrado, quando fizera a residência médica nesta cidade.

A mulher silenciou, como se não tivesse mais nada a dizer. Ricardo explicou:

– Minha senhora, eu não o deixei à própria sorte. Na verdade, não sei exatamente o que está acontecendo.

– Acho que ninguém sabe, com certeza. — Ela comentava melancólica. Parecia mais tranquila, até arrependida de ter repreendido o amigo do filho. Por fim, convidou-o a ir na sua casa.

– Mas Raul não está no hospital?

– Exatamente. Por isso quero conversar com você, de preferência longe de meu filho.

– Mas hoje é muito tarde.

–Eu sei, mas gostaria que você viesse amanhã, de manhã sem falta. Talvez em nossa conversa esteja ajuda de que meu filho precisa.

Ricardo desligou o telefone. De repente, sentia uma angústia oriunda de fatos passados, cujos problemas não pode resolver. O que sentia não se relacionava ao caso de Raul, sabia, mas alguma coisa trouxe de volta um registro antigo que não conseguia distinguir do que se tratava. No entanto, alguma coisa o deprimia, uma sensação ruim, de confusão, de sentir-se perdido. Não sabia se fora a conversa com a mulher ao telefone, se o fato de dormir poucas horas e acordar assim, de madrugada, sobressaltado ou se fora apenas o cansaço do dia.

Um médico como ele, não podia se deixar levar por pensamentos subterrâneos, como se houvesse uma teoria da conspiração contra si e organizada pela própria mente. Às vezes, tinha convicção de que o mundo conspirava de forma ingrata contra ele. Ele que tinha tudo por que lutara, a sua profissão, a mulher que amava, uma vida cheia de planos e saúde ímpar, às vezes, sentia essa melancolia, como se qualquer coisa ruim desencadeasse o sofrimento contido.

Olhou pela janela novamente. Serviu-se de outra cerveja e ficou observando lá fora. A cidade estava morta. Tinha vontade de ficar ali, indefinidamente e não fazer mais nada. Nada que sugerisse qualquer mudança, até mesmo de posição física junto à janela.

De repente, como que tomado por um sentimento de culpa, decidiu ir ao hospital.

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A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

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