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A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 3º CAPÍTULO

Capítulo 3

No carro, Ricardo ainda pensava nas palavras do amigo, mas por pouco tempo. Em seguida, chegou no hospital, teve a entrevista com o diretor e em pouco tempo já estava em franca atividade. Um hospital pequeno, com muitos problemas estruturais, não se podia dar ao luxo de priorizar algum espaço de tempo para reconhecimento. Ricardo deveria dar mãos à obra e foi o que se sucedeu durante todo o dia e nos que se seguiram. Ainda procurava um apartamento pequeno, mas a cidade não dispunha de muitas acomodações, por isso, permanecia no hotel, até porque o tempo escasso não permitia contatar as imobiliárias.

Aquela noite, estava especialmente cansado. Participara de uma cirurgia difícil e o andar das emergências estava literalmente ocupado. Tomou um banho, deitou e dormiu por um longo tempo. Quando acordou, já era de madrugada. No celular, algumas mensagens da namorada e de outros colegas, aos quais não fazia muito questão de conversar, naquele dia. Leu as mensagens, respondeu algumas. Respondeu alguns e-mails e tentou comunicar-se com a namorada.

Louise, por certo estaria dormindo àquela hora, mas devia, pelo menos, deixar alguma mensagem, esclarecer que estava exausto e que dormira, sem se dar conta da hora. Fora o que fizera. Depois, levantou-se, tomou água, olhou pela janela. Dobrou um pouco o corpo e espiou para a esquina, onde podia ver o parque que Raul lhe falara. Por um momento, veio-lhe a história à tona, a mensagem do jornal, a angústia do amigo. Esquecera-o completamente.

O que havia acontecido com ele, afinal? Nunca mais o procurara.

Uma aragem fria invadia a janela, empurrando a cortina para os lados.

Ricardo afastou-se e sentou-se na cama, fechando a janela. Pensou em ligar para Raul, mas seria melhor deixar as coisas como estavam. Provavelmente, se falasse com ele, não o deixaria em paz, embora a esta hora, talvez estivesse dormindo.

A notícia do jornal, entretanto não lhe saía da mente. Era uma coisa tão absurda, mas ao mesmo tempo tão plausível, por tudo que lhe contara. “As pessoas que possuem animais de estimação estão assustadas, porque junto ao corpo das vítimas, é deixado uma folha de papel com uma assinatura em forma de “S” ao lado do nome do animal de estimação.”

Ricardo lembrava da cara assustada de Raul, um pânico estampado no olhar, quando afirmou que haviam deixado uma folha no seu bolso, com as mesmas características.

“ ––No meu bolso, havia a mesma assinatura e o nome da Susi. Mas eu me salvei, aí esta a diferença!

––Mas o que a polícia diz disso?

––Ela não admite, acham tudo uma besteira imensa. Não acreditam no que a população fala, no que a população sente.

––Mas então?

––Então, eu quero solucionar este caso. Não sou detetive, mas não quero morrer, entende? Você, que não é daqui e nem é conhecido, pode me ajudar. Você tem que pedir uma necropsia das vítimas.

––De forma alguma, apenas um inspetor ou advogado das famílias das vítimas é que pode solicitar isso.

––Por favor, eu só tenho você, eu só confio em você. Tem que me ajudar. Não pode deixar que me matem, principalmente agora, que eles acham que eu sei de tudo. Eu falei para um policial, ele riu na minha cara e andou espalhando por ai, tenho certeza. Outro dia, um cara da pet esteve na minha casa, fazendo perguntas. Você tem que me ajudar, Ricardo, pelo amor de Deus.

–Está bem, deixe eu acertar a minha vida. Vou fazer umas pesquisas e quem sabe eu descubro o que você quer saber. Além disso, preciso achar um lugar para ficar, tenho que sair daquele hotel.

––Você pode ficar na minha casa, até que consiga encontrar um apartamento. Pode ficar na minha casa o tempo que quiser.

–Eu lhe agradeço, Raul, mas pretendo trazer minha namorada.

––Só até você encontrar o apartamento ideal pra você. Por favor, aceite. É uma boa casa, herança de minha mãe. Eu quero ajudá-lo também.

––Vou pensar, mas agora, preciso ir.

––Esta bem. Ficarei esperando a sua mensagem. Sei que não vai esquecer o meu problema. Não vai me deixar nas mãos deste assassino”

Ricardo abriu uma cerveja, agora um pouco ansioso por ter lembrado detalhes da história de Raul. Afinal, não tinha movido uma palha para ajudá-lo. Sentia-se culpado por ter esquecido completamente o amigo, nestes três dias em que esteve tão envolvido no hospital. E se tivesse acontecido alguma coisa com ele? E se tudo fosse verdade? Se alguém da pet shop estivesse envolvido com os crimes ocorridos? Por um momento, sentiu-se um canalha. Como abandonar uma pessoa que lhe pediu ajuda, quase em desespero, à própria sorte? E se ligasse para ele? Quem sabe, poderia ainda fazer alguma coisa. Daria uma desculpa, diria que tem investigado, pensado muito no seu caso. Foi o que fez. Procurou no celular o número e ligou. Esperou um pouco, apenas uma mensagem. Tentou mais duas vezes e nada. Ele não estava com o telefone ligado ou talvez estivesse dormindo. Sim, provavelmente estava dormindo, afinal, já passavam das duas horas da manhã. Mas, se estivesse morto? Se a desconfiança que tinha se confirmasse? Se eles o tivessem matado e desta vez, não apenas com a insulina, mas uma droga mais forte e letal? Seu coração disparava, assustado. Não podia dar crédito a estas loucuras. Isso só acontecia, porque perdera o sono, porque havia dormido antes da hora, porque andava muito cansado. Não devia mais pensar nisso e sim, tomar outra cerveja e tentar dormir. Neste momento, o telefone tocou. Mas não era Raul. Uma voz de mulher perguntava por que ele havia ligado para aquele número.

–– Desculpe, deve ter sido engano. É que estava tentando falar com um amigo.

–– E com quem você queria falar? –– Interrogava a voz rouca do outro lado.

–– Você não deve conhecer. Foi um equívoco, sim. Devo ter digitado o número errado.

–– Por acaso, não queria falar com Raul?

–– Raul? –– Por um instante, pensou em dizer tratar-se de outra pessoa, e se fossem os assassinos, se tivessem matado Raul e agora, quisessem saber que ligações ele tinha com o morto? –– Raul, você disse?

–– Sim, a pessoa para quem você acabou de ligar.

–– Não, quero dizer… mas quem está falando?

–– É uma pena, ele precisa tanto de ajuda.

–– Conhece Raul?

––Então era ele mesmo. Não me enganei.

–– Não, não se enganou. Onde ele está? Por que não me atendeu?

–– Porque ele não está nada bem. Mas se você quiser, poderá vir visitá-lo.

––A esta hora da noite?

–– E por que não? Não é onde você passa a maior parte do seu dia?

–– Como assim? Não estou entendendo.

–– Raul está no hospital, por isso não pode atendê-lo.

Ricardo calou-se por um momento, se perguntando como a pessoa sabia que se tratava dele.

–– Mas o que aconteceu com ele? Quem é que está falando?

––Ele teve mais um desses acessos de hiperglicemia. Sabe como é, ele não se cuida. Há dias que eu noto que ele vem se alimentando menos. Acho que vai se recuperar logo. É o que espero.

––Ele está consciente?

–– Agora sim, mas anda nervoso, muito assustado. Acho que isso provocou o desencadeamento da doença. Meu filho precisa muito de ajuda. Você prometeu ajudá-lo e o que fez? Abandonou-o à própria sorte.

“Meu filho”, Ricardo repete mentalmente. Raul morava em sua cidade natal, como residia agora em Sul Braga, possuindo segundo ele uma casa herdada pela mãe. Uma situação estranha, pois nunca o havia encontrado, quando fizera a residência médica nesta cidade.

A mulher silenciou, como se não tivesse mais nada a dizer. Ricardo explicou:

– Minha senhora, eu não o deixei à própria sorte. Na verdade, não sei exatamente o que está acontecendo.

– Acho que ninguém sabe, com certeza. — Ela comentava melancólica. Parecia mais tranquila, até arrependida de ter repreendido o amigo do filho. Por fim, convidou-o a ir na sua casa.

– Mas Raul não está no hospital?

– Exatamente. Por isso quero conversar com você, de preferência longe de meu filho.

– Mas hoje é muito tarde.

–Eu sei, mas gostaria que você viesse amanhã, de manhã sem falta. Talvez em nossa conversa esteja ajuda de que meu filho precisa.

Ricardo desligou o telefone. De repente, sentia uma angústia oriunda de fatos passados, cujos problemas não pode resolver. O que sentia não se relacionava ao caso de Raul, sabia, mas alguma coisa trouxe de volta um registro antigo que não conseguia distinguir do que se tratava. No entanto, alguma coisa o deprimia, uma sensação ruim, de confusão, de sentir-se perdido. Não sabia se fora a conversa com a mulher ao telefone, se o fato de dormir poucas horas e acordar assim, de madrugada, sobressaltado ou se fora apenas o cansaço do dia.

Um médico como ele, não podia se deixar levar por pensamentos subterrâneos, como se houvesse uma teoria da conspiração contra si e organizada pela própria mente. Às vezes, tinha convicção de que o mundo conspirava de forma ingrata contra ele. Ele que tinha tudo por que lutara, a sua profissão, a mulher que amava, uma vida cheia de planos e saúde ímpar, às vezes, sentia essa melancolia, como se qualquer coisa ruim desencadeasse o sofrimento contido.

Olhou pela janela novamente. Serviu-se de outra cerveja e ficou observando lá fora. A cidade estava morta. Tinha vontade de ficar ali, indefinidamente e não fazer mais nada. Nada que sugerisse qualquer mudança, até mesmo de posição física junto à janela.

De repente, como que tomado por um sentimento de culpa, decidiu ir ao hospital.

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