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terça-feira, fevereiro 07, 2017

M o E d A s NaS F r E s T a S

Corri e juntei com as mãos todas as moedas. Nem pareciam de ouro, prata ou qualquer metal precioso. Eram de cobre ou estanho vagabundo, não sei. Mas faziam parte do meu mundo.

Quando as atiraste no assoalho de casa, custou-me encontrá-las, caídas algumas nas frestas quase fendas que se abriam na madeira tosca. Temia até empurrá-las mais para baixo e chegar ao inferno. Temia enfiar a mão e todo meu braço ser sugado pelo inimigo desconhecido.

A noite se formava lenta e eu sabia que precisava com urgência juntá-las e apanhá-las do chão antes que chegasses. Por certo, ririas na minha cara com aquele riso debochado que sempre se acendia nas horas de absoluta ironia.

Quantas vezes te evitei e fingi desconhecer tuas metas.

Quantas não ouvi o guizo de teu pescoço, saltitando pela floresta perto de nossa casa. Quantas vezes te esperei faminto e sonolento, com a certeza de que não virias.

Mas hoje tinha certeza de que o sangue que te alimentava, alimentava também minha solidão. O sangue que trazias em tua boca suculenta, me dilacerava as veias da alma, mas as libertava para entrar no teu mundo bolorento e sujo.

Quisera fugir muitas vezes, é verdade.

Queria recusar teus carinhos, teus afagos, teus mordazes gestos de dominação.

Mas não podia, não ousava nem tinha coragem. Sabias por certo de minhas fraquezas e zombavas disso.

Hoje porém jogaste todas as moedas fora. Deixaste de lado a única coisa que me ligava à vida passada, à vida que não era mais minha, que devia ser esquecida, mas que eu teimava em relembrar e tentar experimentar o que haviam deixado. Marcas, cinzas de um passado glorioso, expurgado pelo fogo tisnando as paredes, envolvendo em brasas o piso maciço, lambendo meus braços e pernas, retorcendo meus dentes e afundando-me o crânio. Não era mais nada, um pedaço tisnado jogado num piso dilacerado.

Sei que me salvaste, que me deste a vida, que me transformaste num brinquedo obediente e cínico. Não importa. Tinha meu visgo deixando marcas no presente. E que o passado se fodesse. Que eu me tornasse único. Um ser só, sem vida, sem perspectivas, sem passado, sem desejos, sem futuro.

Trouxeste as moedas e jogaste na minha mesa.

Puseste tuas mãos peludas e rudes nos meus frágeis frangalhos de braços e mãos, beijaste minha boca com lascivo desejo. Me possuíste com fúria e poder.

Depois, jogaste tudo pro alto. Lambeste o chão, como um verme que vomita o próprio lastro, para marcar presença. Fugiste de mim, volúvel, me deixaste só.

Ouço teu uivo ao longe, nas cercanias, mas longe, só porque o som ecoa. Sei que não virás.

As moedas que jogaste trouxeram a sina que carrego para sempre. As moedas são foscas, velhas e amassadas. Passaram de gerações e não valem nada, nem o valor da substância que as constituem. Sei que foi o símbolo de tua ida e nunca-mais volta. Sei que quiseste afirmar que o guizo anunciará cada vez mais longe e que talvez o teu ciclo acabe e não voltes mais como lobo sedento e amante, mas homem alienado nas rotinas do mundo.

Quisera que fosses assim, como sempre foste. Um mundo à parte, um mundo que se desenrola entre paredes de sangue e paixão. Uma paixão eterna, num lobo deformado e velho. Quisera que teus dentes apodrecessem e teu coração se degringolasse em meu colo. Serias meu. Seria teu. E num lapso de tempo, morreríamos do mesmo mal.

Mas jogaste as moedas e não posso buscá-las, porque o assoalho está cada vez mais podre, tudo em ruínas, o mundo em ruínas, o outro não existe na minha percepção, só o lobo que me persegue. Quisera sentir tuas garras no meu pescoço, teu lombo em minhas costas e teus dentes em minha boca.

Quisera reviver o fascínio da morte em vida.

Agora o silêncio entre árvores milenares, o instante do último sinal, tudo parou, se aquietou.

O vidro da janela se estilhaça no chão. Recolho os cacos devagar e por um momento, me olho, imaginando no espelho. Não reconheço o outro que vejo, não reconheço a diferença em meu entendimento e razão. Não é aquele que sou. Por isso não o quero.

Volto-me para as moedas. Já não ouço nada, nem o eco de teus vagidos. Enfio o meu braço nas fendas do assoalho, devagar, levo a mão direita tateando pelos cantos, sentindo pequenas fricções de penas de pássaros, algumas teias de aranha, tudo muito tranquilo, nada peçonhento, nem monstros me segurando.

Fico cada vez mais curioso e enfio o braço atingindo o chão gosmento de lama.

Enfio os dedos no que suponho a lama encharcada dos esgotos que vazam dos rios. Procuro as moedas, vou de um lado para o outro até me doer o braço direito.

Ouço um leve tilintar, como se encontrasse as moedas na escuridão.

Procuro ansioso e não encontro nada, o ruído aumenta cada vez mais. Sinto que meu braço mergulha naquele aterro sem vida, amorfo e medíocre.

Se Deus que criou esse desejo medonho, porque não me deixa chafurdar na lama com prazer? Por que me reprime e me despe da paixão.

Se amar tem um preço, por que não o valor das moedas que tinha em mãos?

Retiro a mão num ímpeto.

Levanto-me e tropeço numa tábua que se solta.

Meu braço se confunde com a tisna de meu corpo.

O barulho aumenta e se aproxima; o tilintar absurdo que me rasga os tímpanos. Corro para a janela estilhaçada.

Olho para a escuridão e um brilho de chocalho cega meus olhos.

É ele, com o guizo sacudindo no pescoço, como animal desenfreado num estouro da boiada.

É ele que se aproxima fazendo barulho, me procurando para acabar, por certo, com a nossa ruína.

terça-feira, julho 12, 2016

O cofre e as moedas

Seguir certas crenças ou talvez quaisquer delas, cristãs ou não, têm-se a impressão de que muitas vezes, Deus situa-se longe demais, num espaço tão distante que se equipara a estrelas inatingíveis. Pelo menos, o Deus do amor que Cristo nos revelou.

Nestas religiões ou crenças, o contato com Deus exige muitos caminhos e a maioria deles tem meandros que desembocam em labirintos, aos quais não temos acesso ou nos perdemos na viagem.

Para este contato, ficamos a sós, despidos de qualquer humanidade ou desejo, onde os conceitos se constroem nos percalços de uma sociedade idiotizada, na qual o ser humano parece o último da hierarquia animal.

Para elas, as crenças e seus idealizadores, atingir este contato exige sobrepujar a dor, exaltar a imagem em detrimento do conteúdo, reproduzindo um ambiente de felicidade.

Para ter o contato com Deus é preciso ser aceito na clã e equilibrar-se em cabos sob precipícios, sem rede de apoio, perdidos na fé cega de quem alcança apenas a palavra blindada. Na verdade nada é tão inseguro quanto a trajetória ditada.

Caminhar limpo pela estrada, decidido e verdadeiro, uma verdade padronizada dos que se encharcam nas medidas dos cofres, cujas moedas tilintam à beira do altar.

Talvez este contato não dê em nada, nem o homem seja feliz, nem se sinta solidário. Ao contrário, cruel e determinado no julgamento, na intolerância e no ódio.

Talvez o único contato com Deus, seja o avesso de tudo isso, das crenças, das religiões que pregam a ruptura do ser humano em sua plenitude, quando o querem dividido e parcial, um indivíduo no grupo e outro na sociedade.

Ou quando o preconceito ameaça a falência da humanidade, embora enalteçam o pecado como elemento de temor e incerteza.

Será que o néctar e o perfume se unem na natureza e não podemos aprisionar em nossas narinas, se eles são de Deus?

Talvez o contato se dê no viés do amar, arriscar-se e até errar, porque a substância é de Deus.

Às vezes, tudo é muito pouco, quando este tudo é apenas um rascunho de princípios contra a humanidade. O homem é muito mais do que seguir o que outros homens pregam.

Talvez o contato se dê mais simples, quando nos despirmos de nossas vestes surradas e pesadas de conceitos que nos apropriem de uma única faceta, a qual jamais seremos capazes de revelar e apresentemos a alma leve, tão leve que a inspiração de Deus a toque e transforme.

Fonte da ilustração: Gerd Altmann, de Freiburg/Deutschland, do site https://pixabay.com/

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