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terça-feira, agosto 22, 2017

Uma história em comum

Ele fechou a porta devagarinho e ficou se perguntando se era capaz. Capaz de olhar aquele quadro degradante. Capaz de perguntar-se a si mesmo se havia tido uma história em comum. Se tomara café junto. Se partilhara dos mesmos sonhos, mesmas esperanças, mesmas expectativas.

Lágrimas corriam involuntárias. Mas não tinha aquele sofrimento todo. Uma náusea incólume, que inundava a alma, o espírito. Vontade de sair, de respirar, de tomar ar puro.

Temia abrir a porta e presenciar a cena, ver o corpo estendido no chão, a garrafa de bebida ao lado, espargindo-se entre os ladrilhos brilhantes, límpidos, impolutos. Os dedos longos, frios, finos, anéis, comprimidos, cenário grotesco, comum, teatro barato. Pena. Sentia pena dela. Pena pela fragilidade, penúria.

Ainda ontem, haviam se encantado pelas calçadas, avistado luzes novas no horizonte, ventos favoráveis que sopravam. Deram esmola a pedintes, abrigo a velhos desamparados. Sorriram felizes com a desgraça alheia. Estavam quase felizes. Burocráticos, fiéis ao senso comum. Ao dar para receber. Aparências. Caminhar juntos, fingir que pensavam. Fingir que sentiam-se próximos, vivos. Talvez estivessem mais mortos do que ela, hoje.

Agora aquele vento frio da rua, o barulho das buzinas, o zunzum intermitente do trânsito, as vozes apressadas soando aos ouvidos. Crianças que correm, patins na calçada, skates, bicicletas. Sorrisos francos. Felizes. Por que se sentir assim, alijado desta felicidade? Arremessado ao mundo tenebroso, fúnebre, espectador do outro: cheio de luzes, lá fora, com risos, mãos carinhosas, que se enlaçam, bocas que se tocam sorrateiras, brincando, balbuciando palavras doces, gestos leves e brejeiros. Um mundo distante que avista pela janela.

Por que ficar tão longe, inatingível. Atingido pela dor, pela saudade do que já foi, do que passou ou do que nunca viveu.

Entrou num bar, pediu café, vasculhou no celular pela enésima vez o e-mail. Tomou o café demorado, lento, mãos presas na xícara, como garras, lábios trêmulos, a barba crescida coçando no queixo. Acendeu um cigarro.

De repente, um silêncio quase absoluto no recinto. As bocas pararam devagar, como se mastigassem mingau em câmera lenta. Olhares surpresos, assustados.

Ele, gesto louco que não fazia há tanto tempo. Guardara a carteira para uma ocasião como esta. Sabia disto. Cigarro amassado no canto dos lábios.

Uma batidinha no balcão. Cinzeiro de vidro. Coisa antiga. Objeto obsoleto. Incrível que ainda tivessem ali, naquele bar de quase não fumantes. Olhares de censura. Acenos de cabeça, quase pedidos, súplicas para não cometer aquela loucura.

Acuado, dirigiu-se à porta e tragou mais uma vez. Retornou ao balcão e apagou o cigarro.

Em seguida, levaram o cinzeiro, aliviados. Alguns sorriram, complacentes. Outros voltaram ao assunto usual. Conversas de costume: política, futebol, mulheres, trabalho, não necessariamente nesta ordem. Capricharam nos verbos, nos gestos, na fala alterada.

O barulho do bar ficou ensurdecedor. Voltou ao normal. Doíam-lhe os ouvidos. Ouvia, naquela barafunda toda, a voz da mulher, também pedindo, suplicando por uma nova chance.

Oportunidade única para exercer a bondade.

Cansara de ser bom, de ver os dois lados da moeda, de discutir todos os aspectos das situações e avaliar todos os pontos de vista.

Queria ser egoísta, autoritário, arrogante, malicioso e mau, infinitamente mau, como todos os outros. Como ela. Por isso saiu do bar e não a ouviu mais.

Mas o vento fustigava-lhe o rosto e trazia com ele vozes absurdas, lembranças tão vívidas que temia um retorno ao passado. Um passado que enterrara para sempre.

Via-se sentado, em frente à máquina de escrever, dedos tiritando de frio, noite de inverno e medo. Treze anos de vida e uma carga emocional quase adulta. Via a mãe na janela do quarto, que desembocava no pátio, caminhando pelas vielas do jardim, pesquisando ervas de chá, remédios que curassem a eterna dor da alma, da solidão. Ele batendo os dedos, cada vez mais forte, para não lhe ouvir os passos. Não sentir as mãos pousadas no ombro, pedindo que contasse as noticias do dia, as histórias que escrevia, os trabalhos de aula e aquele cheiro de uísque barato inundando o ambiente. Tinha náusea e sentimento de culpa por não compreender tão grande dor. De ter ódio do pai, de sabê-lo distante, esquecido deles.

Aquele ritual se repetia e as histórias se acumulavam. Muitas das que contava nada tinha a ver com o que escrevia. Ele mesmo as inventava, na hora e punha um ponto final trágico para inspirar suspiros.

A mãe nem ouvia, embalada que estava no teor de suas próprias alucinações. Suas histórias eram bem mais sinistras do que as dele. Um dia a viu morta, inchada, olhos esbugalhados, congestionados de álcool.

Quase a ouvia chamando, pedindo socorro, tal como a mulher o fizera, mas batia tão forte na máquina que não a escutara.

Estava assim, absorto, num passado morto e enterrado, que nem percebera o quanto tinha se afastado de casa.

A noite já chegava depressa. Ouvia o burburinho da volta, os ônibus superlotados, filas imensas nas estações do metrô. Pessoas sozinhas, sem mais aquele brilho de felicidade. Tão solitárias e tristes quanto ele. Apenas sem a tragédia imediata. Somente a tragédia de suas vidas vazias.

Então lembrou em voltar para casa, executar os trâmites necessários, chamar um médico, talvez até a polícia.

Voltou ansioso, coração aos saltos.

Avistou o prédio em polvorosa. Comentários à solta. Porteiros, faxineiras, condôminos conversando, quase aos gritos. Um corpo enrolado em lençóis, numa maca, saindo do elevador. Alguém chamou a polícia.

Eles estavam ali, à espera, à espreita. Que queriam? Correu para a cena, ingressou no cenário e sentiu o feixe de luzes dos refletores na cara.

Uma voz firme, um gesto autoritário e a pergunta fatal:

— É o marido?

Vontade de fugir, afastar-se dali e esconder-se do drama. Argumentar qualquer coisa, fingir desconhecimento.

Era tarde. As mãos se juntaram, o metal brilhante doía, latejavam as veias dos pulsos. E a voz soava mais firme, mais forte:

— Está preso.

quinta-feira, junho 02, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 2º CAPÍTULO

No capítulo anterior, a professora e maestrina Rosa estava muito preocupada com o seus colegas do coral, porque pareciam muito agitados e até alguns, descontentes com as pessoas que vieram trabalhar na hidrelétrica da cidade. Decidira marcar uma reunião com eles. Quando voltava da escola estava pensando nisso, e sentiu-se um pouco apreensiva no caminho, que embora rotineiro, naquela noite, parecia mais longo e assustador. Sentia que havia alguém à espreita, que poderia atacá-la a qualquer momento. Ao chegar em casa, teve o pressentimento de que seu cão labrador estava morto. Continua agora no 2º capítulo de nossa história policial “ UM CRIME NA CIDADE QUE SABIA DEMAIS"
Capítulo 2

Ricardo Silveira levantou assustado, ouvindo o toque do celular. Puxou rápido, do criado-mudo o aparelho e dispensou o alarme, tentando espreguiçar-se um pouco ainda no calor da cama. Percebeu um número desconhecido. Deixou pra lá. Estava frio lá fora, apesar da primavera que já se adiantava. Encolheu-se na posição fetal, como uma criança. Mas não havia o que fazer, se não enfrentar o que vinha lá fora. Um frio do caralho, pensou. Correu para o chuveiro, despindo-se pelo caminho e ensaboou-se rapidamente.

Pela vidraça, olhou para a rua que parecia embranquecida de geada. Que merda de inverno que não passa nesta cidade! Em seguida, secou-se e enfiou as roupas que deixara atiradas sobre uma poltrona, ao lado da cama.

Acabou de vestir-se, desceu rapidamente até o restaurante. Tomou o café, com os olhos fixos no celular. Tinha a sensação de que o dia seria pesado. Afinal, um dos compromissos era encontrar o amigo de infância que não via há tanto tempo. Por que o procurara? O que o angustiava tanto a ponto de querer confiar-lhe um segredo? Logo para ele, que era praticamente um desconhecido. Dissera que soubera que viera à cidade, que era medico e que poderia ajudá-lo. Mas que diabo de ajuda queria?

Além desse pedido inusitado, tinha que apresentar-se ao hospital, no primeiro dia de sua chegada, procurar um apartamento para morar, fixar residência, mesmo que por um tempo determinado. Voltava finalmente à velha Sul Braga, cidade que conhecera há um ano atrás. Uma cidade que sopra um vento intermitente, uma aragem fria que parece não ter fim. Mas que fazer, estava de volta. Ali conseguira seu primeiro emprego e estava pronto para começar a vida.

Quando saiu da garagem do hotel, dirigiu-se ao posto de gasolina. Em seguida, percorreu as ruas próximas do posto, que também não ficava muito longe do hotel, nem da igreja, nem da prefeitura, nem da pequena praça que era circundada por vielas estreitas de paralelepípedo.

Ele pretendia dirigir-se ao hospital, que também ficava nas redondezas, mas o cara parecia apavorado. Por que teria de encontrá-lo num lugar tão estranho? Um velho trapiche, que num dia frio e cinzento como hoje, deveria estar praticamente deserto. Olhou ao longe, com a lembrança do pórtico de ferro, que dava as boas vindas ao visitante. Um pórtico cheio de arabescos, enferrujado, com motivos um tanto fora do comum.

Assustou-se ao atravessar um cachorro à frente do carro e freou bruscamente. Respirou aliviado vendo o animal sumir-se na esquina. Não demorou muito, estava no trapiche de madeira. Estacionou e ficou observando, esperando que o amigo estivesse lá, em um lugar qualquer, próximo a um barco estacionado à beira do cais. Não viu ninguém. A cidade parecia vazia. Aliás, durante todo o percurso, quase não viu ninguém, como se hoje fosse feriado. Procurou alguma mensagem no celular. Talvez o amigo houvesse desistido, avisando-o que não seria mais preciso a sua presença. Que filho da puta, pensou. Fazê-lo perder seu tempo precioso.

Estava assim, absorto, procurando as mensagens, quando alguém bateu na vidraça do carro. Era um homem barbudo, meio gordo, com olhos pequenos e um tremelique no lábios. Pensou logo tratar-se de um pedinte ou cuidador de carros. Decidiu não responder e dar o fora dali, imediatamente. Mas o outro insistiu. Então, abriu um pouco o vidro.

O homem sorriu e falou, quase em segredo:

– Sou eu, Ricardo. Raul.

Somente neste momento, percebeu que se tratava do tal amigo de infância, que nem reconhecera. Desceu do carro, fez a tentativa de apertar-lhe a mão, mas o outro o abraçou com força, deixando-o desconcertado. Ficou sem ação, procurando o que dizer. Observou que Raul enchia os olhos d’água.

– Cara, faz tanto tempo, mas você não mudou nada. É o mesmo cara malandrão, com aqueles olhos grandes de peixe morto. Você está igual.

– Acho que o que você vê nos meus olhos é o efeito dos óculos, que sempre aumentam o tamanho. E depois, estou mais velho, né. Estou com 27 anos. E você?

– 30. Eu era mais velho, estava meio atrasado na escola. Ricardo calou-se. Raul o convidou para irem até um banco, próximo à lagoa. Lá ficariam olhando para o horizonte, enquanto conversavam. De repente, abria sol e melhorava o tempo.

– Tomara. Só que não tenho muito tempo, Raul. Se você não estivesse tão desesperado no telefone, talvez eu nem viesse. Tenho milhares de coisas pra fazer, preciso ira ao hospital, ainda procurando um apartamento para alugar, essas coisas.

–Eu sei, meu amigo, eu sei. Mas eu só podia contar com você, nesta cidade.

– Como assim?

Ele fez um silencio breve. Em seguida, explicou:

– Nesta cidade, não se pode confiar em ninguém. Nem na polícia, nem nos vizinhos, nem no padre. Em ninguém.

Fez um gesto indicando o banco. Uma espécie de tábuas acomodadas como banco, um assento tosco, feito provavelmente pelos próprios barqueiros. Ricardo obedeceu. Sentou-se, esperando que Raul iniciasse a conversa.

Ele retirou um pequeno embrulho do bolso e começou a fazer um baseado. Ricardo o observou, surpreso.

– Você se importa?

– Pessoalmente, não. Você acha que isso é adequado, agora?

– Meu amigo, aqui só os peixes nos vigiam. Se é que ainda existem peixes nesta lagoa.

– Mas você disse que não pode confiar em ninguém, e de repente, começa a fumar um baseado? Quem disse que não há uma câmera por aqui, que não estão vigiando a gente?

–E quem pode me prender por fumar um baseado? Não se preocupe com isso. Mas olhe, se isso o incomoda, eu posso deixar. Só uso pra ficar mais relaxado. Ando muito tenso, sabe?

– Tudo bem, vamos em frente. Me diga, o que aconteceu com você? Por que me chamou?

Raul refletiu um pouco. Aprontou o cigarro, acendeu-o e deu uma tragada demorada. Depois, olhou fixamente para o amigo, abraçou-o mais uma vez.

Ricardo, visivelmente incomodado, afastou-se um pouco. Pediu que se apressasse, ele tinha muito o que resolver. Já dissera isso.

– Desculpe, meu amigo. Não quero importuná-lo, prejudicar a sua vida. Mas eu sei, tenho certeza, que você é a única pessoa que pode me ajudar.

– Então me diga, o que aconteceu?

– Você é casado?

– Não, mas o que isso tem a ver?

– Mas tem alguém esperando você em sua cidade?

– Sim, tenho uma namorada. Logo que eu me instalar aqui e estiver tudo organizado, ela virá também. Mas, podemos conversar sobre isso, numa outra hora. Agora, o que interessa é o seu problema.

–Eu sei, eu sei meu amigo. O meu problema. – Dá mais uma tragada e confessa. – Eu já fui casado, por dois anos. Ela foi embora. Nem sei por onde anda.

– Espere, Raul, isso tem a ver com o que quer me contar?

– Diretamente, não. Talvez tenha com a minha solidão, a minha carência. Depois que ela foi embora, eu arranjei uma cachorrinha. Uma vira-latas. Suzi. Dei a ela o mesmo nome de minha amada. Susi. Um lindo nome, não acha?

– Sim.

– Pois veja você, eu e Susi sempre vamos no pet shop que fica na rua principal, aquela perto do hotel em que você está hospedado. Pet shop Dragão. Um nome idiota para uma pet shop, não acha? -–– E dá uma gargalhada. –– Nada a ver. Hilário, isso.

Ricardo estava cada vez mais irritado. Já não se continha em ouvir o amigo que nunca chegava a um denominador comum. Foi ríspido o necessário para informar que iria embora, se ele não contasse de uma vez porque precisava de sua ajuda.

– Desculpe, meu amigo. Você tem razão. Na penúria que anda a minha vida, eu costumo me desligar do problema real e fico falando merda mesmo. Mas tudo o que eu disse, tem a ver com o meu problema, você pode ter certeza do que estou dizendo.

– Então me explique, você faz rodeios e não chega a lugar nenhum.

Mais uma vez, encheu os olhos d’água e parece ter tido um pequeno apagamento. Por um momento, ficou observando a lagoa, sem nada dizer.

Ricardo levantou-se indo na direção do carro.

Raul deu mais uma tragada na bagana, jogando-a em seguida no chão. Levantou-se também e se aproximou do amigo. Pegou o seu braço e disse, quase num suspiro:

– Por favor, não me abandone. Vou morrer. Se você me deixar, eles me matarão.

– Mas do que você esta falando?

–Vamos sentar ali, por favor. Olhe, parei de fumar. Já estou legal. Vou contar tudo para você.

– Está bem. Então comece sem rodeios. Seja objetivo, por favor. E depois, nem sei como poderei ajudá-lo. Não sou da polícia, não sou advogado…

– Não, nem me fale nessa gente. Eu preciso de você, preciso de um amigo e de um médico.

Sem terminar a frase, dirigiu-se ao banco de madeira. Ricardo obedeceu, voltando a sentar ao seu lado.

–Vamos, estou esperando.

–É o seguinte: quando falei na Susi…

–Não vai começar, Raul.

– Eu preciso falar na Susi. Não me refiro a minha namorada, isto é, ex-namorada. É na cachorra mesmo. Quando eu falei nela, eu queria me referir ao pet-shop.

–Sei, o pet shop Dragão.

–Pois é, você o viu quando chegou ao hotel, não?

–Raul, eu cheguei ontem à noite no hotel. E quando fiquei aqui em Sul Braga, passava o tempo todo no hospital fazendo residência. Meu apartamento ficava no outro lado da cidade.

–Está bem, quer dizer que não conhece a loja?

–Não, não conheço.

–Bem, ela fica atrás da praça, logo que passa o hotel. E do outro lado, nos fundos da loja, tem um parque, mas não é um parque bem cuidado, organizado pela prefeitura. É um amontoado de árvores e trilhas feitas pelo pessoal que passa por ali, é praticamente um mato. É um mato, na verdade.

–Sim, e daí?

Raul silencia por um momento, como se refletisse o que tinha a dizer. Em seguida, responde, com afoita rapidez.

–Daí que a polícia anda atrás de um assassino em série, um serial killer como dizem na TV. Ele ataca neste parque, tá sabendo? Já fez cinco vítimas!

– É verdade?

– Sim. Estas pessoas tem alguns traços em comum. São geralmente homens, apenas uma era mulher. Em geral são gordos, frágeis, e não são, como direi a você, muito objetivas nos seus planos. E todas têm, ou tinham um animal de estimação. Dizem os policiais que para o assassino, o fato de ter um cãozinho ou um gato, o cara é um fraco, o animal não passa de uma muleta. E ele, o assassino não suporta isso. Na verdade, nem sei se foram os policiais que disseram isso ou se foi a psicóloga que falou na TV. Eu ando meio esquecido, sabe?

– É normal.

– Por que?

– Deixe pra lá. Mas o fato destas pessoas possuírem um animal de estimação, não significa nada. Hoje em dia, a maioria das pessoas tem algum animal em casa.

– Eles não conseguem pegar o bandido. Mas eu tenho uma suspeita, só que não posso falar pra ninguém. Ricardo procura alguma coisa no bolso da camisa. Retira uma pequena caderneta e uma caneta como se fosse anotar alguma coisa. O amigo o olha surpreso, mas o que obtém é uma pergunta quase displicente.

–Você acha que tem a ver com o petshop?
Raul alegra-se com a pergunta. Exclama entusiasmado:

–Você é muito inteligente, Ricardo.

– Mas você tem medo de quê? Quer dizer que tentaram matá-lo também? –– Pergunta enquanto anota a placa do carro de Raul. Este nem se apercebe, começa a falar meio ofegante, mas firme.

–– Certa vez, eu fui buscar ração para Susi. Eu já sabia dos crimes, andava até meio apavorado, mas a gente sempre acha que nunca vai acontecer com a gente, né? Pois eu sai, naquele dia, lembro bem, era uma sexta-feira, estava até uma temperatura agradável, eu atravessei a rua, quando voltava do pet shop e fiquei na esquina, esperando o ônibus. Ali, tem um ônibus que passa bem perto de minha casa, sabe? Eu estava com pressa, a Susi passou o dia inteiro sem ração, mas como o ônibus não aparecia nunca, resolvi ir até a praça para pegar um táxi. Nisso, parou um carro, bem perto do parque, esse matagal, de que lhe falo, que fica do outro lado da rua. Pensei que era alguém conhecido, mas o cara era um estranho. Pensei que queria falar comigo, pois quase me atropelou. Nisso, ele soltou um cachorro que correu em direção ao mato. Gritou, desesperado que o animal ia se perder. Pediu a minha ajuda. Como gosto muito de bichinhos, você sabe, eu corri pra ajudar o cara. Quando estava lá dentro, tudo meio escuro, ele se aproximou e num descuido, me tapou a boca com um pano embebido em clorofórmio, acho. Me segurou com tanta força, que cai, fiquei ali, estendido, desmaiado, no meio daquelas árvores. Acho que o cara é praticante dessas lutas marciais, porque quando me dei conta, já estava no chão. Quando acordei, ele havia sumido, claro, estava tudo muito escuro e eu completamente zonzo. Fui parar no hospital, porque tenho açúcar alto, sabe, tenho diabete, mas, graças a Deus, estava tudo normal comigo. A glicose estava até mais baixa do que de costume. O médico do hospital insistiu que eu tinha tomado insulina, mas eu não tinha tomado aquele dia. Ricardo esforçou-se em ouvir a história, que parecia muito fantasiosa. Seu amigo não lhe parecia um homem muito confiável, afinal, tinha um aspecto desleixado, além disso, acabara de fumar maconha, o que aumentaria a sua imaginação. De todo modo, havia alguma coisa que o perturbava muito, talvez um estado depressivo, devido à solidão que lhe falara. Não custava ficar mais um pouco para ouvi-lo e tentar ajudá-lo. O ideal seria dissuadi-lo da deia de havia um serial killer na cidade, que os crimes talvez não tivessem nenhuma ligação, e que deveria deixar a investigação com a polícia. Seria o mais sensato.

– Pelo que você disse, o cara não quis matar você.

–Ele não conseguiu, é diferente. Mas tenho certeza de que me deu insulina. Ele injetou em mim, não sei como, nem onde. Mas o meu açúcar não subiu e ele não me matou. Aí é que está o mistério, entende? Aí é que você entra nesta história. Eu quero que me explique, por que eu não morri.

– Como eu vou saber? Não sou detetive.

– Espere, você é médico, pode me ajudar.

–De que você desconfia? Você viu o cara. Sabe quem é? É alguém da pet shop?

–Não me lembro dele. Na verdade, acho que usava máscara, dessas que deixa a pessoa sem uma fisionomia indefinida.

–– Sabe de uma coisa, Raul? Pra falar a verdade, acho esta história muito fantástica. Por que um cara ia tentar matá-lo, usando uma máscara, em plena luz do dia. Além disso, você falou com ele antes, no carro, tinha de reconhecê-lo.

–– Este homem já usava a tal máscara no carro, tenho certeza. Me lembro bem a cara parecia de um boneco.

Ricardo suspirou, ansioso. Uma pequena viagem de avião após um congresso cansativo de sete dias. Uma noite para ficar na capital e fazer a mala, despedir-se da família, da namorada e levar algumas horas noturnas para chegar em Sul Braga, acordar com a ideia fixa de encontrar o velho amigo de infância que quase não conhecia. Afinal, como Raul fora parar naquela cidade e como não o encontrara quando fizera residência nos dois anos que morara ali? Olhou-o de soslaio, tentando achar uma maneira de afastar-se dali o mais depressa possível. Parecia uma tarefa difícil. Decidiu perguntar mais uma vez:

–– Afinal, por que você imagina que posso ajudá-lo?

––Eu já lhe disse, porque você é médico.

–– Sim, isso você já me disse. Mas como?

Raul levantou-se do banco, dá alguns passos até a lagoa, observando ao longe, como se antevisse alguma coisa estranha, que o perturbava profundamente.

Voltou-se com uma nuvem nos olhos. Um vazio que de certo modo, o transformava num homem diferente, um homem mais do que assustado. Sem esperanças.

–Eu acho que ele injetou insulina nas vítimas. Que ele mata com insulina.

–Mas insulina só pode matar quem não tem a doença.

Voltou-se rápido para Ricardo, transparente. Toda fisionomia expressava o que pensava:

–– Exatamente, você matou a charada. Eu não morri porque tenho a doença.

Ricardo calou-se, pensativo. De certo modo, Raul tinha razão. Se havia realmente um criminoso com a intenção de matar com insulina, ele não morrera porque tinha a doença. Mas que ligação havia com a pet shop? Por que relacionara as duas coisas, só pela proximidade do parque?

–– Eu sinto que você tem muitas dúvidas, Ricardo, e é compreensível. Eu sou um cara sozinho, negligente com a minha vida e de repente, conto esta história absurda, não é mesmo?

–– Raul, na verdade, não sei nada de você. Lembra-se que nos conhecemos quando ainda éramos crianças?

–– É verdade. Foi uma dádiva dos céus você ter vindo pra cá. Mas o que eu lhe contei, da pra ter uma ideia de como sou, não?

–– Você sabe que não da nem pra descrever uma pessoa com algumas informações, quanto mais poder caracterizá-la como um tipo a ou b.

––Não foi um bom primeiro encontro, né? O ideal seria que estivéssemos num bar, bebendo, dando risada das nossas misérias e contando um ao outro os nossos sonhos.

–– Na verdade, Raul, pra ser sincero, o ideal seria eu estar me apresentando agora, no hospital. E é o que devo fazer agora, depois a gente se encontra…

Foi interrompido bruscamente por Raul, quase em desespero.

–– Não, meu amigo, por favor, não vá, eu lhe peço. Ouça o que tenho a lhe dizer. Eu sei o que acontece na pet shop e preciso contar-lhe. Assim, você entenderá porque estou tão assustado.

Os dois permaneceram em frente à lagoa. Um barco de pesca passou a alguns metros de distância, com pescadores olhando para a margem, curiosos com as ruas da cidade, mais adiante do cais, além do trapiche. Raul voltava a sentar, desta vez no trapiche, com os pés soltos, próximos à água. Ricardo, sem alternativa, aproximou-se e ficou por ali, em pé.

–Porque eu vejo sempre eles injetando insulina nos animais. Alguns são sacrificados. Automaticamente, juntei as coisas, entende?

Ricardo acocorou-se ao lado do outro e perguntou:

– Então você acha que o dono da loja de animais é o serial killer e que, como você o conhece, pode vir a matá-lo. É isso?

–Não, eu não sei quem é. O dono é um cara simpático, muito gentil, uma pessoa maravilhosa. Mas tem alguns funcionários lá, sei lá, pode ser qualquer um. A maioria trabalha nisso. Eles fazem de tudo lá, tosa, vendem de tudo, e tem veterinário.

––Somente um veterinário poderia fazer este procedimento. Isso é eutanásia de animais.

–– Algum deles deve ser, não sei.

–– E como eu posso ajudá-lo?

––Você pode esclarecer isso. Você pode afirmar que a insulina mata. A polícia tem que fazer a perícia nos corpos das vítimas, investigar, verificar se não foi injetada insulina neles.

––E quem acreditaria nisso? Com que argumento, como pode afirmar que foi injetada insulina? E além do mais, por alguém da loja? Por que motivo?

–– Pelo que eu ouvi na pet.

––Por favor, esqueça isso. É loucura. Quem pode afirmar que estas pessoas tem alguma coisa a ver com isso?

Raul retirou uma folha de jornal da mochila. Desdobrou-a com cuidado e a entregou a Ricardo. Havia uma notícia circulada com caneta vermelha. Ricardo leu com atenção e ficou em silêncio.

Raul então perguntou, decidido:

–– O que você me diz disso?

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