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quarta-feira, julho 26, 2017

O VIGÉSIMO ANDAR

Às vezes, tenho a impressão de que as paredes do elevador se aproximam e me acolhem com delicada impaciência. Passam por meu corpo faminto e suado e me dizem coisas desconexas, que somente elas entendem.

Seguro-as com força: as mãos espalmadas, o peito encostado em suas carnes metálicas. Sinto um leve arrepio.

Não consigo afastar-me, como se estivesse irremediavelmente preso, quase fundido em suas fibras e entranhas.

O elevador para no décimo andar.

Um homem entra e finge não me ver.

Ao mesmo tempo, as paredes se afastam, tal como eu, que me encosto no ângulo da esquerda. Ali, a minha visão é privilegiada.

Olho em torno, retribuindo a distração.

Ele abre uma maleta, retira um notebook e examina qualquer coisa, sem muita atenção.

Observo-o firmar os olhos na direção da porta. Parece ansioso. Reparo que tem olhos claros e frios. Talvez seja um executivo, um professor de línguas, um advogado. Não é, porém, um cidadão de bem.

Percebo a aflição que paira inquieta em seus olhos. Um olhar oblíquo, dissimulado. As mãos magras e ossudas.

De vez em quando, lambe os lábios, ressequidos, e se eu não estivesse ali, talvez lambesse os dedos. Ou coçasse a cabeça, ou limpasse o nariz com o mindinho.

Sei que se comporta em atitude imóvel, porque estou aqui, bem a sua frente.

O elevador para no vigésimo andar.

Ele tenta abrir a porta. Espalma as mãos, com força, mas nada acontece. Emperrada. Decidida. Mais forte do que ele.

Às escondidas, dou um meio sorriso. Sei como são estas coisas e como acabam.

Ele empurra com o joelho, esfola a perna. Debate-se na parede. Então, se volta para mim, aturdido. Pergunta:

― Que está acontecendo? – não respondo, também tenho meus caprichos.

Aquela sofreguidão na fala, a total insegurança, o medo estampado no rosto, me deixam quase feliz.

Ele me olha cada vez mais apavorado. Aperta todos os botões. Grita por socorro.

Por fim, eu vaticino, despreocupado:

― Já estou acostumado.

__ Acostumado com o que? Que quer dizer?

—Que tudo é possível, quando se está assim, sozinho dentro desta caixa, não há como sair, escapar, fugir. É inevitável.

— Como assim? Por que diz isso? Eu quero sair daqui, imediatamente! Pelo amor de Deus, eu quero sair! Aqui dentro – afirma ofegante – Eu fico louco!

― É tudo uma questão de hábito. Com o tempo, tudo fica normal.

—Como “normal”?! Nada é normal preso aqui dentro. Escuta, eu quero sair, dessa porra! Pelo amor de Deus!

— Sinto muito, meu amigo. Não posso fazer nada.

— Por que está tão tranquilo? Por que não pede ajuda?

— Porque nunca mais sairemos daqui. Estamos no vigésimo, não?

—E daí, você é louco! Claro que vou sair. Alguém tem que nos ajudar! Socorro! Socorro! – Dá pontapés na porta, em absoluto desespero.

— Não adianta, ninguém vai ouvir você daqui!

— Não diga bobagens! É só uma questão de tempo. Faça alguma coisa, você também!

— Não posso, porque chegamos ao vigésimo!

— O que isso tem a ver? Não me interessa em que andar estou, quero é sair dessa merda, não ta me entendendo?

—Uma pena, que você não possa entender.

—Então me explique, pelo amor de Deus! O que quer dizer com isso?

— Que o vigésimo não existe! Do décimo nono, saltamos para o vigésimo primeiro.

— Como assim?

— Muito simples. O vigésimo é uma porta sem saída, para o nada. Quando chegamos aqui, devemos ser pacientes e esperar, apenas.

— Você é louco, não vou entrar na sua insanidade! Vou pedir socorro pelo celular, vou ligar para um amigo, para polícia, para minha mulher, alguém que resolva esta merda!

— Perda de tempo. Aqui não há conexão. A conexão é outra. O mundo é outro.

Ele digita um número com os dedos trêmulos. Por certo, o sofrimento ainda nem começou, mas aos poucos se dará conta que não há como fugir. As coisas são o que são e acontecem de maneira determinada. Não há o que fazer.

Gosto de ver, o quanto a fisionomia deste homem mudou, do olhar frio e dissimulado, passa a ser atarantado, um animal acuado na armadilha. Pânico em suas atitudes, refletindo-se na postura desequilibrada, que se espalha pelo piso do elevador.

Sei que não devo ajudá-lo, é preciso que absorva a realidade. Sua mente deve encher-se do novo. Não adianta esbravejar porque o sinal do celular não funciona. Nem se apavorar com o temor da prisão. Isso é somente o começo.

**********

Iolanda desligou o celular e desceu as escadas devagar.

Na rua, um silêncio absurdo parecia isolar a praça do resto do mundo. Espiou pela porta do prédio e viu o ambiente amplo, completamente vazio. Sombras de árvores deitavam em bancos de pedra. Alguns caminhos irregulares. Afastou a porta devagar, deslocando-se em ritmo lento pela calçada. Sôfrega. Um cansaço parecia acumular-se nos ombros. Aflita dirigiu-se à praça, atravessando rapidamente a avenida deserta.

Que horas seriam? Mais de três horas num dia ermo de semana, sem qualquer possibilidade de movimento. Cães ladravam ao longe e uma pequena brisa começava a sacudir as folhas das árvores.

Olhou para o alto. A lua desaparecia lenta, por entre nuvens e o céu tomava um negrume extraordinário. Se não fossem as luzes da cidade, tudo estaria numa escuridão total. Sentia-se estranhamente calma apesar de tudo. Nem mesmo aquele deserto humano a assustava, não fosse o fato de precisar voltar para casa.

Mas faria isso?

Esperaria aquele elevador infinito que a aturdia, que a impelia a pensar sempre a mesma coisa?

Até quando continuará tão solitária ao lado daquele homem de olhar frio e dissimulado?

Se tivesse coragem, conversaria com o ascensorista para tomar uma atitude extrema. Ele sim, sabia portar-se como um gentleman, desses que não existem mais hoje em dia.

Ah, se tivesse coragem, por certo, Ricardo não atravessaria a porta de casa.

Nunca mais alcançaria o vigésimo primeiro andar.

terça-feira, dezembro 06, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 25

Capítulo 25

Depois da conversa que tiveram, Santa convencera Sandoval a contratar um advogado para defender os filhos. Estava apavorada com o que poderia acontecer. Se eles estiveram lá e a polícia já tinha alguns dados, como as placas dos carros, então poderiam ser suspeitos.

Mas o pior estava por vir, Alfredo fora considerado suspeito, porque além da prova material de que estivera na cena do crime, embora não houvesse provas digitais e ele não tivesse negado de ter ido até a casa de Fernando, havia porém a prova física que era a lente de contato que puderam constatar ser realmente sua.

Além disso, havia o celular, e as várias conversas com Fernando. O delegado queria saber qual era o motivo das conversas. Depois de muitos interrogatórios, ele acabou sendo preso.

Alfredo parece afastar-se de tudo que o cerca. Por um momento, lembra dos passeios que fazia com as crianças, quando pequeno, nos dias de pequenique. Lembrava da mãe e aquele sentimento de melancolia o seguia pela vida afora. Seus olhos pairam no desconhecido, lembrando o acontecimento, sem perceber que o observam.

Quando o dia deu sinais de mudanças no clima, as crianças já estavam a bordo do pequeno ônibus que as levava para casa. Todas se divertiam e procuravam imaginar as coisas mais estapafúrdias para entreterem uma as outras, ou a si mesmas.

Uma delas, porém parecia distante; olhar perdido nas montanhas que rodeavam a estrada, pensamentos instigantes sobre si ou sobre a família. A família praticamente se reduzia à mãe.

Via-a caminhando pela casa, atravessando quartos, espiando janelas, esfregando as mãos. Nervosa.

Por certo o esperava, ansiosa, no umbral da porta.

Alfredo ouvia seu coração taciturno bater forte, perguntando-se por que sofria, porque não vivia o mesmo dia alegre e descomprometido dos demais. Ele era desse jeito. Não tinha como fugir.

Enquanto os demais se divertiam, ele sofria como se houvesse uma culpa interna, por ter deixado a mãe esperando-o, sozinha, enquanto se divertia com os demais.

Na verdade, a diversão era interrompida, pelo seu pensamento melancólico.

E seu passado parecia ser uma escalada de momentos sombrios, como o único prazer que tivera ao lado de outra pessoa, quando ainda adolescente, tentara viver o que a vida lhe oferecia.

Um lado impróprio para as pessoas, para a família e principalmente para a mãe, que abortava qualquer sentimento, que significasse uma inversão de valores, segundo o que pensava. Também lhe vinham à mente, aquelas imagens.

A carta que enviara ao amigo, o desejo de vê-lo e de livrar-se de sua companhia para sempre, como se devesse afastar de sua vida um prazer que não devia existir.

“Quem sabe me deixasses aqui, entre estas paredes vazias, tao brancas, descoloridas, que parecem um simbolo do infinito, um infinito descorado e triste. Alguma coisa como bruma de Londres evocada nos filmes antigos, aqueles em que costumávamos ver, em preto e branco. Pareces disposto a a apagar cada gesto, cada registro, cada vestígio dos momentos juntos. Não me procuras e sei o motivo. Por certo o vão que ficou entre nossos sentimentos já foram abarrotados de outras imagens da digital em que sinalizas com teu dedo fino. Quisera estar ai, contigo, mas estou só. Nada a fazer, a não ser procurar o pouco de ar que vem da rua. Uma rua funesta, cheia de gases e sombras antigas. Mas te espero e não vai demorar muito que este esperar também se apaga. Também morre aos poucos, como o desejo de te ver.”.

Assim absorto, assim triste, fora chamado a atenção pelo advogado.

– Desculpe senhor Alfredo, mas precisamos refletir sobre o que aconteceu. Parece que o senhor está muito distante.

– É verdade. A vida tem me pregado peças terríveis, dr. Tavares.

– Mas tudo pode ser resolvido. A solução é nos focarmos no problema de frente. O senhor tem que se conscientizar de que precisa me contar tudo.

– Mas eu não tenho o que dizer.

– Desculpe, sr. Alfredo, mas acho que há muito o que dizer e precisa confiar em mim. O senhor poderia começar com as conversas no celular que tivera com o morto.

– Mas ali, não há nada demais. Apenas alguns contatos.

– Há uma coisa que o senhor não sabe, mas que está nas maos da polícia. Certamente, eles irão chamá-lo novamente para explicar-se.

– Como assim? Que gravação?

– Eu ainda não tive acesso, mas logo terei. Mas me parece grave. O tal Fernando parece que queria se garantir contra uma presumível prisão, sei lá, já que ele estava na condicional.

– E o que ele dissera nesta gravação.

– Não sabemos, mas o delegado afirmou que se trata de algo grave que lhe diz respeito. Parece um plano que vocês teriam e ele fez este depoimento para livrar-se da culpa sozinho. Só não sei ainda do que se trata, por isso, o senhor deve me esclarecer tudo, para que possa ajudá-lo.

Alfredo empalidece, lembrando do plano para sequestrar o pai. Fica em silêncio, sem saber se deve confiar no advogado. Está cada vez mais enrolado.

– Então, senhor Alfredo, o que tem a dizer sobre isso?

domingo, outubro 16, 2016

A experiência humana no filme “De porta a porta” (Door to door)

O filme “De porta em porta” (Door to door), de 2002 do diretor Steven Schachter ( Sem suspeita, Atraídos pela fama, Lady Killer entre outros) mostra a história simples e humana de Bill Porter (William H. Maci), portador de paralisia cerebral, que pretende tornar-se um vendedor.

As dificuldades de Bill são gritantes e proibitivas, pelo menos aparentemente em tornar-se um eficiente vendedor de porta em porta.

Entretanto, com o desenrolar da trama, ele consegue tornar-se um dos maiores vendedores de sua época, mas apesar de sua facilidade em comunicar-se, a vida é muitas vezes injusta e para ele, o passar do tempo pode piorar as coisas.

Bill, no entanto, sabe sobrepujar as suas dificuldades e tornar-se um vencedor.

O filme desenvolve uma narrativa densa, estruturada de forma a delinear situações que vão mostrando ao espectador a metamorfose que ocorre na comunidade, paralelamente à transformação que também ocorre no protagonista.

Aos poucos, ele interage com a comunidade através de suas vendas, mas mais do que isso, através de seu carisma, alinhavado num carinho cheio de humanidade. Aliado a isso, suas atitudes não demonstram qualquer censura ou preconceito à conduta dos que o rodeavam, embora houvesse sofrido preconceitos nem sempre dissimulados, em muitas oportunidades.

Mas a história anda, evoluindo com o passar do tempo, numa analogia ao progresso interior dos personagens e das mudanças tecnológicas que surgiam.

É neste momento, que Bill quase se deixa esmorecer, ao perceber que a sua comunicação precisa não mais bastava, em virtude das novas demandas da sociedade.

A partir dessa condição de sofrimento, ele recebeu em contrapartida o reconhecimento de sua amiga, uma assistente no trabalho de vendas, ajudando-o a reconstruir a sua vida.

Ele relutou exaustivamente em reconhecer que havia outras saídas, que também precisava da ajuda, do carinho e do conforto que sempre soubera transmitir.

Esta caminhada em busca do próprio desalento o levou a descobrir o verdadeiro significado de sua vida e luta pessoal, pois através dela soube dialogar com a comunidade e modificar atitudes arraigadas, pensamentos preconceituosos e vencer a intransigência.

Foi aí o seu ganho pessoal.

Trata-se de um filme denso, com belíssimas imagens de época, uma luminosidade marcante e uma trama comovente.

O filme nos instiga a pensar no outro como um processo desafiante a partir da aceitação de suas deficiências e perceber que as imperfeições da alma podem ser bem mais destruidoras do que as físicas.

Um desafio a compreender e participar da experiência humana, seja de que forma for.

sábado, setembro 17, 2016

CANDIDATO INFLAMADO

Bateram à porta com insistência. Instintivamente, me afastei, sondando outras possibilidades, que não fosse àquela, aterradora, de me deparar com o desconhecido, de me defrontar com a expectativa do outro, que via de regra não é a minha.

Uma visita inesperada, fora de hora, sem qualquer aviso; o pedido de dinheiro por um ser humano alterado na própria concepção de humanidade, onde olhos vermelhos se fundem em olheiras doídas, demonstrando mais humildade do que possui, obedecendo ao ritual produzido pelos desejos involuntários do vício, via de regra, aliado ao ato de roubar.

Talvez um pedido de comida, este sempre melhor aceito, embora menos frequente, quase sempre acompanhado da possibilidade de arrecadação extra, financeira. Ou a venda indecente de revistas religiosas e todo o vocabulário próprio, cujas expressões gastas e repletas de castigos já não atingem a alma de quem apenas aspira seguir a própria fé, ou não. Quando muito, atingem a consideração ao zelo dos vendedores, quando não extrapolam o bom senso e a paciência do comprador.

Uma outra investida em nossa porta, pode ser a entrega da revista ou do jornal, estes com auspiciosos desejos de desvendar o mundo, ou o que dizem dele, desde que não se aceite na sua integridade os conceitos e mensagens subliminares ou pelo menos, se escolha o veículo menos parcial da mídia.

Hoje em dia, a mídia tradicional já nem tem mensagens subliminares, ela entrega de vez a informação manipuladora da ideologia elitista.

Também ocorre a entrega de encartes, publicidade de lojas, de supermercados, de revendedoras de gás e água ou mesmo a visita do carteiro, com a mercadoria esperada e as contas inevitáveis de todo o mês ou avisos de débitos.

Além de todas estas injunções cruéis em nossa vida cotidiana, atualmente há a distribuição sistemática de panfletos.

Panfletos? Sim, panfletos políticos, santinhos, com a figura impudente e maquiada do candidato, via de regra, aquele cujas promessas nunca são avaliadas, quanto mais comprovada a sua eficiência.

São eles que nos chegam a todo o momento, abarrotando a nossa caixa de correspondência, quando não a virtual. Esta, elimina-se rapidamente, mas aquela, material, física e acompanhada da presença humana, é bem mais complicada de eliminar.

Não basta rasgar o papel, consumi-lo no fogo ou arremessá-lo na lata de lixo. É preciso desvendar a porta, abrir a caixa do correio e averiguar entre centenas de papéis inúteis, a maior das inutilidades que é o tal de santinho.

Estão sujando as ruas, conspurcando as calçadas, distribuindo papeis que logo serão atirados em qualquer canto por transeuntes enfarados, entediados e descuidados dos anseios políticos dos futuros candidatos.

Isso, que nem falei nos carros de som e as músicas infames que misturam o nome do candidato a ritimos populares.

Naturalmente, temos os nossos preferidos e é salutar que isto ocorra. Comungam com nossas ideias, ideologias ou conhecimentos da situação política da cidade, do estado e do país. E se não temos, merecemos por certo esta enxurrada de papéis disformes, com caras engessadas em sorrisos falsos e expectativas forçadas.

Mas, tudo o que foi relatado não configura o pior que pode acontecer à tranquilidade de um vivente.

O extremo da crueldade e falta de sorte, acontece quando o candidato se apresenta em nossa porta, via de regra acompanhado de um partidário servil, que acena a cabeça mil vezes concordando com o amigo.

Nestas alturas, o candidato apresenta a pretensa finalidade de resgatar um conhecimento efêmero, (quem sabe um colega do ginásio ou um amigo do irmão do mecânico que certa vez consertou o carro de nossa tia já falecida...), mas que para ele possui a eternidade do universo (pelo menos, agora).

Como refutar suas convicções, ouvir suas promessas, sem transparecer a cara de paisagem.

Afinal, para ele, não interessa a minha opinião contrária ao seu partido que apóia a política entreguista e traiçoeira. Para estes, não há saída melhor.

Não convém argumentar, nem demonstrar qualquer tendência à esquerda. Misturam tudo, como se churrasco levasse pimenta e molho inglês. Fazemos cara de paisagem agora e não votamos ou eles serão a própria paisagem sem vida, mural ruço e mofado, numa câmara cheia de traças e teias de aranha, nos próximos quatro anos.

Que abramos as portas para novos ares, mais adequados a nossas esperanças.

sábado, julho 25, 2015

PRESO NA IGREJA

Era início de noite de outono, mas havia uma sensação térmica mais fria do que se antevia no final da tarde, sintoma de que a estação do frio se prolongaria por bastante tempo. Uma neblina envolvia a cidade. Pouco se via os edifícios ao longe e suas iluminações fracas, espalhadas no cinza aguado da atmosfera.

Entrei na Igreja do Carmo (Rio Grande,RS) com o intúito de fazer uma oração breve, acompanhado de uma novena escrita, que depositaria na mesa providencial: conforto e esperança para os desanimados, acabrunhados em relação às dificuldades que a vida às vezes nos reserva ou mesmo esperançosos, eufóricos até, na certeza do atendimento das preces. Por vezes, e raríssimas exceções, apenas um momento de reflexão e agradecimento. Os que tem fé nutrem-se destes momentos de verdadeiro encontro consigo e com a Divindade, os  que por ventura se alijam destes comprometimentos, ou por terem dúvidas ou mesmo, desprovidos de qualquer entendimento no sentido da entrega total e absoluta de quem crê, servem-se destes momentos para dar uma parada em sua vida cotidiana e mergulharem em seu próprio eu.

Talvez tudo não passe de absolutas divagações. Quem pode traduzir os sentimentos, a ideologia ou mensurar a fé ou falta da mesma nos outros? Ou em nós mesmos. Com que instrumentos podemos transformar em estatísticas estes aspectos tão humanos, que são os da dúvida, do medo de duvidar, da confusão de pensamentos, da ciência como autora indômita de nossas resoluções ou aliada a nossas crenças? Não passa de um exercício de adivinhação.

De qualquer forma, estive na igreja, naquele fim de noite com o mesmo objetivo de milhares de pessoas, exercitar a fé, não talvez aquela fé formal moldada pela religião, mas uma fé personalizada, quase única (não deve servir de modelo), mas que em muitas vezes, me traz um acalento à alma que não encontro em outras relações, a não ser via de regra, pela escrita. Esta me faz sonhar, devanear, envolver-me além das fronteiras do pensamento racional e consequentemente me libertar de mim mesmo. Alçar vôos extremos que me permitem alcançar uma amplidão de sentimentos, que me faz rezar, rezar da maneira mais pura, talvez, um reza interior, incitada pela liberação do eu nos meandros do pensamento mais elaborado. A alma fica solta, despudorada, sem subterfúgios nem máscaras, nas regiões descampadas, nas quais o senso comum e a padronização das virtudes e desejos se desfaçam num rol de coisas inúteis, sem valor. Entre a fronteira da ilusão e da liberdade, aí se encontra o meu mundo ou o mundo dos que escrevem e assumem o seu estar, desimpedidos das fronteiras sociais, estas que realmente impedem o pensamento e a reflexão.

Mas, estava lá, num dos últimos bancos, ainda na penumbra, que por minha surpresa, avançava ainda mais, ficando quase em plena escuridão, somente evitada pelas poucas velas acesas no altar. Ajoelhei-me, fiz minhas orações, larguei dissimulado o papel da novena na mesinha, próxima à parede de vidro que separava o hall de entrada do ambiente interno do templo e voltei-me para o banco, desta vez, sentando-me e observando um número reduzido de pessoas que se agrupavam próximas ao altar.
 

Não demorou muito e começaram algumas orações, com as pessoas se ajoelhando em torno do altar. Em sequência, houve inúmeras canções religiosas, todas de uma melodia contrita, invocando o Espírito Santo, os anjos e demais santos da Igreja. Não quis afastar-me assim, repentino, porque havia começado o que me parecia um culto não muito usual, embora fosse da igreja católica. Imaginei uma missa de louvor, mas não havia nenhum dos rituais que confirmassem esta minha convicção. Pela minha ignorância, não percebia que era uma espécie de benção às pessoas que ali estavam, recheada de testemunhos, chegando ao clímax da chamada língua dos anjos.

Então, resolvi quebrar as regras da boa educação e afastar-me, já que não tinha me preparado para participar do ritual, mesmo porque havia outros compromissos e nem deixara nenhum recado em casa. As pessoas me esperavam e eu, nem trouxera o celular. Levantei-me no maior sigilo, esgueirando-me por entre os bancos, evitando fazer qualquer ruído e dirigi-me praticamente na escuridão (porque nos fundos da igreja, a penumbra já era escuridão absoluta) em direção à porta, tateando entre uma mesa no caminho, a parede envidraçada, que separava o hall, o mural de informações, e finalmente uma das portas laterais. Respirei, aliviado. Ali estava minha salvação. A porta. A liberdade, não que estivesse me sentindo mal naquele ambiente tão bem sintonizado com a bondade, a contrição do pensamento, a invocação a Deus. Ao contrário, estava guarnecido por um sentimento de paz e serenidade. Mas um outro lado, o do dia-a-dia, das tarefas por fazer, da rua que me esperava para afastar-me em direção à minha casa, o cumprimento de compromissos, o fato de não poder participar na íntegra do acontecimento e a razão maior, de que o tempo limitado não me deixava saídas, a não ser aquela real, austera, maciça. A porta lateral imensa, pesada, bordada em alto relevo me parecia fechada. Aproximei-me um pouco mais, encontrei a maçaneta que brilhava na penumbra resultante da fronteira entre a parede envidraçada e o hall de entrada.

De lá, ouvia os brados sonoros do padre. Fazia um discurso, que de certa forma apontava pessoas, pessoas que como eu não participavam da missa e eventualmente surgiam nestes momentos de ligação com o infinito, revelando que estavam sedentas de fé e religião. Sentia na pele que o discurso era pra mim. Delírios de quem se encontra num aperto. Mas ele prosseguia, como “aquele senhor ali, quer aproximar-se, receber a benção e apagar de vez a sua vida pregressa?” Claro que não se referia a mim, pois eu continuava preso entre o hall e a porta envidraçada. Girei com força a maçaneta. Já não sentia frio, nem me importava a neblina que se transformava em chuva lá fora. Meu coração palpitava agitado, não mais tranquilo, não mais sereno, não mais em paz. Um suor frio escorria-me pela testa atingindo a gola do blusão de lã, passando pelo colarinho da camisa. A porta não se abria de jeito nenhum. Então, afastei-me, titubeando entre as paredes, tentando atingir a outra porta lateral, pois qualquer uma das duas, fatalmente alcançaria a porta principal, de onde partiria para a rua, em definitivo. Fiz a mesma função anterior e nada. A porta até balançava com meu esforço.

Ouvi passos cujos ruídos aumentavam e estremeci. Alguém percebera o meu interesse em fugir e talvez pensasse que eu não passava de um ladrão forçando a porta. Mas era a porta que dava para a principal, ou seja, para a rua! Voltei-me devagar e espiei para descobrir o meu vigilante. Os passos diminuíam, bem como o discurso do padre.

Agora as orações eram quase em silêncio, cada um falando consigo mesmo, baixinho, cada vez mais baixinho. Encostei-me na parede próxima à porta e observei a pessoa que caminhava em rodeios. Era uma senhora obesa, que devia estar esticando as pernas inchadas e doloridas e nem de interessava pelo meu caso. Estiquei o braço para a maçaneta que cada vez me parecia mais imensa. Inesperadamente, esta porta lateral da esquerda abriu-se com uma suavidade que me encheu de alegria e esperança o coração. Mas, a odisséia prosseguia, porque havia a porta principal e desta, eu não tive a menor dúvida. Havia ferrolhos tão fortes, que eu jamais abriria.

Voltei desolado para o meu lugar, principalmente porque imaginava minha família me procurando, pois não demoraria dez minutos e já se passavam duas horas.

Em dado momento, as pessoas começaram a ser convidadas para a benção. A maioria situava-se bem próxima do altar, diferente de mim e de dois ou três, talvez não tão engajados, que se dispersavam em bancos afastados. Aos poucos, numa canção suave, as pessoas se dirigiam. Uma vela acesa, segura por um dos ajudantes e o sacerdote punha as mãos sobre a cabeça do indivíduo, abençoando-o.

Não era minha intenção participar do evento, da forma que se me dispusera, nem havia pensado em tal hipótese, muito menos sabia que ocorreria àquela hora, naquele dia. Arquitetei milhares tentativas em sair pela sacristia, imaginei saídas mirabolantes, rezar na frente de um santo qualquer do altar e evadir pela porta mais próxima. Ou, aproximar-me sorrateiramente do grupo, fazer algumas orações e aos poucos acessar os arredores da sacristia, talvez em marcha-ré, pé ante pé. Avaliei em cálculos os metros que faltavam e o tempo que levaria para chegar até lá. Quem sabe, aproveitaria o testemunho mais enlevado, o sermão mais enfático ou uma dose de absoluta mansidão, onde os sentidos se tornassem vulneráveis apenas aos sentimentos mais profundos de fé. Sairia assim, cauteloso e seguro de minha precisão.

Claro que nada disso funcionou, até porque, eu não tinha certeza de que após a sacristia, haveria uma porta aberta também. Por isso, aderi ao evento e num último convite, como o homem provavelmente alienado da religião, da fé e dos sentimentos bons, fui chamado para a benção. Obedeci. Lá estava claro, à luz das velas e de algumas artificiais estrategicamente acesas. Não era este o meu primeiro objetivo, mas me senti recompensado, até pelo tempo que considerara perdido. Até pela aflição que passara. As pessoas saiam sorridentes e comovidas. Eu ainda pensava, o que vou explicar em casa? Que fiquei preso na igreja? Quem vai acreditar?

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