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quarta-feira, maio 31, 2017

ISSO NÃO DEU NA TV

No meio do quartinho, Nízia passava roupas numa mesa adaptada. O ferro quente tinia e o calor se propagava também no seu rosto, no colo suado, no qual punha a mão para assegurar-se de que estava viva.

O coração batia forte e descompensado, mas que fazer? Não podia parar o trabalho. Dezenas de camisas do patrão, roupas dos filhos e da patroa, principalmente os vestidos de tecidos finos e leves, aos quais devia prestar muita atenção para não estragá-los. As mãos dificultavam o estender do tecido, trêmulas e quase incapazes de cumprir a tarefa. Será que seu corpo todo desandaria assim, de uma hora para outra, quando precisava tanto de sua energia.

Sempre fora uma mulher forte. Era elogiada pela patroa, pelos poucos amigos, por alguns parentes. Embora solitária, soubera dar um rumo a sua vida.

Pretendia estudar um pouco, pelo menos sair daquele b-a-b seboso que não levava a caminho nenhum.

Queria ir mais longe, mas quanto mais pensava, menos tempo tinha. Era praticamente da família. Passava os dias e as noites experimentando as horas de sucesso, de festa ou angústia.

Muitas vezes, acalentara o menino que chorava para a mãe desfrutar do passeio ou do jantar. Outras, vira o sol nascer ao lado da menina com febre e olhos murchos, pensando que ela era mais uma ferramenta para passar a dor.

Na verdade, gostava de seu trabalho, gostava dos filhos que não tivera, gostava da família que era sua.

Nem sempre, porém foi um ente familiar. Muitas vezes, precisou afastar-se quando os momentos não indicavam a sua presença. Dócil e cuidadosa, afastava-se devagar, às vezes arrastando chinelos pelo avançado da noite.

Mas vivia em seu quartinho, hoje tão quente por causa do ferro elétrico.

Tinha uma TV no quarto e se satisfazia em ver que as atrizes negras faziam papéis semelhantes aos que ela desempenhava.

E amavam os patrões tanto quanto ela.

E até sofriam caladas em seus quartos.

Então, estava tudo certo. Ela aprendera com a TV. Aprendera muito.

Também aprendera que a maioria dos homens presos e considerados bandidos eram negros e principalmente jovens. Eles não usufruiram das escolas boas, nem dos conselhos dos pais, nem da disciplina escolar. Não eram bons como os filhos da patroa. E se o governo dava escolas, dava educação (ela considerava assim, que tudo era dado e grátis), eles não aproveitavam. Preferiam ficar na rua fumando maconha, vivendo entre gente ruim.

Os outros não fumavam maconha. Aproveitavam a oportunidade e se acaso acontecesse um acidente, eram reconduzidos ao rumo certo, cuidados em clínicas e tudo ficava bem.

Ela tinha aprendido isso na TV.

Também percebera que as meninas negras e pobres, muitas vezes, se desviavam do bom caminho.

Não iam à escola e se iam, desobedeciam as regras, nem participavam da igreja, não se harmonizavam em grupos para estabelecer boas relações, como os filhos da patroa e seus amigos. Acabavam na vida fácil, tinham filhos sem a idade adequada e às vezes, morriam fazendo abortos.

Eram meninas desprezíveis para a sociedade e para a família religiosa.

As filhas da patroa e suas amigas sabiam resolver suas pendengas, caso acontecesse uma tragédia. Eram levadas a clínicas com muita cautela e carinho e voltavam como se o mundo recomeçasse.

Talvez houvesse uma maneira de reconstruírem as suas vidas, que somente pessoas de classe como a patroa soubessem discernir.

Isso também ela tinha aprendido com a TV.

Algumas meninas de seu bairro foram estupradas e o que saía na mídia e nos círculos de fofoca é que elas incentivavam aqueles homens a agirem como animais.

Portanto, eram culpadas, pois usavam roupas vulgares, mostrando mais do que deviam, dançavam funk e portanto, nem podiam reclamar.

Afinal, os homens tem seus desejos e muitas vezes, não conseguem controlar-se, ainda mais quando incitados.

As meninas da casa, como as da patroa, ao contrário, sabiam muito bem manipular um homem, à custa de sua educação e inteligência. Quando iam a festas, só saiam com o seu grupo, porque não lhes interessava quem não fosse da mesma classe. E tinham razão. Não se misturavam com qualquer um. E se dançavam funk nas festas ou usavam algum incentivo à alegria, tudo eram muito bem controlado pelo grupo. Elas sabiam se comportar.

Tudo isso, Nízia aprendera na TV.

Havia também alguns meninos que eram até seus parentes, um que outro jogador de futebol, mas alguns que tinham essa mania de virar mulherzinha. Queriam usufruir dos mesmos desejos das mulheres, como se assim fossem. Uns até usavam maquiagem. Outros andavam se agarrando, desejando outros homens e até considerando-os namorados.

Um deles, aquele que era seu parente, fora assassinado, alvejado por um policial, que se dizia assediado.

Afinal, devia ter sido muita pressão para o tal policial, afinal ser assediado por um gay! Ele, um cara da lei! Houve até a interferência de um deputado homofóbico contra o menino, é claro.

Mas está correto, ele se desviou do bom caminho. Isso é uma doença.

Na casa grande, quero dizer, na da patroa, também ocorreu algo parecido, mas foi com o dono da casa, o patrão, parece que um amigo do filho o assediou ou foi ele, não sabia. Claro que a coisa fora resolvida na base da educação. Aquilo tudo não passara de uma brincadeira, em virtude de terem bebido um pouco demais e a patroa entendera e todos foram felizes.

Tudo isso, ela havia aprendido na TV.

Certa vez, Nízia recebeu uma visita de um grupo de mulheres negras que lutavam pela dignidade da mulher e sabedoras de seus problemas relacionados à família, ao seu bairro e a pessoas que conhecia, tentaram ajudá-la.

Deram-lhe folhetos, indicaram leis, avaliaram até o seu trabalho, como se morasse na senzala.

Nízia ficou muito braba e não entendeu o que diziam, na verdade, não encarava como verdadeiros aqueles fatos.

Naquela noite, porém, Nízia não conseguiu dormir.

Ligou a TV, assistiu a novela, depois um programa humorístico que mostrava uma mulher negra que reforçava o estereótipo de mulher sensual, de bunda grande e poderosa.

Mais tarde, abriu o folheto e leu alguma coisa relacionada a mulheres negras que venceram como advogadas, educadoras, escritoras ou funcionárias públicas. Não representavam ela.

Isso ela não aprendeu na TV, por isso perdeu o sono.

sábado, novembro 26, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 23

Capítulo 23

Naquela noite, a polícia foi chamada porque havia um movimento suspeito na casa que estivera há tempo tempo desabitada. Encontraram o corpo de Fernando estirado no chão e nenhuma impressão digital. Entretanto, investigaram com afinco as redondezas e descobriram quem tinha chamado a polícia.

O vizinho do prédio à frente, havia visto as pessoas entrarem e sairem da casa e tinha a impressão de que havia algo errado. Os policiais também examinaram as câmeras de segurança na rua, mas não conseguiram ver as placas dos carros. Entretanto, o final de uma delas estava bem nítido e o vizinho ainda auxiliara, dizendo que anotara a placa de um carro, embora não coincidisse com a parte da placa que surgia nas câmeras. Já no âmbito da polícia, analisando detidamente as cenas, puderam constatar que a placa anotada era de um dos carros que parara no local.

Dali em diante, foi fácil encontrarem o dono do carro, Alfredo Sampaio. Na manhã seguinte, Alfredo recebe uma intimação para ir à Delegacia. Apavorado, liga para Letícia.

– Letícia, o que vou dizer agora? Vão pensar que matei Fernando! Como chegara até mim?

– Calma, Alfredo, você está me deixando nervosa. Não se esqueça, que nós três estávamos lá naquele momento, que nós três fizemos a limpeza das digitais. Meu Deus, se eu for envolvida nisso, estarei perdida!

–E o que devemos fazer?

– Em primeiro lugar, manter a calma. Tente descobrir como eles ligaram você ao crime.

– Não me ligaram a nada. Não diga besteiras. Alguém deve ter me visto por ali.

– E o seu carro? Alguém pode ter anotado a placa, ou quem sabe, viram através de alguma câmera da rua?

– É verdade, pode ser isso. Estou apavorado.

– Já lhe disse que não pode ficar assim. Diga-lhes que foi pedir um favor, afinal ele não era o jardineiro de mamãe?

– Sim, mas não posso dizer isso. Eu não posso contar o que eu queria dele.

– Então diga o óbvio.

– A que você se refere?

– Que vocês tinham um caso.

– Você está louca?

– Não, estou tentando ajudar você, seu bobo. E pense bem no que vai dizer, não vá nos envolver nisso. Eu não deveria ter ido lá, foi uma loucura!

Ele desliga o celular ainda mais confuso do que estava antes. Decide vestir-se e ir até a delegacia. Precisa acalmar-se, pensar numa solução para o problema. Afinal de contas, ele não deve nada à justiça. Pensando nisso, tomou um banho rápido e preparou-se para sair.

Quando chegou, o delegado Santos pediu que aguardasse. Alfredo estava muito nervoso. Olhava em torno, tentando encontrar um motivo coerente para o encontro com Fernando, mas nada lhe vinha à mente e o fato de seu carro estar estacionado em frente à casa e principalmente ter sido filmado, o deixava apavorado.

Um policial o encaminhou para a sala do delegado e afastou-se, deixando-os às sós. Pela vidraça que separava da outra sala, Alfredo observava o movimento dos funcionários, computadores e conversas ao celular. Alguns grupos se posicionavam próximos à parede de vidro, numa conversa animada, como se estivessem na mesma sala. Entretanto, não se ouvia o que diziam.

– Muito bem. O seu nome é Alfredo Sampaio.

– Sim, senhor.

– Nós fizemos uma pequena pesquisa a seu respeito: sabemos que é um empresário no ramo de celulose.

– É verdade.

– Senhor Alfredo, o senhor sabe o motivo desta intimação ou pelo menos, imagina, não é mesmo?

– Na verdade, delegado, eu fiquei muito surpreso. Sei que ocorreu um crime, que o rapaz daquela casa foi assassinado. Mas eu não tenho nada a ver com isso.

– Engraçado. Eu não tinha falado sobre nenhum crime.

– Não? É que pensei…

– Pode falar, senhor Alfredo, fique à vontade.

– Ah, senhor delegado, estou muito confuso, essa história toda está me deixando com os nervos à flor da pele.

– A que história o senhor se refere?

– Bem, o senhor mandou me chamar por causa de Fernando?

– Parece que o senhor sabe muito mais do que a polícia. Por isso, o chamamos até aqui.

– Não, eu não sei de nada. Mas o senhor se refere a este caso, não? Ao rapaz que foi assassinado.

– E o nome dele era Fernando?

– Sim.

– E morava na rua Dutra, 53.

– Ele havia se mudado para lá há pouco. Eu sei de tudo, porque ele é o jardineiro de minha família.

– Ah, sim. E é parente de uma empregada de sua família. Neste momento, a polícia está entranto em contato com ela.

– Meu Deus, pobre Linda!

– Pois é, senhor Alfredo, como o senhor mesmo disse, houve um crime na casa deste rapaz, sendo que ele mesmo é a vítima. Nós estamos investigando e por isso, o chamamos.

– O senhor deve ter me chamado, porque ele trabalha conosco, quero dizer, com a minha família, mas eu não posso lhe adiantar muita coisa. Quase não o conhecia.

– Tem certeza de que não o conhecia?

– Na verdade, algumas vezes eu o vi por lá. Poucas, sabe.

– Mas então, o senhor pode me dizer o que fazia em sua casa, ontem à noite, quando ocorreu o crime?

– Foi uma terrível fatalidade. Quando entrei, eu o encontrei atirado no chão, ensanguentado. Tentei reanimá-lo, mas ele já havia morrido.

– Então quer dizer que o senhor esteve lá realmente?

– Não, quero dizer. Eu fui lá porque precisava levar um recado de minha mãe, mas … o senhor está me deixando confuso, delegado.

– Eu estou sendo absolutamente claro, senhor Alfredo. Sabemos que ocorreu um crime, que segundo o que o senhor mesmo afirmou, a vítima estava estendida no chão e tinha levado um tiro.

– Eu acho que foi um tiro.

– Sim, foi um tiro. O senhor tentou reanimá-lo.

– Eu fiquei muito nervoso, chamei por ele. Acho que tentei, agora estou tão nervoso, que nem sei de nada.

– Então, procure acalmar-se, senhor Alfredo. O senhor percebeu que o rapaz estava morto. Por que não chamou a polícia?

– Porque não podia fazer mais nada. Fui embora, apavorado. Foi isso que fiz.

– Mas é muito estranho. Não havia nenhuma impressão digital, como se quem estivesse ali, houvesse apagado todas as impressões.

– No meu caso, eu não toquei em nada.

– Nem na maçaneta?

– Não, a porta estava entreaberta.

– A porta estava entreaberta e o senhor entrou, chamando pelo rapaz, o nome dele era Fernando, não?

– Sim. Fernando.

– Recapitulando: o senhor viu a porta aberta, o que é muito estranho também, chamou por Fernando e não obteve resposta. Então aproximou-se do corpo, deve ter se abaixado para verificar se ele estava vivo ainda.

– Sim, mas não toquei nele, não toquei em nada. Em seguida, fui embora.

– O senhor sabe que havia outro carro estacionado na frente da casa?

– Não, eu não vi ninguém. Mas como o senhor pode afirmar que eu estava de carro? Podia ser o carro de outra pessoa.

– Um vizinho anotou a placa e nas câmeras aparece o seu carro e também o outro.

– Sim, eu vim no meu carro, eu não estou negando que estive lá. Mas como o senhor pode ver, delegado, alguém chegou antes de mim e matou o rapaz. É preciso verificar estas câmeras antes de eu chegar, talvez muitas horas antes.

– Talvez o senhor tenha razão.

– E como viu, não há nenhuma impressão digital, eu praticamente entrei e saí daquela casa. Fui na hora errada, no dia errado. O senhor sabe o que me deixa mais indignado? É que o assassino deve estar andando por aí, rindo da nossa cara, e nós perdendo tempo. O senhor me intimando como se eu tivesse alguma coisa a ver com este crime. Eu nem conhecia o rapaz, direito, como lhe falei!

– Mas apesar de toda a limpeza, achamos alguma coisa que mantém ainda as impressões digitais de alguém, talvez possamos descobrir o DNA através dela.

– Como assim?

– Uma lente de contato. O senhor usa lentes de contato, senhor Alfredo?

quinta-feira, agosto 11, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 20º CAPÍTULO (ÚLTIMO)

Capítulo 20 - último

Após a confissão desesperada de Paulo, fez-se um silêncio complacente. Nada se podia argumentar. A realidade dizia por si. Paulo chorava convulsamente. Seus soluços eram ouvidos do outro lado do vidro que separava as duas peças. Júlio observava e por sua experiência, sabia que ele ficaria mais tranquilo em seguida. Foi o que aconteceu. Paulo voltou a falar, compassado, entre lágrimas, porém um tanto aliviado.

– Rosa não admitia que ela gostasse de mim, que se atirasse daquele jeito sobre mim. Achava que ela era uma puta. E Rosa é muito religiosa, muito moralista. – interrompe-se um instante, como se temesse confessar mais alguma coisa que incriminasse Rosa, porém prossegue. Sabe que agora, precisa ir até o fim. – Pra falar a verdade, detetive, ela não é só a mãe que eu arranjei, entende? Ela é a mulher que me satisfaz na cama e eu faço o possível pra corresponder. Mas eu só vivo pensando em Taís, em mulheres como ela, foi por isso que fui lá e não me contive.

Júlio o ouve quieto. Paulo insiste em defender Rosa, mostrando-se culpado em acusá-la, mas por outro lado, sabe que deve contar tudo, até para atenuar a responsabilidade de Rosa no ato.

— Devo isso a ela, detetive, tudo. Rosa foi a primeira pessoa que me ajudou, a primeira e única. Todos me viraram a cara, mas ela ficou do meu lado, sempre.

Júlio então intervém: — Está bem, Paulo. Eu entendo a sua situação. Mas continue, como aconteceu o crime. Por que você acusou Rosa de ter matado Taís?

Paulo suspira fundo. Olha absorto para a vidraça e depois volta-se para Júlio, agora encarando-o com firmeza.

— Naquele dia, ela me seguiu, eu estava no carro do médico sim, havia tirado da oficina e resolvera dar uma volta, quando vi Taís atravessando a ponte. Logo atrás o grupo fazia aquela festa pervertida, chamando-a de tudo, palavras de baixo calão, mas Taís se divertia com isso. Tanto, que se juntava a eles e dividia com eles as drogas e as bebidas. Começou após muitos pedidos, fazer uma espécie de strip-tease. Foi aí, que me escondi dentro do carro, que estava um pouco atrás do arvoredo, do outro lado da margem. Eu tinha uma visão privilegiada, porque um emaranhado de galhos me protegia. Aquilo me deu muito tesão, e não resisti. foi neste momento que me masturbei. – levanta a voz, ansioso – Eu fiquei louco, detetive, completamente louco e a minha vontade era chegar até Tais, abraçá-la, tirá-la dali, daquele bando. Mas eles continuaram com a festa e ela foi se afastando em direção ao outro lado da cidade, ao contrário do centro, entende? Ela atravessou toda a ponte e o grupo ficou por ali, se divertindo, mexendo com ela, jogando umas roupas que ela havia deixado, pois estava indo só de calcinha e sutiã, dizendo que pretendia se jogar no rio. Mentira dela, era só farsa. Queria se divertir. Daqui a pouco pegaria as roupas e voltaria para casa. Foi neste momento, que vi Rosa se esgueirando pelo mato, às ocultas, sempre pela margem, seguindo-a. Eu estava do outro lado, mas desci rapidamente do carro, atravessei para a outra margem e a segui também. Foi difícil, estava cada vez mais escuro, com muita neblina e os galhos das árvores eram densos e atrapalhavam o caminho. Mas eu vi, no momento crucial, quando Tais estava encostada no parapeito no fim da ponte, fumando um baseado.Rosa chegou e lhe deu um tapa na cara com muita violência. Chamou-a por todos os palavrões que conhecia e sacudiu-a com força, arranhado-lhe os braços e para minha surpresa, sem mais nem menos, a empurrou na direção do rio, mas Taís não caiu, conseguiu segurar-se, apoiando-se na ponte. Então cheguei desesperado e tirei Rosa dali.Eu não podia abandoná-la naquele desespero. Supliquei que deixasse Taís em paz, que a esquecesse de uma vez por todas e fôssemos embora. Rosa parecia voltar a si, sair de um surto terrível e me obedeceu. Corremos em direção ao carro e ela entrou e se deitou no banco para que ninguém a visse. Então eu dei a partida e fomos embora. Ela então sugeriu que eu fosse para a Capital por uns dois dias.

— Mas o que aconteceu com a moça? Ela caiu, afinal?

— Eu acho que sim, não tinha muitas chances para ela. Rosa a matou, não há dúvida. No outro dia, tinha muito comentário que a moça estava toda arranhada e fora levada pela correnteza, rio abaixo.

— Então, você acha que ela não resistiu, talvez pelo estado fragilizado em que estava em virtude das drogas e tenha caído no rio.

— Sim, penso que sim.

– E agora está aliviado? Você não matou a moça, é inocente, apesar que pode ser considerado cúmplice, já que não fez nada para ajudá-la e ainda assistiu a cena.

– Rosa fez tudo por mim, pra me proteger, como sempre. Eu não devia ter contado isso.

— Não se preocupe, mais cedo ou mais tarde, isso apareceria. Rosa não ficaria impune. Além disso, há outras coisas que precisamos descobrir. Há outros crimes envolvidos.

Júlio acenou a cabeça, pesaroso. Abriu a porta para o policial e pediu que ele ouvisse a gravação. Quanto à Rosa, esta pagaria por seus crimes, naquela noite mesmo.

Nesta noite, Júlio fazia um retrospecto de todos os acontecimentos e percebia, insatisfeito que apesar do caso estar parcialmente resolvido, havia uma incongruência nos fatos que não se ajustavam de algum modo.

Paulo, o mecânico estava preso por assassinato e acabara confessando que a autora do crime era Rosa, tornando-se seu cúmplice, por ter abandonado Taís à própria sorte e ainda ter encoberto a verdadeira criminosa.

Por outro lado, Rosa cometera o crime porque julgava Taís uma indecente, que não se ajustava aos seus padrões morais e também porque amava o mecânico e a odiava por se intrometer em sua vida. Entretanto, Paulo não presenciara o desfecho. Ele viu Rosa empurrando a moça, mas ela ainda não havia caído no rio, se apoiava e poderia ser salva por alguém logo após ele e Rosa terem se afastado. Ou quem sabe, alguém a empurrou definitivamente. Como assegurar com precisão que Rosa fora a autora do crime?

Estava assim pensativo, quando o delegado Borba ligou para ele, quase intimando-o a segui-lo até a ponte. Estranho, pensara, o delegado não confiava em seus serviços e agora precisava de sua ajuda. A menos que a sua conclusão inocentando Paulo o tenha agradado a ponto de querer a sua presença. Mas o que teria acontecido para chamá-lo àquela hora ? Desceu rapidamente e pegou o carro no estacionamento correndo ao encontro do delegado. No caminho, imaginava que teriam encontrado alguma pista do crime, talvez alguma prova acusando ou inocentando Rosa. Mas como achariam alguma coisa depois de tanto tempo e o que isso mudaria? De todo modo, mesmo que achassem alguma coisa, não valeria como prova. Além disso, o delegado Borba não estaria ocupado àquela hora da noite, investigando se não houvesse acontecido alguma coisa muito grave. Ao chegar , percebeu próximo à ponte um carro da polícia com giroflex ligado e um policial, além do delegado. Olhavam para baixo, deslocando pelas margens do rio. Júlio aproximou-se e viu um foco de luz lá embaixo, na ribanceira, que chamava a atenção dos dois.

— Que aconteceu, delegado?

— Conhece aquela moça?

— Daqui não consigo ver nada, estou vendo que tem um corpo lá embaixo, mas...

— Trata-se de Ana, a menina que diz que ouviu Taís gritar no dia do crime.

— Meu Deus, pobre menina! Mas então?

— Mais um crime, detetive. Atiraram a moça da ponte também. Parece que preferem matar as mulheres por aqui.

— Foi semelhante ao de Taís? Ela foi empurrada também?

— Desta vez, acertaram com um tiro. Mas venha, vamos descer até lá. Quero mostrar-lhe uma coisa.

Júlio desceu com dificuldade, sendo ajudado às vezes pelo delegado Borba. Ao chegar bem perto, percebeu que a menina estava seminua e uma lagoa de sangue surgia por detrás do corpo. O tiro havia sido no peito, atravessando o corpo frágil da moça, provavelmente perfurando os pulmões. Júlio virou o rosto, angustiado. Poucos dias atrás havia conversado com Ana, inclusive tentara conseguir o seu depoimento, pois Rosa investira contra ela, ameaçando-a. Teria sido Rosa a culpada pelo delito?

O policial afirmou tratar-se de uma simulação de um assalto. Não havia celular, nem documentos, nada que identificasse a moça. O delegado Borba concordou e pediu que Júlio observasse minuciosamente a cena. Não havia nada que indicasse outra causa, apesar de haver associações muito fortes entre os dois crimes. Júlio pediu licença e subiu até a estrutura acima, na ponte. O delegado deu um sorriso e acrescentou, dirigindo-se ao policial: — Um frouxo. E depois quer dar uma de investigador.

Júlio deu uma volta pelos arredores. Dirigiu-se ao local na ponte de onde provavelmente Ana havia caído, ao ser alvejada. Em dado momento, encontrou alguma coisa numa ranhura da ponte, que parecia um cartão de memória. Pegou-o e levou-o consigo sem avisar a polícia. Despediu-se do delegado e partiu em seguida, em direção ao hotel. Ao chegar, Júlio inseriu o cartão num pendrive e tentou abri-lo no notebook. Entretanto, o arquivo não abria, havia uma senha que o protegia, a qual por mais que tentasse, nunca era a correta. Digitou Ana, rio, maconha, lual, tudo que pudesse lembrar de alguma forma a conduta da moça, mas nenhuma servia. Então, pensou Anderson, o garçom que o servia pela manhã e que às vezes, fazia o serviço de porteiro do hotel. Parecia um rapaz inteligente, quem sabe ele poderia ajudá-lo. Certamente, ficaria efetivo neste cargo, pensou.

— Boa noite, detetive. Parece que o senhor anda muito ocupado, ultimamente. Está sempre correndo.

— É verdade, Anderson. Inclusive vim aqui para pedir a sua ajuda.

— Pois não, detetive. Mas antes me diga, é verdade que Rosa é a assassina de Taís?

— Quem lhe disse isso, Anderson?

— Ah, parece que um policial comentou por aí, o senhor sabe, as coisas se espalham.

— É, tinha esquecido que todo mundo sabe de tudo, nesta cidade. Mas não gostaria de falar sobre isso, Anderson. Como lhe disse, preciso da sua ajuda.

Algum tempo depois e Júlio tinha a resposta que queria. Anderson sabia decifrar o programa em que o arquivo fora gravado e em alguns minutos, conseguiu abri-lo.

— Não sei o que o senhor quer saber, detetive, mas não vejo nada demais aqui. São contas, pode ver.

— Contas? Você tem razão. Olhe, cifras enormes, valores volumosos, não? Diga-me uma coisa, agora posso abrir no meu notebook? Será que não precisarei de alguma senha?

— Não, agora eu já criei uma senha própria. Coloquei "cidade". É só o senhor digitar a palavra.

Júlio no quarto, pode observar com mais atenção uma série de contas que percebia serem ligadas ao tráfico e alguns nomes, como o de Carlos, do filho do prefeito. Era de se esperar, pensou. Será que este arquivo estava em posse de Ana e por isso a mataram?

Júlio continuou a pesquisa. Quase ao fim do arquivo, um nome chamou-lhe a atenção, o que o deixou muito intrigado. Foi neste momento, que Anderson bateu a sua porta, dizendo que alguém queria falar-lhe. Ainda preocupado, abriu a porta ao amigo Jairo, que revelava-se extremamente nervoso. Antes de perguntar qualquer coisa, mandou uma mensagem para Anderson e guardou o celular em seguida, dirigindo-se a Jairo.

— Aconteceu alguma coisa grave, Jairo? Você vir aqui, a esta hora da noite.

— Eu vim aqui, porque preciso falar com você Júlio. Vim aqui, fazer-lhe um pedido, em nome de nossa amizade. E você só tem uma alternativa: atender-me.

Júlio afastou-se um pouco, em direção à janela e pediu que ele sentasse na poltrona, próxima à cama. Jairo não obedeceu. Olhava-o de um modo estranho, como se estivesse prestes a atacar ou ser atacado por um inimigo. Júlio então, perguntou, tranquilo: — Você quer que eu o atenda em quê? Me parece muito preocupado, Jairo. Volto a lhe perguntar, aconteceu alguma coisa?

Jairo levanta a voz, irritado.

— Não me venha com esta pedagogia de detetive, Júlio, pelo amor de Deus. Você veio aqui pra cidade, andou mexendo em coisa muito perigosa. Eu vim aqui lhe pedir que pare com isso. Pare com essa investigação. Já deu o que tinha que dar, os caras estão presos, o que você quer mais?

— Não estou entendendo Jairo, eu até lhe falei sobre os suspeitos, sobre as várias possibilidades de confrontamento e até de associações nos crimes. Inclusive pegaram o mecânico e agora estamos sabendo que Rosa está por detrás disso. Por que você está tão assustado?

— Eu não estou assustado. Quero que você acabe com isso!

— Por que?

Neste momento, Jairo tira pistola da cintura e a aponta a arma para Júlio que o olha surpreso e desconfiado.

— Se você não fizer o que lhe peço, eu vou matá-lo Júlio. Você não entende que eu não quero fazer isso?

— Você quer me matar por quê?

— Eu já lhe disse, você está mexendo num vespeiro e a coisa só piora.

— Então me fale, me diga o motivo. Você se refere ao crime da ponte?

— Eu me refiro ao meu negócio. Eu lhe falei que estou há três anos tentando fazer um camping, um negócio de lazer na cidade e o Ibama coloca mil impedimentos, por problemas ambientais e quando eles sinalizam para liberar, essa gentinha vem e corrompe o lugar, quem é que vai fazer turismo numa cidade que não respeita ninguém, que faz orgias à noite, no melhor ponto turístico. Você entende o que está acontecendo, Júlio?

— Não, não entendo.

— Então, eu vou lhe esclarecer. Você há pouco falou em Rosa. Pois saiba que nós nos unimos para acabar com esta canalhice e limpar a cidade.

— Como assim?

— Nós começamos a perseguir aquela gente, já que a polícia não fazia nada. Então, quando morreu a mulher do seu Domingues, que tinha diabete, e segundo diziam na época, por erro médico, tivemos uma ideia. Injetar insulina nos jovens que vinham para as festas organizadas pelo filho do prefeito. Deu certo, todos pensavam que eram turistas, mas na verdade, era gente que vinha só pra se divertir e fazer sacanagem nas nossas fuças. Isso era uma afronta. Como eles não tinham a doença, acabavam morrendo e ninguém descobria a causa. Tanto, que arquivaram todos os inquéritos.

— Mas como vocês faziam isso?

— Nós os atraíamos, Rosa alugava o seu apartamento e eu montava umas barracas não muito longe do lugar onde faziam as festas. Então nos preparávamos para o golpe. Quando voltavam na penúria, drogados e bêbados, tínhamos a ocasião perfeita que precisávamos para injetarmos a insulina.

— E o Paulo estava envolvido nisso?

— Aquele pateta? Claro que não. Ele não sabia de nada. Dizíamos que estávamos tentando ajudar aquela gente, um bando de drogados.

— Tem um rapaz, um tal de Raul que diz que foi injetado também. Desconfia de um pessoal do pet shop.

— Aquele é um maconheiro da pior espécie. Nem sabe o que diz. Na verdade, foi Rosa, por vingança e ele confundiu tudo. Acabou inventando outras histórias, é tudo delírio da cabeça dele.

— Mas e quanto a Taís? Foi a Rosa mesmo quem a matou?

— Claro, com a minha cobertura. Aquele idiota do Paulo é que estava no lugar errado e se meteu. A coisa ficou mais difícil e eu tive que acabar o serviço.

— E tudo isso pra quê, meu Deus?

— Não fui claro? Para limpar a cidade desta corja, para montar o meu negócio para gente de bem, turistas que viessem pra cá, para curtir a natureza, as belezas da cidade. Não dá pra entender isso, Júlio?

— Não, na minha lógica, não. E quanto à Ana? Vocês a mataram também?

— Aquela idiota estava se metendo, abrindo o bico. Ela roubou um cartão de memória que tinha os dados armazenados de todos os envolvidos no tráfico, gente de bem, inclusive Carlos, o filho do prefeito. Sem trocadilho, Júlio, mas foi queima de arquivo.

— Você fez tudo sozinho, Jairo?

— Tenho dois caras que trabalham comigo. Mas não achamos nada. Aquela vadia sumiu com o arquivo.

— Você fala disto aqui, no meu notebook?

— Como você achou? Por que está com você Júlio?

— Como você vê, Jairo, eu sou um investigador tão bom que você está aqui, me ameaçando. Nunca imaginei, porém que seu nome estaria entre eles. Quando o vi, fiquei muito surpreso. Essas contas são muito volumosas, não acha?

— Então Júlio, você também será queima de arquivo. Sinto muito meu amigo, mas você vai desta para melhor.

— Se eu fosse você, não faria isso, Jairo. Na portaria, há um computador com todos os dados copiados e Anderson está sabendo de tudo. Neste momento, ele já deve ter chamado o delegado Borba.

— Você está mentindo! Eu não sou idiota, Júlio!

Neste momento, a porta se abre e o delegado Borba surge, empunhando uma arma na direção de Jairo. Anderson espia da porta, satisfeito e conclui: — Saquei a mensagem, detetive.

Fonte de ilustração: www.pixbay.com

domingo, abril 24, 2016

Olhar noir

Nem sabia se devia sair, mas em dado momento, sentiu-se mal. Uma mulher de sua estirpe, por mais que aquele povo representasse a elite, havia entre eles alguns estapafúrdios, que demonstravam uma dissonância com o movimento, que a deixava irritada.

Estava muito calor, homens suados e sem charme, vestidos em camisetas bregas pedindo autógrafos e às vezes, dando encontrões maliciosos. Se ao menos partisse de um garoto malhado, barriga tanquinho, barba mal feita e boca sensual, daquelas que suplicam um beijo cinematográfico. Que nada, havia até uns velhos decrépitos, de bermuda branca e sandalha de velcro, uh, que coisa execrável! Era hora de dar o fora, uma atriz de seu cabedal, filha de militar, que fora casada com diretores e até mágicos, inclusive se tornado virgem a pedido do policial, aquele cafajeste! Mas deixa pra lá, agora ela ainda dá os seus pitacos nos novinhos!

Afastou-se do grupo constrangedor. Ouvia o seu nome a todo momento, Susi Silveira, Susi Silveira, o que produzia uma amaciada no ego. Entretanto, havia alguém diferente na turba famigerada: um rapaz fascinante, que a atraiu de imediato. Percebeu o seu olhar incisivo, revelando um sorriso que a desconcertava. Foi num destes mimos que a vida às vezes nos propicia, que o viu aproximar-se, segurar-lhe o braço, e em seguida envolver-lhe a cintura. Ela o beijou com avidez, enfiando a língua naquela boca sedenta, girando até o céu da boca e sentindo o hálito quente e agradável de um verão que retornava.

Chamou seu assessor e pediu que o motorista os levassem para um bar descolado, bem afastado da praia. Descobriu que estudava publicidade, sonhava em ser ator e a considerava uma mulher encantadora, além de ter enorme tesão por suas pernas perfeitas. Susi estava feliz: não é sempre que aparece um deus assim!

Em seguida, foram para o seu apartamento na Barra, um local onde os paparazzi não a encontrariam. Cumprimentaram o porteiro e ela o beijou com despudor no elevador.

No quarto, a sacada para a praia, o rapaz com o olhar perdido ao longe. Ela tomou um banho e voltou envolta na toalha. Pediu que ele fizesse o mesmo, mas de modo inusitado, ele disse que desceria para tomar ar. Garantiu que voltaria com enorme tesão, o que a deixou mais animada.

Esperou como uma dama. Quem sabe, seria este o seu novo amor? Porém, o tempo passou e o rapaz não voltava. Ligou para o porteiro, sem obter resposta. Ficou ansiosa. Se aquele cara fosse um marginal, um bandido? Não, ele era um estudante que lutava contra a corrupção, um cara da zona sul, da elite.

Vestiu-se, desceu os 23 andares e observou da porta do elevador, que o silêncio imperava no prédio. Dirigiu-se à portaria. Não havia ninguém. Caminhou pelo hall do edifício e avistou a sala dos funcionários.

Aproximou-se, tentou bater na porta, mas aquietou-se, quem sabe, o porteiro estava ali, cumprindo alguma tarefa. Mesmo assim, decidiu entrar, precisava saber onde estava o rapaz que … afinal, como era mesmo o seu nome?

Empurrou a porta com força e na penumbra, ouviu suspiros e frases inintelingiveis. Seus olhos acostumaram-se um pouco e percebeu que dois homens nus disputavam um prazer que se revelava quase em desespero, resgatado em suas bocas, seus corpos, seus membros intumecidos. Tudo isso ela viu, até mesmo o olhar que se projetou, quase num foco de cinema noir, aqueles olhos claros e límpidos que a encaravam transtornados.

Lá embaixo, o assessor sorrindo, feliz pela ousadia da amiga correu ao seu encontro, perguntando, curioso: – Então, não me esconde nada! Como é que foi, amiga?

O motorista encostado no carro, levantou os olhos do visor do celular e misterioso, exclamou: – Por essa, nem Bolsonaro esperava!

sexta-feira, janeiro 22, 2016

Mormaço de domingo

Sentia o cheiro acre das calçadas sujas. O encardido denso esquentava os paralelepípedos mal estruturados. Um sol de ressaca, quase mormaço, mas nada pior do que o constrangimento de vê-lo ali, estirado na esquina, encostado no átrio da porta. Parecia franzino, quando o avistei do outro lado da rua. Cabeça estirada nas tijoletas quentes, os cabelos revoltos, os braços escondidos sob o corpo. Por um momento, pensei em chamá-lo, acordá-lo do torpor, que me parecia, se encontrava. Outras pessoas passavam mais adiante, olhavam curiosas, como eu, mas se dispersavam logo: um mendigo, um drogado que se abateu na noite e se transformou naquela figura estática e indefesa.

Talvez não houvesse o que fazer mesmo. Para que acordá-lo? Por que trazê-lo ao mundo dos normais, se havia talvez muito mais intensidade na conduta que o levara ao abandono que ora demonstrava? Talvez uma noite de festa, bebedeiras, mulheres, alegria, e todos os prazeres da carne e da mente. Do físico, da alma?

Uma pequena inveja assolou minha alma, por um momento. Pudesse eu desfrutar daqueles momentos de derrame da vida, mesmo que o resultado fosse uma poça de baba na boca, uns olhos apertados no sol, o corpo doído na calçada suja.

Nem sei se pela inveja ou por piedade, ou mesmo medo de que fosse vilipendiado, roubado, ou mesmo assassinado, que o chamei. Afinal, não se tratava de um mendigo, haja vista as roupas que usava. Um paletó cinza, camisa preta, calça de um cinza mais claro e sapatos sociais. Não havia dúvida que foi o que me levou a tentar acordá-lo. Se fosse um mendigo miserável ou um craqueiro indesejável, eu como de resto, seguindo o senso comum das pessoas de bem, me afastaria rapidamente, provavelmente atravessando para o outro lado da rua e desaparecendo nas calçadas seguintes.

Então me aproximei devagar, dobrei o corpo para que me ouvisse e o chamei algumas vezes. Ele abriu os olhos, apertou-os com força em virtude da luz intensa, fechou-os rapidamente, virou o corpo em direção à parede e esticou as pernas, encolhendo-as novamente, deixando-se ficar na posição fetal. Dava a sensação que não queria conversa.

Insisti: companheiro, não pode ficar aí. É perigoso. Tens documentos, carteira?

Ele não respondeu. Resmungou alguma coisa sem sentido e encolheu-se ainda mais, escondendo a cabeça com as mãos.

Ia desistir do meu intento. Que se amolasse. Que roubassem o seu dinheiro, seus documentos, que o agredissem. O dia passaria rápido, e naquela rua vazia, numa tarde de domingo ensolarado, a solidão era propícia aos vândalos.

Voltei-me, abandonando a ideia de ajudá-lo, quando de repente, num salto, ele se levantou, como se imbuído de uma estranha energia. Então, insisti.

– Companheiro, é melhor ir pra outro lugar. Ficar aí, sozinho, deitado na calçada, não é bom. Alguém pode te assaltar.

Ele não me respondeu. Olhou-me atentamente, como se quisesse descobrir qual era a minha verdadeira intenção. Uma suspeita implícita.

Perguntei, intrigado.

– Escuta, cara, não tens nenhum amigo?

Ele foi taxativo. Olhos arregalados, uma certeza única: meu amigo é Jesus.

Talvez pretendesse dizer-me que não tinha amigos e que não confiava em ninguém. Achei melhor dar por encerrada a minha missão.

– Está bem, só insisto que não fiques aí deitado. Daqui a pouco, pode passar algum policial e vai implicar contigo – e conclui com um “até logo”, entredentes.

Ele voltou a deitar-se, agora sob a marquise do prédio ao lado. Pelo menos, estava na sombra do edifício. Afastei-me alguns metros e ele sussurrou, levantando a cabeça na minha direção.

– Não tenho documentos, não tenho dinheiro, não tenho nada.

Decidi não dar atenção. Estava cansado destas ladainhas. Pessoas que se mostravam incapazes de voltarem para as suas cidades porque perderam tudo, ou que pediam dinheiro porque haviam sido roubadas, ou porque precisavam de um medicamento com urgência. As histórias soçobravam em minha mente e aqueles textos amarfanhados se repetiam da mesma forma como os flanelinhas inventavam maneiras de agradar os presumíveis clientes.

Ele disse aquelas palavras, azulou os olhos aguados e deixou-se ficar na mesma postura, sem iniciativa. Era um convite ao desinteresse. Segui então o meu caminho e enquanto me afastava, lembrava de momentos em que passei sérias dificuldades. Situações absurdas em que fui envolvido sem qualquer lógica que justificasse os sacrifícios passados. Mas, eu era responsável, um homem que sempre trabalhou em toda a sua vida. Não podia ficar me comparando com um homem que fica na passividade permissiva do pedido, da esmola, da auto piedade. Mas volta e meia, surgia a tal da culpa cristã que me acompanhava.

Aos poucos, o mormaço me deixava cada vez mais cansado. O suor escorria pela testa e uma sensação estranha de frio me atingia, como se uma febre terçã se estabelecesse em meu organismo, tornando-me frágil e incapacitado para seguir adiante. Por sorte, havia o banco da pequena praça de esportes, no qual me sentei, estirando as pernas. Tinha a sensação que também as pernas esfriavam e se distanciavam do resto do corpo, como se não mais fizessem parte dele, antecipando-se à grama que ora cercava-me os pés.

Reflexos de histórias passadas, de situações vividas, vinham à tona e se misturavam com a realidade do dia de mormaço. Eram noites quentes que se revezavam com o frio que acompanhavam a rigidez de meu corpo, num desafio entre a vida e a morte. Mas podia ver, ao longe, como numa tela mesclada com vários filmes, mulheres que se aproximavam em danças orgíacas, oferecendo bebidas e sorrindo numa sensualidade mórbida, onde a boca vermelha se aguçava num sangue, que ora escorria derradeiro, como se as mordidas do amor, também fossem as da morte. Ao mesmo tempo em que homens se insinuavam e lambiam suas coxas e seus ventres enquanto prostitutas se aproximavam, misturando taças de champanhe com sugestões sexuais. Talvez meu corpo latejasse de frio e tesão. Talvez o frio que sinta agora seja o medo de aceitar a sexualidade estendida na bandeja, da incapacidade de amar e me relacionar, da infinidade de desejos preteridos e outros engajados em buscas que não eram minhas.

Talvez tenha medo de ajudar aquele rapaz e descobrir em suas vestes, os resquícios das noites dionisíacas, nas quais meu corpo se incendiava e temia descobrir verdades tão ocultas e bem colocadas no rol das intimidades bem aceitas. Talvez tema resgatar esta faculdade de amar, de viver de forma libertina e liberada, de enfrentar a verdade do desapego de meus conceitos, de encontrar nele, aquele que pretendi ser e não fui.

Talvez devesse voltar até a marquise e enfrentar o mormaço do domingo, quem sabe passaria este frio que me enrijece a língua e me impede de falar, como num pesadelo no qual, nos esforçamos em abrir e fechar a boca e o som nunca sai. Quisera ter a coragem de voltar, de encontrá-lo novamente e desafiar o medo que corrói minhas vísceras. Mas se voltar, não será tarde demais? Já passou tanto tempo. Já não existem as noites límpidas, a brisa suave abrigando a testa, o sorriso sincero e a vontade de viver. A vida foi passando assim pálida, assim deslocada da realidade, apenas compartilhando momentos roubados, obscenos, perdidos, alinhados a noites de fúria e medo. Para se tornar plácida, tranquila, morna, insossa, culminando neste mormaço de domingo.

fonte da ilustração: InfoKeywordsCommentsGeo CIMG5050 (2)ee.jpgBy endiku

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