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segunda-feira, outubro 22, 2018

O pássaro e a bandeira

Estava na sala de aula, observando um pássaro que insistia em pousar no muro, próximo à janela. O professor de português, um homem baixinho, de cabelos brancos e barba rala aproximou-se e perguntou, se não estava ouvindo o que ele dissera.

Na verdade, eu nem ouvira o que ele me perguntara, mas fiz uma observação sobre o pássaro, como se fosse a coisa mais importante a ser dita. Ele balançou a cabeça e balbuciou entre lábios, indicando-me um livro que abria com energia sobre a classe.

Olhei-o quieto e passei a ler o livro e esperar que se afastasse na direção de sua mesa ou do quadro. De lá, ele perguntou se eu sabia que naquele 1º de setembro, seria o primeiro dia do hasteamento da bandeira, atividade que se faria até o dia anterior ao desfile, no 7 de setembro. Afirmei rapidamente, junto com outras vozes dos colegas que confirmavam a atividade. O professor mais uma vez insistiu, se eu não lembrava que neste primeiro dia, eu havia sido sorteado. Eu sabia disso e como lhe afirmar mais uma vez, se todas aquelas vozes falavam juntas e ele parecia tão zangado.

Quando tentei justificar-me, ele me interrompeu, dizendo que eu ficasse olhando para o pássaro, pois seria trocado por outro aluno mais atento. Fiquei muito frustrado, afinal, havia sonhado com aquele momento. Era uma sorte, eu ter sido escolhido e ainda perdia a oportunidade por estar olhando para um pássaro na janela.

O professor prosseguiu a aula e na hora indicada, levou a turma, juntando-se às demais no pátio da escola. Olhei para a janela novamente, mas o pássaro havia sumido.

Então, resignado, fui até o cenário indicado e assisti um colega exercendo a função que seria minha. Um dos auxiliares colocou o disco e acompanhamos o hino nacional.

Voltando para a aula, o professor, como era de hábito, exigiu que fizéssemos uma redação. Todo o dia, precisávamos entregar uma pequena redação, para que ele avaliasse e comentasse no dia seguinte.

Então, lembrei do pássaro na janela e decidi descrevê-lo. Falei da beleza da plumagem e me detive nas cores das plumas de sua cabeça, de um azul luminoso e forte, o que me fez lembrar da bandeira do Brasil. Afinal, uma das cores estava ali tão bem representada naquele fragmento da natureza. Imaginei o pássaro dando alguns voos em busca de alimento e mais longe, quiçá, ensaiando pequenos passos sobre a grama verde, sendo acariciado pelo sol primaveril, retocando as cores e a vida.

Talvez, tudo expressasse aquele momento, no qual, nós como os pássaros, nos conectávamos com as cores, assim como a bandeira hasteada, presente em todos os seus matizes e símbolos. Sabíamos que seu dia era o de 19 de novembro e talvez, eu, tal como o pássaro que talvez voltasse ao muro, pudesse partilhar daquele momento futuro e hastear a bandeira, sentindo-me feliz e honrado.

O professor Martinez leu a redação, sorriu e fez a sua avaliação. Disse-me mais tarde, que não precisaria esperar até novembro e que participaria junto com outros colegas do hasteamento, já que havia decidido hastear a bandeira no próprio dia 7 de setembro, antes de sairmos da escola, embora houvesse o desfile.

Não sei se ele fez esta mudança por mim, pela redação ou por perceber que estava muito envolvido no evento. O que sei é que o pássaro de cabeça azul, pousado próximo à janela, tivera uma participação especial em minha imaginação.

quinta-feira, janeiro 04, 2018

As laranjas do vizinho

Diariamente, deliciava-se olhando as laranjas do vizinho. Não eram suas, talvez por isso mais saborosas. Divertidas. Tinham uma cor exuberante, apesar da luz quase inadequada do inverno.

Ficava ali mastigando pensamentos. Nada melhor do que olhar as laranjas do outro. Estas têm os que as nossas não têm. Isso, se as temos.

Se pudesse subir no último degrau da escada e escalar o muro, por certo aquelas seriam suas também.

Um dia, faria um bem para si próprio, retirando delicado, uma a uma, todas as laranjas do vizinho.

Por que somente ele tinha laranjas? Por que havia plantado, produzido, cuidado com carinho do que era seu? Por que era dono de um bom espaço. E daí? Ele também era seduzido pela terra, limpara o lixo dos fundos do quintal, examinara todas as plantas, que eram poucas, mas passíveis de crescimento, tal como as laranjas do vizinho.

Não havia nada atrás de seu muro. Apenas aquelas laranjas apetitosas, suculentas, das quais sentia um arrepio nos dentes, em pensar no simples ato de uma dentada em sua polpa. Via-a entre suas mãos: os gomos inchados de suco, os fios soltando-se, pequenos fiapos que se uniam aos gomos ou os atravessavam com cuidado. Via-as abrindo-lhes a casca, puxando uma parcela aqui, outra ali, até deixá-las totalmente brancas. E nuas ficavam, quando se lhes retirava levemente a casca para não ferir os gomos. Nuas em suas mãos frágeis a acalentar uma laranja roubada.

Por que a laranja do vizinho é tão apetitosa?

Por que não nos contentamos com as nossas, mirradas, casca com ferrugem, murchas? Por que sempre vemos no outro o que não encontramos em nós mesmos.

Tal como as laranjas, a nossa vida é cheia de frutos que podem ou não ser partilhados, que podem ou não resistir à poeira, aos maus tratos, às intempéries. Que podem ou não crescer exuberantes. Nem tudo depende de nós. Mas um pouco, sim.

Quem sabe deixamos de lado aquelas laranjas que nos parecem tão apetitosas e examinemos as nossas, com calma, carinho, cuidado. Talvez seja só do que precisem.

quinta-feira, novembro 05, 2015

A velhinha do riacho

Era assim, baixa, cabelo espichado num coque sugado no topo da cabeça. Tinha aquele jeito amável de ser, mas se a examinássemos com cuidado, veríamos uma sagacidade no olhar, um meio sorriso nos lábios e uma artimanha escondida nas mãos que jamais imaginaríamos.

Mas ela era assim, tranquila, doce, solícita e focada nos seus objetivos. Nada a despertava de seus cuidados constantes com o croché, com a linha desobediente arriscando-se entre seus dedos a se tornar mais uma fiel: corregionária da fé. Por certo obedeceria seus gestos ágeis, embora, inseguros e faria os contornos necessários para o desenho.

Ela tinha seus caprichos. Tinha consigo que deveria fazer as coisas da melhor maneira possível e se asssim aprendera de geração em geração, era seu dever fazê-lo.

Era conservadora nos seus segredos e via de regra, mantinha a tradição.

Outra coisa que gostava, era de prosear. E até fumava, meio às escondidas, um cigarro de palha. Tinha uma tosse danada, daquelas que nem alecrim cheiroso cura, mas persistia no vício.

Sentava à beira do avarandado e puxava conversa. Seus olhinhos miúdos, quase escondidos, entre pesados sulcos, brilhavam. Sua boca de poucos dentes desafiava a memória de qualquer um. E lembrava, e contava e argumentava sobre as histórias mais cabulosas. Sabia de tudo. Nada lhe passava, que ficasse no esquecimento. Ao contrário, tinha uma memória prodigiosa, principalmente quando algum fato escabroso assombrava a pequena povoação. Mas esse assombramento, esse destempero, nada tinha a ver com alma penada ou assombração. Tinha a ver com gente da cidade, políticos, militares, advogados, donas de casa, sacerdotes, gente de qualquer profissão ou vocacão. Até os vagabundos tinham a sua história. E como tinham. Aí, brilhava o seu lado progressista.

A tradição passada de geração a geração era esquecida. Ou compartilhada. Ela ficava bambaleando entre a tradição, a posição conservadora e a progressista, que desafiava o caráter de qualquer um. Tinha este carisma, este dom, de ultrapassar barreiras ou ficar me cima do muro. O único problema, e ela não sabia disso, é que poucos confiavam nela. Quem poderia confiar numa pessoa que passava de uma margem a outra, sem pestanejar, sem molhar os pés, sem se preocupar.

É, ela era assim. E há políticos, que são bem parecidos, saltam de partido em partido e lutam para criar outros. Tal como a velhinha do riacho.

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