Mostrando postagens com marcador vida.. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador vida.. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, novembro 11, 2022

Um certo despertar

Seguia pela Av. Portugal numa dessas tardes primaveris, um tanto outonais, atualmente. Um pouco de frio, um sol que aquece à tarde e parece indicar uma proximidade real com o verão. Que nada, daqui a pouco, retorna o ciclo de calor e frio. A natureza tem suas regras e talvez uma delas seja apenas nos preparar aos poucos, para a mudança que transcorre lentamente.

Mas olhando ao longe, embora de carro, pude ver um céu muito azul, de vez enquanto, entrecortado pelas árvores que se debruçavam distraídas em suas copas pela avenida. Meus olhos acostumados com o nosso céu, no entanto, parecia encontrar nele e naquelas ocorrências de cores, nos caminhos da Cidade Nova, um certo despertar, que há tempos não experimentava. Como se gerasse uma nova era e um vento suave, quase brisa, soprasse devagar novos ares, novas descobertas, novas esperanças. Então, meu coração deu uma sacudida, de leve, delicado com meu corpo há tanto calejado, nestes últimos tempos, com meus olhos sem muita iluminação e minha vida vacilante.

Então, parei o carro ali mesmo, observando os espaços entre as árvores, as pessoas em atividade física ou seguindo seus caminhos entre crianças, brinquedos e bicicletas. Na minha playlist, ouvia a música “Lâmina de amor” de Chico Salem e a letra realçava exatamente este meu sentimento, da salvaguarda da esperança. “Quanto tempo até isso virar um país e o navio negreiro incendiar vazio?” “Quanta munição vai querer dinamitar nosso cancioneiro e nosso refrão?” “Não vou cansar, nem desistir, meu canto é lâmina de amor”. Que preservemos esses novos tempos, como inspiração e resgate de uma vida mais digna e amorosa.



fonte da ilustração: https://www.freeimages.com/pt/photo/world-photo-file-vii-1163456

sexta-feira, outubro 20, 2017

Luta por quem está contigo

Eu costumo comentar com colegas ou amigos, que sempre que havia um desentendimento de alguém que de algum modo me feria, eu não ficava me lamuriando, caso a pessoa fosse apenas um colega ou conhecido.

Claro que sentia, mas sentiria muito mais se eu gostasse realmente da pessoa, se fosse minha amiga ou parente. Ficaria muito triste. Afinal, essas me tocavam de perto.

Em 2014, o Papa Francisco disse a frase que corrobora com o que penso:

“Não chores por quem te abandonou, luta por quem está contigo. Não chores por quem te odeia, luta por quem te quer.”

Eu acrescentaria o verso do Quintana “eles passarão, eu passarinho”.

Sem ódio, sem tristeza, apenas

exaltar a alegria dos que a compartilham.

Vida que segue.

quarta-feira, maio 24, 2017

Nunca ao entardecer

Nunca ao entardecer, pensava ela, estirando-se na grama do parque. Olhava para o céu, desconfiada de que choveria. Nuvens corriam, e a impressão é que se chocariam conforme o vento aumentasse. Mas ficava ali, quase adormecida, olhando para o céu. Se pudesse, ficaria até a noite. Mas não arriscaria a vida, num capricho desses.

Por certo, seria melhor levantar-se, tirar as folhas das árvores que se grudavam no jeans, olhar para os lados, desapercebida, e seguir em frente.

Talvez pegar o metrô, tirar da mochila aquele livro do Sartre e ficar folheando, fingindo que lê. Há tempos faz isso. Pensa que um dia acabará a leitura, mas não acaba nunca. Sartre pensa demais. Nada aproveitável, diria sua avó.

O piercing recém colocado causava certa ardência no umbigo. Dava uma leve coceira, também. Nada que fosse levá-la ao desespero.

Na verdade, se desesperava por poucas coisas. Ainda bem. Afinal a vida é uma eterna turbulência. Pra que ficar se angustiando.

Ouviu o barulho do metrô na estação.

Decidiu ficar ali, mais um pouco. Gostava de manter-se ocupada consigo mesma. Cuidar de seus movimentos. Analisava os braços que ora pendiam corpo afora.

A calça justa, cintura caída. A blusa solta no corpo, branca, de um algodão fino que deixava ver o sutiã escuro. Fixava o céu. Era de um azul quase lilás, esbranquiçado, transformado pelo sol frouxo que perdurava nestes dias sonolentos.

Pudera ficar mais tempo, esquecida do mundo, das coisas, dos seus pensamentos mais íntimos. Sabia que, como manda a filosofia budista, devia esperar. Esperar que os pensamentos debandassem, assim como vinham, desavisados. Vertentes inefáveis do medo. Sairiam, deixando-a vazia. Tudo girava de revés. Era só esperar. E esperar era o que mais fazia atualmente. Esperar o fim do assédio moral, sexual e discriminação no trabalho. Esperar que a respeitassem como mulher. Mais do que isso: resistir.

Afinal de contas, sua geração era a de resistir. Geração, não, a herança maldita de gênero, diria a mãe. Afinal, a mulher parece estar sempre em teste contínuo, tentando provar a todo momento que pode sobreviver, nem que seja por instrumentos.

sábado, dezembro 17, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 28 - ÚLTIMO CAPÍTULO

Capítulo 28 - Final

Santa e os filhos esperavam angustiados a longa espera por Alfredo. Embora felizes pelo pesadelo ter acabado, ainda havia marcas muito fortes que comprometiam um momento mais festivo. No fundo, Tavinho e Letícia sentiam-se culpados por terem sugerido a limpeza no cenário do crime, o que de certo modo, estimulou a prisão de Alfredo. Quando o viram, abraçaram-no, aliviados. Santa enxugava algumas lágrimas ao ver o filho tão abatido, mas estava feliz.

Após alguns minutos de intenso desafogo emocional, Alfredo perguntou por que o pai não havia vindo.

Todos ficaram em silêncio. Santa pediu que se afastassem logo dali, já que estava tudo em ordemcom os documentos e pertences pessoais e se dirigissem ao carro que os estava esperando. Alfredo insistiu que o levassem ao seu apartamento, pois precisava tomar um banho e trocar a roupa. Foi o que fez, acompanhado de Tavinho e mais tarde iriam para a casa para comemorarem com Santa, que mandara preparar um jantar especial para aquela noite.

No apartamento, enquanto Alfredo se dirigia ao banho, Tavinho tocou no assunto do pai.

– Nosso pai está muito aborrecido com você, ou melhor, aborrecido é eufemismo, ele está indignado. Não era pra menos, né? Ele até acredita que você sempre o odiou.

Enquanto se ensaboava, Alfredo comentava a observação do irmão.

– Eu sei do que você está falando. Talvez ele tenha razão em reagir assim, afinal eu ia cometer uma loucura.

– Que ideia era essa de sequestrar o velho? Você pirou?

– Na verdade, não era bem um sequestro. Eu confiava muito no jardineiro e sabia que ele não faria nenhum mal ao nosso pai. Sei que foi uma ideia idiota, mas eu estava desesperado com aquela intenção dele de afastar mamãe de tudo, de torná-la uma incapaz. Eu não podia aceitar aquilo, então pensei , que com ele fora de cena, seria mais fácil acertar as coisas. – De vez enquanto, ele sai um pouco do boxe para que Tavinho o ouça e volta para o chuveiro deixando-se envolver pela torrente de água, como se fosse necessitasse de um banho eterno – Mas, eu só queria ele longe por um tempo e pregar-lhe um susto por ter enganado a mamãe, tê-la traído daquela maneira. Depois, que eu resolvesse a situação, ele voltaria são e salvo.

– Mas nós concordamos com a proposta de nosso pai. Todos aceitaram, ficaram quietos.

– Veja bem, eu não estava convencido. Achava que era uma maneira dele livrar-se dela. Ainda tinha a intromissão dessa mulher, essa tal de Linda que não sai da nossa vida.

– Entretanto, foi essa mulher que o salvou. Foi ela que foi atrás do bispo, que descobriu tudo, que colocou ele contra a parede e fez um acordo com a polícia. Havia uma escuta no local, sabia?

– Pois é, isso sim é uma coisa estranha. Mas é problema dela. Depois do que ela estava aprontando para a nossa mãe, eu não quero vê-la mais na minha frente.

Termina de secar-se e veste a roupa enquanto Tavinho passeia pelo quarto. Pega um livro que estava sobre a cômoda, examina-o e volta-se para Alfredo, concluindo:

– A bem da verdade, todos nós erramos. Eu, em ficar quieto, na minha, você por tomar esta atitude disparatada, Letícia pelo fato de ir na onda do velho, e ele por querer se apropriar de todo o patrimônio, além de ser chantageado por Linda. Sabe de uma coisa, Alfredo, havia aí uma história que não sabemos muito bem.

– Eu sei muito bem: ganância. Se esta mulher estava fazendo jogo duplo e chantageava ele, é porque sabia de alguma sacanagem de nosso pai. Esta mulher deveria estar no olho da rua! Não sei porque a toleram tanto!

– Mas há mais uma coisa que você não sabe, o que nosso pai agora pretende fazer.

– Não me diga que tem mais alguma coisa, depois dessa tramoia toda.

– Sim, ele vai sair de casa. Disse que fará uma viagem pelo exterior durante alguns meses e depois provavelmente entrará no processo do divórcio, em definitivo.

– E mamãe, o que pensa disso? Ela que sempre quis a família unida, que lutou por isso!

– Por incrível que pareça, ela está conformada com a situação. Uma mulher tão religiosa, tão apegada à família tradicional, é de se pensar né? Mas, que seja assim, que a coisa se resolva da melhor forma possível.

Alfredo acaba de calçar os sapatos, pega as chaves do carro e do apartamento e convida Tavinho a se dirigirem à casa da família. Por um momento, parou e olhou para o irmão. Aproximou-se.

Tavinho o olhava, surpreso.

– O que aconteceu, Alfredo?

– Sabe, Tavinho, naquela prisão, passando por tudo o que passei, eu pensei muito em nós, na nossa família. Acho que na verdade, nós estamos nos conhecendo e nos aproximando agora. Nunca fomos realmente unidos, como nossa mãe sonhara, acho que até mesmo por culpa deles, daquela falsa moral, daquele apego às aparências, sendo tudo que era desfavorável aos conceitos estabelecidos, escondido sob o tapete.

– E por que este discurso, agora?

– Porque uma das pessoas que nunca entendi, foi você. Quero aceitá-lo meu irmão, como você é. Talvez um dia, você me aceite também.

Tavinho por um momento emociona-se, mas disfarça com um sorriso irônico. Mesmo assim, aproxima-se de Alfredo e o abraça. Depois, afasta-se rápido, apressando-o para sairem.

– Não se esqueça, que o jantar de dona Santa promete! Vamos embora!

Algum tempo depois, estava todos reunidos à mesa posta para o jantar. Santa, apesar dos últimos transtornos e reviravoltas que sua vida dera, incluindo a ausência do marido, sentia-se tranquila, quase feliz com a presença dos filhos. Além dos três, também o genro estava presente, e como de hábito, fazendo indagações inconsequentes, como o motivo da ausência de Sandoval. Letícia não controla a impaciência:

– Você sabe que eles estão se separando, deixe de ser idiota.

– Eu sei, mas nada o impedia de estar aqui.

– Ainda tem o problema do… você sabe.

– Tenho certeza de que ele vai perdoar Alfredo.

– Cale a boca.
Alfredo decide intervir no diálogo que lhe diz respeito.

– Deixe Letícia, ele tem razão. Papai também não deve ter vindo por minha causa, mas eu o compreendo. Só o tempo pode amainar esta situação.

Santa que se mantivera calada até então, tenta encerrar o tema.

– É verdade, meu filho, não vamos mais falar nisso.

Neste momento, Linda entra na sala e aproxima-se da mesa, à espera de alguma ordem. Alfredo, exasperado, pergunta:

– O que esta mulher está fazendo aqui?

Santa intervém, nervosa:

– Por favor, Alfredo, vamos ficar em paz. Já passamos por tantos momentos difíceis. Linda está aqui apenas para nos servir e comandar os demais criados. É a sua função.

– Mas esta mulher é a causadora de todos estes momentos difícieis aos quais a senhora se refere. Não se esqueça que ela a traiu!

– Alfredo, você sempre foi tão tolerante, eu não o estou reconhecendo.

– Deixe-o dona Santa, se quiser eu me retiro.

Alfredo grita, ainda mais indignado:

– Não, nao saia ainda. Tenho uma pergunta para lhe fazer. Qual era o seu interesse nesta historia toda? Porque partindo de você, coisa boa não era, pela sua conduta recente. Mas como você armou para descobrirem que o bispo Martim era o culpado? Como chegou até ele?

Linda suspira, angustiada. Olha a princípio para Santa, como se lhe pedisse orientação para prosseguir. Santa abaixa os olhos indecisa. Os demais observam a cena, intrigados. Linda então, continua.

– Eu tinha algumas dúvidas, senhor Alfredo, mas com o passar do tempo, analisei os fatos e associei uma coisa com a outra. Por fim, investiguei nas anotações de meu sobrinho, nos seus objetos particulares.

Alfredo prossegue, impiedoso.

– Ah, tinha me esquecido, você é boa nisso. Está sempre fuxicando na vida de todo o mundo. Mas por que não me deixou apodrecendo na prisao? Queria se passar de boazinha para minha mãe? Ou para meu pai, para conquistá-lo?

– Senhor Alfredo, nao me humilhe! – exclama com os olhos marejados de lágrimas. Alfredo levanta-se da mesa e todos os olhares o seguem, como se temessem uma agressão maior.

– Humilhá-la? Você humilhou a todos nós nesta casa! Ou quer que eu a agradeça? Pois saiba, que eu jamais agradecerei pelo que fez. Não me interessa como conseguiu as provas, nem se estava preocupada em descobrir o verdadeiro assassino ou porque cargas dágua se envolveu nisso. Aliás, você se dá muito bem com estes tipos, é da mesma laia.

Linda então o encara e grita numa voz potente, como se houvesse reunido todas as forças para aquele desfecho.

–Eu fiz porque nao suportei vê-lo preso. Eu sabia que era inocente.

– Ora, não seja idiota. Não se faça de boazinha, estou cheio da sua hipocrisia!

Santa então pede que ele volte a sentar-se e a deixe em paz. Segundo ela, não é o momento para aquela discussão inútil.

– Você ainda a defende, mamãe? Defende esta mulher que manupulou a nossa vida, que chantageou meu pai, que a traiu? Pois saiba que a quero longe desta casa, quero esta mulher no olho da rua! E tem mais, se eu soubesse que era você quem me ajudou, eu preferia ficar preso.

– Eu não queria, eu não queria… que você… eu nao queria que sofresse, eu sempre o defendi… eu …

Santa a interrompe, cada vez mais ansiosa:

– Pare Linda, nao fale mais nada.

– Não fale o quê, mamãe? O que esta megera ainda tem a dizer? Eu já deixei bem claro que não preciso dela para nada! Mas fale, infeliz, o que você queria dizer?

Linda parece transtornada, apenas encarando Alfredo, como se somente ele existisse naquele momento. Por fim, responde o que pretendia contar.

–Eu sou sua mãe, Alfredo.
Santa levanta-se, pedindo que Linda se afaste. Os demais observam a cena, embasbacados. Alfredo começa a rir com ironia.

– Ah, hoje é o dia das piadas? Que interessante! Qual é a próxima? Que você vai casar com o meu pai?

Santa então decide dizer a verdade. No íntimo, acha que basta de mentiras e que tudo deve ser esclarecido de uma vez por todas. Linda encosta-se na parede oposta ao lugar onde se encontra Alfredo, ocultando o rosto com as mãos. Santa aproxima-se de Alfredo e complementa o assunto.

– Alfredo, meu filho, é verdade. Vocês acabaram sabendo que seu pai tivera um filho com Linda. Essa era a chantagem que ela fazia, mas o que não sabíamos, nem eu, até o momento, era que … – Santa interrompe-se, emocionada – era que você era o filho de Linda com Sandoval. Sei que também sou culpada, eu nunca disse que você era adotado, pois para mim, você sempre foi o meu filho, como todos os outros. Só que para meu castigo, por eu ter escondido de você a vida toda isso, é que a criança que Linda tivera com Sandoval era você, a criança que eu adotara, sem saber. Quando seu pai confessou sobre a chantagem, eu exigi o DNA e então… não havia mais como não ter a prova. Mas você é o meu filho, não importa a mãe biológica, eu o criei com todo o carinho, todo o meu amor.

– Você está louca, mamãe, voce quer acabar comigo, é isso? Já não basta o que me aconteceu?

Houve um silêncio absoluto por um pequeno intervalo de tempo, quebrado apenas por Ricardo, que comenta com Letícia:

–É por isso que ele é assim, nao acha? Tá no dna, olha o sobrinho, quer dizer, o primo dele.

–Cale a boca, Ricardo.

Linda volta-se da parede e antes de sair, decide desabafar.

– Eu vou sair, dona Santa, Alfredo tem razao, eu devo ir embora – Alfredo a interrompe, gritando que não pronuncie o seu nome. Linda prossegue, mesmo assim – Antes de sair, preciso dizer que fiz tudo para que ele fosse libertado. Quando soube que estava sendo acusado, que era suspeito da morte do meu sobrinho, eu fiz das tripas coração para descobrir o verdadeiro assassino. – E voltando-se para Alfredo, que neste momento está com o rosto enfiado na mesa, completamente abalado, ela insiste – Eu fiz isso por você, Alfredo. Não importa o que pense, o que sinta por mim. Fui uma sombra ao seu lado, mas sempre estive por aqui, cuidando de você, toda a minha vida, todos os dias, toda as horas, todos os minutos sempre ao seu lado, mesmo que fosse apenas uma criada. Fiquei calada para sustentar o título de familia bem estruturada que vocês representavam. Mas voce é o meu filho e bem ou mal, embora você nem se lembre, eu semper o ajudei e sempre estive ao seu lado.

Ao terminar, afasta-se em silêncio, fechando a porta atrás de si. Todos os olhares agora se voltam para Alfredo, que também se levanta, indicando que deixará a sala.

– Mamãe, vou me retirar. Isso tudo me dá nojo!

Santa ainda tenta remendar a situação:

–Um dia, voce me entenderá.

–Não, nunca a entenderei. Nunca entenderei como me adotou sem se preocupar em saber a minha origem, sem nunca me contar quem eu era. Também nunca entenderei, dona Santa, a senhora, uma mulher tão religiosa, como conseguiu mentir por todo este tempo. Agora fica cada vez mais clara a lógica dessa família falsa. Uma arremedo de família. Eu nao quero mais participar dessa mentira.

Afasta-se em seguida, enquanto Santa o chama em desespero:

– Alfredo, volte aqui meu filho.

Da porta, ele responde com raiva:

–Não me chame de filho, você não é minha mãe.

Todos ficam em silêncio. Em seguida, Tavinho dirige-se na direção da porta e Santa pede que fique. Ele responde, desolado.

– Não, mamãe, vou procurar Alfredo. Não sei mais que revelações ainda teremos hoje. Estou cansado e não quero saber mais nada.

Letícia levanta-se e Ricardo resmunga, perguntando pelo jantar. Ela se aproxima da mãe e faz uma breve carícia em seu rosto. Depois, diz-lhe baixinho, que acha melhor irem embora. Na verdade, não há nada para celebrar.

– Mas vocês não acham que estão sendo cruéis demais? O que vai ser de mim?

– Mamãe, a vida continua. Não se preocupe, que tudo se acerta.

Ricardo insiste: – Não é melhor a gente comer e depois ir embora?

Letícia faz uma careta, exigindo que ele a acompanhe. Em seguida, saem deixando Santa sozinha, à beira da imensa mesa de jantar. Ao vê-los se afastarem, ela ainda pergunta, desconsolada: – E a fotografia que tiraríamos juntos? A fotografia de nossa vida?

FIM

terça-feira, dezembro 06, 2016

Um amor de avó

Esperei que ela abrisse o manto da proteção e o estendesse sobre mim. Foi em vão. Fitei-a inseguro, olhos de súplica. Pedi perdão.

Olhava-me com frieza, distanciada de meus sentimentos. Orgulhosa. Onipotente.

Esperei que ensaiasse uma atitude, tomasse qualquer decisão. Falei em minhas culpas. Do mal que lhe causara: agruras devidas a preocupações, brincadeiras ofensivas, aborrecimentos inoportunos de menino levado.

Que nada. Não me ouvia. Resolvera agir assim, friamente, numa pedagogia autoritária.

Estava ali, sentada na poltrona de brocado, com novelos entre as mãos, olhar distante, comprido, para a janela. Minha avó.

Olhando-a assim, sentia pena. De mim, dela, de nós. Por sermos o avesso de suas aspirações: cheios de vida, astutos, perspicazes, briguentos, barulhentos, perturbadores.

Ela quieta, silenciosa, solene. Não nos queria por perto. Às vezes, achava que nos odiava.

Tão diferente de meu avô, suave, doce, amigo, franco, feliz.

Ele, no auge da alegria, satisfação com a vida, afeito aos pequenos prazeres, fortalecido na dor, tranquilo, sereno.

Ela, forte, resoluta, uma rocha.

Sempre nos seguia com o olhar e quando não gritava, falava com aspereza e dor. A dor lancinante dos que não aceitam o sofrimento, dos que invejam a vida que aflora, que se tinge de cores douradas, luzes flamejantes, fogos ardentes.

Tinha em seu íntimo uma vontade extrema de nos ensinar, de moldar a sua imagem e semelhança, de nos fazer crescer.

E por isso, nos diminuía, achincalhava nossas misérias, desconsiderava nossas descobertas, nossos progressos, nossos sonhos.

Mesmo assim, eu percebia no seu olhar uma certa fragilidade, uma pureza escondida, uma ingenuidade que temia emergir.

Se pudesse mergulhar naquela alma, por certo, veria muito mais do que aparentava.

Aquela mulher forte, guerreira, autoritária tinha uma doçura e sensibilidade que insistia em ocultar.

Sabia que me amava, mas a sua maneira. Querendo ensinar a todo momento, transmitir uma aprendizagem contida, fabricada, padronizada aos conceitos que internara em seu subconsciente. Uma disciplina autoritária.

No fundo, percebia isso e me dava um alento. Quem sabe um dia, encontraria a verdadeira face daquela mulher sofrida.

Não naquele momento, em que me submeti aos seus caprichos, desvendando minha própria alma, mostrando-me assim, indefeso, fraco, implorando o perdão por pecados tão infantis.

Não naquele momento em que assumi uma mistura de sentimentos, inferioridade e ódio, evitando pensar desta forma, não entendendo como poderia odiar minha avó.

Não naquele momento, quando avistei a mulher enorme, que se agigantava ante meus olhos e se diminuía ante meu coração.

Custou-me entender que a fortaleza ruía a qualquer momento e que mais cedo ou mais tarde, vislumbraria um afeto, um gesto de carinho, mesmo pequeno, tímido e incerto.

Era uma forma de amar, talvez como ela tenha apreendido em toda a sua vida e dela ter feito o seu método de vida.

Um amor de avó.

Postagem em destaque

A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

PULICAÇÕES MAIS VISITADAS