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sábado, julho 20, 2024

Uma pessoa má

Não sou uma pessoa boa. Talvez tenha até boa índole, mas costumo procrastinar em várias circunstâncias de minha vida. E isso, eu sei, me torna uma pessoa má. Não má, a ponto de planejar algum malefício, ou mesmo, exceder-me em ímpetos de fúria. Mas como disse, postergar, atrasar, adiar providências. Quem sabe, atrasar alguns recados, algumas notícias adversas, algumas informações duvidosas, não fosse de todo mal. Mas, tenho a péssima mania de esquecer determinadas ações a que me propus e isso me torna uma pessoa má. Se não, vejamos, quem esqueceria de entregar figuras de santos em virtude de uma promessa para a saúde de alguém? Quem esqueceria de divulgar, espalhar e ampliar a fé para atingir um objetivo maior, se não, a melhoria da saúde da pessoa? Eu. Outro dia, encontrei centenas deles, espalhados em uma gaveta, hoje já não tão seguro de sua influência nos objetivos terrenos. Por outro lado, quem esqueceria dar um mimo para um amigo, após uma viagem? Como por exemplo a miniatura de um azulejo de Lisboa, a torre Eiffel ou a medalha de Lourdes? Quem os esqueceria no fundo de uma gaveta e um ano depois, os encontraria com o nome das pessoas citadas, enroladas com uma fita, indicando a lembrança do amigo? Eu. E tem aquelas roupas que separamos das usadas no roupeiro, deixamos limpas e perfumadas, guardamos numa sacola para uma futura distribuição nos dias frios e ficam eternamente à espera da correta ação. Quem somente lembraria quando uma alma atenta às atribulações humanas, comentasse dos dias difíceis de um inverno incessante. Eu. Mas faço-o sem planejamento ou organização. A doação ocorre no momento da dor, do sofrimento, do encontro, da imagem da pessoa, olho no olho. Talvez aí, ocorra a minha absolvição. Não sei. Ou talvez nada absolva meus erros, nem conforte meu espírito, talvez, quem sabe, uma virada de chave. Talvez eu precise apenas olhar para dentro de mim, observar as gavetas, mitigar as dores e encontrar as saídas.

terça-feira, junho 06, 2023

João e suas histórias

João tinha desses hábitos desajeitados: gostava das coisas às avessas. Se lhe contavam uma história, ficava imaginando a trama de trás pra frente, com o protagonista com cara de vilão, ou o vilão com cara de mocinho.

Estava sempre à cata de uma novidade, alguma coisa que despertasse a sua curiosidade. E a dos outros também. Costumava se queixar que seus pais viviam muito ocupados. Por sorte, o avô se mudara para sua casa, por andar meio solitário e doente. A família se dispersara um pouco. A avó morava num País distante, ele nunca sabia, se na Nova Zelândia ou na Austrália. Não era bom em geografia. O seu forte mesmo era a imaginação.

João gostava de histórias. Mas não as histórias contadas pelo avô. Ele, João, era o narrador, especialista em inventar as histórias mais esquisitas possíveis. Começava do final, inventava personagens, trocava as personalidades de alguns e até a aparência física.

O avô perguntava: — Ué, não era o gigante que tinha a galinha dos ovos de ouro?

Não, segundo ele, era a mãe de João, aquele do pé de feijão, não ele, que tinha a tal galinha. E pior, ela, a mãe era a vilã.

— A vilã? – o velhinho indagava intrigado, levantando as sobrancelhas sob os óculos.

— É Vô, o senhor vai ouvir a minha história ou não vai? A que eu sei é deste jeito, depois o senhor conta a sua.

— Não, você é o contador de histórias. Eu sou o ouvinte. Mas vamos lá, desfecha este imbróglio.

Imbróglio? O avô gostava de usar palavras estranhas. Ainda bem que ele sempre explicava no fim da frase – “imbróglio é confusão, mixórdia, esta bagunça que você faz com as tramas”, ou então “desfechar é abrir, concluir”. É, o avô tinha seus caprichos!

Mas João gostava do seu jeito despachado, e embora cismasse com as palavras, ele sabia que no fundo, o avô ficava feliz com a sua presença e com as suas narrativas. Por isso, continuava a inventar as histórias mais malucas que lhe vinham à cabeça. Uma série imensa de personagens e tramas que saíam de sua mente, assim, fresquinhas, criadas na hora, de improviso, prontas para deixar o velhinho de cabelos em pé. Sim, porque às vezes, as histórias eram de arrepiar, imagine, para a idade de João, que tinha apenas sete anos.

Mas, um dia João se calou. Não brotaram mais histórias de sua boca. Por mais que o avô insistisse, ele se negava a inventar histórias. Parecia triste, sem vontade de puxar pelo raciocínio, como costumava dizer. Foi então, que passou a falar quase todos os dias sobre um amigo que morrera. Chamava-se Júlio e segundo o avô, um anjo o havia levado para o céu. Mas aquela explicação não o convencia. Por que havia de morrer assim de uma hora para outra, deixando-o sozinho, sem nunca mais poderem brincar juntos? A quem contaria os acontecimentos de sua vida, a quem comentaria sobre o seu mais querido ouvinte, o avô?

Certa vez, quando João apareceu em seu quarto, daquele modo desavisado, pensando numa coisa e fazendo outra, o avô aproveitou para instigar a imaginação do neto, pedindo-lhe uma nova história. Precisava incentivá-lo, para que voltasse a ser o menino feliz de outrora. Mas que nada. João não inventava mais nada. Desandara a perguntar, parecendo querer todas as respostas do mundo! Perguntava por que a avó sumira, por que o pai estava sempre ocupado e mãe vivia tão nervosa. Embora o avô replicasse que sua ex-mulher não sumira, João, volta e meia, insistia com aquela versão. Um dia ele fez uma pergunta nova. O velhinho respondeu: — Agora, você me deixou embatucado!

João riu. Embatucado, que palavra esquisita! Mas logo percebeu, que o avô estava pensativo e atrapalhado com a pergunta. Entretanto, naquele dia, ou melhor, naquela noite, ele queria uma reposta. E sabia, que somente o avô lhe daria. Por isso, insistiu:

— Então, aí, Vô, se você é meu parça, fala. O que é a morte? Por que a morte leva as pessoas, assim como levou o meu amigo. Me explica.

— Calma, João, você está muito ansioso. Uma pergunta de cada vez.

— E o senhor sabe responder?

O avô pensou, pensou, matutou e deu o troco: — Só respondo, se você prometer que voltará a me contar as suas histórias.

— Ah, não sei Vô. Pode ser.

— Pode ser, não. Você tem que me garantir que voltará a exercer a sua imaginação. Estou com saudades, sabia?

João suspirou, sério, mas disparou logo: —Vou fazer o possível. Sabe Vô, estas coisas a gente não pode garantir.

— Está bem, João. Eu entendo você. Mas prometa que fará um esforço.

— Isso eu prometo! – Adiantou, sorrindo.

— Está bem, eu confio em você.

— Então me diga, vai responder a minha pergunta?

—Como você, vou fazer um esforço.

—Por quê?

— Talvez porque eu não saiba explicar muito bem. Mas vou fazer o possível.

— Então, começa do princípio, Vô, sem enrolação.

— Como assim?

— Dizendo como tudo começou. A morte aparece assim, de repente?

—Depende.

—Depende de quê?

— Espera, acho que tenho uma maneira de mostrar pra você.— Abre a gaveta da cômoda e retira um envelope com fotografias. Escolhe uma e a entrega a João.

— Quem é?

— Um menino, assim como você.

— Mas quem é?

— Sou eu.

João caiu na risada. Não, podia ser ele. Não podia ser o avô, assim, tão diferente. Aquele não passava de um menino estranho, de uns 10 anos de idade. O avô, então, confirmou, tranquilo: _Mas sou eu. Quer dizer, este fui eu, há muito tempo atrás. Este menino da fotografia não existe mais, apenas o velho que você conhece.

Antes que João dissesse qualquer coisa, ele mostrou uma fotografia atual: — Agora olhe esta.

— Esta é o senhor.

— Pois é. Este da foto sou eu mesmo. Por que aquele menino da foto antiga não pode ser?

— Porque este é igual, o outro nem se parece com o senhor. Parece de outro mundo!

— Mas este também não existe mais. Este aqui era eu há três anos atrás, quando tirei a fotografia. Este é passado, não existe mais.

— Não tô entendendo nada, Vô. O que isso tem a ver com a morte?

— Espera, vou te mostrar outra. Para entender a morte, assim, como para entender a vida, a gente tem que aprender aos poucos, certo?

— Certo.

— Está vendo? Quem é esta?

— Não sei. É uma mulher.

— Claro que é uma mulher. É minha mãe — confirmou entusiasmado.

— Sua mãe é bonita, Vô.

— Sim, muito bonita. Então veja, ela está aqui, representada nesta fotografia antiga, não está?

— Claro, Vô.

— Pois muito bem, mas minha mãe está morta. E sabe onde ela vive? Apenas na minha lembrança.

João aquietou-se, olhando embasbacado para os olhos brilhantes do avô. Teve a impressão de que havia uma lágrima brincando pelas pálpebras. Mas acha que foi só uma impressão.

– Pois a morte é assim, como uma fotografia antiga. A gente tem a imagem, a representação, mas a pessoa não está aqui. Aquele menino que você viu e riu, pensando que não era eu, não está aqui, assim como homem da fotografia de há três anos atrás e também a minha mãe. Nenhum dos três está aqui. Eu não sou mais aquele menino, nem tão pouco aquele homem um pouco mais jovem, que você afirma que sou eu, nem a minha mãe, porque morreu há muito tempo atrás.

Fez um silêncio e aproximou o rosto pintado na barba branca. João arregalou ainda mais os olhos grandes, ouvindo o que o avô tinha a dizer.

— Quando uma coisa vira passado e a gente não pode mais ficar perto, nem abraçar, nem conviver, isto é a morte. O que passou, já morreu.

E prosseguiu, com mais ênfase, concluindo a explicação: — Isso mesmo. O minuto atrás já morreu. Só não morre, quando a gente lembra, quando a gente não esquece. Por exemplo, esta mulher que um dia existiu e que era a minha mãe, sempre viverá na minha lembrança, bem aqui, ó – e apontando com o indicador para a cabeça, em seguida, para o coração – aqui, na minha mente e no meu coração. Você entende, João, as coisas só morrem definitivamente, se a gente deixar de pensar nelas.

— Mas Júlio morreu!

— Como a imagem da fotografia antiga, a qual você jamais poderá saber quem é, no futuro, se esquecer completamente. Por outro lado, você pode guardar no coração. Preservar é uma maneira de existir. Neste caso, não morre definitivamente.

O avô suspira, aliviado. Talvez com saudade. Depois, convida: — Quem sabe, vamos viver a vida, e você me conta uma história nova.

João, porém, fez outra pergunta: – Mas então, por que o senhor guarda as fotografias?

— Ah, porque recordar é viver de novo aquilo que já passou. Se foi uma coisa, boa, por que a gente não lembrar, não é mesmo? A vida ficou ali, escondidinha na fotografia e cada vez que a gente olha, lembra de outras histórias que aconteceram naquele tempo — e com os olhos brilhantes de emoção, conclui – e a gente vive tudo novamente.

— O senhor lembra de alguma?

— De muitas. Mas se você for bastante esperto, vai lembrar do seu amigo como uma fotografia antiga e vai lembrar de histórias que passaram juntos. Ou vai inventar uma.

João juntou as fotografias e guardou-as no envelope, como se tivesse alguma coisa nova na cabeça para por em prática. Pediu que o avô o esperasse, correu até seu quarto e trouxe o notebook, já com a página de um site aberto. Mostrou-a para o avô.

— Quem é esse?

— Júlio, meu amigo. Tava nessa rede social, viu? Um dia ele resolveu criar uma comunidade só dele. Deixou então este montão de fotos e juntou todos os amigos, até eu to aqui! Só que um dia o site saiu do ar e ele não pode mais incluir nenhum post.

— E o que ele fez?

— Um backup de tudo e entregou para o seu melhor amigo continuar a sua comunidade.

— E como se chamava a comunidade que ele criou?

— Vida. Mas aí, já é outra história.

O avô sorriu e ajeitou-se na poltrona, satisfeito. Parece que tinha uma outra história acontecendo. E nem era adaptada. Mas certamente, seria às avessas.

quinta-feira, abril 02, 2020

O cheiro doce da maresia

Fonte da ilustração: Bernhard_Staerck in: www.pixbay.com



Quisera falar coisas agradáveis. Talvez anunciar que ando lendo livros, ouvindo músicas , que arrumo minhas estantes e desorganizo meus pensamentos. Talvez a única opção correta é o caos de pensamentos.

Quisera sorrir com as piadas, com os memes da pandemia, com os artifícios de comunicação em mídias menos afeitas ao jornalismo.

Quisera sorrir e ver beleza em imagens da natureza, nos programas de viagens, nos realities falsos de construções e vendas de casas ou de restauração de carros. Quisera me divertir com programas de humor, de me emocionar com dramaturgia, de acalentar a alma com a melodia. Mas não consigo. Meu coração está apertado e meu peito não se expande para dar vazão a sopros de esperança.

Fico emocionado sim com o pessoal que trabalha na frente de batalha, como soldados fiéis e fortes, em nossa defesa. Parece que a humanidade está tão frágil e as questões de classes, etnias ou orientações sexuais parecem ter apenas um viés democrático, o de estarem todos no mesmo barco.

E parece que a tempestade é poderosa, cujos ventos e ondas estão a ponto de desestabilizar o barco no qual cabe cada vez menos pessoas. Como se fôssemos ficando sem espaço, pois os que decidiram avançar as ondas, já não podem voltar para o barco e se voltarem farão com que os que já estavam acomodados e isolados, afundem juntos. Quisera que a tempestade passasse rápida e que pudesse novamente olhar de frente o horizonte e observar uma paz indefinida, com a certeza de que não estou sozinho nem isolado e que outros já podem respirar ao meu lado. Antever ao longe, o oscilar das névoas entre o sol e a brisa, permeando meu olhar solidário. Para isso, basta que não enfrentem a ciência e fiquem no barco, não sigam as atitudes bisonhas de um líder que não lidera, que apenas aguardem que a maré abaixe, que as ondas diminuam, que o mar se acalme, que sintam o cheiro doce da maresia e a vida recomece. Nunca mais como antes, mas talvez mais rica e densa de valores.

quarta-feira, maio 29, 2019

Pequena sinopse sobre o meu romance "A biblioteca e a barca"

A história trata dos vários olhares do homem em consonância com o seu cotidiano, alicerçado nos valores que concebe para a sua vida. É a trajetória de um homem que aos poucos vai conhecendo a verdadeira história de seu pai e o quanto ela ainda o influencia nos dias atuais, forçado de certa forma, a recorrer ao passado e reconhecer nele um caminho novo, de liberdade e orgulho, que não identificava antes. Uma história que vai modificar e completar a sua. Com o conhecimento destas vivências, cresce como ser humano.

Tudo começa nos anos sessenta, cuja curiosidade infantil o impulsiona a conhecer determinados documentos estranhos que parecem comprometer o seu pai, e que tanto o angustiavam pelo forte conteúdo político que continham. Ao mesmo tempo vivia a sua vida infantil, confrontando a fantasia de aventurar-se na barca á beira do cais, sempre impedido pela mão forte do pai, ao mesmo tempo, que por outros caminhos, imergia no mundo sagrado da biblioteca, batizado que fôra nas letras, podendo singrar os mares tal como os navegadores antigos, sem que houvesse qualquer intervenção. Aqui ocorre a metáfora da barca que não ousara entrar, mas que se materializava no ambiente dos livros.

Em meio a tudo isso, há a luta política do pai, como voluntário no movimento da legalidade, quando Brizola instalava a rádio nos porões do Palácio. Em decorrência destas atitudes, fôra perseguido, considerado comunista e torturado, a partir da derrocada da liberdade pelo advento da ditadura.

Na fase adulta, envolvido no mistério dos documentos secretos do pai, onde se misturam personagens que gravitam em torno deste mesmo mistério, na trama que ocorre no cenário de uma biblioteca, chegando ao ápice, a partir de um crime, ele descobre finalmente o grande legado que o pai lhe deixara: a liberdade de escolha calcada na sabedoria da tolerância.

Os documentos nada mais significavam do que o ideário de libertação do jugo da tirania e da intolerância. Nesta atmosfera misturam-se sentimentos muito fortes, mas bem distantes dos relacionamentos idealizados de sua infância.

O romance transcorre em flashback, apresentando o protagonista, César, um bibliotecário, cuja trama tem como cenário a biblioteca, a partir de uns registros antigos, documentos confidenciais que são imputados ao pai, deflagrando o conflito.

Neste ambiente, destacam-se colegas e alguns amigos. Pessoas que trabalham na biblioteca e uma gama de pessoas que interagem no ambiente das diversas maneiras. Bibliotecários que odeiam leitores, restauradores estranhos e perigosos, estagiárias que ocultam segredos, convergindo todos para a mesma finalidade: desmascarar César, descobrir o seu passado ou negociar a sua própria sobrevivência no local de trabalho.

Em meio ou alheio a tudo, o amor na maturidade. Em suas lembranças, César volta ao passado e neste retorno, passa a desvendar também o presente. O passado é rico em imagens ternas, como da professora dedicada e solícita, o tio experiente e misterioso, a tia e a mãe envoltas em suas pequenas necessidades, entre as conversas sobre algum ponto de bordado ou as radionovelas, até que suas vidas se transformem, como a do velho professor que organizara a biblioteca comunitária do bairro, atingida pela intransigência do regime de exceção que alastrava suas várias formas de poder.

Um mundo em que havia o boteco do Seu Matias, o menino topetudo que atendia no balcão, o japonês da caminhonete azul, o amor da adolescência, tudo mesclado ao ambiente em que se usava o talco Ross, o creme dental Philips, o pó Cashmere Bouquet, ou se vestia a calça de tergal, com o friso passado a ferro e o sapato de verniz, ou se lia os gibis do Bolinha, a Revista Cruzeiro, ou mesmo se encantava com o Sinca Tufão Presidence.

quinta-feira, abril 19, 2018

Faz tempo

Faz tempo que não se vai à janela, nem se observa a rua, nem se reflete na vida.

Faz tempo que não se pula amarelinha, nem se ensaia passos de dança, nem se sorri.

Faz tempo que o mundo anda cinza, que o medo acolhe as portas, que o riso encolheu.

Faz tempo que o ódio é mais inspirador que o amor.

Faz tempo que a divisão é o elemento maior.

Faz tempo que se rompeu o elo.

Faz tempo que se anda em atropelo, sem olhar para o mar ou rever amigos.

Faz tempo que se anda sozinho, que se olha uma tela e não se absorve nada.

Faz tempo que o mundo anda para trás.

Faz tempo que a vanguarda deixou de ser protagonista dando lugar ao retrocesso.

Faz tempo.

Fonte: Bess Hamiti in: https://pixabay.com/pt/users/Bess-Hamiti-909086/

quarta-feira, novembro 29, 2017

EMBLEMA DA MORTE EM VIDA

O conto a seguir,

Emblema da morte em vida
, foi publicado na Antologia Metamorfoses, como um desafio de se criar um diálogo intertextual com Kafka reescrevendo a frase inicial de sua novela Metamorfose "Quando certa manhã, Gregor Sansa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso". O meu conto está na páginas 53-57 da antologia, que está à venda no site da editora: www.editorametamorfose.com.br.

Quando certa manhã Lauro Sampaio acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num cadáver. Tinha consigo que a vida passava rasante ante seus olhos, mas não argumentava. Percebia as olheiras do médico de plantão e as enfermeiras que ciscavam em suas roupas disformes. Ouvia as vozes de raspão. Ora sumiam e um peso terrível abalroava suas pernas. Afinal, onde estava? No hospital? Sentia-se aprisionado em seu corpo, mas ouvia o que diziam.

Uma das enfermeiras enfiou-lhe um tubo na boca. Tudo parecia em diapasão extremo. Lauro tinha certeza de que o médico imputava a condenação definitiva. O filho, cabisbaixo, temia encará-lo. Voltou-se para a nora, ao seu lado, que transpirava certa náusea. Ela observou-lhe o rosto afinado, a boca torta, os olhos abertos para o nada. Recuaram e conversaram em segredo. O médico observava a cena, enquanto as enfermeiras acabavam o serviço e se afastavam.

Lauro tentava ouvi-los. Percebia os perfis ao longe. O médico expressava-se em parábolas. Quem sabe desenhasse o que restou dele? Lauro aguçou os ouvidos. Era tão bom quando somente ouvia o que queria. Um homem de bem, o mais esperto de sua geração. Elegante, ternos italianos e relógios suíços. A mulher o considerava um tanto brega. Onde estaria ela? Talvez fugindo da figura asquerosa em que se tornou. Mas ele sabia discernir quando o vento soprava a seu favor. Era um senador da República e sabia locupletar-se à custa dos idiotas que o cercavam. Agora, porém, nem conseguia contestar sobre a sua vida. O filho e a nora aqui, mas distantes. E sua mulher? Onde andaria? O que este filho da puta dizia que os deixava transtornados? Precisava ficar no hospital? Por que não faziam outros exames? Por que não conseguia se comunicar, embora os entendesse tão bem? Aneurisma, era isso?

Se tinha um aneurisma cerebral, como o médico vaticinara, estaria em coma. Não era um cadaver. Não ainda. Falava em seu futuro incerto, mas não havia mais futuro. Era só uma questão de tempo. Iriam nutri-lo, acionar seus movimentos vitais até que não houvesse mais reação. O medico afirmou que Lauro Sampaio não podia vê-los, nem ouvi-los, e que as suas reações eram apenas reflexos. Mas não era verdade!

Lauro podia ouvir tudo, podia vê-los, descrever cada ladrilho daquele quarto. Como chamar a atenção, como sinalizar que os vê, que os ouve, que os entende? E a mulher, onde andava que não o ajudava? Onde está sua mãe, Júnior? , pensava. Por que não se aproximavam? O que havia de tão repulsivo que os afastava? Temiam a morte? Temiam o cadáver que se deterioraria cheio de escaras? Por que não o examinavam novamente e descobriam que ele não estava em coma e podia ouvi-los? Era apenas um corpo aprisionado. Devia ser algum tipo de doença que permite ao paciente ver e ouvir.

Observava uma teia próxima à lâmpada. Um ponto preto ameaçado por outro na caça iminente. Como ele, um inseto atacado pelo aracnídeo fatal. Uma aranha nefasta que se disfarçava na negligência para prendê-lo em sua trama. Como fugir, se tudo conspirava para a prisão definitiva? Se o filho se conformava, e a nora o observava com repulsa, considerando-o um corpo falido.

As horas passaram, o filho e a nora se afastaram. No banho, subtraíam-lhe a dignidade com fraldas. Por que tinha que mijar e defecar sem perceber? A menos que a aranha gigante o tivesse caçado na teia que o envolvia, uma gosma que cospia em seus músculos e o mastigava com fúria determinada, a ponto de não saber mais o que era, se apenas um visgo que sujava o teto. Quem sabe, era isso: a morte o engoliu e ele, um espectro que se metamorfoseava para transitar livre para o outro lado. É disso que a nora tinha nojo. Um olhar sem vida, o pescoço esticado nos fios que sustentavam a teia, a gosma escorrendo pelos lábios e o crânio esmagado como um feto malformado. A morte era um regurgitar de humores putrificados e odores de comida junto a medicamentos e doença.

Tentava reagir. Bastava que alguém o visitasse. Quem sabe a mulher, Filipa, percebesse que não estava em coma, nem em estado terminal, e o salvasse. Afinal, já o protegera com uma conta na Suíça, em seu nome. Sim, ela poria aquele hospital de ponta-cabeça.

No dia seguinte, Filipa chegou com uma amiga e aproximou-se do leito de Lauro. Ele observou como estava bonita, usando o colar com que a presenteara no ano anterior. Ela, entretanto, afastou os olhos, assustada. Enojada. Voltou-se para a amiga e segredou: “não passa dessa noite”. Esta concordou, condoída. Filipa comentou, aliviada, que o caso com Jorginho ia ficar na surdina. “Jorginho? Que merda é essa?”, pensou Lauro. A amiga concordou, embora achasse deprimente o estado do senador. “Não se esqueça que ele é um sacana”, retrucou Filipa.

Lauro se desesperou. Queria fazer um sinal, unzinho que fosse pra chamar a atenção daquelas vagabundas, que saíam do quarto.

Com o passar do tempo, viu que suas chances reduziam. Morreria dali a alguns dias, perfurado por sondas, coberto de escaras e o pior, ouvindo o que falavam dele. A vida desandava, como se os telões do Senado anunciassem os votos de sua cassação. A mosca que pululava na merda de todos agora era presa fácil da aranha traiçoeira. Era um ser grotesco que resistia aos estertores da agonia, o emblema da morte em vida. Nem Dora, a ex-mulher que surgia na porta, podia ajudá-lo. Muito menos ela, uma mulher de poucos atributos físicos e que se informava com As Seleções. Não, ela derramaria lágrimas nojentas sobre a sua cara. Não precisava de seu espírito solidário.

Dora, porém, o observava atentamente. Por que o chamava de coitadinho? Por que acariciava a sua testa e pousava delicada os dedos em sua boca? Pelo menos, esta doença maldita também aboliu o tato!

Os pensamentos de Lauro se dispersavam rápidos, pois Dora alertava a enfermeira: “moça, ele mexeu a pupila”.

– Impressão sua. O senador está morrendo com uma hemorragia no cérebro. Também, dizem que abusava da cocaína. Queria morrer, não é?

“O que esta vagabunda sabe da minha vida!”, Lauro gritava em pensamentos, Dora tem razão, se eu movi a pupila, é porque tenho chances – é outra doença, meu Deus, essa gente não se convenceu ainda?

– Moça, depois que soube do Lauro, eu li na Seleções sobre uma doença que paralisa os músculos e a pessoa não se mexe.

– Hum?

– Uma tal de Síndrome do Encarceramento, uma doença rara, com paralisação dos músculos do corpo, menos dos que movimentam os olhos e as pálpebras. Temos que fazer alguma coisa!

Lauro explodiu de alegria. Dora e sua cultura das Seleções: de quem menos imaginava, surgia uma esperança.

A enfermeira permaneceu irredutível: minha amiga, se é rara, pode esquecer. Esse cara tá no fim, parece que já morreu faz tempo, só vai dar trabalho pra família. E tem outra, era bem sacana no Senado. Nem sei se deve viver.

Dora acenou a cabeça, desconsolada.

A outra ainda perguntou: “o que a senhora é dele?”.

Anti-heróis: contos/ organizado por William Moreno Boenavides. - Porto Alegre. - Porto Alegre: Metamorfose, 2017.

sexta-feira, novembro 03, 2017

Os dez textos mais acessados em outubro de 2017

1. A essência da vida

2. SOU DO CONTRA!

3. PIOLHOS DE RICO

4. TRABALHO VOLUNTÁRIO NO HOSPITAL PSIQUIÁTRICO : UMA PROVOCAÇÃO PARA A VIDA

5. A catarse do escritor

6. O bibliotecário e o escritor

7. Um olhar instigador

8. Sonhos na lagoa

9. Onde chegará o homem?

10. Triste Brasil


segunda-feira, outubro 16, 2017

A essência da vida

Por volta dos anos 50, Sartre proclamara que "cada homem é singular porque constrói sua essência ao longo de sua existência". Talvez esta procura da definição de si mesmo, seja o sentido da vida. Ou não?

Eu, como não gosto muito de falar em público, fiquei pensando nesta imagem de Sartre que me diz de perto o que sinto. É preciso construir a essência, não importa em que cubículo nos escondamos ou em que janela nos espelhamos. Construindo a nossa essência, identificamos quem somos e talvez seja este o sentido da vida que passamos a existência procurando.

E para que o sentido da vida? O fato de ser feliz, de procurar a felicidade de todas as maneiras. No entanto, a busca pela felicidade plena não faz sentido. O que podemos almejar é a serenidade, algo completamente diferente. Só se atinge a serenidade vencendo o medo.

É o medo que nos torna egoístas e nos paralisa, que nos impede de sorrir e de pensar de forma inteligente, com liberdade. Os filósofos gregos costumavam dizer que o sábio é aquele que consegue vencer o medo.

Ah, e mais uma resposta para minha dificuldade de falar em público, a frase de Hari Dunzru: “Para ser um escritor você precisa desenvolver a habilidade de falhar em público.”

quarta-feira, setembro 06, 2017

As escolhas

De olhos abertos observa-se a vida. De olhos abertos percebe-se o mundo. De olhos abertos descobre-se os medos. Mas de olhos fechados, absorve-se a plenitude da vida. De olhos fechados, avalia-se as trajetórias que nos revelam o nosso mundo interior. De olhos fechados refletimos, nomeando os medos, concedendo-lhes voz e tamanho, despojando-os de força e poder.

Pensei nestas maneiras de apreender a vida, em virtude de uma conversa com uma senhora, que me fez refletir sobre os nossos devaneios em cumprir as tarefas e avançar o tempo. Eu, aproveitando a sombra no parque, afogueado por um calor abrasante, ela, tranquila, com um olhar límpido de quem manifesta a profundidade de seu mundo interior.

Por um momento, me encarou com uma generosidade que me desconcertou e falou sobre o tempo e como o dispõe através de alguns princípios, dos quais prioriza as escolhas. Disse-me que costuma meditar e o que vê durante o dia, absorve de uma forma distinta, em que as verdades são aprofundadas. O que parece assustador arrefece e se dissipa e a trajetória do mundo é bem mais intensa e menos problemática do que se pensa. Basta fazer-se escolhas.

De certo modo, aquelas certezas me incomodavam, talvez pelo desconhecimento da disciplina que revelava. Ela, no entanto, completou: cada um tem suas escolhas, mas devemos cultivar as que dão significado ao nosso tempo, aproveitando-o e produzindo mais prazer.

Então, repliquei que nem sempre podemos escolher o que nos interessa, ao que ela concluiu que nem tudo que amamos podemos priorizar, mas talvez dois ou três itens dos cinco que elegemos; deste modo, o tempo fica melhor dividido e muito mais afável.

Calei-me, em seguida fui embora, sem antes olhar para trás e me despedir. Percebi que ela estava encantada com um livro, provavelmente uma de suas escolhas.

Afastei-me e pensei que tinha razão, que deveríamos optar por alguns ítens de nossos sonhos, para redistribuir o tempo, de modo a experenciarmos a vida e não apenas passarmos como figurantes. Afinal, o cenário está pronto, não custa tentar.

segunda-feira, julho 10, 2017

O despertar do brinde

Saber como se adequar às coisas, como se apropriar da vida, como sobreviver. Poderiam ser frases de um reality show de desafios, mas nos dias em que vivemos, parece que os desafios são mais reais e incongruentes do que qualquer programa desse gênero.

As pessoas já não se encaram, nem mesmo quando estão do outro lado do balcão. Basta-lhes a tela do computador ou o visor do celular. Buscam, pesquisam, navegam, incluem números e documentos e quase não se olham. Um trabalho qualquer numa loja é suficiente para se observar estas facetas dos funcionários, bem como dos clientes.

O sistema é o deus onipotente de qualquer trabalho. O sistema abrange desde a contabilidade das empresas e bancos, até o humor dos empresários ou do passante distraído na avenida. Mesmo no transporte, não existe nada mais importante, nem mesmo os sinais de trânsito do que o gps e o celular.

Isso sem falar nas redes sociais. Ali tudo é possível, a mídia virtual manisfesta a todo o momento as necessidades mais urgentes ou menos importantes dos usuários.

Por um momento, penso, como nos apropriarmos de nós mesmos, das coisas que observamos na rua, da natureza, das construções antigas, da beleza das fortalezas, dos faróis, dos mares, dos navegantes, do povo.

Como nos adequarmos ao simples, ao verdadeiro e real? Como ver apenas, sem registrar para os outros, como assistir o show com a intensidade de sua perfomance, sem lançá-lo instantaneamente para o mundo através de milhões de bites, sem aproveitá-lo na íntegra?

É agradável mostrar aos amigos os nossos prazeres, como viagens e festas, mas de um modo tranquilo, registrado sem perder o momento, a espontaneidade da alegria, o despertar do brinde.

Que brindemos à experiência da vida e somente a partilhemos num registro posterior.

Viver é experienciar no ato.

sexta-feira, abril 21, 2017

Vem, morena, vem

Vida útil, vida inglória, ingrata, insólita, insana, imbróglio de leva e traz, impaciência, intolerância, dor, inútil. Tudo isso e muito mais pra te dizer, morena, que a dor que sentes agora, já senti com muito mais força e afinco, quando me deparaste na porta, de quatro, chorando feito um bezerro desmamado.

Poderias ter evitado aquilo, ser mais romântica, confiada e confiante, amada e amante, amiga e compreensiva. Só porque sou homem, que jogo futebol nos fins de semana e rebento meus meniscos, não era motivo pra me abandonares em plena quarta-feira. Em plena quarta-feira, morena, no dia que combinamos ir ao cinema, lembras do filme? Nem lembras mais, por certo. A raiva, a intolerância, o mau-humor já detonou teu cérebro, já fundiu tua mente, confundiu teus sentimentos.

Era um filme daqueles de amores transbordando, derramados, de paixões ardentes, de beijos pungentes em faces rosadas, de luzes de matizes doirados em cenários pastel. Havia até musicais, morena, e é raro um homem como eu, gostar de musical. Pensa bem, sou sensível até a flor da pele. Devia pesar estes meus bons sentimentos.

Lembras da tarde em que salvei a velhinha que estava estirada em plena avenida, cheirando a grama, nariz enfiado entre paralelepípedos irregulares e crateras emolduradas de pasto? Sei que não deu certo, morena, mas lembras, bem que tentei. Passei de carro pela avenida e vi a senhora despencar no chão, envergar-se como folha morta de outono, migrar no interior da terra, transformar-se em larva medíocre, alijada da dignidade, esperando a morte. Claro que foi noventa e nove por cento de imaginação, mas sabes, morena, sou assim, sensível e criativo. Voltei correndo, feito o Massa enfrentando a fórmula 1 e deu no que deu. A velha tinha se levantado com uma garrafa na mão e quase me jogara o vasilhame na nuca, não querendo ser internada porque não era louca. Eu declarei isso a ela, pelo contrário, tentei ajudá-la, dando a mão, revelando afeto. Mas que nada.

Deixa, pra lá, morena. Não vais entender nunca o meu ponto de vista. Se sou socialista, tu és extrema direita, se sou holístico, és radical opus dei, se sou zen, és estressante e estressada. Nossos pinos não batem. Mas nossos corações sim, ah, estes batem em uníssono.

Quando nossos corpos ficam assim, juntinhos, ressoam na mesma frequência, ah, bouquet de vinho dissipando-se nos lábios, escorregando suave pela boca, amaciando a língua e o espírito. Não tenho dúvida, morena. Nossas bocas se encontram devagarinho, na mesma intensidade, sinto teus lábios molhados, beijando meu pescoço, assim, obscena, faceira, atrevida, mordendo-me a orelha, auscultando meus ouvidos, enquadrando meu coração no compasso que esperas.

Também te sinto palpitar acelerada e teu peito arfar e teus seios juntarem-se ao meu corpo, afugentando os ruídos da rua, a poluição visual, as deformidades do dia. Ficamos assim, quietinhos, num pedaço de paraíso, temerosos que o tempo passe e que a mágica acabe. Somos assim, morena, unha e coração. Será que assim, que se diz? No nosso caso, sim. Sou mais coração e tu, mais unha. Aí, me deixas na sala como bode expiatório, exibindo chifres, dando razões ao mundo de servir de exemplo a teus caprichos. Um bode expiatório aos teus pecados.

Mas na quarta-feira morena, quando após o cinema, pegaríamos aquela pizzaria para passar as horas que restavam na noite rotineira de um casal suburbano, classe média, senso comum e meio medíocre. Na verdade, pizzaria, não. Sabes que detesto pizza. Mas todo mundo gosta. Como diz o Chico, naquela música, você não gosta de mim, mas sua filha gosta. Estou disperso, morena, delirando. Misturando as coisas. Me deixaste enfeitando a sala e destruindo a casa. Por que hoje, porque na quarta-feira? Podíamos pegar aquele barzinho de música ao vivo e conversar, colocar os pontos nos is, ajeitar nossas carências, ajustar nossas dificuldades.

No barzinho? Vê morena, tu me confundes. Barzinho é coisa pra louco. Ninguém conversa, só ingere cerveja porque é de praxe beber até em posto de gasolina, gritar para poder ser ouvido, entrar em fila de toalete e ouvir o cantor gritando um Fagner desalmado que mastiga as notas sem piedade. Eu por minha parte, finjo ouvir as conversas e dissimulo qualquer coisa, discutindo qualquer assunto e não dizendo nada. Tenho saudades daqueles bares em que o cara tocava um violão, baixinho, uma MPB tranquila e a gente ouvindo solitário, mesmo a dois, o que a poesia balbuciava.

Sei morena, que às vezes, não falamos a mesma língua, talvez porque nossos dialetos sejam diametralmente opostos. Eu falo galego e tu esperanto. Me querias o super-homem do Gil (quem dera, pudesse todo homem compreender, ó mãe, quem dera, ser o verão o apogeu da primavera e só por ela ser. Quem sabe, o super-homem venha nos restituir a glória, mudando como deus o curso da história , por causa da mulher) e eu seja apenas o malandro do Chico.

Eu também sonhava contigo, na figura suave que paira no ar, declarando amor, proclamando "com que com açúcar e com afeto, fizeste meu doce predileto pra eu parar em casa", mas de antemão sabias que "os amigos me esperavam, aquecias meu prato, beijavas meu retrato e me abrias os braços". Mas não somos nenhum desses, morena. Nem o Chico se enquadra, em nossos esquadros e descalabros. Nem que nossos ideais se misturem nestas imagens, nossos corações não ousam lutar para abrir as comportas que o presente fechou. Me deixaste assim, abandonado e bobo. Me roubaste um beijo e brincaste de menina em tempos de Capitu. Que pena, morena.

Somos assim, tu e eu, bobos, perdidos no emaranhado de sentimentos que não se coadunam com nossa realidade, assim, tão cheia de nós, que não fizemos e não ousamos desvendar.

Se eu pedisse, tu voltavas morena? Se eu pedisse, desvendavas junto comigo o nó cego da insegurança, do medo, do pavor de ser um quando sonhamos ser dois? Se eu pedisse, abandonavas o jeito arrogante, bamboleando quadris nas calçadas estreitas e voltavas, ensaiavas uns passos e refletias que não sou o Johnny Depp, mas também não sou o açougueiro gordo da esquina, que espanca a carne sonhando em fazer amor com a mulher? Ele faz, a gente vive. Não chegamos ser o casal da Valsinha do Chico, nem dançamos nem nos amamos na praça. Mas precisamos um do outro para não enlouquecer.

Pelo menos, não hoje, morena, não na quarta, por favor, não deixa o tempo passar, o mundo gira, a quinta chega tão depressa! Na quinta não tem cinema, nem barzinho, nem passeio à tarde. Na quinta pode ser tarde demais.

Vem, morena, vem.

terça-feira, novembro 01, 2016

Os dez textos mais acessados no mês de outubro ( 02/10 a 31/10/16)

1º. AS AULAS DE DONA MARINA

2º. O menino e o livro

3º. Webrádio de qualidade, com a melhor programação

4º. Trabalho voluntário no Hospital Psiquiátrico: uma provocação para a vida

5º. A margem oposta

6º. A fotografia da vida de Santa - CAP. 13

7º. Meu pai, a jawa e o Irmão Cassiano

8º. A fotografia da vida de Santa - CAP. 11

9º. A fotografia da vida de Santa - CAP. 9

10º. Alguns aspectos do filme “A

pele em que habito” de Pedro Almodóvar

Fonte da ilustração: fotografia do poeta e escritor Wilson Rosa da Fonseca.

segunda-feira, outubro 24, 2016

SOBRE O FILME "UM MESTRE EM MINHA VIDA"

Um mestre em minha vida é um filme de 2011, com 83 minutos de duração, baseado na peça teatral de Athol Fugard chamada “Master Harold and the boys”.

Tanto o filme quanto o livro receberam o mesmo título, no Brasil.

Vamos falar um pouquinho sobre o autor da peça, um renomado dramaturgo sul-africano, que vivenciou todos os horrores do apartheid e incluiu este tema em muitas de suas peças, inclusive nesta, acenando para a gama de sentimentos que revela o ser humano desnudo em suas percepções da vida.

Ao contrário do que se possa deduzir em situações conflitantes, extraordinárias e limites, o homem age de modo natural, capaz de amar e odiar, em que pese às circunstâncias desfavoráveis.

Através de um discurso inconformado e eivado de lutas de resistência ao apartheid, Athol Fugard tenta refletir as transformações das relações pessoais através do contexto político-social. Afinal, o homem é produto do seu meio e age em conformidade com seus sentimentos arraigados e obsessivos, internalizados desde a tenra idade. No entanto, através da emoção e do sentimento, ele pode romper esta conjuntura adversa.

Tanto na peça, quanto no filme, a história mostra as relações inter-raciais durante a época do apartheid, na África do Sul, neste caso, nos anos 50.

Os personagens principais são Hally (Freddie Highmore), um adolescente que cresceu na companhia afetuosa de Sam (Ving Rhames) e willie (Patrick Mofokeng), dois garçons negros que trabalham na Casa de Chá de sua mãe, na cidade de Port Elizabeth.

Os dois empregados da Casa de Chá experimentam a realidade hostil do sistema de segregação racial, em cuja estrutura a sociedade criara bancos de praça exclusivos para homens brancos, enquanto que as casas dos negros deveriam ser construídas em bairros distantes.

Entretanto, os dois personagens negros convivem com esta situação tirando o proveito através de suas tendências artísticas pela dança, capazes de cultivar uma abertura particular neste espaço marginalizado, onde podiam conviver em paz.

Esta relação sadia impressiona o adolescente, de tal forma que os momentos em que Sam e Hally estavam juntos foi de extrema satisfação e conhecimento interior.

O mundo é hostil, mas eles sabiam desanuviar as dificuldades, contribuindo para um relacionamento saudável e próspero.

Entretanto, embora Hally, o adolescente e Sam, o garçom, sejam muito amigos e confidentes, a educação discriminatória de Hally o conduz a retomar o preconceito arraigado, motivado por um acontecimento fútil, sendo capaz de ofender e subjugar o amigo da maneira mais cruel e desumana.

Deste modo, ocorre o conflito da peça e do filme, pois todo o afeto compartilhado é destruído em segundos, dando margem a uma série de confrontos, revelando ao público as nuances psicológicas dos personagens.

Se por um lado, o adolescente Hally está convencido de que é forte, autoritário e seguro, por outro se sente atordoado, amedrontado e cheio de remorsos pelos sentimentos obtusos que experimenta.

Sam ao contrário, é firme e parcimonioso em seus sentimentos, dotado de paciência e experiência que o lapidaram como um homem confiante e seguro, mas tanto quanto o amigo adolescente, sente-se abandonado e triste, com dificuldade em retomar a amizade fragilizada.

Os diálogos de Sam, Hally e Willie (que aos poucos mostra uma personalidade inesperada, no decorrer da trama) são bem construídos, passando ao espectador uma verdade, que o faz experimentar as mesmas dores.

Não se tira os olhos, nem o pensamento, nem o coração da tela. Tudo é tão perfeito e verdadeiro, que as palavras fluem tal como a chuva torrencial que cai lá fora, vista pelas vidraças embaçadas da Casa de Chá (aqui, uma metáfora, entre a realidade glamorosa dos brancos e o cotidiano “apagado” e sem encanto dos negros).

A atmosfera triste da chuva, por sua vez, destaca a amargura dos personagens.

Na verdade, o sofrimento de Hally se justifica pela intolerância racista do pai, que ao mesmo tempo em que expõe Sam e Willie a humilhações, através de piadas de mau gosto, também o envergonha por ser um homem desajustado e fraco, consumido pelo álcool.

Hally sente-se dividido entre a inabilidade em lidar com os sentimentos em relação ao pai, a concordância submissa da mãe e o encontro com o novo mundo, cheio de vida e alegria ao lado dos amigos que o viram crescer.

Novamente, ao final, a chuva mostra os dois mundos que se dividem, a chuva lá fora, fria e densa, atrapalhando o percurso de Hally na bicicleta.

Talvez esta corrida na chuva signifique além do sofrimento e do remorso de perder o amigo, um batismo para uma nova vida, lavado pela água que lhe encharca a roupa e empoça as ruas.

Na Casa de Chá, através das vidraças embaçadas, o ruído forte da chuva faz coro para a dança de Sam e Willie.

Serão dois mundos que se separam ou que se completam dali para a frente?

Uma estrada paralela que se afasta ou uma encruzilhada que os une?

É um filme emocionante, repleto de descobertas e perspectivas a serem refletidas.

domingo, junho 19, 2016

A VISITA

Chegar a casa, percorrendo as ruas estreitas, de paralelepípedos irregulares, batida incerta no peito, olhos febris. Difícil saber o significado da visita, entender a expectativa da hora, o aperto de mão.

Minha mão na do meu pai, caminhando orgulhoso, torcendo os pés nas pedras incólumes. Tropeçando, olhos pairando nos céus, gestos hesitantes, braços indagando inquietos. Segui-o em tudo, até na incerteza.

Tinha de fazê-lo para chegar lá. Saber como o tal tio nos receberia e ter ao mesmo tempo a convicção do acolhimento sereno.

Muito se falava nele. Meu pai tinha orgulho da sabedoria, da linguagem precisa, do seu amor pelas letras e filosofia.

Eu divagava, mão apertada, coração aos saltos.

Via as sombras das pernas longas de meu pai no sol da calçada. Os pés grandes, apressados. Se soubesse o quão distante seria o caminho, talvez não me levasse.

Mas valia à pena o sacrifício para transmitir conceitos saudáveis que talvez eu apreendesse.

Agora sei que ele estava certo, porque muito daquela experiência alicercei na minha construção pessoal.

Só não entendia uma coisa: Por que consideravam o tal tio, um homem triste e solitário? Por que estados da alma banais o atingiam de maneira tão intensa, se era tão profundo o seu conhecimento humano?

Falavam da mulher que o abandonara há algum tempo. Era o que se manifestava para o senso comum. Não para mim. Na verdade, não que eu tivesse a perspicácia necessária para inferir tais coisas, mas pelo simples motivo de não me interessar pelo mundo peculiar dos adultos.

Talvez quando o conhecesse, até me decepcionasse e ele nem correspondesse aquilo tudo que se imaginava ou que meu pai queria transmitir.

Meu pai sim era um desbravador, gostava de despertar em mim sentimentos de justiça, de dever, de honra.

Se não tivesse aquele jeito desajeitado de me guiar, eu até justificaria todos os seus propósitos.

Não naquele dia, naquele momento. Minhas mãos suavam, o braço esticado doía. Acompanhá-lo não era fácil.

Quando dobrava a esquina, fugia um pouco do sol, escondia-se do calor e furava o céu devagarinho com o indicador, mostrando a chuva vindoura.

Se chovesse, talvez ele parasse e aliviasse a carga. Ou talvez desandasse a correr. Era imprevisível. Obstinado em suas idéias. Concluía o que dizia sempre com o olhar, desenhando na retina o desfecho da trama.

Eu sempre o entendia. Mesmo que inventasse histórias, eu sabia, que no fundo havia um quê de verdade, um objetivo que sinalizava um bem maior.

Quando chegássemos, logo que passassem por nós as casas antigas, solares abandonados de famílias falidas e fábricas empoeiradas, talvez os assuntos ficassem mais claros. De uma forma letrada, apoiada pelos livros, dicionários, enciclopédias, manuais, teses, jornais e revistas.

Tudo que se imaginasse. Tudo que fosse sonho, adentrado por nós, daqui a pouco, quem sabe tomando um suco de limão, antes da conversa, para refrescar, logo após o aperto de mão.

Se fosse por meu pai, já estaríamos lá, pelo menos, pelo seu desejo, não pela sua competência. Rua mal informada, bairro inexistente, referências estranhas.

Ele sempre se enganava em um detalhe qualquer, o boteco que existira um dia, a placa de néon do cinema da esquina e que apagada, não se tinha a certeza de que era a mesma. Faziam parte da epopéia dele estes constrangimentos, estes empecilhos.

De certa forma, isto produzia um certo colorido de fuga da rotina.

Por certo ouviria bem atento as histórias do tio, seus conhecimentos do mundo e a apreensão do mundo. Talvez semelhante ao dele, porém concebido daquela maneira prazerosa, precisa e convincente.

Chegaríamos lá, eu quase sem os dedos das mãos, ele, sem os cabelos, de tanto que os alisava para trás, ajeitando o que o vento estragava.

Um vento de corrupio nas folhas secas, que avançava rápido nas folhas que subiam em círculos, mas que logo arrefecia, deixando-as atracadas nos muros e nas paredes das casas. E nós entre as folhas caídas, cansados da viagem.

Pedi para sentar no banco mais próximo, no portal de uma casa, na beira da calçada, no muro da igreja.

Ele me olhou, sorriu e largou a minha mão. Abaixou-se, passou a mãos pesada pelos meus cabelos, quase desnucando o que restava de equilíbrio, ajeitando a gola da camisa e puxando o casaco.

Levantou-se em seguida. Segurou-me a mão e afirmou eufórico: —Chegamos!

Olhei para o alto e vi a casa cor de cimento, paredes irregulares, frisos que desciam, num estilo excêntrico.

A porta destoava um pouco do conjunto: tão forte e majestosa quanto a dos castelos. Aldrava pesada, que eu avistava por baixo.

O vento de outono retomava a ação.
Na porta, mão firme, batida constante e contínua.

Um homem magro e baixo, cabelos brancos, olhos claros. Sorriso tímido, jeito absorto, de quem não conhece a visita.

Foi só por um momento.

Depois, temas passados a limpo: a política, a família, a vida. Todos os pontos auscultados no coração aflito.

Olhares em volta, encontrando-se, às vezes.

Perguntas sobre idade, estudo, leituras. Atenção redobrada.

Livros empilhados, estantes abarrotadas, máquina de escrever, caneta tinteiro. Uma mão pequena, estendida, resvalando descuidada no tampo da mesa, dedos tamborilando, sugando o que podia de letras, frases, pequenos textos.

Batida tímida nas teclas.

Olhar enviesado, temeroso.

Um sorriso. Um suco de limão. Mesuras, satisfação sincera de reencontro. Conversa à solta.

O sol ampliava a atmosfera. Abria-se uma nesga de luz, invadindo a sala, entre as persianas, iluminando quadros, rios, cachoeiras, janelas abertas, roupas no varal.

Sentava-se a nossa frente. Poltrona macia, afundado, pequeno, as pernas juntas, os sentidos despertos. Ouvidos alertas. Boca quieta. Eu só ouvia.

Meu pai falava de vez em quando, dava palpites, iniciava assuntos.

Pouco lembravam o passado, só de passagem, um evento aqui, outro acolá, parceiros de brincadeiras, mesma idade.

Tanto tempo separados. Voltar ali, sabendo-se sozinho. Solitário e triste e nada comentar.

Era digno não falar. Apenas recobrar as horas passadas, lembrar o tempo sem solidão. Feliz.

O refresco acabara, olhei para o copo e mordi devagarinho a borda fininha de cristal. Frágil. Como ele, o tio, mas grandioso.

Só compreendera muito tempo depois.

E na hora, não entendera a despedida triste, aperto de mão demorado, pedido que se cuidasse, tomasse por cabresto o corpo, a mente, o coração, a vida.

Ficasse forte, cuidasse de si.

Meu pai falava tudo de súbito, temendo ofendê-lo. Não ousava falar na perda.

Caminhar mais lento, calçada à fora, atravessando ruas, paralelepípedos irregulares, eu ao seu lado, seguro, seguindo a nossa história.

Silêncio.

Sabia que nossa relação seria mais forte.

Eu tinha me tornado um pouco adulto, mesmo não me interessando muito pelos acontecimentos tristes. Sabia, entretanto, que compartilhávamos um segredo: a coragem do enfrentamento da vida e o resgate da amizade.

Partilhar da verdade. Voltar pelas ruas, sentindo o vento já frio nas pernas era realizar um novo caminho, com muito mais certeza de tudo ou pelo menos, a certeza de que não se sabe quase nada. Só uma alegria a mais, no coração.

Fonte da ilustração: Matthews, Rebecca. StillWorksImagery. https://pixabay.com/pt/recepção-livro-educação-escola-1375312/

domingo, maio 29, 2016

O OUTRO

Estava assim à procura do tempo e o avistei sozinho. Parado que se encontrava à porta da igreja. Barba longa, desleixo involuntário. Pele escura, encardido.

Sol a pino, um boné velho, virado para o lado, uma gosma escorrendo no canto da boca entreaberta com dentes falhados, amarelos, mastigando levemente a vida.

Nos olhos, uma fuga estranha, um olhar para dentro, um não sei o que faço, que assustava.

Por um momento, senti certa náusea. Olhar aquele ser humano, e poder enxergar esta condição, me apavorava. Difícil para qualquer um entender. Difícil pensar no assunto e enfrentar a situação.

Aproximei-me com moedas pesadas, ajustadas na palma da mão, mergulhadas que estavam no bolso, escorregadias no tilintar dos dedos.

Acho que o assustei, porque me olhou de soslaio, meio apalermado, temendo talvez uma sacudida, um pedido que saísse, ou uma ordem de evacuação do espaço.

Que nada. Sorriu ao ver o brilho das moedas, bem maior para os seus olhos. Segurou-as rápido e afagou a minha consciência, no beneplácito da ação.

Senti-me culpado. Dar moedas, quando poderia oferecer qualquer coisa que me tornasse um pouco mais próximo, mais intimo, mais afetuoso. Quem sabe, uma pergunta, uma palavra qualquer. Um desejo inconsciente de relacionamento. Bobagem.

Naquelas condições, o máximo que faria é esfregar o dorso da mão nos olhos, ante a minha figura emoldurada nos últimos vestígios de sol, que ainda iluminavam a praça.

Em volta, pessoas caminhavam rápidas, preocupadas consigo, temerosas de assaltos, envolvidas em suas pequenas paixões do dia, se as tivessem, sobressaindo talvez às mediocridades do cotidiano.

Quem sabe viver plenamente era enfrentar estas contingências da civilização atual.

Quem sabe este confronto não faz parte de nossas existências, para alicerçarmos nossos pequenos desafios, percorrer os degraus às vezes mais acima, outras bem inferiores, irregulares sempre.

Talvez fosse assim este ato de coragem de enfrentar a vida, suas vicissitudes, seus vazios, suas perdas e monótonas contradições, seu dia a dia morno, estável e seguro.

Que seguro? Se precisas fossem as armas que nos apontam. Se não fossem ainda miradas através de olhos humanos, de mãos frágeis, vagabundas, certamente poucos de nós restariam.

Ou só eles, os fortes, os modificados geneticamente, os robôs, os clones, os desumanos. E seriamos então a constituição de todas estas raças artificiais. E nem armas, nem moedas, nem afetos nos trariam à vida. Certamente, tudo descambaria para a vala comum da insanidade.

Mas ainda o vejo ali, deitado, uma perna esticada, mostrando os músculos danificados, através da calça rasgada até o joelho, sujo e fedorento.

As mãos ensimesmadas uma na outra, esfregando-se, fingindo frio, fazendo tilintar as moedas que brilham nos bolsos.

A cabeça encostada no canto da porta, à esquerda, pendente, pedindo socorro.

Cabelos sebosos, amarfanhados, divididos na nuca no confronto da madeira.

Por que continuo observando-o se nada tenho a oferecer.

Talvez este olhar complacente, que raramente possuo. Talvez este jeito despojado, esta vontade esquisita de ir ao poço de mim mesmo e descobrir ali, um pedaço da humanidade, aí, repartida em mil cabeças, cada uma ruminando o seu destino, alijadas de um processo de cidadania que a poucos contempla.

Talvez seja ele um protótipo de nossas insensatezes, de nossas precárias participações da comunidade, do nosso desejo fraco do coletivo.

Afasto-me e temo encontrá-lo novamente.

Por certo, tremerei o coração, mas não por ele. Recordo Hemingway, e entendo por quem os sinos dobram. Eles dobram também por ti.

Meu coração estremece, solitário e doído, por mim.

Fonte da ilustração: http://moradorderua.zip.net

quarta-feira, março 09, 2016

O PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO XIX

O NOSSO FOLHETIM CONTINUA AGORA JÁ CHEGANDO A QUINTA-FEIRA, 10/03/16 COM NOVOS DESDOBRAMENTOS DAS RELAÇÕES DE ÚRSULA. UMA HISTÓRIA DE MULHERES, NA TENTATIVA DE PENETRAR NO UNIVERSO FEMININO, COM A DIFICULDADE NORMAL DE UMA AUTOR DE CULTURA MASCULINA. ESPERO QUE TENHA SUCESSO. ESTE É O 19º CAPÍTULO, QUE APRESENTO COM MUITO PRAZER.

Capítulo 18


FONTE DA FOTOGRAFIA: AUTOR WILSON FONSECA DA ROSA, GRANDE ESCRITOR, POETA E FOTÓGRAFO RIO-GRANDINO.

Capítulo 19

Sabe, Dulcina, às vezes me pergunto porque acabo indo nas suas águas. Na verdade, sempre refutei tudo o que você me dizia, todas as histórias que em geral achava idiotas, sem sentido. Nunca a vi como um ser humano, estou sendo muito sincera comigo, sabe? Você pra mim, nunca passou daqueles servidores invisíveis, quase descartáveis, que a gente se depara por algumas horas. Que a gente precisa, mas finge que não vê. Que me interessava a sua vida, as suas atitudes desleixadas, o seu jeito simplório de me contar o que lhe acontecia no metrô, na esquina de casa, na feira? Eu tinha outra vida para viver. Outros caminhos para percorrer que não os seus. Ou não. Talvez meus caminhos fossem muito curtos e sem nenhuma aventura e vinha você, falando alto, esbravejando da suas atividades cotidianas, jogando na cara a sua vida intensa. Se esparramando pelo meu tapete, transbordando na minha sala, na minha cozinha, na minha vida insalubre. Não, eu não queria saber de você. Eu odiava essa sua energia.

Sabe que é a primeira vez que falo assim, neste tom? Logo que aquela porta se abria, instintivamente eu recusava me mostrar. Apenas me fechava no casulo e fazia de conta que estava sozinha. Você era menos do que o espremedor de suco da cozinha. Não posso fingir, era muito difícil a nossa relação. Era realmente um sacrifício.
¬¬

–Era mais fácil o retrato, né? Do seu nível.

–Que nível, Dulcina, isso lá é nível? Rita era uma grande atriz, sem sombra de dúvidas, mas como ela existem milhares. No fundo, eu me escondia no passado. É quase um caminho sem volta.

–Só isso?
¬

–Claro que não. Mas agora, não vale a pena decifrar as minhas atitudes. Você as conhece mais do que eu.

–Tá tudo tão estranho, não acha, dona Úrsula? Ta ficando tudo tão leve, tão alternativo.

–Alternativo? Que coisa esquisita você disse. Não tem sentido, Dulcina. Aliás, nesta vida, nada tem sentido. Dulcina, lembra do velho aí da frente?

–Se lembro. O velho assassino. Emparedou a mulher coitada, no meio da sala. Eu vi o concreto mais saliente, nem rebocou direito, o diabo. Para de rir, dona Úrsula, é verdade. Eu juro que vi.

– Dulcina, olhe bem pro retrato da Rita. Você não acha que ela está falando?

– Não sei não. Mas que ela está olhando pra gente, ah, isso ela tá.

–Acho que ela vai contar a nossa história.

–Em inglês?

–Com legenda, não seja boba. E você entende inglês, por acaso?

–Tinha uma moça lá na quadra que sabia inglês mais do que muito professor de curso por aí. Também, coitada, trabalhava na beira do cais.

–Espere.... fique em silêncio. Acho que ela vai... Não deixa, pra lá. Vamos esquecê-la e falar sobre nós. O que é que eu estava falando mesmo?

Impossível não perceber que as duas estão ligadas por laços além dos convencionais de amizade. É um fio condutor que une estas mulheres completamente diferentes. Para mim, que convivo há tanto tempo com Ms. Úrsula, nesta pequena galeria que organizou pra mim, só tenho a lamentar o quanto está perdida. A vida tem sido dura, como costuma dizer, mas também tem lhe proporcionado momentos de aprimoramento, aprendizagem. Seria salutar que os aproveitasse dignamente. Parece que hoje pretendem celebrar a vida de qualquer jeito, como se fossem duas adolescentes. Não há dúvida que optou pelo caminho mais fácil e inadequado. Mas não estou aqui para julgá-las. Talvez o meu dever seja este: narrar o desencadeamento desta história, a partir de meu observatório particular. Afinal, conversamos há tantos anos.

Ms. Úrsula desaba literalmente na poltrona, sem importar-se com as atitudes que este ato impensado pode trazer-lhe. Provavelmente uma dor intensa na coluna, uma lassidão nos músculos. Vejo-a, aos poucos, resvalando, e enquanto estira as pernas negligente, puxa do fundo do pulmão uma fumaça que se esforça em constituir pequenos círculos. Está exultante. A criada desliza no piso encerado, falando em altos brados, trazendo uma espécie de bebida nativa, a qual denomina caipirinha. Não sei onde isto vai parar. De qualquer modo, a vida, pelo menos, neste momento lhes sorri. E tudo é motivo para risada.

Ms. Dulcina, finalmente acocorada ao solo, instiga a patroa a terminar a história que começara.

– Mas o que a senhora está dizendo é verdade, mesmo dona Úrsula?

Ms. Úrsula está vermelha. Por um momento para, fitando o nada. A voz arrastada, reflexiva. Em seguida, porém reaviva a memória, pois grita, destemperada: – verdade verdadeira. O pobre velho era ele. Nem eu acreditava, menina! Susana ficou passada!

A serviçal se debate no chão, frouxa de rir. Parece que a visão do mundo ficou tão zen, que a deixa em perfeito bem estar com a natureza. Fala em tom absurdo.

– Mulhé, eu não acredito, se não fosse a senhora que está me contando, uma pessoa do seu nível, da sua estirpe, eu não acreditava. Falei bem, hem dona Úrsula, estirpe, não é coisa de gente chic?

–Você ta me saindo melhor do que a encomenda, Dulcina. Já nem cabe no embrulho.

–Embrulho é coisa de pobre! Não to entendendo nada!

–É que você está crescendo, sua incompreensível! E como pode dizer coisa de pobre, é a expressão mais preconceituosa que já vi!

Quando se dá conta, volta a rir, confortada que ficara com a explicação. Mas o que fica claro, neste momento, é que o assunto anterior é extremamente interessante, apesar das inúmeras interrupções. Ms. Dulcina volta a ele, sem mais delongas: – e a história da mulher emparedada? Então era tudo invenção da sua cabeça?

– Claro que não. Pensa que sou maluca? Aliás, hoje é o dia em que me sinto mais lúcida na minha vida, desde que meu filho morreu.

– Não vamos falar em tristeza. Nós já fizemos um trato, se lembra?

– Não lembro de trato nenhum.

– Pois se não, vamos fazer agora – com um cotovelo no chão e as pernas juntas, meio dobradas para trás, estica a palma da mão em direção a de Ms. Úrsula – seguinte, a partir de agora, vamos selar um trato. Nada de sofrimento, de dor de corno, de filho perdido, nada disso. Vamos só nos divertir. Pelo menos, esta noite.

–Pelo menos, esta noite, Dulcina.

Ao baterem as palmas das mãos, Dulcina recupera o copo da bebida e o oferece à Ms. Úrsula. Esta se atrapalha e pergunta: – que faço com o cigarro?

– É coletivo. Dá uma azeitada na máquina, mas devagar, que a senhora anda meio enferrujada. Enquanto isso, eu dou uma tragada... A senhora não acha este aroma maravilhoso?

– Dos deuses, Dulcina.

Ficam em silêncio por alguns minutos. Dulcina então se levanta e põe um cd a tocar. Não é seu gênero musical, mas muitas vezes ouviu a patroa executá-lo ao piano, e principalmente ouvi-lo.

– Night and day. Sabe o que é um jazz, Dulcina? Também não interessa. Temos muito tempo para conversar sobre tudo. Sabe que eu nunca tomei uma caipirinha tão saborosa?

–Tempo é o que não nos falta. A gente tem toda a noite pra colocar o papo em dia.

–A gente tem toda a noite. Eu não durmo mesmo. Mas sabe o que eu gostaria de fazer, Dulcina? Sabe qual é o meu sonho?

– Não sei, não. O meu é ficar aqui, puxando este fuminho, jogando conversa fora. Já tá de bom tamanho. Única coisa que penso é no negão. Deve tá pagando todos os pecados!

–Esqueça o negão, menina. Ele tá noutra. Você mesma não disse que ele foi parar no hospício? E lembre do nosso trato.
¬

–A senhora ta engraçada, dona Úrsula.

– Me dá o coletivo, é a minha vez.

Após um fechar de olhos, num torpor de prazer, ela retoma a palavra, nariz obstruído, como se acometida por uma renite letal.

–O meu sonho era ir pra Serra Pelada. Lá, onde o Jaime passou grande parte de sua vida.

Se Madan me contasse, eu jamais acreditaria. Seria o último lugar para alguém conhecer, ao menos que ela queira conhecer água barrenta e a serra que se tornou um verdadeiro abismo. Mas, como declinei inicialmente, não estou aqui para analisar suas atitudes.

Quando ela retomou a história que começara, eu tentei me desligar, e finalmente foi o que fiz. Deixei que narrasse. Não queria me envolver naquele idílio tão horizontal.

sábado, dezembro 19, 2015

PENSO NO NATAL

Talvez falasse em consumo, em presentes, em comilança, em festa.

Talvez falasse no Aniversariante, engendrando questões que explicassem, sob um viés capitalista, porque não se preocupam com Ele, ou só o consideram de passagem.

Talvez falasse do Natal, como um feriado para compartilhar com parentes e amigos, a celebração da vida, a tentativa de ser feliz, pelo menos por um dia.

Talvez comentasse tudo isso, mas prefiro pensar no silêncio.

No silêncio daqueles que sofrem em hospitais, dos marginalizados nos depósitos psiquiátricos, dos alienados da vida real, dos que perambulam pelas ruas, dos que bebem da água que sobra nas garrafas sujas, jogadas após uma noite de festa.

Dos amargurados, impedidos de falar, silenciados pelo peso da dor ou do jugo do parceiro.

Das mulheres que descreem da vida, apartadas do seus, nos desvios produzidos por regimes.

Nos pais que não enterraram os filhos, ocultados sob a dor de períodos de trevas, onde a liberdade era apenas um discurso político, e apesar do passar do tempo, revivem a cada Natal, o sorriso do filho, que deixou o quarto intacto.

No silêncio dos meninos de rua, dos palhaços de sinal, dos pedintes, dos incapazes de sonhar. Nos que morrem no trânsito, nos que se suicidam nas estradas, nos que fugiram covardemente da vida.

Nos bêbados andrajosos, nos viciados, perdidos em noites escuras estruturadas em túneis sem fim, bamboleando entre vielas sujas e mal cheirosas, buscando o pouco de vida que lhes foge a cada acesso de prazer.

Nos solitários, nos patéticos frente a monitores, assistindo de longe a vida como cenário abstrato de poucos, tão fugaz e inatingível. Dos que se perdem nos bastidores de softwares, chips, megas, tentando encontrar outros ou a si mesmos, ineptos das ações mais humanas.

Nos velhos solitários, observando a vida da janela, borbulhando a dor nos ossos, na pele flácida, nos olhar aguado, assistindo as imagens em movimento, com alma em apuros; um item do passado, que o mundo esqueceu de conferir.

Penso neles. E também nos que percorrem a vida com calma, vivenciam a dor humana, consolam, ajudam, compartilham. Por tudo isso, penso no Natal. Um Natal que muitos não possuem, ou talvez, não propriamente como imaginamos, mas um Natal que se consagra aos poucos, no dia a dia de suas atribulações, quem sabe, um respaldo para o encontro maior com o Senhor.

domingo, outubro 11, 2015

MINHA APREENSÃO DA VIDA E A DOS OUTROS

Custou-me entender como se processam os pocionamentos e suas repercussões na mente das pessoas. Como enfim, acontece ou não o entendimento das discussões que colocamos em pauta, seja nas redes sociais, no grupos em que interagimos, nos encontros com amigos, etc. Custou-me perceber que as coisas não fluem com a delicadeza das flores da primavera, pelo menos, aquela de nossos sonhos. As coisas seguem o seu caminho muitas vezes tortuoso e árduo, de acordo com a experiência, conhecimento, tradição, cultura e apreensão da realidade de cada um.

Então, entendi que cada pessoa reage de acordo com a sua realidade interior, apreendida, assimilada e traduzida segundo os seus princípios e maneiras de pensar. Há muitas formas de expressar o que sentimos ou pensamos, mas para que haja a comunicação na íntegra, é preciso que os canais não sejam obstruídos por quaisquer ruídos. É preciso que o que pensamos ou sentimos não se manifeste apenas como um simples palpite ou uma opinião sem fundamento histórico, sem a compreensão de todos os aspectos que compõem o tema proposto. Precisamos estar bem embasados para expressar o pensamento. Nem sempre porém, o outro lado do canal possui esta mesma apreensão da ideia proposta. Ou mesmo, não possui conhecimento profundo sobre o tema, que o respalde para uma discussão fecunda. Pode ocorrer que tenha apenas um conhecimento superficial ou moldado na sua subjetividade, a partir de convicções enraizadas em sua cultura pessoal. Não se quer dizer que os ruídos produzidos sejam favoráveis (adequados ou melhores) de um lado (emissor) ou do outro (receptor). Os ruídos atrapalham a comunicação, entretanto, apesar dos ruídos com discordâncias pontuais, há que se levar em conta as discordâncias internas. Como modificar o outro, se pensa diferente? Como transformar o modo de pensar construído a partir de uma cultura enraizada desde a infância, ou passada por gerações e gerações? Como desconstruir toda uma história apreendida através de experiências pessoais e sociais que se manifestam sobrepondo a conceitos que não são aceitos por aquele grupo?

Claro que existe a evolução do pensamento, dos costumes, das ideias, para isso existem as vanguardas e as mudanças, muitas vezes paulatinas, mas firmes no andar da visão da humanidade. Mas nem tudo ocorre na urgência que queremos. Nem tudo é verdade absoluta. Nem tudo é criação única. Nem tudo é apropriação do bem comum ou do malefício estudado.

Custou-me entender a dificuldade em aceitar os meus preceitos, minhas ideias, meus pontos de vista por pessoas que possuem trajetórias tão semelhantes a minha. Mas, por fim, compreendi, que elas abstraíram o que a história familiar, a escola e princípios religiosos ou não-religiosos produziram na sua formação pessoal e lhes indicou conteúdos filosóficos que para eles representam o que seria o melhor para o planeta, para o país, para a cidade, para a comunidade, para a família, para o ser humano. Houve uma apreensão diferente da vida, tomando como em sentido amplo e geral do conhecimento adquirido, constituído de conhecimento acadêmico, empírico, valores familiares e princípios herdados. Entendi por fim, que todos tomamos os caminhos que consideramos os melhores para o país, para o bem estar humano, para a sociedade em que vivemos, para a nossa pequena comunidade social ou familiar e que nem sempre coincide com os caminhos escolhidos através de diferentes apreensões da realidade.

Deixando de lado os que somente dão palpites via de regra, embasados apenas em opiniões da mída ou os que exercem opiniões, porém sem o respaldo do conhecimento mais profundo, concentramos nossa atenção para os que se estabelecem uma relação de conhecimento profícuo e apreensão da realidade. Neste último caso, percebemos que pode ocorrer uma consonância e presumível identificação de ideias, desde que ocorra a reflexão e que cada um, a partir de suas apreensões pessoais da realidade, consiga fazer uma relação entre as suas opiniões próprias e as dos demais, embasados na apreensão mútua da especificidade do tema. Neste caso, descartam-se as paixões desenfreadas, tais como as disputas inócuas por futebol, pois cada um verá apenas as possibilidades de seu time, ou a discussão de dogmas religiosos, que jamais chegarão a um ponto de concordância. Por outro lado, nas considerações baseadas nos estudos sociais, na realidade que nos cerca, juntamente com as nossas realidades e culturas pessoais, pode ocorrer a sedimentação da sementes plantadas das discussões, cujos brotos vão robustecendo a democracia e aos poucos descortinando uma verdade que nos liberta. Aí, acontece a ruptura da lógica da arrogância, do preconceito, do conhecimento de uma só face, da verdade absoluta. Aí acontece a união de ideias.

Mas também me dei conta, que isso acontece em grupos muito pequenos. Grupos que divergem e que através de estudo e contemplação de paradigmas diferentes, aceitando ou discordando, mas interagindo através do raciocínio, do conhecimento e da percepção da realidade como ferramenta fundamental que possibilita uma tentativa de construção da verdade multifacetada. Nesta construção, deve ocorrer uma fenda que leve à libertação das amarras dos preconceitos, da arrogância, da visão única de pensar e de se bater numa única tecla, aquela que muitas vezes não pontua a frase final do ponto de vista.

Portanto, aprendi, que as nossas realidades e formas de registrá-las não devem ser impostas. Devem ser discutidas, analisadas, afagadas para que se desenvolvam numa concepção de ideia, no sentido de criar todas as perspectivas de realidade do mundo, numa intenção filosófica de como viver e vivenciar as situações que experienciamos. Entendi que cada um reage de acordo com suas convicções, sua compreensão da vida, seu caldo cultural construído desde a infância e sua história repassada por gerações, assim como eu que tenho a minha cultura formada pelo que apreendi. E que bom que seja assim, que todos tenhamos as nossas verdades, mas que não a queiramos impor a ninguém, a não ser que o nosso conhecimento adquirido induza à reflexão e opções de transformar a realidade de cada um. Se não pudermos fazer isso, ou por nossa incapacidade ou pela insuficiência do outro, que nos calemos.

Não posso impor ao outro que traz consigo todo um arsenal de experiências internas, a minha realidade política, os meus desejos políticos ou religiosos, as minhas ideologias. Posso sugerir, mas nunca impor. Posso tentar refletir, mas nunca manifestar apenas os aspectos inerentes a minha filosofia e não conceber a do outro. É na busca refratária de conhecimentos que se encontra o bordado capaz de tecer um mapa que sirva de bússola. Uma bússola somente. Sem ser guiada, porque possui os seus próprios paradigmas e seus próprios destinos. Pelo menos, aqueles que desafia a humanidade para que se torne melhor.

domingo, setembro 13, 2015

VIDA DE GADO

VIDA DE GADO

Desci do ônibus enfrentando aquela pequena multidão envolta na bruma. Vestiam roupas pretas. Esfregavam as mãos, tiritavam de frio. Uns fumavam, absortos, aquecidos na garganta pelo poder da chama. Pigarreavam às vezes. Meu pai puxava-me o braço, ansioso. Não se sentia bem entre eles. Parecia querer fugir do lugar. Ouvi as badaladas ao longe. Seria hora da missa? Senti a mão pesada de meu pai em minha cabeça. Que queria ele? Abrigar-me da cerração, proteger-me do frio, apressar-me o passo?

Caminhamos rápidos, pela rua pavimentada em cinzas de carvão. Ele, passos largos, pernas compridas. Eu, aos tropeços, pernas curtas. A pequena multidão já se desfazia ao longe. Quase não os víamos e já nem sabia se era noite ou tempo ruim. O frio congelava o nariz. Dei mais uma volta na manta, ajeitei o casaco nos ombros, puxei a gorra para os olhos. Meu pai também acertou o chapéu, que custava-lhe ficar à cabeça. Minhas botinas estavam gastas. Sentia na planta dos pés, os pedregulhos da rua, me espetando. Olhei para os pés enormes de meu pai. Não tinha problemas. Aqueles coturnos deviam ser herança de guerra, tão reforçados estavam. Se houvesse qualquer ser vivo por ali, ele esmagava impunemente. Não tinha o hábito de olhar para o chão. Principalmente, quando estava ansioso, como agora.

Na primeira esquina, guarnecida por casas maiores, ele parou, olhou para os lados e disse aliviado: – é ali.

Tentei ficar feliz, mas não estava. Não queria ficar naquela casa antiga, cheia de lembranças dos mortos, sempre citados por tia Clotilde. Só a viagem me interessava. Entrar naquele ônibus velho, atravessando os campos, vendo as luzes da cidade se apagando aos poucos ante meus olhos. Isso me bastava. Por que será que ele viajara sem minha mãe? Ainda lembro seus olhos brilhantes, querendo dizer qualquer coisa que não se atrevia. Talvez tivesse chorado. Agora estávamos ali, os dois, como dois homens, enfrentando as lembranças de tia Clotilde.

Quando chegamos, a escuridão era quase absoluta, não fosse a luz fraca do lampião de querosene, cuja chama se via pela janela. Ela chegou, apertou a mão de meu pai, que sorriu polidamente, sem muito entusiasmo. Em seguida, ela o abraçou, chorando e ele quase não retribuiu o abraço. Ficou assim, meio parado, sem saber o que fazer com as mãos e percebi que ele olhava para mim, como se pedisse socorro. Ela o deixou, abaixou-se até mim e apertou-me com força as bochechas, já recuperada pelo desafogo. Franzi a testa de dor. Ela sorria, satisfeita. Mandou que entrássemos, apresentou três amigas que estavam junto à mesa, quase às escuras. Elas mal levantaram os olhos, quando muito as sobrancelhas. Não arredaram pé. Ficaram mexendo em rendas, linhas, agulhas. Parece que costuravam. Tia Clotilde sentou entre elas. Pediu que nos acomodássemos a sua frente. Foi até o fogão de lenha, trouxe a chaleira tisnada e serviu um café aguado, sem perguntar se queríamos. Na cesta de vime, bolachas duras. As três mulheres nem olharam para o café. Continuaram na labuta e pelo que pude ver melhor, já com o olhar acostumado, desenredavam fios. Ou quem sabe, faziam novelos? Meu pai serviu-se de açúcar mascavo, gosto de rapadura. Olhei para tia Clotilde e vi que ela ensopava a bolacha no café. Depois, sorvia o mingau, fazendo um barulho estranho, um chiado, quase um assobio.

Bati no braço de meu pai, querendo falar alguma coisa. Estava apertado. Precisava ir ao banheiro, mas temia falar na frente daquela gente toda. Meu pai empurrou-me o braço e perguntou: – como vão as coisas?

Antes que ela respondesse, puxei a manga da camisa, pedindo ajuda. Ele não respondeu, continuou o assunto. Depois, explicou porque viera. Ela o interrompeu, rápida. – Não me diga, não me diga. Eu sei porque veio e ainda não sei, não sei se quero fazer isso.

Depois, como se uma luz a iluminasse a mente, chamou a atenção de meu pai. – Escuta o menino. Vai ver que quer se aliviar. Aliviar? Bem que ela tinha razão, se não fosse agora, tudo iria por água abaixo. Literalmente. Quando ele perguntou o eu queria, já tinha levantado da cadeira de palha.

Ele me seguiu. Saímos para a rua. Nem cheguei ao banheiro que ficava lá fora. Fiz o que precisava ali mesmo, próximo à soleira da porta, vendo meu pai encobrindo-a quase que completamente com o corpo. Ao longe, avistava movimentos escuros de vacas que pastavam, pacientes. Perguntei: – aqui não tem pia?

– Não faz perguntas. Entra.

Voltamos para o café. As três já não estavam à mesa. Espalhavam-se pela casa. Uma varrendo a cozinha, outra empilhando as louças, guardando-as com cuidado. A outra ronronava pelos cantos, atirada num sofá velho. Esta tinha uma berruga bem na ponta do queixo e eu jurava que vi uns chumaços de pelos pendurados do nariz.

Os dois, meu pai e tia Clotilde sentaram-se novamente, frente a frente. Eu, do seu lado, enchi o café com aquele açúcar escuro e da calda, lambi a ponta da colher. Ouvi os dois conversando, mas não prestava a atenção. Procurava encontrar as outras que passavam pra cá e pra lá como baratas tontas, seguindo a intuição. Só uma ficara abandonada, deixando-se embeber de tédio.

Levantei-me da mesa, limpei a boca com o dorso da mão e aproximei desta. Cheguei bem perto, mas pouco via, pela luminosidade fraca do ambiente. Pela janela, distinguia a lua, triunfal, mexendo-se como elas, de um lado para o outro. Cada vez que eu olhava, achava que ela se mudava de lugar. Era possível isso? Ou eram as nuvens? Que importava agora? Quando desisti da mulher, ela me segurou pelo braço, firme. Estremeci. Senti um arrepio instantâneo. Forcei a mão, tentando me soltar, mas ela era forte e decidida. – Quem é você?


Tia Clotilde me salvou desta vez, chamando a atenção da mulher. Eram criaturas estranhas. Percebi um certo sorriso na fisionomia de meu pai.

Afastei-me um pouco, olhando para o nada que cada vez ficava mais escuro, um negrume. Se é que o nada tem cor. Ouvia sem dar muita atenção a conversa dos dois. Tia Clotilde comentava: – o Osvaldo, osso duro de roer. Mas se foi.

Meu pai indagava: – e o Sandoval? O alemão forte como um touro?

– Esse aí? também osso duro de roer, mas se foi como os outros.

Pequeno silêncio e meu pai comentou, taciturno: – do Horácio, eu soube.

Tia Clotilde levantou as sobrancelhas e posso jurar que uma lágrima correu rápida, pelos olhos. Assoou o nariz vermelho. Resmungou: – esse inventou de protestar, os milico levaram. A tal da ditadura.

E ela foi enumerando todas as faltas, todos os vazios, todos os homens fortes da terras, provavelmente irmãos, cunhados, marido, o filho. Parece que não restara nenhum. Ossos que ruíram. E concluía, resignada:– só eu to ficando, velha, encarquilhada, esquecida no mundo.

Procurei não encará-la. A chama do lampião lambia os cantos do vidro e fazia figuras no teto, bordado em picumã. Imaginava os tios, lá em cima, pairando curiosos, indagando sobre a gente. A velha do sofá esticou as pernas na minha direção, como se com eles fizesse uma forquilha para me prender. Sentia que a minha presença a irritava.

Voltei para a mesa e afundei a cabeça num travesseiro de banha. A da vassoura atravessava a sala na penumbra, sem desviar de qualquer obstáculo, já que parecia conhecer os quatro cantos. Eu não. Afastei-me depressa e sentei-me assustado, perto de meu pai. Percebi que tia Clotilde se ressentia com alguma coisa e agucei rápido os ouvidos. – Já lhe disse que agradeço a visita, mas to bem aqui.

É só para descansar um pouco.

Ela reagiu, assustada. – Não quero ficar maluca com aquela gente. Lá, não tem direito de nada. Polícia de todo o lado.

Meu pai retrucava que ela se referia ao exército, que era comum em dias de ditadura. Que ela poderia ficar tranquila. Mas pelo jeito, ela já tinha decidido tudo em sua cabeça, antes mesmo que ele perguntasse. Uma baforada bem perto do meu ouvido. A que empilhava a louça, parou um pouco afastada, ouvindo a história, não tão longe que seu cigarro não ocupasse o nosso oxigênio. Fumava e sacudia os quadris pra lá e pra cá. Balançava-se e fumava. Os dois silenciaram, acho que pela presença da fumante. Olharam ao mesmo tempo para ela, mas foi só um segundo. Meu pai quebrou o silêncio. Amanhã voltaríamos.

Então, passei a imaginar a volta, sentado ao lado da janela, observando tudo que passaria por mim. Meu pai bateu no meu ombro, exigindo que me levantasse, iríamos para o quarto. Dormir? Já? Antes de levantar, perguntei: – que é ditadura?


Meu pai abriu a boca, faltaram palavras. Calou-se. A velha concluiu: – é ir pra cidade.


A do sofá começou a dormir. Babava despudorada. A da vassoura voltou a varrer, ensandecida. E a fumante, parou, um pouco, pensando, extraordinariamente calma.


No quarto, quem desabafou foi ele: – v

ida de gado.

sábado, setembro 05, 2015

UM NATAL DISTANTE

Há quem se lembre dos natais da infância e são estes os que realmente preenchem a nossa memória, trazendo de volta a fantasia, a alegria e a recordação da família naqueles momentos intensos. Tenho comigo que os natais são todos bons, a menos que tenhamos tido algum sofrimento marcante e as coisas, aí, trilhem caminhos mais estreitos e tortuosos. Lembro de muitos natais da infância e acho que na maioria foram muito felizes.

Entretanto, há um em especial, em que eu não era criança, nem adolescente, nem vivenciava aqueles momentos de encantamento em que somos pais com filhos pequenos. Tinha meus 20 e poucos anos e o Natal se resumia a um pequeno encontro de família, com os pais e irmãs, a missa do galo e no máximo, alguma festa maior à noite, em que houvesse danças e namoricos. Nada que se compare às baladas explosivas de hoje em dia.

E este natal começou muito cedo. Na véspera, numa tarde de sábado. Um desses sábados à tarde em que as pessoas já fizeram as suas compras ou ainda permanecem comprando os últimos presentes que faltaram. Nas ruas, um pouco distante do centro comercial, a cidade parecia completamente deserta. Era uma avenida arborizada, com grandes canteiros centrais e árvores gigantescas que davam um ar de nostalgia para a véspera de natal, que já por conta de todos os envolvimentos emocionais, o Natal em si, já é nostálgico para mim. Uma data em que lembramos de entes queridos que já não se encontram em nosso meio ou, porque as famílias já se dissolveram e vivem em lugares distantes , ou porque, sei lá, temos uma dificuldade interna de sermos felizes quando todos assim parecem.

Pois, antes de chegar nesta avenida arborizada, eu resolvi visitar o asilo de pobres. Era uma experiência nova para mim, não que eu não tivesse ido até lá em outras oportunidades, ao contrário, já participara de outros encontros e dedicado alguns momentos que foram talvez bons para eles, mas muito produtivos para mim.

De todo modo, a experiência a que me refiro, se chama véspera de natal. Na véspera de natal, os idosos parecem ter a obrigação de serem felizes. Os cuidadores riem, esforçam-se para incentivá-los e não admitem quaisquer reclamações ou tristezas. Alguns filhos os visitam, trazem os netos e outros parentes. Às vezes, até os levam para casa. Eu conversei com alguns idosos e havia lhes trazido presentes. Na verdade, guloseimas, porque o que interessa para um idoso? Ganhar uma camisa nova ou uma blusa de rendas? Para onde eles vão? Com que se divertem? Como vestir roupas novas, se o seu destino inevitável é o quarto onde deitam suas dores? Então foi o que fiz. Presenteei-os com chocolates, biscoitos, cookies, balas e todos os tipos de guloseimas que pudessem adoçar-lhes a boca e o coração.

Uns conversaram mais do que os outros. Uns se fecharam em si mesmos, embora agradecessem os presentes, mesmo que momentaneamente, decididos a se afastarem, habituados a ficarem sozinhos. Houve os que contaram histórias, verdadeiras ou fantasia, mas que preenchiam suas memórias de maneira intensa, mesmo que por alguns momentos. Talvez, o encontro tenha durado uma hora.

Dali sai satisfeito e angustiado. Satisfeito por ter realizado o meu objetivo que era o de levar aquelas pequenas lembranças e angustiado, talvez por que outro objetivo não tenha sido alcançado, que seria o encontro. Acho que não houve o encontro entre nós. Não houve interatividade. Não houve partilha de sentimentos, de emoções, de troca de experiências. Houve apenas um encontro social, onde alguns fragmentos de sentimentos vieram à tona. De todo modo, fiz o que me propus e pensei que no próximo ano seria melhor. Depois, pensei melhor e me perguntei, por que no próximo ano? Por que não na próxima semana, no próximo mês, no forte calor de janeiro, no imenso frio do inverno? Há tanto momentos para serem compartilhados. Há tantos dias a serem preenchidos. E pensando desta forma, retirei-me, entre os cumprimentos e desejos de feliz natal e anseios de um bom ano novo.

Por um momento, lembrei de nosso trabalho no hospital psiquiátrico e o comparei com o asilo. Na verdade, a solidão e a fantasia eram as únicas coisas que os uniam. E talvez as únicas que realmente tinham alguma importância. Mas desviei o olhar, tentando não ver aquelas paredes escuras, cujas luzes pareciam focalizar apenas olhos assustados e ouvidos desatentos. Procurei não pensar e esquecer de vez esta visita. Muito menos divagar, fazendo comparações, cujas conclusões poderiam argumentar uma tese. Afinal, o asilo já tinha preenchido bastante aquela tarde.

Afastei-me devagar. Não estava tranquilo. Mas não devia me deter muito nisso. Teria mais tempo e mais angústias, que por certo aflorariam.

Dirigi-me a algumas casas, onde deixaria cartões sob as portas ou os entregaria pessoalmente. Nesta época, não havia cartões virtuais, nem redes sociais, nem comunicações online. Tudo era concreto. Tão concreto, quanto a calçada da avenida que eu, agora, após a entrega dos cartões natalinos, me dispunha a caminhar.

Observei que o sol já se punha, devagar, bem lentamente. É um sol de verão e portanto, demora mais a se esconder. Entretanto, a noite se aproximava e devia me antecipar, porque havia muito mais a percorrer.

Do outro lado da avenida, havia a igreja e nem uma pessoa na rua. Um silêncio sepulcral, como se todos houvessem abandonado a cidade. Um silêncio bom, que me deixava refletir, inclusive sobre a calma que a natureza despertava. O sol ao longe, se pondo, jogando seus raios por entre as árvores da avenida, a rua que se alongava em direção à saída da cidade, o silêncio intenso, tudo produzia uma paz que nem sabia explicar. Nem tentava, só absorvia.

Por outro lado, estava satisfeito, porque a maioria dos cartões natalinos foram entregues.

Pensei comigo que esta tranquilidade contempla a condição de nos sentirmos plenos, inteiros em nossa caminhada. Atravessei a avenida e aproximei-me da igreja, agora já um pouco às escuras, pois o lusco-fusco aumentava, em virtude das luminárias serem acesas, amiúde, e por momentos, via-se apenas a luz natural.

Foi neste momento, ouvi um voz firme e forte, me chamando. Olhei para os lados e não vi ninguém. A voz insistiu, pedindo que o olhasse, com a convicção implícita de que o atenderia.

Um pouco aturdido, voltei-me e avistei um homem encostado na porta da igreja, meio escondido, pois embora fechada, a porta fica um pouco para dentro, como um nicho. Percebi tratar-se de um senhor idoso, do qual não conseguia avaliar a idade que aparentava. Usava um terno escuro e vestia um colarinho de padre. Os sapatos pretos me pareciam de verniz. Aproximei-me, mais calmo, apertei sua mão com firmeza e sorri, quando disse: — tinha certeza de que conversarias comigo. Hoje em dia, todos estão muito apressados, mas tu já fizeste com calma o que te propuseste. Visitaste o asilo de pobres, entregaste os cartões natalinos e agora parasses para conversar comigo. Eu sabia que farias isso.

Respondi com determinação , que não havia motivo para não parar e ouvi-lo. Não entendi bem como ele sabia sobre o que eu havia feito, mas, de qualquer modo, tudo me parecia muito natural. Naquele momento, não achei que este detalhe tivesse alguma importância.

Ele então, concluiu: — és um bom rapaz. Foi por isso, que parasses para conversar comigo. Sei que sempre evitas contar as tragédias que tens conhecimento pela tv, jornais ou por outras pessoas, para os teus familiares. Achas que não vale à pena incomodar teus pais com estas histórias tristes, até mesmo, porque tu não gostas de repetir estas coisas. Não acrescentam nada.

Concordei com ele. Então, fez uma pequena revelação: – a partir de hoje, véspera do Natal, ficarei aqui, nesta igreja, até o Ano Novo. Se quiseres me ver novamente, conversar comigo, eu estarei aqui, te esperando. Agora, vai, te esperam em tua casa.

Apertei-lhe a mão e afastei-me ainda mais contente do que estava antes.

Passou o tempo, esqueci do ocorrido. Naquela época, havia o cinema Lido, que ficava próximo à Igreja. Na véspera do ano novo, eu e minha irmã decidimos assistir um filme, lembro que se tratava de um musical com Barbra Streisand.

Ao sair do cinema, passamos pela frente da igreja e, para minha surpresa, ele estava lá, sorrindo e me chamando para conversarmos. Avisei a minha irmã da pessoa que havia encontrado naquele mesmo lugar, na véspera do natal, da qual havia comentado anteriormente.

Para minha surpresa, ela ficou em verdadeiro pânico, correndo em absoluta velocidade, em direção à esquina, sem parar um segundo, muito menos atender aos meus chamados.

Ainda, antes de me afastar por completo, voltei-me e olhei para o homem que sorria e me acenava. As pessoas passavam rápidas, saindo do cinema e provavelmente conversando sobre o filme. Ele continuava lá, e nem sei se o viam, tal como eu.

De todo modo, nunca mais o vi, embora, provavelmente tenha ficado até o dia primeiro do ano novo, tal como anunciara. Nunca mais o vi, nem tenho certeza de que a mensagem que deixara, fora apenas uma invenção de sua mente. De todo modo, ratificou a ideia de que devemos sempre fazer o melhor em quaisquer circunstâncias. Que devemos perseverar em nossa missão e observar a natureza, experenciando sem pressa os momentos em que partilhamos a plenitude da vida. Seja cumprindo uma missão, seja interagindo com o próximo

. Isso é o que podemos chamar de momentos de felicidade. Provavelmente, seja este o significado maior do Natal.

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A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

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