Há quem se lembre dos natais da infância e são estes os que realmente preenchem a nossa memória, trazendo de volta a fantasia, a alegria e a recordação da família naqueles momentos intensos. Tenho comigo que os natais são todos bons, a menos que tenhamos tido algum sofrimento marcante e as coisas, aí, trilhem caminhos mais estreitos e tortuosos. Lembro de muitos natais da infância e acho que na maioria foram muito felizes.
Entretanto, há um em especial, em que eu não era criança, nem adolescente, nem vivenciava aqueles momentos de encantamento em que somos pais com filhos pequenos. Tinha meus 20 e poucos anos e o Natal se resumia a um pequeno encontro de família, com os pais e irmãs, a missa do galo e no máximo, alguma festa maior à noite, em que houvesse danças e namoricos. Nada que se compare às baladas explosivas de hoje em dia.
E este natal começou muito cedo. Na véspera, numa tarde de sábado. Um desses sábados à tarde em que as pessoas já fizeram as suas compras ou ainda permanecem comprando os últimos presentes que faltaram. Nas ruas, um pouco distante do centro comercial, a cidade parecia completamente deserta. Era uma avenida arborizada, com grandes canteiros centrais e árvores gigantescas que davam um ar de nostalgia para a véspera de natal, que já por conta de todos os envolvimentos emocionais, o Natal em si, já é nostálgico para mim. Uma data em que lembramos de entes queridos que já não se encontram em nosso meio ou, porque as famílias já se dissolveram e vivem em lugares distantes , ou porque, sei lá, temos uma dificuldade interna de sermos felizes quando todos assim parecem.
Pois, antes de chegar nesta avenida arborizada, eu resolvi visitar o asilo de pobres. Era uma experiência nova para mim, não que eu não tivesse ido até lá em outras oportunidades, ao contrário, já participara de outros encontros e dedicado alguns momentos que foram talvez bons para eles, mas muito produtivos para mim.
De todo modo, a experiência a que me refiro, se chama véspera de natal. Na véspera de natal, os idosos parecem ter a obrigação de serem felizes. Os cuidadores riem, esforçam-se para incentivá-los e não admitem quaisquer reclamações ou tristezas. Alguns filhos os visitam, trazem os netos e outros parentes. Às vezes, até os levam para casa. Eu conversei com alguns idosos e havia lhes trazido presentes. Na verdade, guloseimas, porque o que interessa para um idoso? Ganhar uma camisa nova ou uma blusa de rendas? Para onde eles vão? Com que se divertem? Como vestir roupas novas, se o seu destino inevitável é o quarto onde deitam suas dores? Então foi o que fiz. Presenteei-os com chocolates, biscoitos, cookies, balas e todos os tipos de guloseimas que pudessem adoçar-lhes a boca e o coração.
Uns conversaram mais do que os outros. Uns se fecharam em si mesmos, embora agradecessem os presentes, mesmo que momentaneamente, decididos a se afastarem, habituados a ficarem sozinhos. Houve os que contaram histórias, verdadeiras ou fantasia, mas que preenchiam suas memórias de maneira intensa, mesmo que por alguns momentos. Talvez, o encontro tenha durado uma hora.
Dali sai satisfeito e angustiado. Satisfeito por ter realizado o meu objetivo que era o de levar aquelas pequenas lembranças e angustiado, talvez por que outro objetivo não tenha sido alcançado, que seria o encontro. Acho que não houve o encontro entre nós. Não houve interatividade. Não houve partilha de sentimentos, de emoções, de troca de experiências. Houve apenas um encontro social, onde alguns fragmentos de sentimentos vieram à tona. De todo modo, fiz o que me propus e pensei que no próximo ano seria melhor. Depois, pensei melhor e me perguntei, por que no próximo ano? Por que não na próxima semana, no próximo mês, no forte calor de janeiro, no imenso frio do inverno? Há tanto momentos para serem compartilhados. Há tantos dias a serem preenchidos. E pensando desta forma, retirei-me, entre os cumprimentos e desejos de feliz natal e anseios de um bom ano novo.
Por um momento, lembrei de nosso trabalho no hospital psiquiátrico e o comparei com o asilo. Na verdade, a solidão e a fantasia eram as únicas coisas que os uniam. E talvez as únicas que realmente tinham alguma importância. Mas desviei o olhar, tentando não ver aquelas paredes escuras, cujas luzes pareciam focalizar apenas olhos assustados e ouvidos desatentos. Procurei não pensar e esquecer de vez esta visita. Muito menos divagar, fazendo comparações, cujas conclusões poderiam argumentar uma tese. Afinal, o asilo já tinha preenchido bastante aquela tarde.
Afastei-me devagar. Não estava tranquilo. Mas não devia me deter muito nisso. Teria mais tempo e mais angústias, que por certo aflorariam.
Dirigi-me a algumas casas, onde deixaria cartões sob as portas ou os entregaria pessoalmente. Nesta época, não havia cartões virtuais, nem redes sociais, nem comunicações online. Tudo era concreto. Tão concreto, quanto a calçada da avenida que eu, agora, após a entrega dos cartões natalinos, me dispunha a caminhar.
Observei que o sol já se punha, devagar, bem lentamente. É um sol de verão e portanto, demora mais a se esconder. Entretanto, a noite se aproximava e devia me antecipar, porque havia muito mais a percorrer.
Do outro lado da avenida, havia a igreja e nem uma pessoa na rua. Um silêncio sepulcral, como se todos houvessem abandonado a cidade. Um silêncio bom, que me deixava refletir, inclusive sobre a calma que a natureza despertava. O sol ao longe, se pondo, jogando seus raios por entre as árvores da avenida, a rua que se alongava em direção à saída da cidade, o silêncio intenso, tudo produzia uma paz que nem sabia explicar. Nem tentava, só absorvia.
Por outro lado, estava satisfeito, porque a maioria dos cartões natalinos foram entregues.
Pensei comigo que esta tranquilidade contempla a condição de nos sentirmos plenos, inteiros em nossa caminhada. Atravessei a avenida e aproximei-me da igreja, agora já um pouco às escuras, pois o lusco-fusco aumentava, em virtude das luminárias serem acesas, amiúde, e por momentos, via-se apenas a luz natural.
Foi neste momento, ouvi um voz firme e forte, me chamando. Olhei para os lados e não vi ninguém. A voz insistiu, pedindo que o olhasse, com a convicção implícita de que o atenderia.
Um pouco aturdido, voltei-me e avistei um homem encostado na porta da igreja, meio escondido, pois embora fechada, a porta fica um pouco para dentro, como um nicho. Percebi tratar-se de um senhor idoso, do qual não conseguia avaliar a idade que aparentava. Usava um terno escuro e vestia um colarinho de padre. Os sapatos pretos me pareciam de verniz. Aproximei-me, mais calmo, apertei sua mão com firmeza e sorri, quando disse: — tinha certeza de que conversarias comigo. Hoje em dia, todos estão muito apressados, mas tu já fizeste com calma o que te propuseste. Visitaste o asilo de pobres, entregaste os cartões natalinos e agora parasses para conversar comigo. Eu sabia que farias isso.
Respondi com determinação , que não havia motivo para não parar e ouvi-lo. Não entendi bem como ele sabia sobre o que eu havia feito, mas, de qualquer modo, tudo me parecia muito natural. Naquele momento, não achei que este detalhe tivesse alguma importância.
Ele então, concluiu: — és um bom rapaz. Foi por isso, que parasses para conversar comigo. Sei que sempre evitas contar as tragédias que tens conhecimento pela tv, jornais ou por outras pessoas, para os teus familiares. Achas que não vale à pena incomodar teus pais com estas histórias tristes, até mesmo, porque tu não gostas de repetir estas coisas. Não acrescentam nada.
Concordei com ele. Então, fez uma pequena revelação: – a partir de hoje, véspera do Natal, ficarei aqui, nesta igreja, até o Ano Novo. Se quiseres me ver novamente, conversar comigo, eu estarei aqui, te esperando. Agora, vai, te esperam em tua casa.
Apertei-lhe a mão e afastei-me ainda mais contente do que estava antes.
Passou o tempo, esqueci do ocorrido. Naquela época, havia o cinema Lido, que ficava próximo à Igreja. Na véspera do ano novo, eu e minha irmã decidimos assistir um filme, lembro que se tratava de um musical com Barbra Streisand.
Ao sair do cinema, passamos pela frente da igreja e, para minha surpresa, ele estava lá, sorrindo e me chamando para conversarmos. Avisei a minha irmã da pessoa que havia encontrado naquele mesmo lugar, na véspera do natal, da qual havia comentado anteriormente.
Para minha surpresa, ela ficou em verdadeiro pânico, correndo em absoluta velocidade, em direção à esquina, sem parar um segundo, muito menos atender aos meus chamados.
Ainda, antes de me afastar por completo, voltei-me e olhei para o homem que sorria e me acenava. As pessoas passavam rápidas, saindo do cinema e provavelmente conversando sobre o filme. Ele continuava lá, e nem sei se o viam, tal como eu.
De todo modo, nunca mais o vi, embora, provavelmente tenha ficado até o dia primeiro do ano novo, tal como anunciara. Nunca mais o vi, nem tenho certeza de que a mensagem que deixara, fora apenas uma invenção de sua mente. De todo modo, ratificou a ideia de que devemos sempre fazer o melhor em quaisquer circunstâncias. Que devemos perseverar em nossa missão e observar a natureza, experenciando sem pressa os momentos em que partilhamos a plenitude da vida. Seja cumprindo uma missão, seja interagindo com o próximo
. Isso é o que podemos chamar de momentos de felicidade. Provavelmente, seja este o significado maior do Natal.
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