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sexta-feira, agosto 25, 2017

A roda parou de girar

Um carro quase sobrevoava a calçada. Noite escura. De repente, parou. Um homem de branco desceu, examinou os pneus, deu dois giros em torno e permaneceu quieto, em frente da casa que parecia abandonada. Não fez um gesto. O carro ainda pairava na calçada, a roda traseira no ar, se alguém a empurrasse faria várias voltas.

Não havia ninguém. A noite se adiantava e a cidade, naquele bairro, morria. Ele moveu-se um pouco. Faiscou os olhos na luz intensa do celular. Ficou ali, perdido numa mensagem. Em seguida, aproximou-se do muro e encostou-se devagar.

Olhou para os lados. Nada. Ninguém se aproximava. Nem um sinal. Nem mesmo a brisa costumeira da cidade litorânea desenhava algum movimento. Tudo parado. Morno. Suspirou, ansioso. Meteu as mãos e o celular nos bolsos.

Por um momento, pensou em afastar-se, bater no portão de ferro, chamar alguém. Não teve coragem. Algo o segurava no chão. Um chão bolorento, de musgo e ervas que se erguiam pelas frestas das lajotas. Um chão sujo. Um lugar sem qualquer cuidado. Mas estava ali. Precisava fazer o negócio. Não tinha como fugir, desistir. Tinha se aconselhado há muito tempo com sua consciência e ela lhe dissera que era o melhor a fazer.

Por que ficar assim, agora, tão intimidado? Que droga de conhecimento que se tem de si mesmo, se de um momento para o outro, tudo parece desandar e toda aquela certeza se esvai.

Estava com muita vontade de fugir, sim. É verdade. Mas ficaria ali até a solução.

Todos os momentos em que a encontrou pensou que fosse passar apenas alguns segundos.

Nada que o fizesse permanecer por tanto tempo, ouvindo histórias que jamais esquecera e que eram repetidas sempre, com a mesma tenacidade e vigor.

Tinha vontade de sair. Dizer adeus. Um adeus para sempre. Um adeus para que ficasse marcada em sua vida. Para que o esquecesse.

Mas neste momento, tudo parecia diferente, a ponto de não reconhecer o local em que passara tanto tempo de sua vida.

Voltou para o carro e percebeu que a roda parou de girar, mas era como se aquele transtorno pusesse em cheque o seu desejo.

Deveria retirar o veículo, tentar estacioná-lo um pouco mais à direita, quem sabe na esquina, mas não tomava qualquer atitude. Tudo naquele cenário conspirava contra o bom senso.

Sentiu que o celular estremecia no bolso, sinal de que a mensagem tivera retorno. Retirou-o devagar, temeroso. Afinal, foram tantos pedidos, tantas súplicas para que a coisa fosse retomada da forma como ficara, que agora perdera todas as esperanças.

A mensagem era sucinta. A brevidade não fazia parte das atitudes dela, mas por certo, se espelhara nele mesmo, em suas respostas ágeis, rápidas e breves. Em sua mania de negociar, de colocar tudo sob um pedestal de valores. Talvez apenas indicasse um caminho, nada mais. Era só o que precisava naquele instante.

Olhou para cima, doeu-lhe a pupila que se dilatava na luz artificial da noite.

Uma janela se abria, lá no alto, ele tinha certeza. Deveria entrar. Por que não lera a mensagem? Por que não decifrara o que havia ali, digitado em códigos internetês?

Foi neste momento de dúvida, que percebeu o farol de um carro em sua direção, como se fosse subir a calçada, tal como ele o fizera. Cantando pneu, parou bem ao seu lado, no meio-fio.

Um homem descera e se aproximara dele de modo arrogante, como se o conhecesse. Afastou-se em direção ao portão, mas ele o chamou, como se o conhecesse também e perguntou se ele pretendia entrar na casa, se tinha a chave, se sabia quem morava ali. O homem voltou-se, deu um meio sorriso irônico e não disse nada. Ao contrário, afastou-se assegurando-se de alguma mensagem no celular, como a única desculpa para o silêncio. O outro, no entanto, insistiu. Ele então, o encarou com frieza:

— Vou onde você pretende ir.

— Como sabe?

— Porque sei que espera por Susi. Eu sou o agenciador dela, o proxeneta, o cafetão, o que você quiser chamar. Mas me dê um tempo, que logo, logo, ela será toda sua.

— Mas ela…

— Eu sei quem ela é, mas agora Susi é do mundo - e rindo - e de você também.

Dizendo isso, afastou-se entrando no velho portão de ferro e desaparecendo no quintal escuro.

Ele então voltou para o seu carro, aproximou-se devagar e deixou-se ficar quieto, sem tomar nenhuma atitude. Tinha só vontade de voltar para casa deitar a cabeça no travesseiro e ficar à espera.

sábado, janeiro 21, 2017

Um passeio no Gordini, com meu pai

Fui apresentado ao Gordini de forma inesperada. Tinha uns oito anos, quando um amigo de meu pai deu-nos carona. Nos acomodamos no carro branco, com os bancos de cor bege, e imediatamente começaram a comentar sobre o tamanho do carro, acostumados com veículos avantajados da época, com espaços generosos entre os bancos e porta-malas gigantescos.

O Gordini, antigo Dauphini não era nada disso. Era pequeno, com espaços milimetricamente medidos para ajustar nossos corpos e alguns pertences. Era o que me parecia, ao observar meu pai e o amigo, quase encostarem a cabeça no teto. Nem sei se era impressão minha, ou sugestão pela conversa.

Mas, também, pra mim, isso não era muito importante. O fato de estar ali, com eles, com meu pai dando os seus palpites sobre carros e motos e fazendo perguntas amistosas sobre o automóvel, já mobilizava toda minha atenção, ao ponto de imaginar, um dia comprar um carro como aquele.

Eles conversavam animados. O dono, que a recém havia comprado, enaltecia as qualidades do veículo, informando que a velocidade poderia chegar a 115 km/h, o que me parecia um fato extraordinário. O único carro que podia ultrapassar esta velocidade, era o do Batman, mas até ai, as coisas eram outras.

Meu pai perguntou sobre o consumo, ao que o amigo respondeu, satisfeito, que chegava a 13km/l. Parecia feliz e elogiava o pequeno carro branco, durante todo o percurso. Eu percebia aquele cheiro de carro novo, há pouco comprado e lembrava de alguns livros, que tinham aquele cheiro peculiar da tinta ou do tipo de papel utilizado.

Nossa pequena viagem prosseguia, porque o amigo de meu pai resolvera mostrar a velocidade que o carro atingia, naturalmente não a máxima, mas a que seria adequada numa estrada. Meu pai concordou que o veículo era muito confortável, e por certo desempenharia uma velocidade segura.

Eu torcia para que o homem corresse, empolgado com a oportunidade de me embrenhar nas dunas do Cassino. Imaginava que ele iria até lá, afinal um lugar adequado para tal feito.

Seguíamos então pela Avenida Buarque de Macedo e dobramos na esquina do cemitério, pegando em seguida o que chamávamos de linha do parque, em direção ao Cassino, indo até o antigo V (atualmente o viaduto do trevo).

Foi ai que o amigo de meu pai decidiu mostrar a potência do automóvel. Aos poucos, atingiu, já na estrada, uma velocidade de 50km por hora e por momentos chegando a 60. Meu pai ficou impressionado pelo pouco tempo dispendido em alcançar tal velocidade.

Uma poeira levantava as rodas traseiras nublando o vidro, deixando pra trás um pequeno redemoinho, que esmaecia rapidamente nas valetas secas da primavera. O motor emitia um ronco consistente que sustentava a marcha constante. Eu percebia, desenhado no retrovisor um meio sorriso do amigo de meu pai, orgulhoso com a aquisição.

Enquanto falavam, ele estacionou o veículo numa pequena entrada de um sítio, desceram e o homem imediatamente, me perguntou: – e aí, guri, que tu achou do carro?

“Gostei”, foi o que respondi. Talvez elaborasse uma redação sobre o tema, se tivesse tempo, mas falar ali, não tinha muito o que improvisar. Passou a mão pela minha cabeça e deu uma risada. Meu pai, segurou-me pelo braço e me conduziu para o carro, porque dali, voltaríamos para a cidade.

Meu sonho de dunas havia acabado. Mas valeu à pena. Valeu à pena a estreia no Gordini, a conversa dos dois e a maneira solidária de meu pai, ao me olhar. Sabia que estava ali, ao meu lado e queria me dizer muitas coisas. Era o seu jeito. Sempre me olhava com carinho, que expressava muito mais do que falava.

Mais tarde, soube que o Gordini foi um dos primeiros carros populares do Brasil, da Renaut, mas fabricado pela Willys. Antes de se tornar o Gordini, ele era o Dauphine, que não se deu muito bem entre nós e inclusive, apelidado de Leite Glória, pois desmanchava sem bater. Isso acontecia porque as estradas eram muito ruins e suspensão constituída por bolsas de ar que se endureciam com a carga, foi projetada para estradas europeias.

Rebatizaram então, o Dauphine, como Gordini, que teve alguns ajustes, como o câmbio que passou a ter quatro marchas para a frente e o motor que elevou a potência para 40cv e mais tarde, em 1964, para a potência de 55cv, apresentando ainda dois carburadores e taxa de compressão maior.

Segundo a Willys-Overland era mais luxuoso, com melhor acabamento interior, frisos e trincos metálicos elegantes; mais confortável devido possuir quatro portas, grande porta-malas, forração de carpete e espaço interno bem aproveitado e mais estável, seguro, suspensão reforçada, firme nas curvas e em qualquer terreno.

A partir daqueles momentos tão agradáveis com meu pai e seu amigo, passei a sonhar com o Gordini, um carro que me parecia ideal. Imaginava que ao crescer, compraria um Gordini, tal qual o do amigo de meu pai. Talvez, não branco, como o dele, mas de uma cor mais forte e intensa, quem sabe um amarelo? Pensava que meu pai tinha a mesma intenção, mas o que ele fizera a seguir, fora comprar uma tv Philips de 28 polegadas, acho que para assistir as propagandas do Gordini.

De qualquer modo, não concretizei este sonho. O Gordini terminou em 68 e em minha juventude, o sucesso da época era o Chevette e o fusca, claro, em se falando dos carros médios e pequenos.

O que ficou de verdade, foi a lembrança de mais um momento passado ao lado de meu pai, que por certo, tinha os seus sonhos, e de algum modo compartilhava comigo.

terça-feira, dezembro 20, 2016

O peso da liberdade

O peso da liberdade Sentia as madrugadas se espraiarem e a sensação de que a vida se alongava, ali, naqueles momentos fugazes. Nada havia para impor: a natureza se completava. A vida estava além das paredes de seu quarto. Estirava-se nas sombras encardidas dos muros mal pintados, nas sacadas fragmentadas, nas quais figuras se expunham assim, descomedidas e sem pudor.Transformavam-se em manchas de água, nas calçadas limpas, sereno incrustado da umidade gélida produzida. Era assim. A natureza se esbaldava em fervor, em criação e criatura, em inventar a vida. Para ele, as madrugadas não passavam de um espiar solitário pelas persianas. Um olhar entrecortado em tiras. Um olhar apenas. Nada que impusesse uma vontade forte, que se derramasse em seu corpo e atingisse a alma. Que nada. Bastavam os sons difusos da noite insípida em que se resumiam suas horas. Uma coisa insossa. Uma coisa sua, mas que não compartilhava com ninguém. Melhor assim. Melhor deixar-se vesgo e perturbado ante o desconhecido que só vislumbrava às apalpadelas na vidraça. Na persiana. No frio da janela. Um olhar qualquer. Nada definitivo. Nada planejado. Nada. Pudesse seguir os instintos e atravessar as paredes, afundar-se na lama que jaz ao lado da janela. Chafurdar e encher-se de gozo. Para ele, porém, a vida era comedida. Não podia ultrapassar os limites. Não devia se arriscar. Pensar apenas. Imaginar. Quase sonhar. Um homem às vezes sonha de vesgueio, com cuidado para não destruir o mínimo de sonho. Um sonho frágil, pouco acalentado, logo acordado para a realidade. Mas um sonho. Na verdade, quisera ousar o sonho dos outros, daqueles além de seus limites, do outro lado de sua janela. Quisera sentir o orvalho mais perto, tão perto que encheria o nariz e os pulmões. A lua lambendo a pele, deixando-a quase translúcida. E um bem-estar de quem atinge a plenitude. Talvez um dia, transpusesse a sua janela e espiasse de perto o que acontecia, ali, ao lado e participasse também. Nem que fosse num salto, num segundo, mesmo que se arrependesse, que retrocedesse, que fugisse. Mas talvez cultivasse uma fresta na mente, que vez por outra se enchesse de luz, produzindo um caminho para viver em paz. Quando saiu de casa, sentiu o bafejo da brisa noturna. Mais do que brisa. Era um frio miúdo, que por vezes, arrepiava a testa e os cabelos. Olhou assustado para o nada. Escuridão total. Nem sabe exatamente o motivo do medo. Teria motivo? Talvez o de ainda estar vivo. As coisas se acomodavam, os dias se sucediam, as noites se alternavam em luzes acesas e latidos ao longe. Estava sempre só. Desanimado. Não era pra tanto, pensava. Devia sentir-se feliz, por alguns minutos. Devia sentir a alma elevada, o coração acalmado. Sua vida era como a de todos. Por que se sentia atribulado por picuinhas do espírito? Por que não desviar o desconforto e partir para a própria misericórdia? Isso, ter dó de si, é o que precisava. Mas não aquela piedade medíocre, aquele ar de pobre coitado. Ao contrário, uma piedade doída, verdadeira, do fundo da alma, que o alimentasse, que alicerçasse os pensamentos e a coragem. Quem sabe tendo dó de si, virava-se de frente para o mundo. E percebesse que ao descer as escadas do prédio, o porteiro tinha um modo aflitivo de o olhar, como se o alertasse para o perigo. Talvez porque pouco o visse sair, principalmente à noite. Que interessava ele, agora? Não passava de um velho amordaçado nas ondas do rádio. Sempre à espreita de uma tragédia. De certa forma, agora, sentia-se livre, pois pelo menos, ultrapassara a soleira da porta. Estava atravessando ruas, pisando nos paralelepípedos, enfrentando esquinas. Podia caminhar, sentir o sereno esfriar a testa, o cabelo molhar e avistar ao longe, figuras disformes que passeavam rápidas pelas calçadas circundantes. Na verdade, sentia a boca ressequida. Alguma coisa que o impede de absorver a liberdade em sua plenitude. Mas quem consegue? Quem realmente é livre? Melhor voltar até a garagem, pegar o carro, sentir-se mais protegido, encontrar um lugar para passar a noite. Talvez beber alguma coisa forte, que lhe queime a garganta e acione o cérebro. Então retirou o carro do estacionamento e dirigiu-se às ruas próximas. Não fazia muito que saíra de casa, mas tempo suficiente, para sentir-se angustiado. O tempo era o resultado de suas memórias. E elas permaneciam e se renovavam a cada calçada que atravessava, cada canteiro que avistava, cada praça que circundava. Lembranças da infância, da adolescência, de tempos marcantes. Tempos em que talvez não fosse tão solitário. Estacionou o carro sob a luz amarela do poste. A avenida ampla vislumbrava algum movimento de pedestres. Namorados que se deslocavam em direção aos cinemas ou a bares. Grupos de rapazes que se dirigiam para casa ou talvez para a universidade. Poucos velhos apressados, segurando as bolsas, entrando e saindo de farmácias, ansiosos em voltar para casa. Observava as pessoas, à sombra das árvores que deitavam os ramos sobre os veículos estacionados em oblíquo. Ouviu uma daquelas músicas antigas que o transportavam ao passado, "Perfídia" executada por Glenn Miller .“For I found you, the love of my life, in somebody else's arms”. Nada mais oportuno do que estes versos cheios de melancolia. Deixou-se ficar assim, introspectivo, absorvido pela linguagem lírica da melodia. Nada o atrapalhava, nada o transportava a lugar nenhum, ou o afastava daquele, no qual seu coração o pusera. Mas às vezes, o imponderável acontece. Nada é uma expressão muito forte, tanto que uma batida no vidro o despertou do sonho. Olhou transtornado para a imagem que se derramava no vidro como uma estampa disforme e não disse nada. Por um momento pensou que... não pensou em nada. Tentou voltar ao enlevo, ao passado, à melodia. Mas a voz ecoou enérgica e definitiva, como uma lâmina na carne. Um revólver calibre 38 raspando a vidraça e a voz ameaçadora exigindo que abrisse o carro. Ele obedeceu trêmulo. O mundo desabava em segundos. Ele vislumbrava uma mulher passeando com um cachorro na direção da praça e perdendo-se na escuridão salpicada de luzes indefinidas. Só neste momento percebera que três homens entraram no carro e o empurravam rapidamente para o banco detrás, enquanto um deles acionava a direção. Em segundos, o carro se afastava em disparada. Sua boca babava no assento do banco com uma arma apontada para a cabeça. Gritos, ordens, ameaças. Em poucos minutos, paravam numa rua escura, uma espécie de encruzilhada onde havia linhas de trens. Retiraram-no do carro, abriram o porta-malas e o enfiaram lá dentro, revelando a intenção definitiva de cumprirem o seu objetivo. O carro partia novamente. Ele sentia um calor constante no corpo, talvez do cano de descarga que ficava ali por baixo, não sabia, tudo se alternando entre tremor e pânico. Uma vontade de urinar que não conseguia adiar. O mijo humilhante alagou até seu pescoço, cujo corpo se dobrara numa postura fetal, a única que lhe cabia. O carro voou por estradas se afastando da zona urbana. Sua cabeça doía, sentindo o peso da lataria nas costas. As batidas cada vez mais fortes, produzidas por retornos mirabolantes, aliados à precariedade das estradas, além do alta velocidade desenvolvida. De repente, o carro parou. Os homens cochichavam. Portões com engrenagens enferrujadas se abriam e pacotes se amontoavam dentro do veículo. Os homens se espremiam nos bancos, como se outros entrassem e participassem da operação. Um deles se aproximou e abriu levemente o porta-malas: um vento frio encheu-lhe as narinas. Respirou fundo. A falta de ar passara. Resmungou entre dentes: – Por favor, deixa aberto... quase não respiro. – Cala a boca, não fala comigo. Só eu falo. Que tu tem ai pra botá gasolina? Essa porra tá vazia! Arrancou-lhe do pulso, o relógio, perguntando se a “bosta” tinha algum valor, ao mesmo tempo que avistara a corrente no pescoço, puxando-a com violência, já que o celular já era moeda de troca desde o início. Em seguida, lacrara a tampa do porta-malas, gritando palavras de ordem. – Cala a boca, tu vai morrê se não fechá essa trela! Tu vai morrê queimado, seu puto! Os demais resmungavam em tom cada vez mais baixo, quase um zunido. Alguém se encarregou de trazer a gasolina. Encheram o tanque. Dentro do porta-malas, ele tinha a impressão de que o líquido escorria pelo seu corpo. Ouvia comentários sobre incêndio do veículo. O desespero, aos poucos, dava lugar a uma intensa resignação. Tentou rezar, mas não conseguia. Não recordava as palavras, nem das pessoas. Quem se lembraria dele? Quem sentiria a sua falta? Quem investigaria para descobrir que morrera assim, transformado num monte de cinzas? O carro se afastava, antes, porém ele ouvia estampidos ao longe. Será que alguém fora assassinado? Talvez um vigia aparecesse e exercesse alguma reação? Eles apagaram um comparsa? O que queriam com ele, por que não o deixaram morrer? O carro disparava numa velocidade alucinante. A escuridão total denunciava a zona rural. De repente, luzes passavam aqui e ali, pelas frestas do porta-malas, como se atravessassem uma ponte. E se eles decidissem se livrarem do carro e o jogassem no rio? Não interessava. Estava morto. Sabia que seu destino estava selado. Era só questão de tempo. Agora, o carro parara novamente e o ruído abafado do motor se misturava a coaxos de sapos, o que significava que ainda estavam na zona rural. De imediato, decidiram livrar-se dos pacotes pesados ou caixas de dentro do veículo. Os homens se comunicavam em ruídos e somente um se aproximava dele. Percebera tratar-se de uma estratégia, para que não os reconhecesse. Mas de que adiantaria isso? Bastava apagá-lo de vez! Não teriam mais problemas. Ele não significava nada para eles. Há muito não tinha qualquer importância para ninguém. Aquele que costumava falar com ele, avisou, ameaçador: – O carro vai parar mais duas vezes, tu vai descer na segunda. A tampa vai tá aberta. Conta até 50, entra no carro e segue em frente. Não olha pra trás. Nós tamos de olho. Um deslize e tu vai sê apagado! Foram as últimas palavras, a ansiedade aumentou, um zunido nos ouvidos, um corte na testa que sangrava, a impossibilidade de articular as palavras, de mexer as pernas, de se sentir apto para sair do carro. Como faria isso? Nem pensava, nem engendrava qualquer imagem, porque sua mente não funcionava de modo racional. Seu coração batia exaltado. As costas contraídas, o corpo todo latejava, num misto de dormência e dor. Quando o carro parou numa rua escura, tentou ingenuamente contar, mas não conseguia articular na mente, os numerais. Não tinha o manejo adequado ao raciocínio. Um vento fino assombrava a fresta do porta-malas. Falou coisas desconexas, riu como se houvesse bebido ou usado uma droga forte, forçou as pernas para se levantar e pular para fora. Os ossos pareciam chocar-se desarticulados, deslocando-se pelo corpo, envolvendo as pernas, os braços e o pescoço. Então tropeçou na grama molhada de sereno e nem entendeu o peso da liberdade. Entrou no carro, seguiu em frente e nem sabe para onde foi.

sábado, novembro 26, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 23

Capítulo 23

Naquela noite, a polícia foi chamada porque havia um movimento suspeito na casa que estivera há tempo tempo desabitada. Encontraram o corpo de Fernando estirado no chão e nenhuma impressão digital. Entretanto, investigaram com afinco as redondezas e descobriram quem tinha chamado a polícia.

O vizinho do prédio à frente, havia visto as pessoas entrarem e sairem da casa e tinha a impressão de que havia algo errado. Os policiais também examinaram as câmeras de segurança na rua, mas não conseguiram ver as placas dos carros. Entretanto, o final de uma delas estava bem nítido e o vizinho ainda auxiliara, dizendo que anotara a placa de um carro, embora não coincidisse com a parte da placa que surgia nas câmeras. Já no âmbito da polícia, analisando detidamente as cenas, puderam constatar que a placa anotada era de um dos carros que parara no local.

Dali em diante, foi fácil encontrarem o dono do carro, Alfredo Sampaio. Na manhã seguinte, Alfredo recebe uma intimação para ir à Delegacia. Apavorado, liga para Letícia.

– Letícia, o que vou dizer agora? Vão pensar que matei Fernando! Como chegara até mim?

– Calma, Alfredo, você está me deixando nervosa. Não se esqueça, que nós três estávamos lá naquele momento, que nós três fizemos a limpeza das digitais. Meu Deus, se eu for envolvida nisso, estarei perdida!

–E o que devemos fazer?

– Em primeiro lugar, manter a calma. Tente descobrir como eles ligaram você ao crime.

– Não me ligaram a nada. Não diga besteiras. Alguém deve ter me visto por ali.

– E o seu carro? Alguém pode ter anotado a placa, ou quem sabe, viram através de alguma câmera da rua?

– É verdade, pode ser isso. Estou apavorado.

– Já lhe disse que não pode ficar assim. Diga-lhes que foi pedir um favor, afinal ele não era o jardineiro de mamãe?

– Sim, mas não posso dizer isso. Eu não posso contar o que eu queria dele.

– Então diga o óbvio.

– A que você se refere?

– Que vocês tinham um caso.

– Você está louca?

– Não, estou tentando ajudar você, seu bobo. E pense bem no que vai dizer, não vá nos envolver nisso. Eu não deveria ter ido lá, foi uma loucura!

Ele desliga o celular ainda mais confuso do que estava antes. Decide vestir-se e ir até a delegacia. Precisa acalmar-se, pensar numa solução para o problema. Afinal de contas, ele não deve nada à justiça. Pensando nisso, tomou um banho rápido e preparou-se para sair.

Quando chegou, o delegado Santos pediu que aguardasse. Alfredo estava muito nervoso. Olhava em torno, tentando encontrar um motivo coerente para o encontro com Fernando, mas nada lhe vinha à mente e o fato de seu carro estar estacionado em frente à casa e principalmente ter sido filmado, o deixava apavorado.

Um policial o encaminhou para a sala do delegado e afastou-se, deixando-os às sós. Pela vidraça que separava da outra sala, Alfredo observava o movimento dos funcionários, computadores e conversas ao celular. Alguns grupos se posicionavam próximos à parede de vidro, numa conversa animada, como se estivessem na mesma sala. Entretanto, não se ouvia o que diziam.

– Muito bem. O seu nome é Alfredo Sampaio.

– Sim, senhor.

– Nós fizemos uma pequena pesquisa a seu respeito: sabemos que é um empresário no ramo de celulose.

– É verdade.

– Senhor Alfredo, o senhor sabe o motivo desta intimação ou pelo menos, imagina, não é mesmo?

– Na verdade, delegado, eu fiquei muito surpreso. Sei que ocorreu um crime, que o rapaz daquela casa foi assassinado. Mas eu não tenho nada a ver com isso.

– Engraçado. Eu não tinha falado sobre nenhum crime.

– Não? É que pensei…

– Pode falar, senhor Alfredo, fique à vontade.

– Ah, senhor delegado, estou muito confuso, essa história toda está me deixando com os nervos à flor da pele.

– A que história o senhor se refere?

– Bem, o senhor mandou me chamar por causa de Fernando?

– Parece que o senhor sabe muito mais do que a polícia. Por isso, o chamamos até aqui.

– Não, eu não sei de nada. Mas o senhor se refere a este caso, não? Ao rapaz que foi assassinado.

– E o nome dele era Fernando?

– Sim.

– E morava na rua Dutra, 53.

– Ele havia se mudado para lá há pouco. Eu sei de tudo, porque ele é o jardineiro de minha família.

– Ah, sim. E é parente de uma empregada de sua família. Neste momento, a polícia está entranto em contato com ela.

– Meu Deus, pobre Linda!

– Pois é, senhor Alfredo, como o senhor mesmo disse, houve um crime na casa deste rapaz, sendo que ele mesmo é a vítima. Nós estamos investigando e por isso, o chamamos.

– O senhor deve ter me chamado, porque ele trabalha conosco, quero dizer, com a minha família, mas eu não posso lhe adiantar muita coisa. Quase não o conhecia.

– Tem certeza de que não o conhecia?

– Na verdade, algumas vezes eu o vi por lá. Poucas, sabe.

– Mas então, o senhor pode me dizer o que fazia em sua casa, ontem à noite, quando ocorreu o crime?

– Foi uma terrível fatalidade. Quando entrei, eu o encontrei atirado no chão, ensanguentado. Tentei reanimá-lo, mas ele já havia morrido.

– Então quer dizer que o senhor esteve lá realmente?

– Não, quero dizer. Eu fui lá porque precisava levar um recado de minha mãe, mas … o senhor está me deixando confuso, delegado.

– Eu estou sendo absolutamente claro, senhor Alfredo. Sabemos que ocorreu um crime, que segundo o que o senhor mesmo afirmou, a vítima estava estendida no chão e tinha levado um tiro.

– Eu acho que foi um tiro.

– Sim, foi um tiro. O senhor tentou reanimá-lo.

– Eu fiquei muito nervoso, chamei por ele. Acho que tentei, agora estou tão nervoso, que nem sei de nada.

– Então, procure acalmar-se, senhor Alfredo. O senhor percebeu que o rapaz estava morto. Por que não chamou a polícia?

– Porque não podia fazer mais nada. Fui embora, apavorado. Foi isso que fiz.

– Mas é muito estranho. Não havia nenhuma impressão digital, como se quem estivesse ali, houvesse apagado todas as impressões.

– No meu caso, eu não toquei em nada.

– Nem na maçaneta?

– Não, a porta estava entreaberta.

– A porta estava entreaberta e o senhor entrou, chamando pelo rapaz, o nome dele era Fernando, não?

– Sim. Fernando.

– Recapitulando: o senhor viu a porta aberta, o que é muito estranho também, chamou por Fernando e não obteve resposta. Então aproximou-se do corpo, deve ter se abaixado para verificar se ele estava vivo ainda.

– Sim, mas não toquei nele, não toquei em nada. Em seguida, fui embora.

– O senhor sabe que havia outro carro estacionado na frente da casa?

– Não, eu não vi ninguém. Mas como o senhor pode afirmar que eu estava de carro? Podia ser o carro de outra pessoa.

– Um vizinho anotou a placa e nas câmeras aparece o seu carro e também o outro.

– Sim, eu vim no meu carro, eu não estou negando que estive lá. Mas como o senhor pode ver, delegado, alguém chegou antes de mim e matou o rapaz. É preciso verificar estas câmeras antes de eu chegar, talvez muitas horas antes.

– Talvez o senhor tenha razão.

– E como viu, não há nenhuma impressão digital, eu praticamente entrei e saí daquela casa. Fui na hora errada, no dia errado. O senhor sabe o que me deixa mais indignado? É que o assassino deve estar andando por aí, rindo da nossa cara, e nós perdendo tempo. O senhor me intimando como se eu tivesse alguma coisa a ver com este crime. Eu nem conhecia o rapaz, direito, como lhe falei!

– Mas apesar de toda a limpeza, achamos alguma coisa que mantém ainda as impressões digitais de alguém, talvez possamos descobrir o DNA através dela.

– Como assim?

– Uma lente de contato. O senhor usa lentes de contato, senhor Alfredo?

sábado, novembro 12, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 19

Capítulo 19

No carro, faz-se um silêncio pesado. Parece que nenhum dos dois sabe o que dizer. Fernando porém ensaia alguns temas como o próprio trabalho, o tempo em que ficou desempregado e a proposta da tia para trabalhar na casa de Santa. Alfredo parece entediado. Não lhe interessa aquele assunto, muito menos falar sobre a vida profissional de Fernando.

Fernando conclui, satisfeito:

— Parece que somos amigos há muito tempo. Engraçado, quando há empatia, o assunto flui, não é mesmo?

Na verdade, não era o que estava acontecendo entre os dois, mas Alfredo concorda. Por fim, pergunta:

— Não acha que devemos parar num bar? Como lhe disse, seria bom conversarmos com mais calma.

Fernando sorri, confiante. Em pouco tempo, estão num bar, tomando uma cerveja.

— Então, me diga, o que é que você queria me dizer?

— Não sei, Fernando. É que sou um homem muito solitário.

— Mas nós não somos amigos. Sou apenas o jardineiro de sua mãe.

— Há pouco tempo, você disse que havia empatia entre nós.

— É verdade, mas… deixa pra lá. Não precisamos de um motivo para tomar uma cerveja, não é mesmo?

— Tem um motivo.

— Como assim?

— Você sabe que venho observando-o há algum tempo, deve ter percebido, não?

— Olha aqui, Alfredo, só quero lhe dizer uma coisa: eu não sou gay.

— Meu Deus, o preconceito é uma coisa terrível.

— Não, eu não tenho preconceito, se tivesse, não estaria neste bar, desculpe a franqueza, conversando com você.

— Você acha que dou pinta?

— Não, você parece mais macho do que muito cara que conheço, mas todo mundo sabe…

— Não se trata disso, Fernando. Não tem nada a ver com orientação sexual. Na verdade, eu nunca pensei em ter um caso com você, se é isto que o está afligindo.

— Ah, sim.

— Como disse, eu venho observando você, além disso, você sabe, sou advogado. Sei que não é uma coisa muito honesta, mas no meu meio, sabe-se de tudo.

— Que eu fui presidiário?

— É verdade. Eu sei tudo sobre a sua vida, sei também que você matou um homem.

— E o que isso tem a ver com o nosso papo?

— Quero que você me ajude. Acho que você é a única pessoa com quem posso contar.

— E o que você quer de mim?

Alfredo entorna o copo, sentindo a bebida gelada escorrer-lhe pela garganta. O suor empapa-lhe o colarinho da camisa. Por um momento, tem a sensação de que está conversando com a pessoa errada, na hora errada, mas agora não há como recuar. Solta o copo e abre um pouco a camisa, enquanto olha fixamente para Fernando.

— Sei que as coisas estão difíceis para você. Olhe, eu não tenho nenhuma intenção de prejudicá-lo, só falei isso porque você precisava saber com quem está lidando. Não podia simplesmente fingir que somente o conhecia como o jardineiro de minha mãe.

— Muito bem, até aí, eu concordo. Mas não entendi qual é a sua intenção.

— Bem, na verdade, eu preciso de um favor.

— Um favor? De repente, todo mundo precisa de um favor meu.

— Por que você diz isso?

— Nada. Esquece.

Alfredo faz uma pausa, pensativo. Em seguida, pergunta se Fernando não quer outra bebida.

— Você não acha que está bebendo muito para quem está dirigindo?

— É verdade, mas você não quer repetir a dose?

— Não. Gosto de beber com amigos, desculpe. Acho que esta já é de bom tamanho.

— Acho que você tem razão. É a segunda vez que afirma que não somos amigos.

Fernando fica calado, olhando para o copo. Alfredo prossegue, um tanto ansioso.

— Claro, claro, não faz diferença.

— Meu amigo, não enrola. Me diz como posso ajudá-lo.

— Preciso explicar-lhe com calma. O assunto é delicado.

Fernando decide pedir outra cerveja, considerando que o assunto será longo. Faz o pedido e o garçom se aproxima, trazendo a bebida em seguida. Alfredo então, põe as cartas na mesa.

— Bem, Fernando, a minha família está passando por um momento muito complicado. Vou resumir a parte que interessa e depois, vejamos como você pode me ajudar.

— Você se refere a sua mãe?

— Um pouco sobre ela sim, mas o problema maior é o meu pai.

— Seu Sandoval?

— Ele está com uns planos malucos, está sendo desonesto com minha mãe e eu preciso ajudá-la de qualquer maneira. Não vou deixar que a considerem louca.

Fernando lembra-se da conversa que tivera com Santa e do segredo que ela lhe confiara. Teria a ver com o que Alfredo falava neste momento?

— E o que você quer que eu faça?

— Quero que dê um susto no meu pai. Não quero matá-lo, não faria isso, mas quero que ele desapareça por uns tempos.

— Cara, eu não sou bandido. O que está havendo hem, todo mundo ta querendo me ferrar, é isso? Eu estou em liberdade condicional, querem que eu volte pra cadeia?

— Escute, Fernando, você vive naquela casa, praticamente todo o dia. Sei que desde que foi para lá, tem ficado na casa dos fundos, junto com Linda. Você deve estar a par de tudo.

— Eu vou sair de lá. Você sabe para onde estou indo agora.

— Tudo bem, você vai voltar para a casa que era de seus pais, mas continuará trabalhando em minha casa.

— Como assim, um susto?

— Eu pensei muito quando você pretendeu se mudar. É uma casa abandonada, num lugar afastado. Eu quero que você o leve para lá, por uns tempos, até que eu resolva todos os problemas de minha mãe.

— Você quer que eu sequestre o velho?

— Sim, mas será por um mês.

— Você não parece advogado, né, a menos que queira me ferrar mesmo! Então não sabe que toda a polícia vai procurar o velho na minha casa? Será o primeiro local que procurarão.

— Não, ninguém o procurar, não se preocupe, porque direi que ele decidiu viajar. Invento qualquer coisa em relação à empresa. Não se preocupe, não acontecerá nada com você.

— Que família desgraçada, hem!

— Por que diz isso?

— Porque a sua mãe também está planejando contra o velho.

— Como assim?

— Contra ele e minha tia. Parece que os dois estão de conluio, estão querendo enlouquecer ela, foi o que me contou. Então, ela quer que eu descubra tudo e consiga provas para mostrar a vocês, a toda a família o que eles estão aprontando.

— Meu Deus, eu tinha razão. Meu pai quer ficar com toda a fortuna, sozinho.

— Mas tem mais coisa aí, você sabia que seu pai tem um filho com Linda? Foi o segredo que sua mãe me revelou.

— Miserável! Eu não sabia de nada!

— Os dois tem um plano, mas não sei ainda se estão juntos por conveniência ou por que minha tia o chantageou.

— Então, o meu plano tem muito mais razão de existir. Este canalha não pode ficar impune!

— Mas o que você pretende fazer com o sumiço do velho?

— Nesse meio tempo eu pretendia provar que minha mãe é uma pessoa lúcida e capaz. Não posso deixar que ele participe do processo, porque vai moldar a situação de acordo com seus objetivos. Mas, agora sabendo o que sei, que você me disse, o caso muda de figura.

— Por que?

— Porque é muito mais grave do que eu pensava. Nós sumimos com ele e você aperta com sua tia. Nós vamos provar que os dois estavam planejando se livrarem de minha mãe.

— Eu não posso fazer nada contra minha tia, porque ela me ameaça, me joga na cadeia novamente.

— Mas você pode fingir que não sabe de nada e começa a se preocupar com ela, perguntar coisas. Não pode enfrentá-la, apenas. Tem que ser cínico.

— E o que eu ganho com isso?

— Eu posso lhe dar um bom dinheiro, é isso que interessa, não é mesmo?

— E o que eu faço com a proposta de sua mãe?

— Faça a sua parte, descubra tudo com a sua tia, não é o que ela quer?

— Sim, inclusive sobre os remédios. Sua mãe desconfia que minha tia está lhe dando calmantes fortíssimos, para que se esqueça das coisas.

— Muito bem, faça isso. E faça o que lhe pedi, tenha certeza que só tem a ganhar.

— E como vou fazer isso? Eu já lhe disse, eu errei uma vez, fiz uma burrada, acabei matando um homem, mas não sou um bandido. Eu não quero voltar pra prisão!

— Só tem uma maneira: fazer a coisa certa. Pode deixar, eu vou ajudá-lo.

Fernando coça a cabeça, intrigado.

quinta-feira, julho 14, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 14º CAPÍTULO

No capítulo 13, Júlio refletia sobre a personalidade de Rosa, que em poucos dias, conhecera como uma mulher com traços distintos, de acordo com a situação. Se havia alguém mais estranho naquela cidade, era a maestrina, pois um dia era uma pessoa cordata, tranquila, atendendo o pessoal do hotel com esmero e cuidado, bem como, segundo diziam, uma regente do coral com muito talento.Noutro, era uma mulher assustada e ao mesmo tempo indignada, mostrando-se rancorosa e com muitos segredos. Talvez ela estivesse assustada não pelos crimes, que segundo dissera a afetavam profundamente, em virtude de algumas pessoas terem sido assassinadas por um criminoso que ingetava insulina em pessoas saudáveis. Talvez o outro crime fosse a causa de sua aflição, em virtude da presumível implicação de seu protegido. A partir de agora, publicamos o capítulo 14 de nosso folhetim policial.

Capítulo 14

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/bar-bebidas-álcool-geladeira-926256/

Ricardo dirigia-se ao estacionamento, quando sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo. Uma presença muito próxima, quase um bafejo na nuca, como se um espectro se aproximasse para atirá-lo do 3º andar da garagem. Olhou para os lados, mas não viu nada, apenas um barulho metálico, como se alguém deixasse cair uma ferramenta de metal. Respirou fundo e aproximou-se da sacada, tentando ver se alguém descia as escadas ou deixava o estacionamento naquele momento. O lusco-fusco do anoitecer produzia mais dúvidas do que certezas.

Ricardo então voltou para o veículo e ao entrar, um novo barulho, desta vez um estalido de madeira, acompanhada de uma pequena batida no bagageiro do carro. Desceu decidido a descobrir o que o assustava, quando ouviu uma gargalhada irônica que vinha detrás de uma coluna. Indignado, percebeu que Raul o esperava, zombando de seu ar surpreso.

— Puta que pariu, o que você tá fazendo aí?

Raul riu mais uma vez e aproximou-se amistoso, estendendo-lhe a mão. Ricardo afastou-se na direção do carro, ainda mais irritado.

— Desculpa, meu velho, não quis assustar você.

— Ah, não quis? e que significam estes barulhos e você escondido atrás da coluna? Não tem mais o que fazer?

— Mas eu não fiz nada, juro, com excessão da varinha que quebrei ainda há pouco. Vi quando você foi até a sacada, quase me mijei de rir.

— Muito engraçado pra quem não tem o que fazer. Nem vou discutir essa bobagem agora e vou embora, com licença.

Raul corre ao seu encontro, antes que ele ligue o carro e desça a rampa.

— Espere, Ricardo, preciso falar com você.

— Sinto muito, mas tenho compromissos. Vou combinar a vinda de minha namorada no fim de semana.

— Então pode dar-me uma carona?

— Escuta, Raul, por que não volta como veio? Você não mora muito longe daqui.

— Por favor, meu amigo, eu lhe peço. Parece que se afastou de mim para sempre. Não conversa mais, não quer nem saber como estou passando.

— Pelo que sei, Raul, você está muito bem. Mas sabe como ando ocupado. Aconteceu alguma coisa?

— Sempre acontece alguma coisa comigo, você sabe. Depois que fui atacado por aquela gente, nunca mais tive sossego.

— Por que não foi à polícia?

Raul cala-se sem saber o que dizer. Em seguida, corre e senta-se no banco ao seu lado: — Então, vamos?

— Mas você veio até aqui, ao estacionamento do hospital, para pedir-me carona?

— Você pensa muito mal de mim, meu amigo. Vim pegar uma receita, você sabe que to sempre precisando de medicamentos. Quando saía, vi que você estava indo para o estacionamento. É um crime pedir uma carona a um amigo?

Ricardo reflete que não fará diferença se levá-lo até a sua casa, além disso, ele já se instalou ao seu lado e será muito mais difícil convencê-lo a sair.

Raul, entusiasmado o convida para tomarem uma cerveja.

— Você veio buscar remédios e quer tomar cerveja. E a sua diabete?

— A gente não pode se privar de tudo, você não acha?

— Eu não sou um desocupado como você. Não posso ficar bebendo por aí.

— Sabe que você às vezes é um chato?

— Sei, mas não posso fazer nada.

O carro desce a rampa da garagem e em seguida está na rua principal que desemboca na esquina do hotel de Ricardo. Raul prossegue, queixoso: — É que eu queria conversar com você sobre aquele problema.

— Por favor, Raul, não vá começar com esta história de crimes. Como se não bastasse aquele detetive me perguntando mil coisas e o pai de Taís me acusando. Chega!

— O detetive está fazendo perguntas, é? Mas a tal de Taís não passou de uma noite.

— Como você sabe?

— Eu sei o quanto ela se grudou em você. Eu sei que a garota enlouqueceu!
— Me diga uma coisa, Raul, ela costumava fumar maconha com você?

Raul dá uma risada sarcástica: — Isso é coisa que não se pergunta, meu amigo.

Ricardo imagina que seria melhor conversar com calma com Raul, talvez seja a oportunidade de descobrir se havia um envolvimento da jovem assassinada com o pessoal do coral. Precisava saber mais sobre Taís, com quem andava, o que fazia e Raul poderia ajudá-lo, por isso aceita o convite para a cerveja.

Quando chegam no bar, havia poucas mesas vazias, na verdade, talvez duas ou três. Raul escolheu a que ficava próxima à janela, que dava para a rua do lado.

Cumprimentou a moça da caixa, que sorriu atenciosa. Parecia que todos falavam com extrema euforia. Ricardo, de repente, sentiu-se num mundo paralelo, que não era o seu. Desde que viera àquela cidade, convivera com pessoas hostis, que demonstravam confrontá-lo a todo momento, inclusive no próprio local de trabalho, ou então eram inconvenientes, como era o caso de Raul. Ali, no entanto, todos pareciam afáveis e dispostos até a terem uma conversa amistosa com ele. Alguns até o cumprimentavam.

Raul, por seu lado, parecia muito feliz, mas quanto a ele, isso não significava uma grande mudança, pensou Ricardo. Pediu a cerveja, o que foi em seguida, atendido pelo garçom, um velho conhecido do amigo. Conversou algum tempo com ele e enquanto se afastava, Ricardo comentou.

—Parece que você conhece todo mundo aqui.

Raul sorriu, apenas acenou com a cabeça confirmando.

Ricardo tomou a cerveja, sentindo que a garrafa congelava os dedos. Perguntou, indeciso, se Taís participava do coral da igreja.

— Não, aquela lá não tinha estas pretensões. Por que você quer saber isso, Ricardo?

— Veja bem, cara, é muita enrolação. Eu acabei me envolvendo com os problemas da cidade, desde que cheguei aqui. Primeiramente, você quis encontrar-se comigo com aquela história do presumível crime da insulina, que a meu ver, não deu em nada.

— Ainda não sabemos. Essas coisas demoram.

— Depois, a sua mãe quis falar comigo, andava assustada com você.

— Minha mãe? Do que você tá falando, meu irmão?

— Desculpa, Raul, to cometendo uma inconfidência, mas ela me procurou sim, na noite em que você foi hospitalizado. Estava preocupada com você, mas não acreditava nessa história que você andava comentando sobre o ataque no parque, os caras da pet-shop. Enfim, ela acha que você inventou tudo e queria a minha ajuda. É isso.

— Mas que velha sacana! Ela fumou o quê pra lhe falar isso?

— E fiquei sabendo que ela contratou um detetive para ajudá-la. Aliás, o mesmo que o pai da Taís acabou contratando pra descobrir o assassino da filha.

— Puta que pariu, brother, que rolo! Ta todo mundo louco nesta cidade e eu é que fumo baseado!

— Sei lá, cara, às vezes acho que esse pessoal me odeia. Taís, você sabe, ficou no meu pé o tempo todo, a gente transou, não vou negar, só isso. Também não sou de ferro. Mas não havia nada sério entre nós e a menina inventou que eu a seduzi, que coisa ridícula. Como essa gente pode aceitar uma coisa dessas? Agora o pai anda por aí afirmando que a matei, que quer vingança. Ainda bem que o namorado desistiu dela em tempo.

— É, você ta encrencado, meu amigo.

— Eu não fiz nada, cara.

— Bom, então dê tempo ao tempo. Agora, quem sabe esse cara descobre que os donos do pet shop são os responsáveis pelos crimes.

— Mas segundo dizem, Taís foi empurrada da ponte.

— Será que estas histórias tem alguma relação uma com a outra?

— O que você acha, Raul?

— Não sei, meu amigo. Só espero que os crimes não continuem.

— Então me diga, você que conhece todo mundo na cidade. O que o namorado de Taís tem a ver com Rosa?

—Ih, meu velho, essa é uma história dificil de destrinchar.

— Como assim?

— Você fala do mecânico, né? O que eu sei é que eles tem uma ligação muito forte. Rosa é uma pessoa estranha, sabe? Ela se apega às pessoas de uma maneira tal, que se torna possessiva. Acho que é uma carência, sei lá.

— Mas ela é amante dele?

— Amante é uma palavra muito forte. Pode ser que ele tenha dado uns pegas nela.

— Parece que você não respeita ninguém, Raul.

—Eu? Mas é você quem está perguntando se ela é amante do cara.

— É o que ouvi falar, mas Rosa é uma pessoa sensata, uma mulher recatada. Também, que me interessa a vida dos outros, não é mesmo?

— O que dizem é que o cara tava procurando a mãe por aqui, na região, veio de longe o infeliz. Depois, não tinha onde morar, pediu ajuda e a Rosa acabou cedendo um apartamento que ela aluga. Mas o que o povo fala é que a mulher é apaixonada pelo mecânico. Mas o que isto tem a ver com o que a gente tava falando?

— Não sei, é que certa vez Taís comentou isso. Na hora, eu não acreditei. Rosa é uma das poucas pessoas desta cidade que tratou muito bem.

— E o seu amigo aqui, não conta?

—Claro, mas estou falando das pessoas que eu não conhecia. Vamos pedir outra cerveja e esquecer isso.

— Quem sabe a gente rememora as pessoas da cidade e os seus relacionamentos.

— Como assim?

— Como você disse, eu conheço todo mundo. Então, vamos pensar quem poderia ter interesse na morte da moça.

— Parece que quer me ajudar.

— Vou lhe contar uma coisa que você não sabe. Você já ouvir falar em Ana, né, a menina que encontrou o corpo ou que ouviu alguma coisa, sei lá.

— Sim, o detetive me falou alguma coisa sobre isso.

— Pois essa garota faz parte de um grupo com outros adolescentes. São alguns rapazes que usam drogas pesadas, sabe? Eles sempre faziam os luais à beira do rio e o cara que organizava tudo é um tal de Carlos, o filho do prefeito. Nestes luais aconteciam verdadeiras orgias sexuais, até uma garota de programa vinha da capital contratada por eles, para incrementar as festas.

—O que a Taís tem a ver com isso?

— Ela pegava as drogas com eles e participava das festinhas também. Pra você ver, que a moça não era tão santinha assim, pra ser seduzida por você.

— Mas então, todo mundo sabe disso. Por que o silêncio todo, até a polícia finge que não acontece nada!

— Não se esqueça, meu amigo, que o rapaz é o filho do prefeito.

— E você acha que algum deles possa ter matado a moça?

— Tudo é possível, meu amigo. Tudo é possível.

segunda-feira, julho 04, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 11º CAPÍTULO

No capítulo anterior, o detetive Júlio tomou informações com o médico Ricardo, que é acusado de matar uma jovem, que segundo o que dissera, se aproximara dele com uma intenção possessiva, a ponto de persegui-lo até mesmo no trabalho. O detetive também ficou sabendo que ela abandonara um presumível namorado, chamado Paulo, um mecânico da cidade, o qual tentara agredir o médico, mas que acabara entendendo que ele não era o culpado da situação. Por outro lado, havia uma jovem chamada Ana, de aproximadamente 14 anos que sabia alguma coisa sobre o crime. Júlio Ramirez então, prossegue a sua investigação no 11º capítulo a seguir. Divirtam-se com o nosso folhetim policial.

CAPÍTULO 11

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/ponte-grade-água-rio-1038830/

Júlio voltou para o hotel. Quem diria que estaria novamente na ativa, depois de ter afirmado tantas vezes para si mesmo que este era um tempo passado. Depois do almoço, a tarde se alongava e ele precisava seguir a investigação. Detestava as tardes, detestava os dias que se prolongavam como os de hoje e só se sentia bem à noite. Esta sim, poderia levar mais tempo do que o normal, poderia se estender infinitamente.

Decidiu então dar uma volta perto do rio, quem sabe não descobriria algum fato novo, que a polícia não houvesse encontrado?

Pegou o carro e atravessou a cidade. Não demorou muito pela área limitada. Em seguida, passeava pelas margens do rio, que hoje parecia um pouco mais calmo. Um vento fino fazia parte do cenário. Olhou para a pequena ponte ao longe e percebeu que uma menina estava encostada no parapeito, falando ao celular. Aproximou-se e ficou por ali, pensando tratar-se de alguém conhecido. Quem sabe um parente de sua família. A menina parou de falar e o olhou, um pouco assustada.

– Você costuma andar por estas bandas? Não é perigoso? – Perguntou, mostrando-se confiável.

– Aqui todo mundo se conhece. – Ela respondeu, displicente. Olhava para longe, os olhos grandes fixos no nada. Ele insistiu:

– Mas eu por exemplo, cheguei agora na cidade.

– Eu sei quem é. O senhor é o detetive que nasceu aqui, não é?

Desta vez, ela o encarou com um sorriso irônico.

– Acho que você tem razão. todo mundo sabe tudo de todo mundo, nesta cidade.

– Isso é ruim?

– Tem os dois lados.

– Você então sabe o que aconteceu com a filha do farmacêutico.

– Sim, eu estava aqui quando ela deu um grito, depois desapareceu.

Júlio abriu mais os olhos, satisfeito e engatilhou a exclamação:

– Ah, foi você. Que coincidência!

– Não é não. Eu venho todos os dias aqui.

– Ah, sim.

– Gosto de ficar aqui. Daqui a pouco, meus amigos virão também.

– Então, você a ouviu gritar, pedir por socorro?

– Não, foi um grito de dor.

– E onde você estava naquele momento, quero dizer, bem aqui, na ponte?

– Não, estava do outro lado, na fronteira da cidade. Aqui é o quase o limite, sabia?

– E naquele momento, você viu alguém passar aqui, perto?

– Na hora do grito, não. Uns quinze minutos antes, eu vi um carro parar no outro lado do rio. Depois desceu um homem e caminhou por lá. Não demorou muito, porque não o vi mais.

– Você reconheceu este homem?

– Pelo carro, era o médico, o dr. Ricardo.

– Você o viu?

– Com certeza, não. Estava uma neblina forte. Naquela noite, era impossível identificar alguém. Até mesmo eu, se alguém me olhasse do outro lado da ponte, só veria um vulto.

– Poderia ser outra pessoa, a noite vinha caindo, estava com neblina, como você mesma diz, então como pode afirmar que era o médico?

– Não posso afirmar nada, mas sei que era ele, porque o carro era dele. Um conversível desses importados. Ninguém tem um carro desse porte aqui na cidade.

– Está bem, mas quer dizer que você ouviu o grito e a queda na água?

– Acho que sim. Na água não da pra ter certeza, era muito barulho, ali tem a correnteza, o senhor sabe.

–Alguns minutos mais tarde, você viu o corpo flutuar, é isso?

– Eu achei que era, mas ele sumiu, foi parar quase no outro distrito. Então corri pra pedir ajuda.

– Não viu alguém por perto?

– Sim, meus amigos que vinham chegando. Contei tudo para eles e fomos até o centro.

– Me diga uma coisa, quantos anos você tem?

–Vou fazer quinze.

– O que você faz com seus amigos neste lugar deserto, posso saber?

–O que o senhor acha que se pode fazer numa cidade que não acontece nada, que só tem velho?

– Eu imagino, mas quero ouvir de você… Afinal, há muito o que fazer, pensando bem…

– O senhor já fumou baseado?

Júlio calou-se. Estava respondido. Observou que Ana se afastava um pouco e averiguava uma mensagem do Whatsapp, provavelmente. Foi até a ponta da ponte e esperou o grupo que se aproximava. Largou a mochila no chão e voltou a encostar-se no parapeito.

Júlio decidiu voltar para o hotel. Na verdade, o seu interesse maior era seguir adiante, ir para o centro da cidade, procurar a oficina e tentar falar com Paulo, o namorado de Taís, a moça presumivelmente assassinada. Dirigiu pensativo, lembrando das palavras da menina. Afirmava com absoluta certeza de que era o médico que andava nas redondezas da ponte, mais precisamente do outro lado da margem do rio. Talvez tivesse um encontro com a morta, quem sabe seria o último, porque precisava acabar com aquela história de uma vez por todas, segundo o que informara. Para ele, aqueles encontros organizados por Taís não passavam de uma verdadeira perseguição. Mas havia muito a pensar sobre esta história toda. Havia mais um elemento, o tal namorado chamado Paulo que trabalhava numa oficina mecânica. Era com ele que devia falar e por isso, resolveu procura-lo, antes mesmo de chegar ao hotel. Não demorou muito e estava lá. Deixou o carro na frente do grande portão e entrou no ambiente meio escuro. Parecia um galpão velho.

Um homem barbudo aproximou-se.

– Seu carro está com problemas?

– Não. Ou melhor, ele anda engasgando sim. Não sei se é o frio desta cidade.

– Faz pouco que o senhor chegou aqui?

– Só três dias.

– Vamos dar uma olhada. Por favor, levanta o capô.

Júlio olhou a placa onde estava escrito “Oficina Silva”. Perguntou ao homem, enquanto abria o capô do carro.

– Você é o Silva?

–Sou um dos. Somos sócios e somos Silva os dois. E olhe que nem somos irmãos.

–Ah, é normal. Este sobrenome é muito comum. O seu sócio é o Paulo?

–O Paulo? Não, aquele é um pé de chinelo. É nosso ajudante, só.

–E ele não está?

– Não, precisou ir na capital. Vai ficar lá uns dois dias.

– E você sabe o que ele foi fazer lá?

O homem o olhou desconfiado. Júlio explicou-se.

– Desculpe, não me leve a mal. É que estou procurando pelo Paulo, preciso falar com ele e gostaria de saber se vai demorar.

– Como eu lhe disse, uns dois dias. Foi acertar uns documentos, coisas do tipo.

–Ah, que bom. E onde ele mora?

–Mora com a mãe, uma viúva. a mãe, ou amiga, sei lá. O caso dele é complicado. Fica no final da rua principal.

– Então é a rua do meu hotel. Mas por que você disse que o caso dele é complicado?

O barbudo não respondeu. Falava sobre o carro, como se quisesse livrar-se do cliente indesejado.

– Moço, não tem nada no seu carro. Deve ter sido o frio mesmo, agora tá tudo bem. A gasolina está passando direitinho.

–Ah, obrigado. Me diga, como é o nome da mãe do rapaz?

_ Rosa.

–Rosa, a maestrina? A moça da portaria do hotel?

– Olha aqui, meu amigo, não sei se é mãe, a gente chama assim, mas é problema dele. É melhor perguntar pra ele.

– Sim, claro, só queria saber se é a mesma mulher.

– Pode ter certeza de que é, mas como eu lhe disse, é problema deles, nem sei se é verdade o que dizem.

– E o que dizem?

– Não posso lhe dizer nada. Não é da minha conta. Como lhe disse, pergunte pra ele, quando voltar!

terça-feira, fevereiro 09, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO IX

HOJE, TERÇA-FEIRA 09/02/2016, CONTINUAMOS O NOSSO FOLHETIM "PÁSSARO INCAUTO NA JANELA" COM O 9º CAPÍTULO.

Capítulo 9


Susana temia demonstrar o caos que estava sua mente e em seu coração. Quantas vezes viera à clínica, quantas vezes entrara naquele quarto de reflexos nas paredes, um quarto despido de vida, de sensibilidade, de sensações. Um quarto nu.

Entrou devagar, passos imprecisos, falseando o salto, como se obstáculos ocultos a impedissem de avançar, de se aproximar do homem que vivia distante, alienado, transbordando de dor e mágoa, ou apenas inerte, como uma poça dágua inatingível, escondida sob o alpendre, se deteriorando dia a dia.

Estava lá, na cadeira isolada na sala branca, de sombras esparsas na parede, como se o sol de vez em quando aparecesse entre as nuvens e produzisse figuras que passeavam indiscretas, incontestes sem qualquer censura. Figuras que não significavam nada, apenas a solidão, a apatia, o desapego dos vivos.

Ele a olhou como quem avista um objeto qualquer, um móvel, um livro já lido, um brinquedo velho, uma roupa usada. Logo desviou o olhar e se deteve nas mãos, examinando-as com cuidado, observando-lhes talvez as reentrâncias das veias que modelavam mapas frágeis, quase apagados. Mãos brancas, descarnadas, transparentes. Assim como a face, na qual Susana observava as veias azuladas, os olhos fundos, claros, com um brilho aquoso, disperso. A boca entreaberta, com falhas de dentes, o nariz saliente, vermelho, contrastando com a palidez do rosto. Examinava as mãos em direção à luz da janela, ora uma, ora outra. Às vezes, juntava-as em gesto de prece e punha-as no queixo, por alguns segundos. Logo desistia e prosseguia na posição anterior. Quando muito, cansava-se e abandonava-as sobre as pernas, vestidas em pijamas de algodão. Tão finas, tão frágeis, que escapavam da cadeira, os pés vez que outra, desandavam ao solo, caindo do suporte e assim, perdendo os chinelos de couro. Seus pés também tinham veias azuis e eram tão brancos e transparentes quanto as mãos.

Susana aproximou-se mais e pousou delicada, a mão nos cabelos raros, brancos sobre o couro róseo e talvez se observasse atenta, também veria veias azuis, como pequenos fios na iminência de serem rompidos.

Ele sorriu, reflexo do carinho inesperado. Mas ela não se animou: sabia tratar-se de reação instintiva. Doía ainda mais aquele sorriso desdentado, aquele olhar enfermo, quase infantil. Uma larva que se soltava do casulo, lentamente, metamorfoseando-se, despedindo-se da vida medíocre; quem sabe alcançando outra dimensão, tal como a borboleta, cujas asas pousam perpendiculares ao corpo, mostrando ao mundo o equilíbrio jamais acessado.

Em seguida, esqueceu o carinho. Voltou-se para a janela que jogava luz do pátio, fabricando sombras e deixou-se ficar, absorto, alheio a tudo, sem lembranças, sem passado, sem futuro.

Susana ficou ali, tentando lembrar a imagem do pai, no passado e carregar consigo apenas aquela, que lhe transmitia segurança, integridade, virtuosismo. Um homem que emancipara mentes, que programara padrões de comportamento, que nunca prescindira da realidade, que tratara os pacientes como indivíduos, revelando neles as capacidades que temiam enxergar. Agora estava ali, como um trapo inerte, um objeto obtuso, sem qualquer valor, a não ser deixar o tempo passar e consumir os momentos conclusivos de sua existência.

Afasta-se alguns passos e enxuga as lágrimas com o dorso da mão. Sente-se vergar como bambu ao vento, arremessado pela força invisível, cujas estratégias e comandos desconhece. Um peso que não consegue carregar com dignidade. Uma dor que corrói, avassala, destrói.

Suspira e passeia pela sala, tentando ver o que seu coração não admite: o mundo particular em que o pai se escondeu e dali não encontra saída, labirinto execrável, que também a envolve, que a esconde do passado, que a afasta do presente. Um mergulho irreal no cotidiano, vivendo do jeito disforme, estranho, de quem perde a fé, a esperança, o amor. De quem desconhece o sabor do carinho, do afeto, da chegada. De quem só avista partidas, cujas voltas nada significam a não ser o desvio da realidade para uma vida virtual que não é a sua. Nem a dele.

Aproxima-se novamente e o beija no rosto. Mais um carinho na fronte, mais um olhar nos olhos. Ritual que cumpre, apenas factível e rotineiro. Não queria permanecer ali, não queria aquela lembrança do pai, não queria assistir um fantasma, um corpo quase objeto. Repetiu os passos de volta, rapidamente e abriu a porta com cautela, sem fazer barulho. Ao torcer a maçaneta, porém, teve a impressão de uma presença, como se ele tivesse reagido de algum modo. Era apenas uma impressão, sabia. Um devaneio, um delírio. Mas havia algo estranho, um som inaudito, um sussurro, um suspiro inesperado. Largou a maçaneta, esfolando os dedos afoitos, voltou-se estarrecida. Ele virava o rosto em sua direção, fixando o olhar com ternura. Sua voz soou trêmula, sumida, mas com uma verdade tão lúcida, que a fez estremecer, segurando-se à porta. Suas pernas fraquejaram, seu coração antecipou-se, batendo desordenado. Seus olhos encheram-se de lágrimas. Seus ouvidos alertaram-se.

_Por favor, minha filha. Não me deixe perder a lucidez. Quando acontecer novamente, faça alguma coisa para o meu coração parar. Eu lhe peço. É um ato de amor.

Naquele momento, não conteve a explosão de soluços, como se as lágrimas se espalhassem, comportas fossem abertas, deixando evadir toda a mágoa e sofrimento. Era muito doído o que ele expressava. Mas ao mesmo tempo, muito humano e muito digno.

Não continha as lágrimas enquanto deixava o estacionamento do jornal. Naquele dia, especialmente, sentia-se desprotegida e só. O passado que revirava em virtude das conversas com Úrsula, inclusive a imagem desfocada do homem do prédio defronte, produziam em seu íntimo uma angústia que a oprimia. De repente, todas as culpas, todos os sentimentos estranhos de quem tomou uma atitude decisiva e inevitável, surgem em polvorosa, descambando por caminhos íngremes, irregulares, povoando a sua mente. Como se pisasse em charcos, moldando a lama, insurgindo-se entre ratos fugidios de bueiros ocultos, olhos reluzentes sob faróis inesperados. Sentia um arrepio estranho. Enxugava as lágrimas, tentando se recompor na presença do manobrista. Fez do pequeno espelho seu escudo, retocando a maquiagem, de modo a produzir um semblante tranquilo, escondendo o que seu coração oprimido revelava. Despediu-se rapidamente, enquanto outros colegas se aproximavam de seus veículos. O editor que havia discutido a pauta diária e ainda sugerido pressa na conclusão da biografia, correra ao seu encontro. Um homem magro, rosto fino e longo, olhos claros, argutos, de quem possui a sagacidade como instrumento preponderante de suas atitudes. Susana fingiu não vê-lo, mas o manobrista fez sinal com o apito, obrigando-a a frear o carro próximo a uma coluna.

O que aconteceu, Vinícius?

–Susana, acabei de obter uma informação importante sobre a sua biografia. Não podia deixar de avisá-la. Nem desci pelo elevador, pra poder alcançá-la mais rápido.

–Por que não ligou?

–Queria falar pessoalmente, é que se você quiser, podemos ir juntos. O lugar onde a fonte mora não é lá estas coisas de segurança. Um lugar meio mal afamado.

–De quem se trata?

–Um amigo do seu biografado. Parece que conhecia muito bem o Jaime. Pode ser até que você consiga outro viés da imagem dele.

–Você está muito interessado no meu trabalho.

–Sou o editor de reportagem, esquece? Que há com você Susana, to prestando um favor e parece não estar interessada!

–Desculpe, Vinícius. Estou muito interessada, sim. É que hoje foi um dia daqueles, você mesmo viu na discussão da pauta. Com a barafunda econômica que está o mundo, nós é que sofremos. Sim, porque atualmente, não há um especialista por área, todo mundo faz tudo, qualquer dia, um cara especializado em literatura, vai discutir economia.

–Que rebelião é esta, menina? Não se esqueça que sou o seu chefe.

–Está bem, chefe. Podemos conversar amanhã sobre a tal fonte?

–Eu pensei que poderíamos falar nisso mais tarde.

–Mais tarde, eu vou dormir. Agora, eu vou pra minha casinha e você pra sua. Só me diga o nome da pessoa, dona Úrsula pode conhecer.

–Parece que é um professor aposentado. Um tal de Gregório, se não me engano.

Quando se afastou do prédio, sentia a alma livre. Ainda observara a figura de Vinicius, conversando com o manobrista, todo sorrisos, como é do seu feitio.

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A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

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