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sábado, julho 20, 2024

Uma pessoa má

Não sou uma pessoa boa. Talvez tenha até boa índole, mas costumo procrastinar em várias circunstâncias de minha vida. E isso, eu sei, me torna uma pessoa má. Não má, a ponto de planejar algum malefício, ou mesmo, exceder-me em ímpetos de fúria. Mas como disse, postergar, atrasar, adiar providências. Quem sabe, atrasar alguns recados, algumas notícias adversas, algumas informações duvidosas, não fosse de todo mal. Mas, tenho a péssima mania de esquecer determinadas ações a que me propus e isso me torna uma pessoa má. Se não, vejamos, quem esqueceria de entregar figuras de santos em virtude de uma promessa para a saúde de alguém? Quem esqueceria de divulgar, espalhar e ampliar a fé para atingir um objetivo maior, se não, a melhoria da saúde da pessoa? Eu. Outro dia, encontrei centenas deles, espalhados em uma gaveta, hoje já não tão seguro de sua influência nos objetivos terrenos. Por outro lado, quem esqueceria dar um mimo para um amigo, após uma viagem? Como por exemplo a miniatura de um azulejo de Lisboa, a torre Eiffel ou a medalha de Lourdes? Quem os esqueceria no fundo de uma gaveta e um ano depois, os encontraria com o nome das pessoas citadas, enroladas com uma fita, indicando a lembrança do amigo? Eu. E tem aquelas roupas que separamos das usadas no roupeiro, deixamos limpas e perfumadas, guardamos numa sacola para uma futura distribuição nos dias frios e ficam eternamente à espera da correta ação. Quem somente lembraria quando uma alma atenta às atribulações humanas, comentasse dos dias difíceis de um inverno incessante. Eu. Mas faço-o sem planejamento ou organização. A doação ocorre no momento da dor, do sofrimento, do encontro, da imagem da pessoa, olho no olho. Talvez aí, ocorra a minha absolvição. Não sei. Ou talvez nada absolva meus erros, nem conforte meu espírito, talvez, quem sabe, uma virada de chave. Talvez eu precise apenas olhar para dentro de mim, observar as gavetas, mitigar as dores e encontrar as saídas.

quarta-feira, novembro 23, 2016

Passos de atriz

Ela atravessou a rua devagar, lembrando as velhas histórias do rádio. Seus cabelos grisalhos, a pele ressequida e marcada, pouco lembrava a figura brejeira dos anos 60.

Mas ainda tinha a paixão na alma e a vontade de desenterrar o passado e vivê-lo plenamente.

Sabia que não era possível encontrar os amigos, muito já mortos, outros vivendo perspectivas diferentes, burocráticas, mesquinhas e até medíocres.

Ela ainda tinha sonhos, embora sozinha, quem sabe restaurar o que de alegria lhe restava, de novidade e desejo se debater em buscas ainda não realizadas.

Estava velha, mas não cansada. E se vivia do passado, quem a poderia acusar?

Refletia o resto de luz que iluminava a sua mente e da qual não podia nem queria se livrar.

Uma chama frágil, mas densa, que a mantinha viva.

Considerava que suas roupas eram dignas, que o talhe era modesto, mas adequado para a ocasião.

Subiu a calçada, meio falseando o pé no salto alto. Nem tanto, o suficiente para uma senhora como ela.

Parou por um minuto admirando o velho teatro.

Paredes carcomidas pelo tempo e pela falta de manutenção.

Mas lá dentro, certamente, pulsava um coração flamejante.

Espiou pela bilheteria, mas não havia ninguém que pudesse auxiliá-la.

Bateu à porta, repetidas vezes, sem sucesso. Parecia tudo deserto.

Sentiu as pernas fraquejarem e um suor frio ensopar-lhe a fronte.

Encostou-se na parede rugosa.

Lembrou dos tempos em que o palco era a sua casa e o estúdio do rádio, o seu lugar de reflexão.

As novelas e seus personagens ecléticos.

A sua vida passada a limpo, lentamente. Sorrisos nos lábios, olhares para o diretor, soluços, lágrimas verdadeiras de emoção.

O suspirar de corações, o aguardar dos reclames. O bate-papo animado, o encontro enamorado. Tudo ali se passava.

Dali, da voz conhecida e bem colocada, à postura digna e austera no palco. Os aplausos. O carinho dos fãs.

Hoje, aqui, esperando que esta porta se abra e com ela, o grupo que a espera.

Depois, ao reencontrar os amigos antigos e novos, partilhará com eles o doce sabor das palavras ditas e benditas, jogadas à toa, respingando nos ouvidos mais taciturnos e fazendo balbuciar bocas omissas. Bradando verdades absolutas ou não, protestando ou trazendo à tona a emoção que surge como um rebento na planta procurando o sol.

Ali estará ela, finalmente entre os seus.

As horas passam, as portas não se abrem, nem as cortinas, nem a luz da ribalta se espalha e a ilumina.

Apenas o sol fraco do outono, quase inverno.

Alguns pingos finos, quase imperceptíveis se espargem feito água benta.

Ela resiste sozinha.

Alguém se aproxima. Então se anima ao ver ao avistar uma moça gordinha, vestida num uniforme comportado, que parece correr preocupada com o adiantado da hora.

Ela sorri um sorriso de atriz. Bonito, quase firmamento.

Coração palpitante e esperançoso.

A moça estanca na porta, abre a bolsa sintética, retira uma chave enorme e a enfia na fechadura.

A atriz a interpela com voz suave:

– Estava esperando você.

A moça sorri, mostrando os dentes amarelados.

– Quem bom! Quase me atrasei. Veio para a hora da benção?

Não consegue entender. Tudo fica nublado, obtuso. Teias de aranhas descem na chuva fina, empapando-se dágua. Ela tenta desviar, desvencilhar-se. Está confusa.

Pergunta pelo teatro, pelo grupo que encena, pelos artistas que se reúnem para o ensaio.

A outra sorri e responde conclusiva:

– O único teatro é a hora do descarrego, moça. Isso aqui agora é um templo. E me dê licença, que eu estou atrasada.

Ela ficou ali, parada e patética.

Deu uns passos miúdos, delicados, imprecisos. Uns passos de atriz.

E se afastou devagar.

terça-feira, junho 14, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 5º CAPÍTULO

Capítulo 5


Rosa investigava distraída o celular, quando Ricardo deu uma pequena batidinha no balcão. Ela assustou-se e pediu desculpas pela displicência.

— Não se preocupe dona Rosa. É que estou com um pouco de pressa, esqueci uns documentos no quarto e preciso sair rapidamente.

— Ah, sim. Já lhe dou a chave. Doutor, gostaria de participar do nosso coral da igreja? Olhe, não precisa ser cantor, basta ter boa vontade.

— Dona Rosa, além de eu não ter o mínimo de talento, tenho muito pouco tempo. A senhora sabe, o hospital…

— É verdade, é que a gente sempre está precisando de novas vozes para o coral. Mas quando puder, apareça lá, veja os nossos ensaios. E assim que houver uma apresentação para o público, pode ter certeza que o convidarei. Sou também a maestrina, sabe?

— Ah, sim, muito obrigado.

Quando está se afastando, Rosa ainda pergunta:

— Doutor, é rapidinho. Tem alguma notícia de Raul?

— Raul Soares? A senhora o conhece?

— Sim, este mesmo. Ele é meu colega no coral, disse que iria se apresentar na reunião, mas soube que esteve doente. Ele é meio maluco, mas nunca soube que tinha diabete.

— Está bem, deve dar alta hoje mesmo.

Ricardo subiu ao quarto pensando nas palavras de Rosa. Todos pareciam se conhecer nesta cidade, inclusive a mulher da portaria do hotel era também colega de Raul no coral. No quarto pegou as suas coisas, olhou se estava tudo em ordem e desceu com a intenção de afastar-se logo dali. Entretanto, Rosa ainda tinha outras perguntas.

— Não gostaria de incomodá-lo, mas sabe, um dia desses, Raul esteve na minha casa e bem, andou fumando maconha, sem eu saber. Resumindo, drogou o meu cachorro. Queria saber se é possível isso ou aconteceu alguma outra coisa com o meu animalzinho.

— Ele ficou bem?

— Sim, no outro dia estava normal, alegre como sempre.

— Então pode ser – Dizendo isso, despediu-se e afastou-se, concluindo a conversa. Rosa ficou olhando-o, pensativa. Deixou o celular numa prateleira sob o tampo do balcão e dirigiu-se até a porta envidraçada, observando a rua. Não havia nada interessante, pensou. No entanto, um homem que se aproximava do hotel, chamou a sua atenção. Percebeu tratar-se de um provável hóspede, por isso, voltou ao balcão, sentou-se e esperou que ele abrisse a porta.

Apresentou um amplo sorriso, quando o homem alto e de terno escuro entrou. Esperou que ele se apresentasse e perguntou quantos dias ficaria hospedado.

— Pretendo ficar alguns dias, ainda não sei ao certo. Talvez uns dez dias, mais ou menos.

Ela o olhou intrigada, mas não comentou nada. Afinal, quem se dignaria a ficar dez dias naquela cidade no fim do mundo? O homem esclareceu:

— Vai depender de uns negócios que pretendo fazer. Mas eu lhe direi mais tarde com precisão.

— Qual é o seu nome, por favor?

— Júlio Ramirez. Sou advogado, mas atuo como detetive. Rosa observou pelo documento, que o homem era da Capital. Preencheu rapidamente os dados no computador, imprimiu uma ficha e pediu que assinasse.

— Vou chamar o rapaz para ajudá-lo a carregar a sua mala.

— Não se preocupe. É só uma mala pequena e uma mochila.

Rosa surpreendeu-se, como ele pretendia ficar tanto tempo, trazendo aquela mala minúscula, mas isso não lhe dizia respeito. Entregou a chave com o número 703. Por fim, informou era bem antigo, com uma grade que devia fechar para que funcionasse. Júlio sorriu e acrescentou, satisfeito:

— Estive há pouco numa cidade que tudo era meio ultrapassado. Não se preocupe. Eu também nunca pensei que voltaria à antiga profissão e estou de volta.

— O senhor é advogado?

— Aposentado. E detetive também aposentado. – Concluiu com um sorriso. – Mas agora, parece que voltei à ativa.

Rosa gostaria de perguntar em qual das duas profissões, mas preferiu calar-se. Não era de bom tom intrometer-se na vida dos hóspedes.

Já na porta do elevador, o homem se voltou para a portaria e perguntou:

— Por favor, a senhora, como é seu nome mesmo?

— Rosa.

— Muito bem, Dona Rosa, eu ia perguntar... – Ela o interrompeu, rápida. – Rosa, por favor, me chame de Rosa apenas. Este dona me deixa muito velha – acrescentou, sorrindo.

— Pois não, Rosa… Você por acaso conhece uma senhora chamada Sara Soares?

— Sara Soares?

Rosa tentou lembrar-se de alguém com este nome. Apesar de ser bem conhecida na cidade, ela mesma não costumava recordar o nome das pessoas. Talvez até a conhecesse.

— Não importa. Terei muito tempo para encontrá-la. Rosa então lembrou que Raul possuía este sobrenome. Talvez se tratasse de algum parente, por isso, alertou:

— Espere, eu conheço um rapaz do nosso coral que se chama Raul Soares. Pode ser que seja algum parente. Júlio interessou-se fechando a porta do elevador e dirigindo-se até o balcão onde Rosa estava.

— Ele é casado? Tem filhos?

— Não, imagina. Aquele maluco é um solitário. Teve uma namorada, uma tal de Susi, mas o deixou faz tempo. Certamente não aguentou aquele traste.

— A senhora está bem irritada com ele, não?

— Ah, acho que estou incomodando-o. Não quero atrapalhá-lo, o senhor está chegando e nem o deixei subir até o quarto.

—Rosa, não se preocupe com isso. Eu sou um homem que adora conversar. Depois que me aposentei e fiquei viúvo, sabe, as coisas mudaram muito. Fiquei talvez tão solitário quanto esse seu amigo aí. Por que a senhora acha que a moça não o suportava mais?

— Dona, senhora. O senhor continua com formalidades.

— Sou um homem às antigas, mas já vou me corrigir. Por que você chamou o rapaz de traste?

— Na verdade, eu até gostava muito dele, mas de uns tempos pra cá, ficou fazendo coisas estranhas, sabe? Um dia desses, entrou na minha casa e estava com a minha chave, até hoje não sei como conseguiu. O que sei é que troquei todas as fechaduras, por precaução, claro.

— E por que ele fez isso?

— Queria falar comigo, estava muito nervoso. Mas deixa pra lá, não quero incomodá-lo, como já disse, sobre as histórias de Raul. Mas o que acha sobre o sobrenome? Ele mora com a mãe. Se quiser, posso me informar qual o nome dela. Se for Sara, fechou.

— Muito obrigado, Rosa. Não sei como agradecer-lhe.

— Então, por favor suba e veja se gosta do quarto. Ele dá para a rua da frente do hotel, é bom que você tem a vista da cidade.

— Sim, tenho certeza de que vou gostar.

Afastou-se e desapareceu no elevador. Rosa se perguntava se não teria falado demais. Afinal, nem conhecia o hóspede a ponto de fazer-lhe confidências. Entretanto, procurou o nome de Raul no celular e verificou se havia um número de telefone fixo. Em seguida, decidiu fazer uma ligação. Por fim, certificou-se de que seu palpite estava certo.

Rosa dedicou-se a pesquisar músicas no google, com a expectativa de mais tarde contar a a novidade a Júlio. Era um homem apessoado, pensou. Devia ter seus cinquenta e poucos anos ou mesmo sessenta e parecia bem disposto com a vida. Que estaria ele fazendo ali, naquela cidade pequena, sem nenhuma projeção no Estado, a não ser alguns crimes que ultimamente haviam ocorrido.

Dissera que era um detetive, mas quem o teria chamado. Seria a mãe de Raul? Era bem estranho, pensou.

Deixou as pesquisas de lado e decidiu espiar um pouco a rua. Foi até a porta e reparou que Seu Domingues, um velho conhecido, sentava no banco da praça, como sempre. Como aquele velho podia suportar o frio que fazia, sempre no mesmo lugar, olhando para o nada, mesmo num dia ensolarado como o de hoje?

segunda-feira, setembro 07, 2015

A FUGA DE MEU CÃO

Chamava-se Chacrinha. Nem sei por que cargas d’água dei este nome ao cachorro. Era um cusco preto, com uma pata branca, destoando das demais, meio peludo. Tinha um olhar atilado, uma boca enorme que se mantinha presa a trapos que eu puxava, segurando-o, levantando para o ar, dentes presos, respiração ofegante, peito saltando, olhar atento ao pano pendurado, sem descuidar para não perder a presa. Estava sempre assim, ao nosso lado. Corria comigo pelas ruas, enveredava por esquinas, metia-se em becos, quintais, ladrava com altivez e fugia no momento certo.

Num destes dias, em que as coisas acontecem sem que tenhamos qualquer intervenção ou pressentimento, fui à aula, pela manhã, com a pasta embaixo do braço, uniforme limpo, calças azul-marinho, frisadas, um lanche para o intervalo. Estava no horário de rotina à espera do coletivo que me levava até à escola, quando inesperadamente despontou na esquina, à toda velocidade, Chacrinha, correndo ao meu encontro, sem que eu pudesse detê-lo.

O ônibus dava sinais de estacionar e eu o expulsava em absoluto desespero, que para maior desgraça, ele parecia entender ao contrário, fazendo festa, pulando em minha roupa asseada, querendo participar como sempre de minha vida. Entrei no ônibus, na esperança que ele voltasse, desaparecendo na esquina, entretido com outras mensagens que pudessem surgir no momento, talvez uma cachorrinha alegre que despertasse interesse ou o cachorro imenso do vizinho, que latia como um trovão, afugentado-o em definitivo. Nada disso aconteceu. Quando sentei-me num banco, logo após à cadeira do cobrador, ele saltou para dentro do veículo, acomodando-se exatamente embaixo, junto a meus pés. Algumas pessoas brincavam que ele deveria pagar a passagem, outros olhavam de soslaio, desconfortados com o animal, assim alojado no mesmo ambiente. O cobrador já se inquietava em seu lugar, mexendo os quadris, adequando-se para solicitar a passagem para a frente, já que se esgotavam rapidamente as acomodações. Vez que outra, olhava para trás, na tentativa de enxergar o animal que se aninhava, encolhido, sem se mexer. Chacrinha, às vezes, observava atento, para o alto, aliviado, como se entendesse que estava no seu direito. Em seguida, baixava a cabeça, sisudo, conformado em apenas proteger-me. O cobrador, por sua vez, encarava-me com ar de censura, mas não tinha mais tempo de fazer qualquer reprimenda, porque as pessoas já se acotovelavam no corredor, centenas de meninos que iam para a escola em seus uniformes coloridos, outros tantos operários, comerciários, comerciantes, bancários, professores, enfim, o povo que se juntava na mesma hora para chegar a seus locais de trabalho. O pior de tudo é que se alguém se aproximava, o cão rosnava, com uma empáfia e coragem, como se me defendesse. Eu suava frio, imaginando que a qualquer momento, ele morderia alguém, ou mesmo que o colocariam para fora, na próxima parada.

Meu tormento durou mais ou menos 30 minutos. Desci um quarteirão antes da escola, aflito para me ver livre daquela inquietação. Desci contrito, coração apertado, culpado, por ter abandonado o meu cachorro, fingindo que não era meu, às pressas, quase fugindo do veículo. Mas na verdade, ele me seguiu, esgueirando-se por entre as pernas, sapatos, botas, alpargatas, torcendo o corpo lustroso e atingindo os degraus rapidamente, chegando em seguida ao meu encontro. Nada porém, me consolava. Afinal, ele estava ali e eu não poderia mandá-lo embora. Como voltaria, como encontraria rastros, cheiros, faro, se havia vindo de ônibus. Meu cão seria abandonado em plena via pública e não voltaria jamais para casa.

Deixei que entrasse na escola e subi rapidamente as escadas em direção à sala de aula. Ele se perdeu de mim, mas logo encontrou diversão, correndo no pátio através dos meninos que chegavam e se permitiam na algazarra, divertindo-se, nas horas iniciais, anteriores ao toque da sineta. Chacrinha corroborava para esta festa. Eu, lá de cima, a tudo observava, triste, temendo deixá-lo sozinho e perdê-lo para sempre, principalmente porque o inspetor da escola o enxotou, imediatamente, ao sinal da campainha. Não fiz nenhum gesto para ajudá-lo, defendê-lo, salvá-lo do desconhecido, das ruas estranhas onde não deixara faro, das diversidades, dos automóveis, dos homens que talvez o chutassem, correndo-o de suas casas ou dos outros cães, maiores e mais ardilosos, capazes de expulsá-lo de seus reservados.

Com este sentimento, entrei na sala de aula. Não me concentrava em nenhum assunto, nenhuma conversa entre os colegas ou qualquer ensinamento dos professores. Só via a imagem de Chacrinha, perdido nas ruas da cidade.

Voltei para casa, taciturno, com a pasta em desalinho, tal como meus pensamentos. Papéis se juntavam amarfanhados a cadernos dobrados, lápis misturados a canetas, borrachas e transferidores. A desorganização imperava. Meus pensamentos divagavam e as ruas me pareciam extensas demais e o caminho extremamente longo e o tempo quase eterno. Da esquina, avistei minha casa. Tudo parecia em ordem. As árvores não se mexiam, pelo contrário, desenhavam tacitamente sombras na calçada, elaborando uma tarde que se aproximava devagarinho, provavelmente vistosa, num dia de primavera. Em minha alma, entretanto, o inverno enregelava os sentimentos.

Tirei a chave do bolso, na tentativa de abrir o portão de ferro, esperando que as expressões tristes da família. Mas, eis que um som surdo e abafado, como se um corpo se debatesse me despertou a atenção. Por um momento, pensei que estivesse sonhando e que meu cachorro houvesse voltado para casa. Quando abri, a certeza se solidificou. Ali estava ele, feliz, lambendo-me as mãos, batendo as patas em minha pasta, sujando minha roupa. Havia voltado, nem sei como. Minha mãe dissera, que por volta das dez horas ele aparecera, esbaforido, língua pra fora, extenuado. Então se confirmara que ele não voltara de ônibus.

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A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

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