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domingo, outubro 16, 2016

A experiência humana no filme “De porta a porta” (Door to door)

O filme “De porta em porta” (Door to door), de 2002 do diretor Steven Schachter ( Sem suspeita, Atraídos pela fama, Lady Killer entre outros) mostra a história simples e humana de Bill Porter (William H. Maci), portador de paralisia cerebral, que pretende tornar-se um vendedor.

As dificuldades de Bill são gritantes e proibitivas, pelo menos aparentemente em tornar-se um eficiente vendedor de porta em porta.

Entretanto, com o desenrolar da trama, ele consegue tornar-se um dos maiores vendedores de sua época, mas apesar de sua facilidade em comunicar-se, a vida é muitas vezes injusta e para ele, o passar do tempo pode piorar as coisas.

Bill, no entanto, sabe sobrepujar as suas dificuldades e tornar-se um vencedor.

O filme desenvolve uma narrativa densa, estruturada de forma a delinear situações que vão mostrando ao espectador a metamorfose que ocorre na comunidade, paralelamente à transformação que também ocorre no protagonista.

Aos poucos, ele interage com a comunidade através de suas vendas, mas mais do que isso, através de seu carisma, alinhavado num carinho cheio de humanidade. Aliado a isso, suas atitudes não demonstram qualquer censura ou preconceito à conduta dos que o rodeavam, embora houvesse sofrido preconceitos nem sempre dissimulados, em muitas oportunidades.

Mas a história anda, evoluindo com o passar do tempo, numa analogia ao progresso interior dos personagens e das mudanças tecnológicas que surgiam.

É neste momento, que Bill quase se deixa esmorecer, ao perceber que a sua comunicação precisa não mais bastava, em virtude das novas demandas da sociedade.

A partir dessa condição de sofrimento, ele recebeu em contrapartida o reconhecimento de sua amiga, uma assistente no trabalho de vendas, ajudando-o a reconstruir a sua vida.

Ele relutou exaustivamente em reconhecer que havia outras saídas, que também precisava da ajuda, do carinho e do conforto que sempre soubera transmitir.

Esta caminhada em busca do próprio desalento o levou a descobrir o verdadeiro significado de sua vida e luta pessoal, pois através dela soube dialogar com a comunidade e modificar atitudes arraigadas, pensamentos preconceituosos e vencer a intransigência.

Foi aí o seu ganho pessoal.

Trata-se de um filme denso, com belíssimas imagens de época, uma luminosidade marcante e uma trama comovente.

O filme nos instiga a pensar no outro como um processo desafiante a partir da aceitação de suas deficiências e perceber que as imperfeições da alma podem ser bem mais destruidoras do que as físicas.

Um desafio a compreender e participar da experiência humana, seja de que forma for.

sexta-feira, setembro 16, 2016

Resenha sobre o meu romance “O eclipse de Serguei"

O romance “O eclipse de Serguei” produz a sensação ao leitor de estar incluído num mundo complexo e cheio de veleidades do qual não faz parte. Um mundo da ficção.

Entretanto, com o desenrolar da trama, é possível perceber que o mundo que se apresenta está bem ali, ao alcance da mão, ao folhear das páginas, é o nosso mundo real, onde transitam diversos personagens que podem ser as pessoas com as quais convivemos: o porteiro de nosso prédio, o professor da escola de nossos filhos, a vizinha ao lado.

O eclipse de Serguei é assim ousado, revelando a realidade crua de nossas vidas, nas quais a violência latente campeia devagar, insinuando-se em nossas relações, condutas e preconceitos.

No entanto, esta realidade acontece de uma maneira suave, sem pressa, de tal forma, que nos cativa e remete a um cenário muito peculiar e ao mesmo tempo familiar, inferindo em cada página, o desejo de nos inteirarmos das tramas desenvolvidas.

Há, sem dúvida, a emoção desenhada na cada fala dos personagens, nas descrições mais apuradas das situações apresentadas por personagens complexos e simples, como nós.

Uns, cheios de vida, idealismo e esperança, outros destituídos do senso de humanidade, centrados em seus sentimentos de posse ou convicções retrógradas.

Todos fazem parte da cultura embasada no fundamento falso de vida moderna, da aparência e da vantagem imediata, na qual o homem tem involuído ao invés de crescer.

Assim é Serguei, um homem que acredita fielmente em seu lugar na sociedade, como homem branco, de classe média, acostumado a seguir um código padronizado, há muito registrado em sua mente.

Possui uma vida medíocre, calcada nos conceitos mais primários, alicerçada na vontade imperiosa da mãe e do sentimento de solidão advindo de sua infância perdida.

Dois acontecimentos parecem ter embotado a sua criatividade e a vontade de lutar por si próprio: a perda do esperado fenômeno do eclipse solar e o desaparecimento estranho do pai, um militante de esquerda.

Serguei desempenha atividades monótonas num cartório e através de uma brecha de criatividade, exerce as funções de atendente num turno da biblioteca de um museu, pois considera que aqueles documentos tem uma história para contar.

Fica dividido, quando através da genealogia da noiva, Beatriz, descobre que a mesma é judia.

Influenciado pelas ideias conservadoras da mãe, sempre se dedicara a pensar que sua origem fosse mais nobre do que a da maioria dos mortais.

Para completar, em meio há tanta mediocridade do cartório, desfilam personagens como o funcionário puxa-saco, Anselmo, o próprio chefe, o Sr. Oliveira, do qual Serguei nutre uma admiração pelo poder que exerce e ao mesmo tempo uma certa desconfiança, o misterioso homem do café, que tem o sugestivo nome de Adolf, Dóris, a secretária que desempenha estranhas atividades e que vem a ser sua aliada, chegando a morar em sua casa, detentora de um plano fantástico para a sua liberdade e finalmente, talvez o único personagem íntegro e que possui dotes de inteligência,um negro, fato que deixa Serguei cada vez mais intrigado.

O clima de insatisfação vai crescendo até que ele descobre que Gomes, o funcionário do cartório que se suicidou, era muito parecido com ele.

Finalmente, se depara com a comunidade do cartório, e percebe que atrás daquele grupo bem costurado, há um líder, que pensa como ele, e por isso, considerado o “escolhido”.

Para tanto, chega um momento, em que ele não vê saída, a não ser assumir o seu lado neonazista e por ironia do destino, acaba encontrando no seu caminho perturbado, um homossexual.

Chegou a hora de se tornar um verdadeiro baluarte de sua verdade tantas vezes oprimida.

Torna-se um skinhead, seguindo os preceitos da mãe.

Finalmente, descobre que tal como o eclipse, que se dissipara, o seu passado não passava de uma nuvem de poeira forjada, insossa, padronizada, culminando com a descoberta do verdadeiro delator das atividades clandestinas de seu pai.

A quem seguiria Serguei?

Quem era ele afinal?

e-mail do autor: gcgilson4@gmail.com

quinta-feira, julho 07, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 12º CAPÍTULO

No capítulo anterior percebemos que as tramas se desenvolvem de modo a comprometer várias pessoas e parece que todos se acusam sem a menor preocupação. Embora alguns sejam reticentes, como um dos Silva, o dono da oficina, algum detalhe sempre é revelado, como o fato de Rosa ter um caso com o mecânico que trabalha com eles. Por outro lado, Júlio conseguiu algumas revelações de Ana, que vira o carro do médico no dia do assassinato de Taís. Aproveite o 12º capítulo de nosso folhetim policial.

CAPÍTULO 12


Rosa, a maestrina e porteira do hotel teria realmente alguma relação com o tal mecânico chamado Paulo? E o que ele estaria fazendo na capital? Teria a ver com a tragédia da filha do farmacêutico? Júlio não consegue parar de pensar no que ouvira, do homem da oficina, de Taís, do médico e da própria Sara, que o havia contratado e também acusara Rosa. Todos pareciam saber de tudo e falavam à meia boca. A não ser Ana, a jovem, que se revelava bem objetiva nas respostas. O que havia de tão misterioso nesta cidade? O que todos queriam esconder?

Júlio decidiu fazer o lanche habitual para depois dirigir-se à casa de Rosa, que hoje não viera ao hotel.

O garçom se aproximou amistoso.

– Então, gostou do lanche?

– Tanto quanto ontem. Perfeito.

– Acho que na alta temporada, o patrão vai aceitar a sua sugestão de lanche e começar a servir todos os dias para todos.

– Hum, boa ideia.

– Só que pra ser sincero, não acredito que dê certo. Aqui neste fim de mundo, nem no verão vem muita gente. Uma meia dúzia de gatos pingados.

– Você… Como é o seu nome mesmo?

– Anderson.

– Anderson, você sempre morou aqui?

– Eu nasci aqui, morei uns meses na capital, mas não me adaptei. Acabei voltando.

– É, a vida é dura. Na cidade grande, a gente tem que ter uma boa estrutura.

– O senhor falou tudo.

– Anderson, eu gostaria de saber onde mora a senhora que trabalha aqui no hotel, a da portaria.

– Ah, a Rosa? Sim, claro. Mora nessa mesma rua, umas seis quadras adiante.

– Ela é a mãe de Paulo, o mecânico?

O rapaz sorri, irônico:

– Dizem que é mãe dele, mas é o que a cidade quer ouvir. Ela é uma mulher madura e o povo não aceita.

– Não aceita o que?

– Que ela seja amante dele.

– Amante?

– Sim, preferem que seja mãe. É uma gente muito tacanha.

– Mas como vão dizer que é mãe se no passado, nunca a conheceram como mãe dele.

– Vai pensar o quê? Essa gente é maluca. Preconceituosa e louca, isso sim. Pra eles, o que vale é a aparência. Não importa se a pessoa é puta ou ladra, o que vale mesmo é como ela se apresenta na sociedade. Mas falando do Paulo, o que dizem, que o verdadeiro problema é que ele veio pra cá, procurando a mãe que não via desde pequeno. Encontrou essa tal de Rosa e ela o ajudou alugando um dos seus apartamentos. Dizem por aí, que ele nunca pagou nada e para completar, todos passaram a dizer que ela era a mãe dele.

– Que coisa absurda, você não acha?

– Tudo nesta cidade é absurdo, doutor.

Júlio voltou para o quarto para tomar um banho e trocar de roupa, quando recebeu uma ligação no quarto. Esperava que fosse seu amigo Jairo justificando ter dado o seu nome ao farmacêutico para investigar o caso. De todo modo, foi uma boa medida. Afinal, seria recompensado e cobraria uma bela quantia ao pobre homem. Não poderia é ser desonesto com a tal Sara Soares e deveria rescindir o contrato. Por outro lado, havia um caso concreto, um homem que precisava encontrar o assassino da filha ou pelo menos, saber o que tinha acontecido. Quanto à Sara, tudo o que dissera parecia ser uma justificativa para vingar-se de Rosa. Ele precisava esclarecer o crime, pois os fatos transcorriam de modo a condenarem uma pessoa inocente, como o médico ao qual o farmacêutico acusava com tanta veemência. Até que provasse o contrário, qualquer um seria o culpado, até mesmo a própria maestrina, como alguns suspeitavam. Também havia a hipótese da jovem ter se suicidado. Ou quem sabe, fora um acidente? O telefonema, porém não era de seu amigo e Júlio surpreendeu-se em saber que Rosa estava ligando para ele. Não pretendia sair àquela hora, deixaria a conversa com a mulher para o dia seguinte, mas ela demostrava muito interesse em falar-lhe. Na verdade, não se pode perder a oportunidade quando aparece assim, pensou o detetive. Talvez fosse um fato novo e se a maestrina queria tanto falar com ele, é porque havia alguma coisa a ser investigada.

Algum tempo depois, Júlio estava na frente do portão de grade, esperando ser atendido. Observou que uma luz se acendeu bem ao fundo, no interior da casa, deixando um pequeno foco para a calçada de lajotas. Olhou em torno e percebeu os olhos de um cão que o observava em silêncio. Tocou a campainha novamente e o animal rosnou sem mover-se. Rosa, em seguida apareceu, pedindo que o detetive aguardasse que ela levaria o cão para uma área, ao lado da casa. D’tartagham era um cachorro tranquilo, mas não se pode confiar, informou Rosa sorrindo.

Júlio voltou-se para o carro, que deixara sob o holofote de um poste e ficou esperando por Rosa. Por um momento, pensou o que estava fazendo ali. Um homem de sua experiência, de repente, atender o chamado de uma mulher, que poderia se configurar numa cilada. Respirou fundo. Ajeitou a gola rolê, cobrindo ainda mais o pescoço, fechou o paletó e aguardou que ela voltasse, com certa ansiedade. Em seguida, tentou desvencilhar-se daqueles pensamentos que imaginava serem absurdos, afinal, quem era Rosa, uma professora, maestrina do coral da igreja e em alguns dias da semana trabalhava na portaria do hotel. Como poderia pensar em alguma cilada de uma mulher como aquela? Por outro lado, jamais poderia imaginar numa história tão absurda com o mecânico da oficina, contudo, sempre fica a dúvida, afinal quem pode entender a psicologia humana? Cada um é como é, pensou. Nisso, Rosa apareceu, abriu o portão de ferro e pediu que entrasse. Júlio sentou-se numa poltrona próxima à área onde estava o cachorro e mesmo na escuridão podia ver os olhos do animal pela vidraça da janela, o qual parecia à espreita de algum movimento. Ao mesmo tempo, talvez pela área desembocasse alguma brisa, pois sentia o ar escasso no ambiente. Ela entendeu a dificuldade de Júlio, pois perguntou se queria que abrisse a janela.

–Se acha que não ficará muito frio, preferiria sim. - Respondera, agora mais tranquilo.

Ela abriu um pouco a persiana, depois sentou-se no sofá a sua frente. Antes perguntara se ele não gostaria de uma bebida.

–Não, não, obrigado. Acabei de fazer um lanche substancioso. Bem, parece que você queria falar comigo, Rosa.

– Pois é, pensei inclusive que o senhor não viria. Deve ter tantos compromissos e eu incomodando-o uma hora dessas. Mas é que não gostaria de falar-lhe no hotel, muito menos na igreja, onde temos o coral. Lá há sempre muita gente, principalmente neste horário.

– Não se preocupe, Rosa. Se eu não pudesse, diria na hora em que me convidou. Parece que você está preocupada com alguma coisa.

– Pra falar a verdade, estou sim. O senhor sabe que eu sou maestrina do coral da igreja.

– Sim, e pelo que me consta tem um bom grupo lá.

– Sim, por isso tenho muitos conhecidos, alguns amigos de algum tempo.

Júlio aquietou-se, esperando que ela falasse. Percebeu que Rosa estava disposta a contar-lhe alguma coisa muito grave, mas não poderia apressar os fatos.

Rosa levantou-se, foi até a janela que ficava na outra extremidade da sala e observou a pouca luminosidade do jardim. Perguntou, displicente:

– O senhor reparou com o meu jardim é escuro? Já mandei trocar as lâmpadas várias vezes, mas os marginais que passam por aqui jogam pedras e acaba nisso, nessa escuridão. Já estou desistindo, sabe?

– Mas é uma cidade tão pequena. Não reconheceram os vândalos?

– Ninguém dá a mínima para o que acontece com a gente, nessa cidade. Eu posso ser assassinada, posso morrer a qualquer momento e ninguém faz nada.

– Você parece muito nervosa, Rosa.

Rosa voltou a sentar-se e pôs as mãos na cabeça, como se fosse chorar, num gesto que parecia de desespero. Num segundo, porém, se recompôs e após um longo suspiro, levantou a cabeça, encarando Júlio de um modo bastante grave. A seguir, perguntou, disfarçando o nervosismo:

– Tem certeza de que não quer alguma coisa, detetive? Posso servir um suco.

– Não, não, como lhe disse, Rosa, para mim está de bom tamanho. Quero apenas conversar com você, saber o que lhe aflige, por isso vim aqui.

Ela permaneceu em silêncio, como se temesse prosseguir no assunto. Júlio então, a encorajava:

– Você me disse que tem muitos conhecidos no seu grupo, alguns amigos. E então, queria falar sobre isso, não?

– Sim, entre os meus amigos está o Pe. João. Ele é uma pessoa boníssima, tem os seus defeitos, como todo mundo, mas tem se mostrado um grande amigo.

– Há outras pessoas que considera amigas, dentro do coral?

– Eu tinha uma grande amiga, a esposa do Seu Domingues.

– E ela deixou de sê-lo?

– Infelizmente, ela morreu. Não sei se o senhor teve a oportunidade de conhecer o Seu Domingues? – Júlio acenou negativamente e ela prosseguiu. – É um velhinho muito querido aqui da cidade, o senhor vai encontrá-lo sempre jogando damas na praça ou então sentado tomando sol. Também passa muitas horas na loja de conveniência, onde trabalha uma nossa colega do coral, Marília.

– Por que ele fica lá?

– Aquela loja era dele há muitos anos. Tinha um posto de gasolina, a loja e até uma farmácia. Quando a mulher morreu acabou vendendo tudo, vive sozinho num apartamento, mas gosta de ficar na loja, tomando um café e conversando. Isso, quando está de bom humor, porque de uns tempos pra cá, anda muito amargurado.

– Pela morte da mulher?

– Pela idade, pelas dificuldades que possui como todo idoso, naturalmente e claro, sim, pela morte da mulher.

– É normal, você não acha?

– Até certo ponto, sim, mas é que segundo ele, tem outros motivos.

– Outros motivos?

– Bem, dizem que a mulher morrera em virtude de um erro médico. A coitada tinha diabete e parece que o médico deu uma dose errada, sei lá, uma coisa meio absurda, sabe?

– Este médico que atualmente é residente no hospital?

– Sim, o dr. Ricardo. Mas isso não aconteceu agora, foi no tempo em que ele era apenas um estagiário. Tinha se graduado, mas ainda não havia passado na prova de residência, por isso ficara estagiando por dois anos na cidade. Pelo menos, é isso que dizem.

– Esta história é comentada na cidade ou apenas pelo tal de Seu Domingues?

– Dá na mesma, detetive. Todo mundo sabe o que acontece. Seu Domingues deve ter comentado com alguém, e certamente passou de um para outro e todos acabam falando a mesma coisa.

– É, falam de todo mundo. Mas me diga, Rosa, o que a deixou preocupada, além das histórias de seus amigos, deve haver alguma coisa que diga respeito a você?

– Por exemplo?

Júlio pensou em disparar rapidamente, a palavra Paulo, o mecânico, mas se conteve. Não era o momento de abrir o jogo. Precisava saber mais, descobrir o motivo do chamado de Rosa. Então, deu meia volta e remendou:

– Por exemplo, pessoas do seu grupo que a importunam. Pensei que um desses a incomodasse, ou que a deixava apreensiva.

– Bem, acho que o senhor tem razão. Mas falei na mulher do Seu Domingues, chamava-se Lorena, sabe, era uma criatura dócil, amiga. Isso me deixou apreensiva, sim, porque é o caso da diabete. O senhor deve saber que há casos de pessoas que morreram envenenadas com insulina, nem sei se se pode afirmar assim, chamar de envenenamento, mas aconteceu de pessoas que não tinham a doença, morreram por terem sido injetadas nelas o medicamento.

– Isso foi provado?

– A polícia está investigando. Alguns casos foram arquivados. Não há como provar, sabe.

– Você acha isso possível?

– Eu fiquei pensando neste caso da Lorena. E depois me falaram de outros casos semelhantes, não de erro médico, mas relacionados à insulina. Para encurtar o caso, detetive, eu estou com medo, porque hoje fui ao médico, fiz uns exames e descobri que estou com diabete. Eu estou com medo de morrer doutor!

– Rosa, você se deu conta que há dois tipos de crimes na cidade e que um determinado grupo de pessoas chama a atenção e dá muita importância a um tipo de crime e outro grupo está muito preocupado com o outro.

– Como assim, detetive?

– Há estes crimes que você descreveu, sobre pessoas que foram, segundo o que se comenta, injetadas com insulina e morreram por não possuírem a doença, não é isso? Há outras pessoas que falei, como Sara Soares e parece que seu filho também foi vítima disso, embora não tenha conversado com ele ainda.

– O senhor se refere a Raul.

– Sim, parece que ele faz parte do coral e é muito amigo seu, não?

Rosa parecia desconsertada. Caminhava de um lado para o outro da sala, como se não soubesse o que dizer.

Júlio concluiu:

– Mais tarde, eu faço questão de falar sobre ele, mas quero completar o meu pensamento. Falei no primeiro tipo de crimes que estão acontecendo aqui, mas há um outro, que se refere a uma moça que foi assassinada ou se suicidou, não sabemos, mas é um caso que envolve alguns suspeitos e muita dúvida pela polícia. Há um pai em absoluto desespero, que quer justiça. Há um médico, este mesmo que é residente na cidade, que está sendo acusado e ninguém fala, a não ser algumas pessoas interessadas no assunto. Você entendeu o que eu quero dizer, Rosa?

–Eu soube sobre o crime sim, mas para mim, a polícia está investigando e vai chegar a uma conclusão. Mas no primeiro tipo, como o senhor diz, a coisa está muito obscura. Por isso, eu estou com medo. E quanto ao médico, ele me parece envolvido nos dois tipos.

– Mas vamos falar sobre o seu amigo Raul.

Rosa respirou fundo. Não gostaria de falar em Raul. Como dizer-lhe que a presença de Raul a deixava feliz, que era uma pessoa muito bem integrada no curso, o único que não professava a religião católica, mas que gostava do que fazia. Estava sempre pronto a aprender novos acordes, aceitava as críticas, era um participante que ajudava ao crescimento do grupo.

– E você Rosa, eu lhe peço que seja sincera, já que pretende que eu possa ajudá-la de algum modo. Você gostava de Raul? Quero dizer, sentia alguma atração por ele, como homem?

Rosa rapidamente corou, sentindo-se pouco à vontade com a pergunta de Júlio, mas tentou responder com firmeza.

– Eu sou uma mulher madura, detetive, ele é um homem que talvez tenha os seus trinta e poucos anos.

– Mas e daí, isso interfere em alguma coisa?

– Não sei, pode ser que não, mas em se tratando dessa cidade…

– Deixemos a cidade de lado e o que o povo pensa desse tema. Responda objetivamente a minha pergunta, por favor.

– De modo algum! - Responde categórica. - Ele foi um bom amigo, apenas. Sentia uma atração por ele, não vou negar, mas não fisicamente. Era uma coisa de carência, de querer ajudá-lo, talvez até meio materna, mas nunca passou disso.

– Você disse que ele era um bom amigo, então deixou de sê-lo?

– É uma longa história. Raul andou me apresentando, sabe? Começou a fumar maconha, talvez tenha sempre usado, mas ficou meio irresponsável. Certa vez, entrou em minha casa com a minha chave, drogou o meu cachorro, a partir daquele dia, fiz tudo para que saísse do coral. Só que nesse meio tempo, segundo o que dissera, tentaram matá-lo, injetando insulina, como nos outros. Só que ele não morreu, porque tinha a doença e os criminosos não sabiam.

– Então a coisa é mais séria do que pensamos. Precisamos fazer um relatório, vou tentar pegar informações com a polícia sobre esses casos. Entretanto, estou muito preocupado com o outro caso.

– Antes detetive, me diga, não acha que estou com razão por ter medo? Se descobrirem que sou diabética, poderão me matar também!

– Mas quem faria isso? Qual seria o motivo para matar todo mundo que tem diabete, embora pelo que entendi, só morre quem não tem a doença. Então, não tem sentido tentarem matar quem está doente.

– Sei lá, talvez alguém que quisesse se vingar.

– Alguém como o Sr. Domingues que você falou? Afinal, a mulher morrera por um erro médico. Ela tinha a doença. Vai ver que ele queira se vingar do médico, fazendo morrer todos que não tenham a doença e talvez jogando a culpa nele.

– Mas isso é um absurdo.

– É um absurdo, mas os criminosos estão aí para provar que cometem absurdos.

–Talvez o senhor tenha razão, mas me diga, como pode ajudar-me, detetive?

– Esperando que você me conte tudo o que sabe, Rosa.

– Como assim? Eu já lhe contei tudo o que sei, esteja certo.

– Você conhece o ex-namorado da jovem assassinada, Taís?

Rosa estremeceu. Deu um salto para trás, como se fosse atingida por um projétil vindo da janela. Lá fora, D’tartagham ladrou com extrema fúria, que impressionou Júlio. Rosa então aproximou-se de um pequeno móvel que tinha algumas bebidas e serviu-se de um licor. Ofereceu-o ao detetive, que recusou mais uma vez. Tomou-o de um só gole e comentou, distraída:

– Não sei exatamente a quem o senhor se refere.

Júlio foi categórico:

– Refiro-me ao mecânico que trabalha na oficina dos Irmãos Silva. Pelo que me consta, você o conhece.

– Sim, devo conhecê-lo, como o senhor sabe, todos conhecem a todos nesta cidade. - Respondeu ansiosa.

– Mas pelo que um dos Silva me afirmou, você o conhece muito bem, até o tem ajudado desde que veio para cá, à procura da mãe. Se não me engano, você até alugou um apartamento em troca de alguns favores.

– Do que o senhor está falando detetive? A maneira como fala está me ofendendo. Estes miseráveis Silva nem sabem o que estão dizendo.

– Na verdade, fui irresponsável, agora. O Silva disse que o mecânico a conhecia e que você o tinha ajudado, mas não me contara tudo isso que relatei. Eu confundi as fontes.

– Qual foi o vagabundo que lhe informou isso?

– Não interessa agora, Rosa. Quero saber se é verdade, se você conhece o mecânico Paulo e se tem alguma relação com ele. O que significa este rapaz para você?

Ao ouvir a pergunta sobre Paulo, Rosa emudeceu. Ele então mudou de tática.

– Está bem Rosa, então vou tornar a perguntar sobre a filha do farmacêutico. O que você tem a me dizer sobre o crime?

Rosa o olhava intrigada. Parecia que as coisas estavam por demais confusas, para enveredar por aquele assunto. Afinal, não foi para isso que chamou o detetive. De súbito, respondeu, irritada.

– Eu acho que ninguém a matou, ela devia estar tomando um daqueles banhos que costumava e despencou rio abaixo.

– Como assim?

–Ela tomava banhos a qualquer hora do dia e da noite e nua, como veio ao mundo! Era uma leviana! Ou o senhor pensa que era uma santinha?

– Disso eu não estava informado. Ninguém comentou. Viu que não é tudo que falam na cidade?

–É, talvez só falem o que interessa para eles, para agredir alguém.

– Você a considerava uma leviana por isso?

– Só por isso, não. Ela era uma jovem muito atirada, dava em cima de qualquer homem que lhe passasse à frente. E não pense que eu é que achava isso, toda a cidade comentava!

–E quanto a Paulo?

Rosa prosseguia no mesmo tom enfático, diferente da mulher tranquila e ponderada que demonstrava ser.

–O que eu tenho a dizer, é o que todos dizem por aí. Taís era namorada dele e o traiu com aquele médico. Não tinha compostura. Era uma desequilibrada. Além disso, fumava maconha e bebia como uma viciada!

– Meu Deus, tudo isso! Mas namorou Paulo durante muito tempo?

– Uns dois anos. Ele pretendia até casar-se com ela, contra a minha vontade é claro. Mas ele gostava muito dela, estava encantado e passava a mão por cima de todos os seus defeitos. Ela fazia qualquer coisa para conseguir as drogas, até se prostituir. Era uma infeliz!

Júlio percebia que os olhos de Rosa brilhavam, como se estivesse falando com a própria vítima. Então, perguntou, oportuno.

– Rosa, quer dizer que você odiava esta moça.

– Com todas as forças de minha alma. Ela era capaz de tudo e ia acabar com a vida de Paulo.

– Você ama muito este rapaz.

Ela fez um silêncio pesado. Então, levantou-se do sofá e aproximou-se de um balcão escuro, onde pegou um maço de cigarros. Retirou um, deixou entre os dedos, mas não o acendeu. Encostou-se no balcão. Quando falou, o fez quase numa súplica, encarando fixamente o detetive.

– Dr. Júlio, eu lhe peço, esqueça esta história. Volte para a sua cidade, essa moça, pobre coitada, a gente sabe, não merecia isso. Veja bem, não vai resolver nada. Nem o senhor nem ninguém vai trazê-la de volta.

– Por que quer que eu esqueça o caso? Fui contratado por Lucas, o pai da moça.

– Lucas, aquele maldito! Por que não deixa a filha descansar em paz?

– Mas qual é o motivo de querer deixar tudo como está? Não é melhor resolver o problema?

– Não, doutor, não é melhor. - E quase chorando. - Tenho certeza de que vão acusar o Paulo, só porque ele é um pobre coitado. É a parte mais fraca. Jamais vão acusar aquele doutorzinho de merda, o senhor pode ter certeza.

Júlio a ouvia surpreso. Fez uma pequena pausa e logo argumentou:

– Você sabe que na condição de detetive, preciso saber algumas coisas, como por exemplo, qual é a sua verdadeira relação com este rapaz.

Ela largou o cigarro sobre o balcão, desistindo de fumar e voltou a sentar-se no sofá. Enxugou algumas lágrimas e tentou parecer mais calma.

–Ele não é nada meu, mas me considera como uma mãe e diz para todo mundo que sou a mãe que procura há muito tempo. Eu, apenas lhe dei guarida, um dia. Ajudei-o quando precisou e foi ficando aqui, num apartamentinho que tenho para alugar. Sabe, doutor, ele tem a cabeça fraca, não é muito inteligente. Mas para mim, todos são iguais, por isso, eu o considero muito. Não quero que sofra por causa daquela desmiolada!

– Sinto muito, Rosa, não posso ajudá-la neste sentido. Não posso fazer nada. E depois, se acharem o verdadeiro culpado, ele será isento de tudo, se for realmente inocente.

– Não, vão fazer tudo para colocá-lo na prisão, tenho certeza!

– Mas afinal, por que motivo? Quem está mais enrascado, na minha opinião, é o médico. A menos, que existam outros fatos que eu desconheça.

– Não, não há nada. Só posso dizer que ele é inocente.

– Pois se ele é inocente, não tem por que se preocupar, precisa só responder algumas perguntas, como por exemplo, onde ele estava no dia da morte da moça.

– Isso, o senhor terá que perguntar pra ele. Eu não posso lhe dizer nada.

– E ele foi fazer o que na Capital?

– Ele foi lá buscar uns documentos. Foi assaltado certa vez na capital e agora os documentos foram encontrados.

– E quanto a você?

– Quanto a mim? O que quer dizer? Eu não tenho nada a ver com esta história.

– A mesma pergunta clássica: onde estava no dia do crime?

– Eu não sei. Como vou me lembrar? Nem sei o que comi no jantar ontem! Mas o senhor devia pesquisar o tal médico, porque o carro conversível dele estava parado por lá, bem na outra margem do rio, próximo à ponte. Já soube disso?

– E como você soube? Rosa, já percebeu que de repente, passou a incriminar o médico sobre um crime que você nem estava interessada? Parece que este rapaz é odiado nesta cidade, porque é culpado de tudo.

– Não sei, ouvi falar. Todo mundo fala tudo nesta cidade, lembra? Eu não tenho nada contra o médico, nem contra ninguém. Como lhe disse, estou assustada.

– Em todo caso, é bom você tentar lembrar o que fazia naquele dia, porque você demonstrou que odiava esta moça.

– O senhor não vai querer me acusar, detetive?

– Eu não acuso ninguém, Rosa. Procuro provas, só isso.

– Bem, acho que nosso assunto se esgotou. O senhor em vez de tentar me ajudar, acabou me acusando.

– Como lhe disse, não acuso ninguém. Mas há de convir que a sua reação foi muito estranha. Defendeu este rapaz, o tal mecânico com unhas e dentes, como se eu estivesse acusando-o de alguma coisa.

– Eu já lhe disse, doutor, estou muito nervosa e Paulo é uma pessoa muito boa, não merece que o acusem. Sei que mais cedo ou mais tarde, vão fazer alguma maldade contra ele, só porque ele andou com esta moça. Mas tenho certeza de que tem muito mais gente envolvida.

– Isso nós vamos descobrir!

sábado, julho 25, 2015

O ESTRANHO PRIMO DO INTERIOR

Chamava-se Ismael. Veio morar conosco numa dessas tardes de inverno, quando o sol se põe tão lentamente que parece que vai desaparecer para sempre. Era forte, robusto, ideal para o quartel. Nos meus onze anos, me parecia muito velho. Era um típico exemplar de rapaz do interior. Olhos baixos, gestos miúdos, aperto de mão respeitoso aos mais velhos. Jeito de quem sabe onde pisa. Eu, ao contrário, tão acostumado a minha vida serelepe, sempre à busca de aventuras, me atirava de corpo e alma no exercício das travessuras. Estava sempre à cata de espécies que alimentassem esta gana. Ismael trazia uma mala marrom de um tom avermelhado, com alças de metal, que me deixava curioso. Foi morar no quarto dos fundos, onde passaria os próximos nove ou doze meses, não sabia bem. Percebia, de imediato que não gostava de minhas atitudes. Parecia me julgar infantil, imaturo ou qualquer coisa que lhe viesse na cabeça a respeito de meninos de minha idade. Julgava-se, provavelmente, muito adulto. Sentia um respeito e um carinho pelo meu pai, que me irritavam profundamente. Era o sobrinho de longe, aguardado com gentilezas e salamaleques. Na verdade, não tanto quanto eu imaginava. Mas naquela época, final dos anos sessenta, era fácil para um menino de minha idade importar-se com estas coisas: muita imaginação, poucas oportunidades de alargar horizontes, de movimentar a mente, descobrir coisas novas. Não pouco era o que a leitura me provocava, mas não bastava: havia a astúcia do movimento, a vontade de vencer o impossível, de tornar valente o fraco, de observar a transformação do inimigo, de mexer com o provável bandido, de não ser sempre o mocinho, mas o protagonista da trama.

Pouco nos falávamos. Ismael sempre se dirigia a meu pai ou a minha mãe, mesmo que a situação se referisse a mim. Aos poucos, fui conhecendo os seus pontos fracos, a sua imensa vaidade, os perfumes que guardava na mala marrom avermelhada, as colônias, os cremes de barba, as loções, os talcos, sabonetes, a brilhantina, a base para as unhas. As camisas muito bem passadas e guardadas de forma a não amassarem, as calças com o vinco perfeito, os sapatos lustrosos. Aos sábados, geralmente ia ao cinema à noite, nunca às matinés, como eu. Depois, estendia nas festas de garagens, as chamadas brincadeiras onde os rapazes e as meninas se reuniam para ouvir e dançar ao som dos rocks ingênuos, brindando à cuba libre e samba. Dizia que era coisa de homem, como se eu não soubesse o tipo de festa que faziam: conversinha pra cá, bate-papo pra lá, os homens de um lado, as meninas de outro. E pouco se encontrando. E ele se julgava o máximo.

Certa vez, quando se afastou para ir a uma destas festas, deu-me um cascudo na orelha, me olhou com cara de vilão de filme de caubói e ameaçou despudorado: – não te intromete na minha vida. Sou homem, tu é um frangote, ainda mija nas calças – em seguida, deu um sorriso astuto, puxou uma carteira de cigarro Continental do bolso, aquele com debrum dourado nas laterais (a gente chamava de ourinho), acendeu, deu uma baforada na minha cara e se afastou balançando o corpo. Era a outra personalidade que se desenhava só para mim.

Uma tarde, quando ele havia saído, aproximei-me de seu quarto. Coração aos saltos, assustado. Mão trêmula na fechadura, encaixando a chave de modo a não fazer barulho e não despertar a atenção de ninguém. Abri a porta, espiei longamente para dentro, tentando ver algo extraordinário. O ambiente estava na penumbra. Aproximei-me devagar, esbarrando na cama, fazendo um barulho surdo na minha coxa, franzindo a testa de dor e evitando qualquer ruído denunciante. Subi na cama. Somente as luzes que vinham pelas frestas da veneziana de madeira amarela esvaneciam um pouco o cenário escuro. Apenas pequenos feixes de luz iluminavam o quarto, espraiando-se pela parede oposta à janela, produzindo figuras oscilantes. Nas paredes, fotos de atrizes de Hollywood em poses sensuais. Havia uma prateleira bem alta, acima da cama. Dei alguns passos, atolei os pés entre as molas do colchão, mas não me detive, inquieto. Trombei com os pés na mala, que serviam de anteparo para minhas investigações. A prateleira, cheia de objetos me atraía vigorosamente. Então subi na mala, para alcançar o meu objetivo. O meu pé direito afundou rapidamente, fazendo uma cratera, como se constituísse de papelão, tão frágil em sua consistência. Assustei-me, mas já que estava ali, não poderia desistir. Estiquei-me o mais que pude, alonguei o braço direito em direção ao topo da prateleira, enquanto apoiava-me na mão esquerda encostada na parede, para manter o equilíbrio. Empurrei o que pude, para descobrir com o tato, o que não conseguia ver. Achava contornos estranhos nos objetos, mas não conseguia adivinhar do que se tratava. Um deles, percebi que era apenas um porta-retrato. Peguei-o e atirei-o sobre a cama, sem consideração. Puxeis os demais para a frente, pois estavam afastados, ao fundo. Tratavam-se de pequenos objetos, na semelhança de santos ou bonecos, não conseguia identificar. Aos poucos, vieram na direção de minha cabeça, enquanto segurava um deles, os demais caíam desordenadamente, uns sobre os outros, estatelando-se na cama, ao lado do porta- retratos. Sentei-me rapidamente, para examinar o objeto de minha pesquisa. Eram figuras estranhas. Meus olhos grandes ficaram ainda maiores com a curiosidade. Minha boca entreaberta, nariz fungando, espirrando, provocado pela poeira e pelo cheiro estranho que exalavam. Pareciam divindades africanas, homens com cabeça de animais, um diabo de chifres enormes e capa vermelha. Larguei-os, assustado. Em seguida, detive-me na fotografia em preto em branco: uma mulher, loira, de cabelos crespos, que deveria ser uma namorada ou a mãe ou a irmã ou alguém de sua intimidade. Nada me interessava naquele momento, a não ser fugir dali a qualquer preço: esquecer as figuras estranhas e tão assustadoras, a fotografia que poderia ser de alguém que houvesse morrido há muito tempo, pois restara uma vela usada na prateleira que devia estar perto dos objetos. Olhei para a mala esburacada, quase destruída pela desatenção de meus pés, em desalento.

Pulei da cama e me deparei com a cara na porta, que não se abria de jeito nenhum. Procurei a chave nos bolsos da bermuda, abaixei-me, especulando pelo piso, embaixo da cama e nada. Havia sumido como por encanto. Certamente na euforia, eu a havia esquecido em algum lugar. Talvez na própria prateleira onde se encontravam os objetos. Estava quase em pânico. Aquelas coisas estranhas me assustavam e a aventura parecia ter acabado ali, ou apenas começado. Eu estava preso entre aquelas coisas inanimadas que me olhavam incessantemente a cada gesto que fazia, como se me acompanhassem, observando meus movimentos. Minhas mãos doíam, procurando em cada canto, em cada décimo do assoalho a maldita chave. Subi novamente na cama e fiz um esforço sobre-humano para alcançar a prateleira. Subir na mala, jamais. Não poderia danificar o que restara dela. Mas como chegar mais próximo, se não fazer da mala um trampolim? Não havia outra maneira melhor. Minha cabeça já não raciocinava perfeitamente. Estava confuso. Temia que os objetos me seguissem, subissem em minhas costas, segurassem o meu pescoço e me asfixiassem, irritados em que estavam por eu ter invadido um mundo que não me pertencia. Quando atingi a estante, senti meus dedos se deslocarem no nada, a não ser poeira, e a saliência abrupta da madeira, que me espetava uma farpa furtiva na mão. Definitivamente a chave não estava lá.

Então, desci da cama, num salto, quase em desespero. Pensei em gritar por meu pai, minha mãe, chamar o vizinho. Mas não tive coragem. Precisava encontrar a chave. Precisava sair dali. As horas passavam muito rapidamente, mas significavam uma eternidade, porque a cada minuto, mais um tempo disponível para o meu desespero. Então, em desespero, comecei a gritar em desvario, quase em súplica, pedindo por socorro, cheio de raiva, furor, ira, medo, pavor. Subi na cama, comecei a dar pontapés na mala, até atirá-la ao chão. Foi quando ouvi um tilintar metálico. A chave estava dentro da mala e caíra, quando a empurrei com violência. Com sofreguidão, peguei-a com firmeza, me dirigindo imediatamente à porta. A mão tremia, o braço não atinava ao que o gesto mandava, o corpo todo tremia. Ao abrir a porta, senti uma lufada de vento frio e a noite já se prenunciava em seus primeiros acordes. Um zunido de vento, um balançar de folhas, o revoar dos pássaros agasalhando-se nas copas e subitamente uma luz que despertava meus olhos meio cerrados. Na minha frente, o primo do interior, olhando-me de uma maneira mais estranha do que as imagens que encontrara. Sem fazer qualquer gesto, patético, mãos nos bolsos, boca aberta, esperando explicações. Mais adiante, meu pai, seguido de minha mãe, esbaforida, procurando-me, argumentando que não me encontraram em lugar algum da casa, nem do bairro. Queriam explicações.

Quis sumir naquele momento, agachar-me e passar de soslaio, como se nada do que sucedera me dissesse respeito. Mas não teve jeito: a mão pesada de meu pai, pousou no ombro esquerdo, perdidamente, como se ousasse ficar ali a vida inteira, até que eu desse uma explicação. Então falei: – não te preocupa, pai. Trabalho do colégio.

Saí correndo. Não me perguntaram nada. Foi muito forte o que falei, como se desabasse qualquer argumento. Trabalho da escola era sagrado. Mas que diabo de trabalho eu devia estar fazendo lá? Foi o que tentei explicar durante toda a noite. Era mais uma trama imaginosa que precisava criar.

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