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quinta-feira, outubro 11, 2018

A primavera e o ódio

Talvez eu devesse falar na primavera, afinal ela está aí, já brotando flores e enfeitando árvores, apesar do frio que ainda persiste em acompanhá-la em seus dias.

Talvez eu devesse caminhar a esmo, de preferência pelas margens da laguna e observar a mudança gradativa dos ventos, das nuvens, dos novos cheiros e brisas.

Talvez devesse espiar as escolas, os adolescentes que na primavera, parecem explodir em sentimentos e lutas internas, como frutos, sementes e flores ressurgindo do nada, inspirados nos raios do sol e nos sussurros dos entardeceres.

Talvez eu devesse estudar novos rumos e pesquisar os trabalhadores que voltam às pressas para casa, envolvidos nas compras eventuais, nas contas a pagar, nas obrigações mensais. Talvez contem o dinheiro comezinho que lhes sobre, o tumulto do ônibus, as horas perdidas no trânsito, as horas inglórias da espera. Trabalhadores que perdem os seus direitos dia a dia, que quase sucumbem aos desmandos de um governo congelado numa depredação de patrimônio físico e humano.

Talvez, como o Severino de João Cabral de Melo Neto, venha a morrer de fome, de ódio, de bala, que segundo o irmão das almas, “mais garantido de bala, mais longe vara”. Sempre há uma bala voando desocupada.

Talvez eu devesse retornar, esquecer os tempos sombrios que se avizinham e pensar que o passado não está voltando. Que o retrocesso, o pior do século passado, já passou realmente.

Entretanto, há o temor de que o ódio persista e a humanidade pereça.

A esperança, porém é que talvez o círculo do tempo pare e uma força progressista se alastre e o mal se dissolva.

Porque há primavera e não há bala que a destrua.

Fonte da ilustração: MabelAmber in: www.pixbay.com

sexta-feira, dezembro 01, 2017

A bolha

Quisera contar coisas felizes. Quisera imaginar uma cerca brilhante, arrebatada por uma luminosidade paralela que me permitisse ultrapassá-la sem os medos normais.

Quisera antecipar-me à dor e vencer a morte. Quisera saber viver, como os príncipes.

Quisera participar. Usar todos os verbos em todos os tempos para explicar o que já nem tem sentido. Ultrapassar a cerca, pular a dor, liberar o ódio, alavancar o amor. Deve ser possível, não neste momento.

Tomara que eu durma e acorde levitando, pois aí verei lá de cima, o mundo que deixei para atrás. Um mundo de intolerância, racismo, fascismo, ódio.

Um mundo onde grassa a ignorância de mãos dadas com o retrocesso.

Quem sabe desço e desmancho a bolha que ainda me impede de lutar?

quarta-feira, outubro 11, 2017

Onde chegará o homem?

Não gosto de comentar notícias policiais, muito menos ficar dissecando as informações, investindo em cada detalhe e transformar o fato numa dramaturgia barata.

Mas às vezes, a realidade dura nos obriga a pelo menos refletir e sofrer as consequências da falta de humanidade.

O bebê baleado no útero da mãe e que não resistiu e acabou morrendo, em Caxias, na Baixada Fluminense vai contra qualquer percepção de realidade, como se o surrealismo ou a ficção concentrasse seus valores em nossa realidade.

Como não se comover, como não sentir na pele o arrepio da dor e do medo ao assistir um fato tão doloroso. Isso apenas citando dois fatos, embora ocorram diariamente todos os tipos de assassinatos e perdas terríveis ao povo brasileiro.

Como acreditar na humanidade e imaginar que ainda há futuro?

Quando vemos nossos filhos longe, ficamos com o coração na mão e quando estão perto permanecem em total abandono, porque as balas perdidas não são excessões, ao contrário, são a regra em muitos recantos do Brasil, como na escola em Porto Alegre, onde os alunos precisaram fugir para não serem atingidos.

Parece que o homem fica cada vez menos homem, menos ser humano e talvez não tanto animal, mas um ser perdido na desumanidade, um ser que enxerga no outro apenas o reflexo de seu desejo de ganância, de ódio e do medo intrínseco de se enxergar no espelho alheio. É triste.

Uma involução que avança em várias áreas e repercute nas comunidades mais frágeis.

Uma involução nos costumes, na política fascista que avança, na ilegimidade dos governos, no despropósito das ações alavancadas na não-constituição.

Onde chegará o homem?

Quem cuidará de nossas crianças?

Quem olhará por nossa vida?

sexta-feira, julho 21, 2017

Saco de plumas

Nos dias de hoje, quando a intolerância, o preconceito e ódio grassam nas relações humanas, revelados principalmente nas redes sociais, lembramos de histórias que destroem pessoas, não edificam quem as pratica, muito menos servem de exemplos. Histórias que expressam calúnias, opiniões preconceituosas sob qualquer espécie, tanto étnica, política, de gênero ou classe social.

Nestes momentos, as pessoas desandam a falar qualquer coisa que as aparte, aos olhos dos outros, de quem as incomoda. Para estas e até para nós mesmos, quando agimos sem pensar e atribuímos aos outros, como absurdo e imoral, o que discordamos segundo nossos princípios, cabe o fato a seguir que tão bem ilustra o nefasto desfecho de uma calúnia.

Para tanto, pegue um saco de plumas e jogue-as ao vento. Nem precisa subir a montanha. Jogue-as ali mesmo, no terreno baldio em frente a sua casa, ou naquela esquina próxima à praia, onde não passa ninguém, só pequenas dunas se formando pelo vento.

Quem sabe, use os campos, para não sujar as ruas. Nem as dunas, nem o mar. Será muito fácil espalhá-las. Voarão céleres pelo ar, mesmo que não haja vento, tal a sua leveza e fragilidade.

O duro será juntá-las novamente. Na verdade, impossível.

Muito melhor explicado está em histórias antigas, mas a moral é esta mesmo.

Impossível juntar o que se distribui assim, ao léu.

É o que acontece com as calúnias, as presumíveis histórias que impingimos aos outros, os rótulos com que caracterizamos o próximo.

Estas, quanto efetuadas, mesmo perdoadas, jamais poderão ser completamente reparadas, porque ficarão escondidas em várias bocas, vários ouvidos, e nem todos serão esclarecidos.

sábado, julho 15, 2017

UMA PLANTAÇÃO DE BONECAS

Centenas de bonecas se espalhavam no jardim. Quando passeávamos por ali, tínhamos a impressão de que um leilão de brinquedos era instalado ou talvez, tudo procedesse de um longo pesadelo do qual não podíamos acordar.

Passamos por perto, chutando o que nos vinha pela frente, tanto as bonecas, quanto pedras e pequenos objetos de madeira que não significavam nada. Pelo menos, nada relacionado a brinquedos.

Continuamos nosso percurso, um tanto desolados. Parecia também que uma inundação havia deixado aqueles rastros espalhados, a água viera, se acumulara até as janelas, mergulhara os jardins e por fim, retomava ao seu curso, deixando as bonecas arremessadas e sujas ao relento.

Sentia pena. Não podia ser verdade o que diziam. Uma plantação de bonecas, como se fossem espantalhos no meio do milharal? Cada coisa estranha se passava em nossas cabeças, por isso, parei um pouco e tentei refletir sem qualquer emoção. Talvez aqueles objetos fossem apenas fruto de um total desconsolo pessoal, de um desapego de sentimentos relacionados à infancia.

Sentei num dos bancos e o estagiário de psicologia parou alguns segundos me observando. Percebi que ele tinha uma questão que evitava, talvez por imaginar que fosse demasiado primitiva. Então, incentivei-o e ele perguntou, entredentes:

__ Estive pensando... Tudo isso pode ser apenas uma negligência, uma falta de cuidado, mas...

Silenciei por um momento, esperando o desfecho. Como ele deixou o pensamento no ar, conclui:

__Uma falta de cuidado não significa apenas isso, uma negligência. A própria negligência, a falta de interesse revela uma provável tristeza.

__ Então, fico imaginando de onde tantas bonecas? Quem as acumulava? Quem as guardava?

__ Acredito serem de um orfanato antigo.

__ Então os donos que assumiram a casa as jogaram fora.

__ E as deixaram espalhadas pelo jardim? Não há lógica.

Ficamos novamente em silêncio. O círculo se fechava.

Olhei em torno e avistei as bonecas atiradas bem ao longe, tanto que pareciam diminutas. Por um momento, pensei num parque maravilhoso, muito verde e iluminado no qual as pessoas desfrutavam seus pequeniques. Traziam suas maletas vermelhas e abriam os guardanapos xadrez, a toalha, a szarlotka, a torta de maçã ou sękacz, ou os pães de mel em forma de anel. As mães de lenço de seda escondendo os cabelos ruivos e os pais de chapéu, inventando brincadeiras com os meninos. Ah, foi só um pensamento involuntário!

O estagiário sentou ao meu lado e suspirou fundo. Eu sorri e perguntei:

__ Você falou com alguém sobre isso? Alguém da casa?

Não havia ninguém na casa. Talvez nem houvesse novos donos, como imaginávamos. E se tentássemos entrar, e se tentássemos algum encontro?

O dia agora estava mais cinza, mais nublado e as bonecas pareciam pontos escuros no meio do verde arranhado pela lama. Nada do que falássemos nos levaria a algum desfecho.

Por isso, levantei-me e quando pretendia convidá-lo a fazer o mesmo, percebi que fumava uma bagana escura. Talvez tirasse do bolso uma bagana de maconha, já fumada lá mesmo, entre as bonecas. Aquele cheiro adocicado, por um momento me prendeu ao banco, mas resisti e afastei-me uns dez metros. Ele sorriu e permaneceu no mesmo lugar. Queria terminar o processo e parecia se dar bem no que fazia. Sorria de vez enquanto e às vezes, cuspia, limpando a borda da boca com a mão esquerda. Sentia uns arrepios e se mexia todo, sempre sorrindo.

Afastei-me mais alguns metros em direção às bonecas.

Quanto mais me aproximava, mais meu coração me ludibriava descompassado e eu tinha a impressão de não pertencimento ao local.

O cenário ficava lúgubre, áspero, uma dor que me alfinetava, como se um punhal muito fino e afiado me espetasse bem próximo ao coração, entre as costelas, tentando perfurar-me as carnes.

Eu já sentia até o sangue jorrar, mas não era o meu sangue, era um sangue sujo, misturado à lama e brotava das bonecas. Seus olhinhos aguados, as bocas entreabertas, os cabelos queimados, as carecas de plástico cheias de pontos de agulha e fios, aparecendo, como se fossem escalpeladas. Outras de louça, se quebravam no primeiro impacto dos pés.

Dei mais alguns passos na direção delas e percebi que havia sapatos e roupas e óculos e malas. As bonecas não estavam sozinhas, elas tiveram vida algum dia. Elas respiraram, sorriram, foram aos piqueniques nos parques verdes, foram às escolas, às brincadeiras nas casas das amigas, às festinhas de aniversários. Eram lindas as bonecas, eram vistosas e tinham sonhos, muitos sonhos. Agora estavam lá, arremessadas como coisas do passado, coisas usadas e abandonadas, símbolos de uma vida que se rompeu arrebatada pela força, pelo medo, pelo preconceito, pelo ódio, pelo nazismo.

Queria ser como o estagiário e ter a coragem de me afastar daquele mundo, de sorrir de tudo, de zombar da vida e da morte, do ódio e da clemência, da violência e do clamor dos inocentes. Mas não pude.

Meu dever era enfrentar a dor. As bonecas, os brinquedos, os óculos, as malas, as maletas, os sapatos, as mochilas da escola, os retratos na parede. Não podia ficar alheio, precisava abrir bem meus olhos e perceber que elas não mais estavam estiradas no chão, era tudo uma ilusão que minha alma surrada e sofrida criava para me proteger.

Elas estavam bem guardadas entre paredes envidraçadas, em cúpulas de vidro para mostrar a mim e ao mundo que o sofrimento ainda não acabara. Elas estavam lá, me encarando e alertando que tudo voltava como um círculo sem fim. As bonecas de Auschwitz, os laços de fita de Auschwitz, os sapatos, os óculos, os brinquedos, as malas, os retratos na parede de Auschwitz. Elas estão lá e eu jamais as esquecerei. Ficarão na minha mente como semente de dor e horror, como emblema do ódio e da desesperança, do preconceito e da desumanidade.

Quisera ser como o estagiário e nublar minha mente e me desviar da dor, mas não posso.

segunda-feira, março 27, 2017

A cicatriz de uma época

Nunca a realidade deveria superar a ficção, entretanto, o homem extrapola a sua humanidade, para tornar-se apenas uma ideia, um conceito, expressado a partir de quem está no poder.

Talvez aqueles objetos observados em Auschwitz fossem apenas um signo linguístico nos quais observaríamos o que representam os sons e imagens que estão em nossa mente.

Ali portanto, os objetos abrangem muito mais do que representam na realidade, pois sua memória é impregnada de sentimentos, dores, sofrimentos das pessoas ali representadas.

Quantas vezes, a menina não imaginou um lar cuja boneca fazia parte do sonho, orquestrado por mãos pequeninas e frágeis que a transformavam no ícone do prazer infantil. Uma menina e sua boneca. A mãe e a filha. A professora e a aluna. Quantos sonhos e esperanças.

Quantas vezes aqueles sapatos passearam pelas avenidas e torceram seus saltos nos paralepípedos ou se aproximaram dos degraus das igrejas ou se afastaram por trilhos procurando saídas, transmudando-os em habituais companheiros.

Quantas vezes se esconderam sob mesas, cadeiras ou foram guardados com cuidado para serem usados no dia seguinte. E quando não houve dia seguinte, quando a força do arbítrio e da mensagem insana os levou à estratégia da ruptura com o humano, com a dignidade, com a vida.

Quantas vezes aqueles óculos redondos se debruçaram sobre livros e acompanharam páginas de poesias, ou romances ou estudos acadêmicos, ou mesmo à bíblia?

Quantas vezes acompanharam olhos curiosos na adolescência ou se mantiveram alertas, no cansaço senil, na costura em dedos frágeis ou em pontos de crochê ou tricô.

Quantas vezes não acalentaram olhos amorosos, não observaram o foco do amor ou teceram a narrativa da vida, envolta em leituras ou explicações de mestres? Quantas vezes ficaram à mesinha da cabeceira, esperando que o dono os recolhesse no dia seguinte, ao salto para o trabalho?

Mas uma vez cairam em mãos ferinas que os trairam, arremessando-os ao acúmulo de objetos sem qualquer finalidade, a não ser simbolizar a morte oriunda da mão canhestra e torpe da intolerância e o ódio?

Quantas vezes, as malas não foram cuidadosamente arrumadas e nesta organização se revelassem a alegria da viagem, a experiência dos aprendizados envolvidos, ou a simples aventura de viver?

Quantas vezes, não foram carregadas por mão firmes, com destino certo, testemunhando passeios, visitas, encontros e experiências de vida.

Quantas vezes trouxeram consigo a desilusão ou o desejo da volta, após um difícil dever cumprido.

Não saberiam jamais que ficariam à exposição para olhos assombrados, absortas em seu vazio de signo, não mais significado, não mais significante, apenas a memória do abandono, da não-presença, do não-uso, do não-retorno.

Quisera não ter visto aqueles objetos e muitos outros em exposição do massacre nos campos de concentração.

Quisera não ser um daqueles olhos assombrados com a miséria humana, com a certeza de que aqueles objetos não teriam significado nenhum, nunca mais, a não ser serem símbolos da barbárie e do desapreço com o ser humano.

Na Polônia, tão bela e restaurada, tão viva e alegre, há o exemplo onde a cicatriz não se apaga e não deve se apagar jamais.

Este é o verdadeiro símbolo a ser lembrado: a cicatriz de uma época de intolerância e ódio. Que não volte jamais.

quinta-feira, junho 30, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 10º CAPÍTULO

No capítulo anterior, Júlio conversara com duas pessoas: Lucas, o farmacêutico que o procurara para acusar o médico Ricardo de que sua filha fora assassinada por ele. No dia seguinte, conversara com Sara, que dissera que os crimes foram elaborados pela maestrina Rosa. Apesar de ouvir as suas justificativas, Júlio estava decidido a conversar com o médico, primeiramente. Não podia sair acusando todo mundo e quanto à Rosa, mais lhe parecia um ciúme, por um motivo ainda obscuro, que ele ainda procuraria descobrir. Voltamos com o nosso folhetim policial e com o desenrolar da trama, saberemos quais são as justificativas de Rosa. A seguir o 10º capítulo de nossa história.

Júlio esforçou-se para conversar com Ricardo Silveira, o médico que passara de plantão toda a noite no hospital. Sabia que em dado momento, o encontraria, pois ele deveria sair alguma hora e ir para a casa. Aguardou-o até a hora do almoço, e logo que o viu dirigir-se à cantina do hospital, aproximou-se e o encontrou ao lado de um colega.

Apresentou-se e pediu para conversar com ele. Observou que o rapaz aparentava uns 30 anos, tinha cabelos castanhos e olhos muito perspicazes. Parecia sempre antenado em algum movimento na sala ou numa conversa no outro lado da mesa. Cabelos curtos e óculos pesados compunham a fisionomia, que apesar da pretensa curiosidade, revelava-se muito tranquila.

— Sei que é o seu horário de almoço e que em seguida terá muito trabalho com os pacientes, mas gostaria de agendar uma visita. Onde você quiser, quando quiser. Pode ser?

—Pode, é claro, só não estou entendendo a razão.

— É um assunto meio desagradável. Não gostaria de incomodá-lo agora.

— Desculpe perguntar, mas quem é o senhor mesmo?

— Bem, sou advogado e detetive particular aposentado.

— E sobre o que vamos conversar?

—Você poderia agendar uma hora? Pode ser num bar, no hotel onde estou hospedado ou até mesmo no seu consultório.

—Eu não tenho consultório, senhor… senhor?

—Júlio, Júlio Ramirez, às suas ordens. Olhe o meu cartão.

—Quer me vender alguma coisa?

— Não, de forma alguma. Se não se importa, pode ser no restaurante do meu hotel. À noite, eles servem apenas uns drinques.

—O senhor está no hotel, então deve ser o mesmo em que estou morando. Não há noutro na cidade.

— Ah, que bom. Assim fica mais fácil, então.

— Pode me adiantar alguma coisa?

—Bem, se insiste. É sobre a moça que foi assassinada ou se matou, não se sabe. O pai dela o acusa de sua morte!

—Aquele homem é um louco, um imbecil! Olhe aqui, eu não tenho nada com esse assunto. Nem tenho nada a discutir com o senhor nem com ninguém. Portanto, não me espere, porque não vou até o restaurante.

—Desculpe, Ricardo, eu não queria que você se irritasse. Sei que tem razão em ficar nervoso com esta história, afinal, é muito desagradável esta acusação e estes falatórios pela cidade. Mas, acho que está na hora de provar que você é inocente. Olhe, eu pessoalmente, acho que não há nada que o ligue à morte daquela moça.

—Então, por que está me procurando?

—Porque é meu trabalho de detetive e na minha profissão, não se pode descartar nada. Mas acho sinceramente, que este esclarecimento só vai ajudá-lo. Afinal, você tem um nome a preservar. Imagine se as pessoas da Capital fiquem na dúvida de sua honestidade? E os negócios que poderão ser anulados?

—O que quer dizer com isso?

—Meu caro, só digo o que ouço, mas você sabe muito melhor do que eu o que essa gente é capaz! Se eu fosse você, eu iria encontrar-se comigo. Acho muito melhor comigo do que com a polícia, porque vai acabar nisso, pelo que ouvi daquele homem. Vou deixar o meu cartão, meu número do celular. Até lá, você pensa e decide o que achar melhor, ok? Mas saiba que não estou contra você, até mesmo porque não costumo fazer julgamentos! Júlio afasta-se em direção ao jardim, saindo do refeitório onde o médico se encontra. Os colegas já estão se retirando para as suas tarefas. Quando está atravessando as vielas que o separam do portão para a rua, passando por uma pequena capela, percebe que alguém se aproxima rapidamente, em sua direção. É Ricardo, que o convida a entrar na capela.

A capela está na penumbra e não ninguém lá dentro. Sentam no último banco e o médico é o primeiro a falar.

—Acho melhor não encontrá-lo hotel. Vou dar muita bandeira.

—Você é quem sabe, meu rapaz. Apesar que você estando lá, ficaria até natural nos encontrarmos.

— Mas já que existe uma investigação, é melhor que saiba tudo e por mim.

—Ok, sou todo ouvidos. Você é um homem de bem, já percebi.

—Obrigado. É o seguinte: eu realmente estava namorando a Taís, se é que se pode chamar de namoro, alguns encontros em poucas semanas. Mas que seja. De todo modo, a verdade é que desde que cheguei aqui, ela não me deixou em paz, tinha verdadeira fixação por mim. Isso aconteceu há um ano atrás, quando estive aqui fazendo residência. Agora, há pouco, ela voltou a procurar-me, tentando reviver uma coisa que nunca aconteceu. Eu nunca me apaixonei como ela pretendia. Nós tivemos um caso, no passado, mas tudo não passou de encontros casuais, sem maiores compromissos, pelo menos para mim. Ela cismou que eu me apaixonaria, que ficaria ao seu lado, que jamais a deixaria, mesmo eu dizendo que tinha namorada na capital, que não queria nada com ela. Inclusive disse que abandonara um namorado por minha causa, era um cara que trabalhava na oficina, parece que se chamava Paulo, não importa. Mas o fato que até com isso, me incomodei, porque o cara passou alguns dias me perseguindo, até que decidiu me deixar em paz. Não vou negar que me senti atraído, mas inicialmente, eu não queria nada com ela. Ela não desgrudava de mim! Ela apenas estudava e de repente inventou de trabalhar no hospital, fazendo faxina. Não sei como conseguiu a vaga tão depressa, deve ter mexido os pauzinhos. Ela mudou a minha vida a partir daquele momento. Não me deixava respirar, se envolvia nas minhas coisas, mexia até no meu celular, quando eu menos imaginava. Até que aconteceu. Uma vez, nós transamos e eu decidi que ela deveria me deixar e desaparecer da minha vida. Nos encontramos algumas vezes, mesmo ela sabendo que logo que me estruturasse na cidade, traria a minha namorada para cá, e isso eu deixava bem claro para ela.

Depois da saraivada de acontecimentos e queixas, Júlio engendrou a primeira pergunta:

– Você passou a odiá-la?

Ele parecia não respirar por um momento. Quando respondeu, fazia-o num desabafo:

– No início, não. Eu até gostava dela, só detestava aquela insistência. Mas por fim, eu acabei odiando-a sim, porque voltou tudo como era antes. Ela passou a perseguir-me, a me procurar em todos os lugares, a viver na minha volta.

—Então, você tinha motivos para matá-la.

—Pelo amor de Deus, vou matar uma garota só porque me perseguia, que queria ficar comigo a qualquer custo! Era só uma cabeça-oca, uma infeliz, coitada. Sou um homem que salva vidas, detetive, não as tira!

— Você há de convir que preciso fazer todas as perguntas para observar as reações dos interrogados. Por outro lado, acho que não é motivo de tanto ódio. Bastava dar um chute nas intenções da moça e acabar por aí.

— É que o senhor não a conhecia. Hoje, passado algum tempo, acho que ela era uma psicótica. Não era normal a maneira como me tratava, como se eu fosse um objeto, um bem que não queria partilhar com ninguém. Taís era doente.

— Pensando bem, a sua reação foi bastante estranha.

— O senhor parece estar contra mim. Como pode pensar que eu faria uma coisa dessas? Eu jamais tive intenção de lhe fazer mal!

—Eu não pensei em nada, caro Ricardo. Mas, me diga, naquele entardecer cheio de neblina, você foi dar uma volta, próximo ao rio. Na mesma hora em que Taís foi assassinada ou se matou, não sabemos.

—Não, eu não fui.

—Não foi? E o que me diz da mensagem do celular dela em que marcara o horário de 8:30 para encontrá-lo lá, na beira do rio?

—Não, claro que não, dei uma volta pelo bosque, ali perto. Uma longa volta para esfriar a cabeça. Como lhe disse, ela era maluca, estava sempre me chamando.

— Por que você queria esfriar a cabeça?

—Sr. Júlio, um médico tem seus momentos de stress, de decepção. Naquele dia, eu perdera um paciente e estava muito nervoso.

—Então não tinha nada a ver com Taís e sim com a perda do seu paciente?

—Não, eu já disse que não!

—Então como explica a mensagem no celular da moça? Nega tê-la mandado?

Ricardo faz um pequeno silêncio. Sente-se perdido, como se a acusação contra ele ratificada a cada justificativa. Por isso, insiste em esclarecer o que sabe.

—Não, o senhor tem razão. Eu a enviei, sim. Taís me pediu que fosse encontrá-la e insistiu muito. Não sabia o que fazer, por isso escrevi a mensagem. Mas eu não fui. Achei melhor não ir. Pretendia ir a Porto Alegre no dia seguinte e preferi não falar com ela. Sei que errei e o que aconteceu com ela foi terrível. Nunca poderia imaginar que ela fosse capaz de tirar a própria vida! Eu me sentia culpado, não conseguia trabalhar.

—Então, mesmo não atendendo o pedido, você passeou próximo ao local, ou seja, no bosque próximo ao rio, o que há de convir, é uma certa incoerência.

—Eu já lhe expliquei isso. Além disso, costumo caminhar pelo bosque, não é um fato incomum. Levo os tênis na mochila, pego um abrigo e caminho por algumas horas.

—Sabe de alguém que o viu nesta caminhada?

—Acho que não, estava muito solitário. Poucas pessoas caminham a esta hora. Além disso, estava um entardecer muito sombrio, havia muita neblina.

Júlio perguntou se não havia nenhum fato importante que Ricardo gostaria de contar-lhe. Com a negativa, ele mesmo decidiu fazer-lhe mais uma pergunta.

— Você falou num tal de Paulo, um namorado antigo de Taís. O que aconteceu com ele?

—Como assim? Pelo que eu saiba, continua trabalhando na oficina. Me deixou em paz, graças a Deus, desde que tivemos uma conversa.

— Ah, tiveram uma conversa?

—Sim, um dia me enchi com aquela perseguição, ele me fechando no trânsito com a moto, mandando recados pelo celular, e decidi ir até a oficina falar com ele.

—E aí?

—Parece que entendeu a situação. Que a menina não queria mais nada com ele e que eu não tinha culpa. O problema era deles. A partir daí, ele nunca mais me procurou.

Júlio ouviu a conversa e prevendo que não haveria mais nada importante a ser dito, apertou-lhe calorosamente a mão e se afastou. Antes, persignou-se e ajoelhou-se por um minuto próximo à porta de saída da capela.

Enquanto fazia isso, Ricardo passou por ele rapidamente e desapareceu em direção ao hospital.

quinta-feira, março 31, 2016

PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI EM FLORES II

Rosas se espalhavam pelo alambrado, tingindo de vermelho o cenário, no qual se avistavam pequenos pedaços de azul da parede do prédio.

Quase não se via o outro lado da cerca, tão fortes estavam as rosas.

Tínhamos a impressão que o verde era apenas um adereço à beleza e ao perfume que revelavam.

Houve momentos em que cresceram tanto, que atingiram o jardim por trás da cerca, envolvendo-se nas margaridas, nas frágeis papoulas ou nos vigorosos cravos amarelos.

Achavamos que o vermelho suplantava as cores da discórdia, do ódio, da intolerância.

Pensávamos que o desafio estava tomado, que o sangue vertido nas lutas pela democracia representava os anseios de uma sociedade fragilizada por anos e anos de dissociação cidadã de sua pátria. Achávamos por fim que a sociedade estava madura.

Mas as pétalas foram caindo aos poucos, lentamente, no subterrâneo dos insetos devoradores, minando as raízes, as folhas, os galhos. Minando o verde da esperança até chegar no vermelho. O vermelho símbolo de tantas lutas, para estas formigas, pulgões e toda a sorte de predadores estimula o ódio, a intolerância, o desamor, o desrespeito, o embate furioso contra as leis, contra a democracia, o golpe.

Pois as pétalas se espalhavam, as rosas vermelhas que enfeitavam e transformavam milhares de cenários cinzas e pobres em espaços de esperança e melhoria, hoje estão sendo dizimadas através da mão canhestra do carrasco, até mesmo dos alienados que seguem o fluxo dos desinformados (ou manipulados).

Mas o mundo gira, e as flores tem a temperança da natureza, há tempo de brotar e por certo nem todas serão destruídas, porque a terra é fértil e o adubo está aí, pra ser espalhado.

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