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Déjà vu

Quando passava pela rua, me dei conta que terminava num beco escuro. A escuridão se afunilava no medo, na falta de perícia em enfrentar o desconhecido, na exigência de encontrar uma saída. Mas qual! Cada vez, o perigo absurdo e sinistro avançava, como numa névoa de filme de terror. Um uivo aqui, um ecoado lá. A impressão que tinha é que uma coruja cantava ao longe. Não que sugerisse mau agouro, o agouro já era tão presente, que nem valia à pena exortar estes medos menores. Mas precisava seguir o caminho e este parecia mais longo, embora a bifurcação na esquina se escondesse sob uma árvore, ou o que parecia ser árvore naquela escuridão de sombras e pequenos flashes nas calçadas. Na verdade, as calçadas se diluíam em uma terra lamacenta que se insurgia sob meus pés afundados numa passagem visguenta, como se um verme se apoderasse deles e os corroesse aos poucos, devagar, para sentir o gozo da tortura. Mesmo assim, afundando um pé e retirando o outro, afastei-me aos poucos, do que me p

Bentinho

Ele sempre chegava de mansinho. Tinha uma voz suave, expressando um tom sempre baixo e comedido e seu olhar parecia dizer muito mais do pensava. Era gordo e baixo, o cabelo grisalho e a pele morena. Trazia sempre consigo um acordeom e era incapaz de cometer qualquer impertinência ou abuso em sua permanência na casa. Certa vez, deu um barco feito à mão, um desses adornos para se colocar numa escrivaninha, ou num lugar mais reservado. Minha mãe ficara feliz com o presente e vez que outra, passava algum produto para que o mesmo permanecesse com a mesma aparência de quando ganhara. Ele chegava sempre à noite, carregado de malas, mochilas e trazia, vez que outra, algum presente, que sempre eram oriundos da alimentação, como uma rapadura de amendoim, um saboroso pão caseiro ou mesmo algum tipo de carne defumada para servir no jantar. Meu pai, cansado depois de um dia de serviço pesado, ficava um pouco incomodado com a presença, mas educado que era, não deixava esse sentimento tr

Os trilhos dos sonhos

Observei os trilhos da velha e desativada ferrovia. Os mourões corroídos, mostrando veios em suas entranhas, com pequenas lascas adormecidas, que aos poucos se desmanchavam sob o sol. Tudo aos poucos se consumia pela ação do tempo. Quem dera, pudéssemos, num passe de mágica, reconstruir a malha ferroviária, restaurar os trilhos reluzentes e seus dormentes com a bitola adequada, permitindo que centenas de trens atravessassem a cidade, encontrando seus destinos e construindo outros, mais longínquos e eficazes. Mas a mágica é só uma ilusão e como tal, apenas ilustra nossos sonhos. . Uma mulher de salto alto, caminha despreocupada por alguns dormentes restantes da velha derrocada. Talvez expresse intimamente a vontade de vivenciar uma história passada, um roteiro que fazia quando criança, ou um encontro que ousasse reviver. Caminha displicente e de vez em quando, se volta, oportunizando em meu olhar também um desejo de descoberta. . O que procura aquela mulher num lugar quase aba

O verão de nossos dias

Ilustração: pintura da artista Evanoli Resende Corrêa Tanto se fala no verão. No sabor das águas, no saborear da brisa, quando não dos ventos do Cassino. Acima de tudo, o bate-papo com os amigos. Verão é isso. Jogar conversa fora, sem muito compromisso. Talvez seja mais do que um andar ao léu, ou margear a praia de bicicleta nos fins de tarde. Ou como diz Vinícius na música, “um velho calção de banho , o dia pra vadiar”. Talvez seja mais do que conversar sem compromisso. Talvez seja mais do que lagartear ao sol. Talvez seja apenas viver. Viver plenamente, o que, às vezes, deixamos de fazer durante o ano. Claro que não se quer um tempo exclusivo de fazer nada. Mas um tempo pra nós mesmos, onde nem nos olhemos tanto no espelho, nem nos preocupemos tanto com a sandália gasta. Mas um tempo para ler aquele livro que prorrogamos sem a devida atenção, e que sempre nos vem à memória. Um tempo para nos dedicarmos à natureza. Para pormos em prática a tranquilidade dos dias. Para es

O DOCE BORDADO AZUL - 15º CAPÍTULO

Todas as terças-feiras e quintas publicarei capítulos em sequência do romance "O doce bordado azul". A seguir o 15º capítulo. Capítulo XV A transformação de Laura Laura agora sentia-se aliviada. A conversa com a filha lhe transmitia a segurança que sentia evadir muitas vezes, como se perdesse o controle sobre seus atos. Mas conversar com Lúcia, impor-lhe suas razões, tinha o poder de retomar aos poucos a segurança, talvez até a autoridade que mantinha sobre a filha, pois esta não conseguia encontrar qualquer falha em seu caráter que pudesse acusá-la. Voltou ao bordado com sofreguidão, experimentando uma criatividade instantânea, uma necessidade de concluir o trabalho com urgência. Sua autoestima estava em alta. Lúcia, ao contrário, continuava desanimada com tudo que acontecera. Ela lhe dera dicas de como mudar a situação adversa, mas não fora ouvida. Pelo menos, por enquanto. Mais dia, menos dia, aos coisas mudariam e ela a obedeceria, pois era a única alternativa vi