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sexta-feira, setembro 15, 2017

O barco à deriva

Greg olhou para a estante de poucos livros. Por um momento, pensou até que ficaria, mas já não havia tempo para discutir qualquer assunto, muito menos permancer naquela casa.

Os livros pareciam chamá-lo, pedindo que observasse suas capas, a contra-capa, o miolo costurado de uma maneira estranha para a época. E o conteúdo, o conteúdo viria por acréscimo. Não importava a ninguém o conteúdo e eles, os livros, pareciam ter vida.

Greg afastou-se um pouco em direção à janela que dava para o jardim dos fundos.

Na verdade, não era um jardim, era apenas um amontoado de flores de todos os tipos e alguns arbustos.

Olhava para baixo e tinha uma sensação de vazio, uma melancolia que não tinha como explicar.

O psicanalista dizia que era normal, ele era um homem melancólico, um cara acostumado com os sentimentos, o sofrimento, a dor que deveria ser exaltada, extrapolada, sentida e liberada na escrita. Quase catarse. Talvez o psicanalista tivesse razão. A melancolia era o seu ganha-pão. Com ela, conseguia escrever coisas densas, sentimentais e mais do que isso, provocantes. Precisava disso, precisava dessa escrita como respirar, mas quem se importava com isso?

Heloisa, na sua superficialidade de vida? Américo, no seu pensamento raso e fascista?

Quem se interessava com seus humores, amores, sofrimentos? Quem se importava com a sua vida?

Agora teria de sair para sempre. Dar lugar à promiscuidade intelectual, à mediocridade de temperamento e ineficiência coletiva. Comunidade? Para eles, isso era quase uma heresia. Eram mais individualistas do que autistas. Pelo menos, esses não se responsabilizam por seus atos.

Enganou-se consigo, enganou-se quando pensou que poderia ser igual a todo mundo. Não era. Era um cara diferente, estranho para os demais e cada vez mais diferenciado no mundo reacionário que passara a viver.

Américo sempre lhe dizia que um dia, tudo viria à tona, o mundo descobriria quem é o verdadeiro líder, o cara para quem o comércio, a economia, o capital daria a medalha da meritocracia.

Greg não dava a menor importância àqueles números e contatos com economistas e gente que só pensava em dinheiro.

Não que fosse avesso ao dinheiro, ao contrário, sabia que ele tinha a sua utilidade e devia usá-lo de modo sensato, pensava.

Heloísa não se envolvia com esses dogmas burocráticos e afeitos às grandes corporações financeiras. Ela só usufruía e isso lhe bastava. Cansada que estava da vida enfadonha do mundo da beleza, das celebridades e da busca do sucesso, encontrara em Américo a pessoa certa para estabelecer um vínculo permanente em consonância com a ambição. Estava com ele, estava com Deus. Por isso, passava por cima de tudo, até do amor.

E o amor, a poesia, o lirismo e a paixão estavam com Greg.

Greg se apossara dessas coisas, talvez pela melancolia.

Talvez o psicanalista estivesse certo. Era de sua essência. Não tinha como mudar.

Mas Greg amava Heloísa e houve um tempo em que foi correspondido. Houve um tempo em que o invólucro de sua liberdade emocional sustentava aquela relação. Ele amava pelos dois, amava duplamente até a décima potência.

Ela gostava dele simplesmente. Às vezes, se entendiava com seu papo adocicado demais, mas superava os maus momentos e se sentia renovada, cada vez que ele a beijava, cada vez que examinava os seus cabelos, enfiando os dedos com cuidado, como se escolhesse os melhores fios, para depois beijá-la com paixão.

Greg era estranho, pensava. À medida que era uma mansidão, um carinho personificado, também era um vulcão que a dilacerava, que a transformava numa lava incandescente ao ponto de custar a desvanecer. Ficava dias pensando nele, naquele amor fortalecido, apoiado na atmosfera de conforto que estabelecia uma ponte elétrica, quase turbilhão.

Mas um dia surgiu Américo e foi do nada, um amigo que Greg não via há muito tempo, talvez da época da adolescência.

Um cara extrovertido, cheio de ideias e principalmente ações. E não somente ações humanas, de atitudes e procedimentos, mas ações financeiras.

De repente, Greg ficava pequenino na frente de Américo.

Greg trazia um mundinho idealizado, Américo lhe mostrava um mundão lá fora, quase inatingível. Um mundo ao qual jamais havia sido convidada.

Greg a esperava sempre, junto aos seus livros, as suas leituras, a sua escrita, na esperança de que voltasse atrás e compreendesse que o amor devia estar acima de tudo, até de sua ambição, seu desejo de compartilhar a vida que Américo lhe oferecia.

Mas era tudo inútil.

Por isso, ele estava deixando a casa, deixando pra trás a vida comportada e civilizada que moldava a sua personalidade. Não devia mais viver entre o que lhe dava prazer, se o amor se dissipava em outras procuras. Não ousava transformar a melancolia em literatura, pois esta já não o completava.

Estava aturdido e o branco que a página produzia era muito mais do que uma falta de imaginação, era o excesso de conflitos sem solução, desequilíbrios em labirintos instáveis, dores que permeavam as margens e se confundiam com as palavras ainda sem qualquer sonoridade visual. Eram vírgulas que se interpunham entre versos ou expressões, transformando-as em resumos insalubres de pensamentos deformados.

Voltou-se da janela, abandonou devagar a visão do jardim, ficando ainda na retina algumas raízes de plantas que se soltavam da terra seca e sem vida. Tinha a impressão que tudo secaria ao sol e que nada restaria, além daquela terrível coroa de cristo que circundava o muro.

Dirigiu-se à estante dos livros, sentou-se na velha escrivaninha, abriu o notebook, esforçando-se em desviar os olhos do cenário inteiro e tomar uma decisão. Sabia o que faria, sabia que estava certo, sabia que o desregramento não fazia parte de seu comportamento. Seria, por fim, a saída para sempre da vida de Heloisa.

Que ficasse com o capital exterior, com as ações, com os dólares e euros de Américo.

Que ficasse com a América e o Imperialismo em suas mãos. Que mudasse o seu nome e se chamasse para sempre de Europa, quem sabe, encontraria um destino para fugir da crise?

Foi aí que Heloisa entrou no gabinete e se apoderou do que ele mais prezava: o seu conhecimento. Juntou tudo que havia, seus textos, seus livros, suas buscas e incertezas e o abraçou e o beijou e ousou fazer a última provocação, ou proposta, e que talvez ele aceitasse, por mais perversa e obscena fosse.

Então, encarou-a e por um instante, viu um espectro que parecia tomar-lhe os sentidos.

Vinha à mente, a traição, entretanto ela surgia com propostas ainda piores. Por certo, uma traição maior a qual ele deveria refutar com todas as forças, embora suas objeções pareciam definhar.

Ela o beijou com força e sua boca enchia a dele de baba que escorria pelo queixo, o que produzia uma sensação de propriedade. Era sua propriedade. Era seu.

Heloisa sorriu segura, abandonando os braços sobre seus ombros e encarando-o, com a boca próxima, a respiração quase única, argumentou alguma coisa absurda que ele nem queria ouvir.

Talvez por isso, duas lágrimas correram de seus olhos e ele tentou fechá-los e afastá-la, mas ela o impediu com a mão carinhosa, mas firme sobre sua boca. Em seguida, segurou o seu rosto, sorriu e o encheu de confiança. Ato contínuo, empurrou o seu rosto de modo a obrigá-lo a voltar-se para a porta.

Américo sorria e o fitava com carinho. Aliás, seu olhar carinhoso era dirigido aos dois.

Sem dizer nada, aproximou-se e os abraçou e ficaram assim, os três juntos. Precisavam tomar uma decisão. Américo parecia mais do que carinhoso, havia um vigor em seu corpo, em sua voz, como se um desejo quase incontrolável o atingisse. Suas mãos alternavam-se entre os seios de Heloísa e o pescoço de Greg, produzindo-lhe arrepios constrangedores, mas dos quais não ousava fugir.

Foi então que Heloisa, fez a pergunta decisiva, na verdade, uma conclusão questionada:

– Ficamos os três, só nós três juntos. Não podemos viver separados. Aceita Gregório?

Américo repetiu:


– Aceita?


Greg desviou com esforço o olhar para os livros, como se suplicasse ajuda. Era uma pergunta repulsiva, obscena, deplorável. Como não pensara nisso, quando deixara o barco à deriva a quem o quisesse tomar. Como poderia pensar numa proposta dessas? O capital, a exploração, o poder, a traição, a mediocridade, a ambição, o sonho, a poesia, o ... o idiota.

Ela então, suspirou, obrigando-o a encará-los. E perguntou:

– Então?


– Eu topo.

quarta-feira, julho 31, 2013

A CINZA EM QUE ARDI

Sempre a vira expor-se de maneira ridícula. Pelo menos para os padrões da época. Tinha lá seus quase oitenta anos e se vestia como uma mulher de trinta. Um vestido godê preto, que ao vento lhe subia nos ombros, aos meus olhos espantados de 10 anos. Na boca, um batom vermelho delineando os lábios sumidos. Um sorriso largo, de dentes miúdos, com falhas inevitáveis. Gostava de sentir-se assim, livre e talvez a sensibilidade aflorada na pele revelasse apenas o desejo de felicidade. Uma brisa, um aroma, um sopro de vida. Todos ou quase todos a chamavam de louca. Ou senil. Ou velha destemperada. Não lhe permitiam explosões em seus pensamentos, nem alfinetadas nas ideias que não se constituíssem um dedal. Mentes torpes, endurecidas pelo hábito higiênico e padronizado da maioria. Eu, como criança, talvez a seguisse no que tinha de melhor. E o melhor eram os livros que me oferecia. Livros tão antigos quanto à coluna que se comprimia nas vértebras enferrujadas. Livros amarelecidos, capas andrajosas pedintes de leituras, folhas finas, às vezes rasgadas. Pedaços de livros. Frangalhos de histórias. Mas que me faziam beber da fonte inesgotável da aventura, de trajetórias distintas das que seguia, dos vôos altos em que avistava outros prados.

Ela não arrefecia em mostrar-me este novo mundo, talvez porque visse em mim uma sagacidade desconhecida aos demais de sua família. Um desejo de ir mais longe ou de descobrir o que estava tão perto, mas tão perto, que nem fazia sentido.

Ela era assim: alegre, divertida, faceira, estranha. Um estranho absurdo, que talvez a lançasse aos limites da loucura. Mas esta insanidade voraz e desconhecida talvez a tornasse um ser humano íntegro em sua relação peculiar com a vida.

Claro que nem todos a entendiam, nem eu. Apenas não a julgava com o olhar de adulto. Por certo, encontrava em sua imaginação fértil uma afinidade com o universo interior de um pretenso escritor. Tudo que eu escrevia num papel encardido de embrulho era devidamente analisado, anotado e compreendido. Quando muito, uma nova visão, um ponto de vista próprio, difícil de atingir, mas que anunciava uma entrega desavisada com cheiro de sonho e gosto de felicidade.

Morava com um irmão tão velho quanto ela e os três sobrinhos. Todos a consideravam amalucada, rótulo vencido.

Eu sentia um certo constrangimento em me aproximar, tal era o preconceito que expressavam sobre ela.

Certa vez, ela me chamou pelo muro. Estendeu seus braços finos, com um caderno na mão, tão amarelo quanto os livros. As unhas vermelhas apertavam a capa cerzida na restauração improvisada. Percebi que havia uma espécie de tule ou renda branca empoeirada, revelando o guardado num daqueles baús imensos que tinha ao lado da cama. Espichei o meu braço, arrastando-o no reboco rugoso e peguei o caderno. Ela fez um sinal cúmplice com a boca, produzindo mil ruguinhas entre os lábios, pedindo que não o abrisse logo, apenas quando estivesse em casa, engendrando minhas histórias. Obedeci. Guardei o caderno embaixo do travesseiro para lê-lo à noite, sem muito tempo para decifrar o que havia nele. Fui para a escola, de lá para casa, o banho, um pouquinho de tv, o sono e esqueci o presente.

Acordamos pela manhã, eu e meus pais com os gritos. Uma ambulância e um olhar de desespero cercado entre braços fortes que a empurravam para dentro do veículo, como se pudesse resistir a não ser com gritos. Um cheiro de fumaça, de papel queimado, de lixo armazenado no fundo do quintal.

Meu pai perguntou ao sobrinho mais velho o que estava acontecendo, mas não houve tempo para respostas, a sirene já se ouvia forte, abrindo caminho na rua onde se formavam pequenos grupos. Todos comentavam, produzindo explicações que convinham. Alguns meninos no caminho da escola, paravam intrigados, observando a cena. Cenário perfeito para uma investida na imaginação por mais acanhada que fosse. Tudo conspirava para o senso comum se estabelecer: dispensar a tia louca para o sanatório.

Meu pai afastou-se do lugar enquanto minha mãe já tomava as últimas da vizinhança. Entramos, a hora se adiantava. A vida continuava. O mundo girava no mesmo ritmo. Um ritmo desordenado em nossa vida caótica. Lembrei de seu irmão mais velho, que nem aparecera. Devia ter ficado lá, constrangido pela covardia em não lutar contra um destino que mais cedo ou mais tarde seria o seu.

Não me contive e desviei do cuidado de meus pais e pulei o muro, pelos fundos do quintal. Atravessei o pequeno alpendre e passei pela cozinha, dirigindo-me ao quarto dela: reduto pouco visitado, embora lá havia conhecido e ganho os meus primeiros livros. Percebi que o irmão estava encostado no parapeito da janela que dava para o nosso pátio, um cotovelo apoiado, com a mão no queixo, amaciando a barba mal feita e na outra mão, um cigarro de brasa esquecida.

Afastei-me pé ante pé e abri a porta do quarto, lentamente. Observei a cama de mogno desarrumada, a cômoda com os porta-retratos atirados, uns sobre os outros como em efeito dominó, alguns livros rasgados. Mas meus olhos se detiveram espantados na velha estante de madeira que emoldurava toda a parede do lado esquerdo, oposto à janela. Estava vazia, uma estante em que moradores notáveis fizeram historia, um Kafka, um Machado, um Guimarães Rosa, um Joice, um Goethe, um Dostoevisk. Demandaram em derradeira missão, talvez desconhecida e definitiva, jamais almejada.

Corri para os fundos do quintal, segui a cortina que se antecipava aos meus olhos e um pequeno visgo de fumaça, como uma serpente que se insinuava, mostrava o caminho.

Ali estavam os livros, com suas brochuras à mostra como esqueletos restantes do incêndio homicida, costuras desalinhadas, pedaços de folhas em desenhos disformes com olhos negros produzidos pelo fogo, marcas indeléveis, transmutando o que era saudável em feridas fatais. Sangue negro escorrido nas cinzas, fome de vingança jamais aplacada.

Ainda salvei das últimas chamas, alguns farrapos que resistiam aos pingos de sereno. Parte de um livro de Almeida Garret, que li sujando as mãos na página quente, que me doíam os dedos: restos mortais de uma vida que se dissolvia na intolerância.

Seus olhos - se eu sei pintar

O que os meus olhos cegou

Não tinham luz de brilhar.

Era chama de queimar;

Vivaz, eterno, divino,

Como facho do Destino.

Divino, eterno! - e suave


Ao mesmo tempo: mas grave


E de tão fatal poder,


Que, num só momento que a vi,

Queimar toda alma senti...


Nem ficou mais de meu ser,

Senão a cinza em que ardi.

Nunca mais a vi. À noite, abri o caderno de capa cerzida e passei a viver assim, embasbacado, até descobrir o sentido das coisas que avistara. Ela teria feito um apanhado de minhas histórias, como incentivo a prosseguir no desvendar incessante da imaginação. Um dia, seria talvez um aprendiz de um daqueles escritores consagrados. Mais tarde, porém percebi que aquelas narrativas não eram minhas, a não ser a semelhança pela ingenuidade e a descoberta prenhe da vida. Eram histórias de há muito tempo atrás, talvez de seis ou sete décadas, quando ela era tão criança quanto eu e assim, iniciara também seus contos num caderno, hoje cerzido de linha azul, para preservar o sonho. E talvez, a lucidez.

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A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

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