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terça-feira, abril 04, 2017

Dessolidões

Meu vizinho sofria de uma doença estranha. Foi ao médico, ao curandeiro, ao pastor, leu todos os livros de autoajuda, e nada. A tal da moléstia não o deixava em paz. Era um vazio no peito, uma fome de não sei o quê, um vagar assustado pela casa, um temor de qualquer coisa que não se parecesse com movimento e folia. Não tinha o que se queixar, sua vida era perfeita, muito amado nas redes sociais, vivia em noitadas, antecipada aos happy-hours cercados por amigos. Mas o que acontecia que o aporrinhava tanto? Não passava um minuto sozinho, não tinha nada que o aborrecesse de verdade, até no trânsito costumava se divertir: carro potente, som atordoante, quase um trio elétrico.

A vida se lambuzava de prazeres e o mundo nada mais era do que o seu portal de acesso. Estava sempre entre os melhores, aparecia com as mulheres mais lindas, era conceituado como um grande executivo, um homem de negócios e de valor. Até que apareceu aquela dor no peito, aquela quase falta de ar, aquela opacidade no olhar que às vezes se revelava no espelho, aquele murmúrio no meio da noite, com um ah abafado de quem sofre. Mas ele não sofria, era feliz e bem sucedido. Que diabo de doença o acometia?

Até que um dia, sem querer uniu-se a uma turma muito diferente da sua. Um pessoal que costumava flertar com leituras, com estética, com natureza, com vida ao ar livre, com família, com pequenos prazeres jamais considerados por ele.

No meio do papo, à beira da praia, já anoitecendo, começou a se questionar. Perguntou-se o que fazia no meio daquele grupo. Entretanto, deixou-se ficar, já que parecia agradável, uma sensação ímpar, que nunca tinha experimentado. Então, começou a falar de si, de suas vitórias na escalada social, nos grandes negócios, as conquistas as mulheres mais lindas e invejáveis do país. Não houve muito interesse. Em seguida, começou a se queixar. Não entendia o sofrimento do qual era passível. Afinal, a casa era sempre cheia de gente, onde ia, se reunia com as pessoas mais glamorosas, e mesmo assim, sentia este vazio, esta dor no peito, este desconforto que o atormentava. Até que um deles, um barbudo que parecia um guru oriental concluiu que ele sofria de dessolidão.

O prato estava cheio demais, de interesses perdulários, de objetivos materiais e muita, muita aparência. Não gostou do que ouviu, mas à noite refletiu.

É, meu vizinho sofria de dessolidão. Mata mais do que a solidão bem vivida.

sábado, outubro 29, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 15

No capítulo anterior, Santa sente-se isolada da família e até mesmo Linda que a ajudaria, parece empenhada em desestabilizá-la. De repente, Santa percebe que alguma coisa nova está acontecendo, da qual ela não tem o mínimo conhecimento. Linda tenta convencê-la de que está confusa, a ponto de negar tudo que acontecera, inclusive as suas conversas. Por fim, convence Santa a tomar uma xícara de chá que a deixa zonza. A seguir o décimo quinto capítulo de nosso folhetim dramático, neste sábado,29/10/16.

Capítulo 15

Santa aos poucos, acorda com a sensação de que levou uma bordoada na cabeça. Não sabe com certeza o que aconteceu, lembra apenas que Linda estava ao seu lado e que teve a sensação de desmaiar. Olhou em torno e tentou levantar-se. Por que estava ali afinal? Se desmaiara, por que Linda não a ajudara? Esforçou-se para sentar na poltrona, sentindo-se um pouco zonza. Lembrava que Linda havia trazido uma xícara de chá.

Neste momento, Linda aparecera, mostrando-se ansiosa e preocupada:

— Ainda bem que a senhora melhorou. Eu fui chamar ajuda e não encontrei ninguém, por isso, havia saído.

— O que aconteceu, Linda? Eu estava no chão, tive uma dificuldade imensa em levantar-me. Lembro que tive uma sensação de desmaio.

— É verdade, dona Santa. Eu fiz tudo para acordá-la, mas não consegui, por isso fui buscar ajuda.

— Mas e Sandoval? E os demais empregados?

— São uns inúteis, cada um nas suas tarefas. Quando consegui comunicar-me, já era tarde demais. Então decidi chamar o médico e vir para saber como estava.

— Descarte o médico. Estou bem.

— Tem certeza de que está bem, dona Santa? Não gostaria que a minha amiga piorasse.

— Estou bem, sim. Mas e Sandoval, você não me disse onde estava. Que aconteceu com ele?

— Ele havia saído.

— Está bem, então acho melhor ir para o meu quarto. Estou cansada.

— Eu posso ajudá-la.

— Linda, parece que nós estávamos conversando e o assunto me parecia importante, só não consigo lembrar. De que se tratava?

— Ah, nada importante, dona Santa. Não quero constrangê-la de modo algum.

— Como me constranger?

— Acho que disse uma bobagem, é que a senhora me pareceu muito confusa. Não dizia coisa com coisa. Mas vamos esquecer isso. Vou lhe trazer alguma coisa para comer, a senhora vai para o seu quarto e descansa. Amanhã, com certeza, estará melhor.

— Você quer dizer que eu me constrageria por estar confusa? É isso?

— Esqueça isso, dona Santa. é uma bobagem.

— Espere aí, Linda. Agora estou me lembrando. Você negou o seu passado, tudo o que sabemos e compartilhamos juntas. Você negou que tem um filho com o meu marido.

— Eu já tinha lhe pedido para esquecer esta história maluca.

— Não, não quero esquecer, ao contrário, quero lembrar tudo muito bem.

— Quem sabe, conversamos isso noutra hora? Olhe, tomei a liberdade de trazer um comprimido para acalmá-la.

— Não preciso de calma – ao dizer isso, sente uma forte dor de cabeça acompanhada de uma leve tontura – meu Deus, parece que não estou bem mesmo.

— Que está sentindo, dona Santa? Por favor, me fale, me ajude a ajudá-la!

— Estou bem, Linda. Não foi nada.

— Quem sabe tomando a pílula que trouxe, vai melhorar? Quer tentar, foi o seu médico que receitou.

— Está bem. Dê-me este comprimido e vamos para o quarto. Quero dormir e esquecer tudo isso. Amanhã, colocarei tudo em pratos limpos.

— É o que mais desejo, dona Santa. Não gosto de vê-la assim, com estes transtornos. Quero-a lúcida, como sempre foi.

Santa não responde. Acha melhor não questionar mais nada à Linda que parece determinada em pôr um véu em tudo que ela pensa. Na verdade, quer livrar-se dela e ir para o quarto. Está exausta e sua vontade é não ver ninguém. No entanto, sente-se fraca e precisa da ajuda da empregada, que a ampara até o quarto.

Na mãe seguinte, Santa acorda com dificuldade, como se o mundo viesse abaixo. Sabia que deveria consultar o médico, mas ao mesmo tempo percebia que havia alguma coisa errada nesta situação. Refletiu muito em tudo o que acontecera, a mudança extraordinária de Linda, a ausência de Sandoval e até mesmo dos filhos. Então, tomou uma decisão, que parecia a correta. Quando Linda apareceu, ela resolvera tomar o café na varanda, que se ligava ao jardim.

Linda aproximou-se, solícita, tentando agradá-la.

— Não precisa se preocupar em servir-me, Linda. Ana já fez o serviço com muita dedicação.

— Esta moça está há pouco tempo aqui, é muito inexperiente.

— Mas está aprendendo. É o que importa.

— Sem dúvida. Espero mesmo que ela progrida. A senhora precisa de pessoas que lhe ajudem, não a atrapalhem. Não é por me gabar, mas sempre fui uma presença amiga, e só lhe falava ou a servia, quando me pedia.

— Então, me faça um favor, Linda. Diga-me o nome do rapaz que trabalha no jardim, o último que você contratou.

Linda tem um leve estremecimento, mas se contém. Pergunta, dissimulada de quem se trata.

— Você já o esqueceu? Se não me engano, ele é seu sobrinho.

— Ah, a senhora se refere ao Fernando. O que pretende com ele, dona Santa?

— É um assunto que terei apenas com ele. Acha que devo informá-la antes, Linda?

— Não, de forma alguma dona Santa. Eu, na verdade, não tenho nada a ver com isso. Apenas, fiquei preocupada, a senhora sabe como são estes rapazes hoje em dia, eles estão sempre querendo subir na vida, e fazem qualquer coisa para conseguir o seu objetivo.

— O seu sobrinho é deste naipe?

— Não, acho que não, mas sabe como é, tem pouca maturidade, pode ser influenciado por outras pessoas.

— Então você pode influenciá-lo a se comportar bem. Fale com ele e diga que quero conversar com ele no gabinete, ainda hoje à tarde.

Linda suspira, nervosa. Mas em seguida, conclui que fará o que a patroa pediu. Em seguida, tenta mudar de assunto:

— Parece que a senhora está muito bem hoje, não. Eu vi quando o seu Sandoval saiu bem cedinho, mas a senhora decidiu esticar um pouco mais na cama.

Santa não respondeu. Linda então, prossegue, fingindo-se animada:

— Fico contente que tudo tenha passado, aquele seu mal estar foi coisa pequena, com certeza, embora eu ache que devesse procurar um médico.

— Linda, me diga uma coisa, você aprendeu muito nesta casa. Você teve até uma professora particular que a ajudou a escrever bem, a ler, a falar com muita propriedade. Você aproveitou as oportunidades. Acabou inclusive fazendo um curso técnico.

— Sim e sou muito grata por isso, dona Santa. Eu jamais poderei agradecer o que vocês fizeram por mim. Mas por que está falando sobre isso?

— Nada, estou só lembrando. É bom a gente de vez enquanto refrescar a memória, para saber em que patamar estamos dentro de determinada realidade.

— A senhora me deixa assustada. Parece que fiz alguma coisa errada.

— E não fez?

— Eu sou sua amiga, dona Santa. Sou capaz de dar a minha vida pela senhora.

— Então, não vamos mais falar nisso, Linda. Sente aí e tome café comigo. Hoje será um novo dia.

Linda sorriu, aliviada. Ainda perguntou se deveria sentar-se à mesa, mas pelo gesto impaciente de Santa, decidiu obedecer. Serviu-se e esperou que a patroa propusesse alguma coisa.

Foi em vão. Alguns minutos depois, Santa acabou o desjejum e afastou-se. Linda a acompanhou sorrindo, mas só por um instante. Quando Santa desapareceu no interior da casa, ela fechou a cara, acabrunhada.

Em seguida, pegou o celular e ligou para o jardineiro.

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/salada-verão-verdes-vegetais-775949/

quinta-feira, julho 07, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 12º CAPÍTULO

No capítulo anterior percebemos que as tramas se desenvolvem de modo a comprometer várias pessoas e parece que todos se acusam sem a menor preocupação. Embora alguns sejam reticentes, como um dos Silva, o dono da oficina, algum detalhe sempre é revelado, como o fato de Rosa ter um caso com o mecânico que trabalha com eles. Por outro lado, Júlio conseguiu algumas revelações de Ana, que vira o carro do médico no dia do assassinato de Taís. Aproveite o 12º capítulo de nosso folhetim policial.

CAPÍTULO 12


Rosa, a maestrina e porteira do hotel teria realmente alguma relação com o tal mecânico chamado Paulo? E o que ele estaria fazendo na capital? Teria a ver com a tragédia da filha do farmacêutico? Júlio não consegue parar de pensar no que ouvira, do homem da oficina, de Taís, do médico e da própria Sara, que o havia contratado e também acusara Rosa. Todos pareciam saber de tudo e falavam à meia boca. A não ser Ana, a jovem, que se revelava bem objetiva nas respostas. O que havia de tão misterioso nesta cidade? O que todos queriam esconder?

Júlio decidiu fazer o lanche habitual para depois dirigir-se à casa de Rosa, que hoje não viera ao hotel.

O garçom se aproximou amistoso.

– Então, gostou do lanche?

– Tanto quanto ontem. Perfeito.

– Acho que na alta temporada, o patrão vai aceitar a sua sugestão de lanche e começar a servir todos os dias para todos.

– Hum, boa ideia.

– Só que pra ser sincero, não acredito que dê certo. Aqui neste fim de mundo, nem no verão vem muita gente. Uma meia dúzia de gatos pingados.

– Você… Como é o seu nome mesmo?

– Anderson.

– Anderson, você sempre morou aqui?

– Eu nasci aqui, morei uns meses na capital, mas não me adaptei. Acabei voltando.

– É, a vida é dura. Na cidade grande, a gente tem que ter uma boa estrutura.

– O senhor falou tudo.

– Anderson, eu gostaria de saber onde mora a senhora que trabalha aqui no hotel, a da portaria.

– Ah, a Rosa? Sim, claro. Mora nessa mesma rua, umas seis quadras adiante.

– Ela é a mãe de Paulo, o mecânico?

O rapaz sorri, irônico:

– Dizem que é mãe dele, mas é o que a cidade quer ouvir. Ela é uma mulher madura e o povo não aceita.

– Não aceita o que?

– Que ela seja amante dele.

– Amante?

– Sim, preferem que seja mãe. É uma gente muito tacanha.

– Mas como vão dizer que é mãe se no passado, nunca a conheceram como mãe dele.

– Vai pensar o quê? Essa gente é maluca. Preconceituosa e louca, isso sim. Pra eles, o que vale é a aparência. Não importa se a pessoa é puta ou ladra, o que vale mesmo é como ela se apresenta na sociedade. Mas falando do Paulo, o que dizem, que o verdadeiro problema é que ele veio pra cá, procurando a mãe que não via desde pequeno. Encontrou essa tal de Rosa e ela o ajudou alugando um dos seus apartamentos. Dizem por aí, que ele nunca pagou nada e para completar, todos passaram a dizer que ela era a mãe dele.

– Que coisa absurda, você não acha?

– Tudo nesta cidade é absurdo, doutor.

Júlio voltou para o quarto para tomar um banho e trocar de roupa, quando recebeu uma ligação no quarto. Esperava que fosse seu amigo Jairo justificando ter dado o seu nome ao farmacêutico para investigar o caso. De todo modo, foi uma boa medida. Afinal, seria recompensado e cobraria uma bela quantia ao pobre homem. Não poderia é ser desonesto com a tal Sara Soares e deveria rescindir o contrato. Por outro lado, havia um caso concreto, um homem que precisava encontrar o assassino da filha ou pelo menos, saber o que tinha acontecido. Quanto à Sara, tudo o que dissera parecia ser uma justificativa para vingar-se de Rosa. Ele precisava esclarecer o crime, pois os fatos transcorriam de modo a condenarem uma pessoa inocente, como o médico ao qual o farmacêutico acusava com tanta veemência. Até que provasse o contrário, qualquer um seria o culpado, até mesmo a própria maestrina, como alguns suspeitavam. Também havia a hipótese da jovem ter se suicidado. Ou quem sabe, fora um acidente? O telefonema, porém não era de seu amigo e Júlio surpreendeu-se em saber que Rosa estava ligando para ele. Não pretendia sair àquela hora, deixaria a conversa com a mulher para o dia seguinte, mas ela demostrava muito interesse em falar-lhe. Na verdade, não se pode perder a oportunidade quando aparece assim, pensou o detetive. Talvez fosse um fato novo e se a maestrina queria tanto falar com ele, é porque havia alguma coisa a ser investigada.

Algum tempo depois, Júlio estava na frente do portão de grade, esperando ser atendido. Observou que uma luz se acendeu bem ao fundo, no interior da casa, deixando um pequeno foco para a calçada de lajotas. Olhou em torno e percebeu os olhos de um cão que o observava em silêncio. Tocou a campainha novamente e o animal rosnou sem mover-se. Rosa, em seguida apareceu, pedindo que o detetive aguardasse que ela levaria o cão para uma área, ao lado da casa. D’tartagham era um cachorro tranquilo, mas não se pode confiar, informou Rosa sorrindo.

Júlio voltou-se para o carro, que deixara sob o holofote de um poste e ficou esperando por Rosa. Por um momento, pensou o que estava fazendo ali. Um homem de sua experiência, de repente, atender o chamado de uma mulher, que poderia se configurar numa cilada. Respirou fundo. Ajeitou a gola rolê, cobrindo ainda mais o pescoço, fechou o paletó e aguardou que ela voltasse, com certa ansiedade. Em seguida, tentou desvencilhar-se daqueles pensamentos que imaginava serem absurdos, afinal, quem era Rosa, uma professora, maestrina do coral da igreja e em alguns dias da semana trabalhava na portaria do hotel. Como poderia pensar em alguma cilada de uma mulher como aquela? Por outro lado, jamais poderia imaginar numa história tão absurda com o mecânico da oficina, contudo, sempre fica a dúvida, afinal quem pode entender a psicologia humana? Cada um é como é, pensou. Nisso, Rosa apareceu, abriu o portão de ferro e pediu que entrasse. Júlio sentou-se numa poltrona próxima à área onde estava o cachorro e mesmo na escuridão podia ver os olhos do animal pela vidraça da janela, o qual parecia à espreita de algum movimento. Ao mesmo tempo, talvez pela área desembocasse alguma brisa, pois sentia o ar escasso no ambiente. Ela entendeu a dificuldade de Júlio, pois perguntou se queria que abrisse a janela.

–Se acha que não ficará muito frio, preferiria sim. - Respondera, agora mais tranquilo.

Ela abriu um pouco a persiana, depois sentou-se no sofá a sua frente. Antes perguntara se ele não gostaria de uma bebida.

–Não, não, obrigado. Acabei de fazer um lanche substancioso. Bem, parece que você queria falar comigo, Rosa.

– Pois é, pensei inclusive que o senhor não viria. Deve ter tantos compromissos e eu incomodando-o uma hora dessas. Mas é que não gostaria de falar-lhe no hotel, muito menos na igreja, onde temos o coral. Lá há sempre muita gente, principalmente neste horário.

– Não se preocupe, Rosa. Se eu não pudesse, diria na hora em que me convidou. Parece que você está preocupada com alguma coisa.

– Pra falar a verdade, estou sim. O senhor sabe que eu sou maestrina do coral da igreja.

– Sim, e pelo que me consta tem um bom grupo lá.

– Sim, por isso tenho muitos conhecidos, alguns amigos de algum tempo.

Júlio aquietou-se, esperando que ela falasse. Percebeu que Rosa estava disposta a contar-lhe alguma coisa muito grave, mas não poderia apressar os fatos.

Rosa levantou-se, foi até a janela que ficava na outra extremidade da sala e observou a pouca luminosidade do jardim. Perguntou, displicente:

– O senhor reparou com o meu jardim é escuro? Já mandei trocar as lâmpadas várias vezes, mas os marginais que passam por aqui jogam pedras e acaba nisso, nessa escuridão. Já estou desistindo, sabe?

– Mas é uma cidade tão pequena. Não reconheceram os vândalos?

– Ninguém dá a mínima para o que acontece com a gente, nessa cidade. Eu posso ser assassinada, posso morrer a qualquer momento e ninguém faz nada.

– Você parece muito nervosa, Rosa.

Rosa voltou a sentar-se e pôs as mãos na cabeça, como se fosse chorar, num gesto que parecia de desespero. Num segundo, porém, se recompôs e após um longo suspiro, levantou a cabeça, encarando Júlio de um modo bastante grave. A seguir, perguntou, disfarçando o nervosismo:

– Tem certeza de que não quer alguma coisa, detetive? Posso servir um suco.

– Não, não, como lhe disse, Rosa, para mim está de bom tamanho. Quero apenas conversar com você, saber o que lhe aflige, por isso vim aqui.

Ela permaneceu em silêncio, como se temesse prosseguir no assunto. Júlio então, a encorajava:

– Você me disse que tem muitos conhecidos no seu grupo, alguns amigos. E então, queria falar sobre isso, não?

– Sim, entre os meus amigos está o Pe. João. Ele é uma pessoa boníssima, tem os seus defeitos, como todo mundo, mas tem se mostrado um grande amigo.

– Há outras pessoas que considera amigas, dentro do coral?

– Eu tinha uma grande amiga, a esposa do Seu Domingues.

– E ela deixou de sê-lo?

– Infelizmente, ela morreu. Não sei se o senhor teve a oportunidade de conhecer o Seu Domingues? – Júlio acenou negativamente e ela prosseguiu. – É um velhinho muito querido aqui da cidade, o senhor vai encontrá-lo sempre jogando damas na praça ou então sentado tomando sol. Também passa muitas horas na loja de conveniência, onde trabalha uma nossa colega do coral, Marília.

– Por que ele fica lá?

– Aquela loja era dele há muitos anos. Tinha um posto de gasolina, a loja e até uma farmácia. Quando a mulher morreu acabou vendendo tudo, vive sozinho num apartamento, mas gosta de ficar na loja, tomando um café e conversando. Isso, quando está de bom humor, porque de uns tempos pra cá, anda muito amargurado.

– Pela morte da mulher?

– Pela idade, pelas dificuldades que possui como todo idoso, naturalmente e claro, sim, pela morte da mulher.

– É normal, você não acha?

– Até certo ponto, sim, mas é que segundo ele, tem outros motivos.

– Outros motivos?

– Bem, dizem que a mulher morrera em virtude de um erro médico. A coitada tinha diabete e parece que o médico deu uma dose errada, sei lá, uma coisa meio absurda, sabe?

– Este médico que atualmente é residente no hospital?

– Sim, o dr. Ricardo. Mas isso não aconteceu agora, foi no tempo em que ele era apenas um estagiário. Tinha se graduado, mas ainda não havia passado na prova de residência, por isso ficara estagiando por dois anos na cidade. Pelo menos, é isso que dizem.

– Esta história é comentada na cidade ou apenas pelo tal de Seu Domingues?

– Dá na mesma, detetive. Todo mundo sabe o que acontece. Seu Domingues deve ter comentado com alguém, e certamente passou de um para outro e todos acabam falando a mesma coisa.

– É, falam de todo mundo. Mas me diga, Rosa, o que a deixou preocupada, além das histórias de seus amigos, deve haver alguma coisa que diga respeito a você?

– Por exemplo?

Júlio pensou em disparar rapidamente, a palavra Paulo, o mecânico, mas se conteve. Não era o momento de abrir o jogo. Precisava saber mais, descobrir o motivo do chamado de Rosa. Então, deu meia volta e remendou:

– Por exemplo, pessoas do seu grupo que a importunam. Pensei que um desses a incomodasse, ou que a deixava apreensiva.

– Bem, acho que o senhor tem razão. Mas falei na mulher do Seu Domingues, chamava-se Lorena, sabe, era uma criatura dócil, amiga. Isso me deixou apreensiva, sim, porque é o caso da diabete. O senhor deve saber que há casos de pessoas que morreram envenenadas com insulina, nem sei se se pode afirmar assim, chamar de envenenamento, mas aconteceu de pessoas que não tinham a doença, morreram por terem sido injetadas nelas o medicamento.

– Isso foi provado?

– A polícia está investigando. Alguns casos foram arquivados. Não há como provar, sabe.

– Você acha isso possível?

– Eu fiquei pensando neste caso da Lorena. E depois me falaram de outros casos semelhantes, não de erro médico, mas relacionados à insulina. Para encurtar o caso, detetive, eu estou com medo, porque hoje fui ao médico, fiz uns exames e descobri que estou com diabete. Eu estou com medo de morrer doutor!

– Rosa, você se deu conta que há dois tipos de crimes na cidade e que um determinado grupo de pessoas chama a atenção e dá muita importância a um tipo de crime e outro grupo está muito preocupado com o outro.

– Como assim, detetive?

– Há estes crimes que você descreveu, sobre pessoas que foram, segundo o que se comenta, injetadas com insulina e morreram por não possuírem a doença, não é isso? Há outras pessoas que falei, como Sara Soares e parece que seu filho também foi vítima disso, embora não tenha conversado com ele ainda.

– O senhor se refere a Raul.

– Sim, parece que ele faz parte do coral e é muito amigo seu, não?

Rosa parecia desconsertada. Caminhava de um lado para o outro da sala, como se não soubesse o que dizer.

Júlio concluiu:

– Mais tarde, eu faço questão de falar sobre ele, mas quero completar o meu pensamento. Falei no primeiro tipo de crimes que estão acontecendo aqui, mas há um outro, que se refere a uma moça que foi assassinada ou se suicidou, não sabemos, mas é um caso que envolve alguns suspeitos e muita dúvida pela polícia. Há um pai em absoluto desespero, que quer justiça. Há um médico, este mesmo que é residente na cidade, que está sendo acusado e ninguém fala, a não ser algumas pessoas interessadas no assunto. Você entendeu o que eu quero dizer, Rosa?

–Eu soube sobre o crime sim, mas para mim, a polícia está investigando e vai chegar a uma conclusão. Mas no primeiro tipo, como o senhor diz, a coisa está muito obscura. Por isso, eu estou com medo. E quanto ao médico, ele me parece envolvido nos dois tipos.

– Mas vamos falar sobre o seu amigo Raul.

Rosa respirou fundo. Não gostaria de falar em Raul. Como dizer-lhe que a presença de Raul a deixava feliz, que era uma pessoa muito bem integrada no curso, o único que não professava a religião católica, mas que gostava do que fazia. Estava sempre pronto a aprender novos acordes, aceitava as críticas, era um participante que ajudava ao crescimento do grupo.

– E você Rosa, eu lhe peço que seja sincera, já que pretende que eu possa ajudá-la de algum modo. Você gostava de Raul? Quero dizer, sentia alguma atração por ele, como homem?

Rosa rapidamente corou, sentindo-se pouco à vontade com a pergunta de Júlio, mas tentou responder com firmeza.

– Eu sou uma mulher madura, detetive, ele é um homem que talvez tenha os seus trinta e poucos anos.

– Mas e daí, isso interfere em alguma coisa?

– Não sei, pode ser que não, mas em se tratando dessa cidade…

– Deixemos a cidade de lado e o que o povo pensa desse tema. Responda objetivamente a minha pergunta, por favor.

– De modo algum! - Responde categórica. - Ele foi um bom amigo, apenas. Sentia uma atração por ele, não vou negar, mas não fisicamente. Era uma coisa de carência, de querer ajudá-lo, talvez até meio materna, mas nunca passou disso.

– Você disse que ele era um bom amigo, então deixou de sê-lo?

– É uma longa história. Raul andou me apresentando, sabe? Começou a fumar maconha, talvez tenha sempre usado, mas ficou meio irresponsável. Certa vez, entrou em minha casa com a minha chave, drogou o meu cachorro, a partir daquele dia, fiz tudo para que saísse do coral. Só que nesse meio tempo, segundo o que dissera, tentaram matá-lo, injetando insulina, como nos outros. Só que ele não morreu, porque tinha a doença e os criminosos não sabiam.

– Então a coisa é mais séria do que pensamos. Precisamos fazer um relatório, vou tentar pegar informações com a polícia sobre esses casos. Entretanto, estou muito preocupado com o outro caso.

– Antes detetive, me diga, não acha que estou com razão por ter medo? Se descobrirem que sou diabética, poderão me matar também!

– Mas quem faria isso? Qual seria o motivo para matar todo mundo que tem diabete, embora pelo que entendi, só morre quem não tem a doença. Então, não tem sentido tentarem matar quem está doente.

– Sei lá, talvez alguém que quisesse se vingar.

– Alguém como o Sr. Domingues que você falou? Afinal, a mulher morrera por um erro médico. Ela tinha a doença. Vai ver que ele queira se vingar do médico, fazendo morrer todos que não tenham a doença e talvez jogando a culpa nele.

– Mas isso é um absurdo.

– É um absurdo, mas os criminosos estão aí para provar que cometem absurdos.

–Talvez o senhor tenha razão, mas me diga, como pode ajudar-me, detetive?

– Esperando que você me conte tudo o que sabe, Rosa.

– Como assim? Eu já lhe contei tudo o que sei, esteja certo.

– Você conhece o ex-namorado da jovem assassinada, Taís?

Rosa estremeceu. Deu um salto para trás, como se fosse atingida por um projétil vindo da janela. Lá fora, D’tartagham ladrou com extrema fúria, que impressionou Júlio. Rosa então aproximou-se de um pequeno móvel que tinha algumas bebidas e serviu-se de um licor. Ofereceu-o ao detetive, que recusou mais uma vez. Tomou-o de um só gole e comentou, distraída:

– Não sei exatamente a quem o senhor se refere.

Júlio foi categórico:

– Refiro-me ao mecânico que trabalha na oficina dos Irmãos Silva. Pelo que me consta, você o conhece.

– Sim, devo conhecê-lo, como o senhor sabe, todos conhecem a todos nesta cidade. - Respondeu ansiosa.

– Mas pelo que um dos Silva me afirmou, você o conhece muito bem, até o tem ajudado desde que veio para cá, à procura da mãe. Se não me engano, você até alugou um apartamento em troca de alguns favores.

– Do que o senhor está falando detetive? A maneira como fala está me ofendendo. Estes miseráveis Silva nem sabem o que estão dizendo.

– Na verdade, fui irresponsável, agora. O Silva disse que o mecânico a conhecia e que você o tinha ajudado, mas não me contara tudo isso que relatei. Eu confundi as fontes.

– Qual foi o vagabundo que lhe informou isso?

– Não interessa agora, Rosa. Quero saber se é verdade, se você conhece o mecânico Paulo e se tem alguma relação com ele. O que significa este rapaz para você?

Ao ouvir a pergunta sobre Paulo, Rosa emudeceu. Ele então mudou de tática.

– Está bem Rosa, então vou tornar a perguntar sobre a filha do farmacêutico. O que você tem a me dizer sobre o crime?

Rosa o olhava intrigada. Parecia que as coisas estavam por demais confusas, para enveredar por aquele assunto. Afinal, não foi para isso que chamou o detetive. De súbito, respondeu, irritada.

– Eu acho que ninguém a matou, ela devia estar tomando um daqueles banhos que costumava e despencou rio abaixo.

– Como assim?

–Ela tomava banhos a qualquer hora do dia e da noite e nua, como veio ao mundo! Era uma leviana! Ou o senhor pensa que era uma santinha?

– Disso eu não estava informado. Ninguém comentou. Viu que não é tudo que falam na cidade?

–É, talvez só falem o que interessa para eles, para agredir alguém.

– Você a considerava uma leviana por isso?

– Só por isso, não. Ela era uma jovem muito atirada, dava em cima de qualquer homem que lhe passasse à frente. E não pense que eu é que achava isso, toda a cidade comentava!

–E quanto a Paulo?

Rosa prosseguia no mesmo tom enfático, diferente da mulher tranquila e ponderada que demonstrava ser.

–O que eu tenho a dizer, é o que todos dizem por aí. Taís era namorada dele e o traiu com aquele médico. Não tinha compostura. Era uma desequilibrada. Além disso, fumava maconha e bebia como uma viciada!

– Meu Deus, tudo isso! Mas namorou Paulo durante muito tempo?

– Uns dois anos. Ele pretendia até casar-se com ela, contra a minha vontade é claro. Mas ele gostava muito dela, estava encantado e passava a mão por cima de todos os seus defeitos. Ela fazia qualquer coisa para conseguir as drogas, até se prostituir. Era uma infeliz!

Júlio percebia que os olhos de Rosa brilhavam, como se estivesse falando com a própria vítima. Então, perguntou, oportuno.

– Rosa, quer dizer que você odiava esta moça.

– Com todas as forças de minha alma. Ela era capaz de tudo e ia acabar com a vida de Paulo.

– Você ama muito este rapaz.

Ela fez um silêncio pesado. Então, levantou-se do sofá e aproximou-se de um balcão escuro, onde pegou um maço de cigarros. Retirou um, deixou entre os dedos, mas não o acendeu. Encostou-se no balcão. Quando falou, o fez quase numa súplica, encarando fixamente o detetive.

– Dr. Júlio, eu lhe peço, esqueça esta história. Volte para a sua cidade, essa moça, pobre coitada, a gente sabe, não merecia isso. Veja bem, não vai resolver nada. Nem o senhor nem ninguém vai trazê-la de volta.

– Por que quer que eu esqueça o caso? Fui contratado por Lucas, o pai da moça.

– Lucas, aquele maldito! Por que não deixa a filha descansar em paz?

– Mas qual é o motivo de querer deixar tudo como está? Não é melhor resolver o problema?

– Não, doutor, não é melhor. - E quase chorando. - Tenho certeza de que vão acusar o Paulo, só porque ele é um pobre coitado. É a parte mais fraca. Jamais vão acusar aquele doutorzinho de merda, o senhor pode ter certeza.

Júlio a ouvia surpreso. Fez uma pequena pausa e logo argumentou:

– Você sabe que na condição de detetive, preciso saber algumas coisas, como por exemplo, qual é a sua verdadeira relação com este rapaz.

Ela largou o cigarro sobre o balcão, desistindo de fumar e voltou a sentar-se no sofá. Enxugou algumas lágrimas e tentou parecer mais calma.

–Ele não é nada meu, mas me considera como uma mãe e diz para todo mundo que sou a mãe que procura há muito tempo. Eu, apenas lhe dei guarida, um dia. Ajudei-o quando precisou e foi ficando aqui, num apartamentinho que tenho para alugar. Sabe, doutor, ele tem a cabeça fraca, não é muito inteligente. Mas para mim, todos são iguais, por isso, eu o considero muito. Não quero que sofra por causa daquela desmiolada!

– Sinto muito, Rosa, não posso ajudá-la neste sentido. Não posso fazer nada. E depois, se acharem o verdadeiro culpado, ele será isento de tudo, se for realmente inocente.

– Não, vão fazer tudo para colocá-lo na prisão, tenho certeza!

– Mas afinal, por que motivo? Quem está mais enrascado, na minha opinião, é o médico. A menos, que existam outros fatos que eu desconheça.

– Não, não há nada. Só posso dizer que ele é inocente.

– Pois se ele é inocente, não tem por que se preocupar, precisa só responder algumas perguntas, como por exemplo, onde ele estava no dia da morte da moça.

– Isso, o senhor terá que perguntar pra ele. Eu não posso lhe dizer nada.

– E ele foi fazer o que na Capital?

– Ele foi lá buscar uns documentos. Foi assaltado certa vez na capital e agora os documentos foram encontrados.

– E quanto a você?

– Quanto a mim? O que quer dizer? Eu não tenho nada a ver com esta história.

– A mesma pergunta clássica: onde estava no dia do crime?

– Eu não sei. Como vou me lembrar? Nem sei o que comi no jantar ontem! Mas o senhor devia pesquisar o tal médico, porque o carro conversível dele estava parado por lá, bem na outra margem do rio, próximo à ponte. Já soube disso?

– E como você soube? Rosa, já percebeu que de repente, passou a incriminar o médico sobre um crime que você nem estava interessada? Parece que este rapaz é odiado nesta cidade, porque é culpado de tudo.

– Não sei, ouvi falar. Todo mundo fala tudo nesta cidade, lembra? Eu não tenho nada contra o médico, nem contra ninguém. Como lhe disse, estou assustada.

– Em todo caso, é bom você tentar lembrar o que fazia naquele dia, porque você demonstrou que odiava esta moça.

– O senhor não vai querer me acusar, detetive?

– Eu não acuso ninguém, Rosa. Procuro provas, só isso.

– Bem, acho que nosso assunto se esgotou. O senhor em vez de tentar me ajudar, acabou me acusando.

– Como lhe disse, não acuso ninguém. Mas há de convir que a sua reação foi muito estranha. Defendeu este rapaz, o tal mecânico com unhas e dentes, como se eu estivesse acusando-o de alguma coisa.

– Eu já lhe disse, doutor, estou muito nervosa e Paulo é uma pessoa muito boa, não merece que o acusem. Sei que mais cedo ou mais tarde, vão fazer alguma maldade contra ele, só porque ele andou com esta moça. Mas tenho certeza de que tem muito mais gente envolvida.

– Isso nós vamos descobrir!

quinta-feira, junho 30, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 10º CAPÍTULO

No capítulo anterior, Júlio conversara com duas pessoas: Lucas, o farmacêutico que o procurara para acusar o médico Ricardo de que sua filha fora assassinada por ele. No dia seguinte, conversara com Sara, que dissera que os crimes foram elaborados pela maestrina Rosa. Apesar de ouvir as suas justificativas, Júlio estava decidido a conversar com o médico, primeiramente. Não podia sair acusando todo mundo e quanto à Rosa, mais lhe parecia um ciúme, por um motivo ainda obscuro, que ele ainda procuraria descobrir. Voltamos com o nosso folhetim policial e com o desenrolar da trama, saberemos quais são as justificativas de Rosa. A seguir o 10º capítulo de nossa história.

Júlio esforçou-se para conversar com Ricardo Silveira, o médico que passara de plantão toda a noite no hospital. Sabia que em dado momento, o encontraria, pois ele deveria sair alguma hora e ir para a casa. Aguardou-o até a hora do almoço, e logo que o viu dirigir-se à cantina do hospital, aproximou-se e o encontrou ao lado de um colega.

Apresentou-se e pediu para conversar com ele. Observou que o rapaz aparentava uns 30 anos, tinha cabelos castanhos e olhos muito perspicazes. Parecia sempre antenado em algum movimento na sala ou numa conversa no outro lado da mesa. Cabelos curtos e óculos pesados compunham a fisionomia, que apesar da pretensa curiosidade, revelava-se muito tranquila.

— Sei que é o seu horário de almoço e que em seguida terá muito trabalho com os pacientes, mas gostaria de agendar uma visita. Onde você quiser, quando quiser. Pode ser?

—Pode, é claro, só não estou entendendo a razão.

— É um assunto meio desagradável. Não gostaria de incomodá-lo agora.

— Desculpe perguntar, mas quem é o senhor mesmo?

— Bem, sou advogado e detetive particular aposentado.

— E sobre o que vamos conversar?

—Você poderia agendar uma hora? Pode ser num bar, no hotel onde estou hospedado ou até mesmo no seu consultório.

—Eu não tenho consultório, senhor… senhor?

—Júlio, Júlio Ramirez, às suas ordens. Olhe o meu cartão.

—Quer me vender alguma coisa?

— Não, de forma alguma. Se não se importa, pode ser no restaurante do meu hotel. À noite, eles servem apenas uns drinques.

—O senhor está no hotel, então deve ser o mesmo em que estou morando. Não há noutro na cidade.

— Ah, que bom. Assim fica mais fácil, então.

— Pode me adiantar alguma coisa?

—Bem, se insiste. É sobre a moça que foi assassinada ou se matou, não se sabe. O pai dela o acusa de sua morte!

—Aquele homem é um louco, um imbecil! Olhe aqui, eu não tenho nada com esse assunto. Nem tenho nada a discutir com o senhor nem com ninguém. Portanto, não me espere, porque não vou até o restaurante.

—Desculpe, Ricardo, eu não queria que você se irritasse. Sei que tem razão em ficar nervoso com esta história, afinal, é muito desagradável esta acusação e estes falatórios pela cidade. Mas, acho que está na hora de provar que você é inocente. Olhe, eu pessoalmente, acho que não há nada que o ligue à morte daquela moça.

—Então, por que está me procurando?

—Porque é meu trabalho de detetive e na minha profissão, não se pode descartar nada. Mas acho sinceramente, que este esclarecimento só vai ajudá-lo. Afinal, você tem um nome a preservar. Imagine se as pessoas da Capital fiquem na dúvida de sua honestidade? E os negócios que poderão ser anulados?

—O que quer dizer com isso?

—Meu caro, só digo o que ouço, mas você sabe muito melhor do que eu o que essa gente é capaz! Se eu fosse você, eu iria encontrar-se comigo. Acho muito melhor comigo do que com a polícia, porque vai acabar nisso, pelo que ouvi daquele homem. Vou deixar o meu cartão, meu número do celular. Até lá, você pensa e decide o que achar melhor, ok? Mas saiba que não estou contra você, até mesmo porque não costumo fazer julgamentos! Júlio afasta-se em direção ao jardim, saindo do refeitório onde o médico se encontra. Os colegas já estão se retirando para as suas tarefas. Quando está atravessando as vielas que o separam do portão para a rua, passando por uma pequena capela, percebe que alguém se aproxima rapidamente, em sua direção. É Ricardo, que o convida a entrar na capela.

A capela está na penumbra e não ninguém lá dentro. Sentam no último banco e o médico é o primeiro a falar.

—Acho melhor não encontrá-lo hotel. Vou dar muita bandeira.

—Você é quem sabe, meu rapaz. Apesar que você estando lá, ficaria até natural nos encontrarmos.

— Mas já que existe uma investigação, é melhor que saiba tudo e por mim.

—Ok, sou todo ouvidos. Você é um homem de bem, já percebi.

—Obrigado. É o seguinte: eu realmente estava namorando a Taís, se é que se pode chamar de namoro, alguns encontros em poucas semanas. Mas que seja. De todo modo, a verdade é que desde que cheguei aqui, ela não me deixou em paz, tinha verdadeira fixação por mim. Isso aconteceu há um ano atrás, quando estive aqui fazendo residência. Agora, há pouco, ela voltou a procurar-me, tentando reviver uma coisa que nunca aconteceu. Eu nunca me apaixonei como ela pretendia. Nós tivemos um caso, no passado, mas tudo não passou de encontros casuais, sem maiores compromissos, pelo menos para mim. Ela cismou que eu me apaixonaria, que ficaria ao seu lado, que jamais a deixaria, mesmo eu dizendo que tinha namorada na capital, que não queria nada com ela. Inclusive disse que abandonara um namorado por minha causa, era um cara que trabalhava na oficina, parece que se chamava Paulo, não importa. Mas o fato que até com isso, me incomodei, porque o cara passou alguns dias me perseguindo, até que decidiu me deixar em paz. Não vou negar que me senti atraído, mas inicialmente, eu não queria nada com ela. Ela não desgrudava de mim! Ela apenas estudava e de repente inventou de trabalhar no hospital, fazendo faxina. Não sei como conseguiu a vaga tão depressa, deve ter mexido os pauzinhos. Ela mudou a minha vida a partir daquele momento. Não me deixava respirar, se envolvia nas minhas coisas, mexia até no meu celular, quando eu menos imaginava. Até que aconteceu. Uma vez, nós transamos e eu decidi que ela deveria me deixar e desaparecer da minha vida. Nos encontramos algumas vezes, mesmo ela sabendo que logo que me estruturasse na cidade, traria a minha namorada para cá, e isso eu deixava bem claro para ela.

Depois da saraivada de acontecimentos e queixas, Júlio engendrou a primeira pergunta:

– Você passou a odiá-la?

Ele parecia não respirar por um momento. Quando respondeu, fazia-o num desabafo:

– No início, não. Eu até gostava dela, só detestava aquela insistência. Mas por fim, eu acabei odiando-a sim, porque voltou tudo como era antes. Ela passou a perseguir-me, a me procurar em todos os lugares, a viver na minha volta.

—Então, você tinha motivos para matá-la.

—Pelo amor de Deus, vou matar uma garota só porque me perseguia, que queria ficar comigo a qualquer custo! Era só uma cabeça-oca, uma infeliz, coitada. Sou um homem que salva vidas, detetive, não as tira!

— Você há de convir que preciso fazer todas as perguntas para observar as reações dos interrogados. Por outro lado, acho que não é motivo de tanto ódio. Bastava dar um chute nas intenções da moça e acabar por aí.

— É que o senhor não a conhecia. Hoje, passado algum tempo, acho que ela era uma psicótica. Não era normal a maneira como me tratava, como se eu fosse um objeto, um bem que não queria partilhar com ninguém. Taís era doente.

— Pensando bem, a sua reação foi bastante estranha.

— O senhor parece estar contra mim. Como pode pensar que eu faria uma coisa dessas? Eu jamais tive intenção de lhe fazer mal!

—Eu não pensei em nada, caro Ricardo. Mas, me diga, naquele entardecer cheio de neblina, você foi dar uma volta, próximo ao rio. Na mesma hora em que Taís foi assassinada ou se matou, não sabemos.

—Não, eu não fui.

—Não foi? E o que me diz da mensagem do celular dela em que marcara o horário de 8:30 para encontrá-lo lá, na beira do rio?

—Não, claro que não, dei uma volta pelo bosque, ali perto. Uma longa volta para esfriar a cabeça. Como lhe disse, ela era maluca, estava sempre me chamando.

— Por que você queria esfriar a cabeça?

—Sr. Júlio, um médico tem seus momentos de stress, de decepção. Naquele dia, eu perdera um paciente e estava muito nervoso.

—Então não tinha nada a ver com Taís e sim com a perda do seu paciente?

—Não, eu já disse que não!

—Então como explica a mensagem no celular da moça? Nega tê-la mandado?

Ricardo faz um pequeno silêncio. Sente-se perdido, como se a acusação contra ele ratificada a cada justificativa. Por isso, insiste em esclarecer o que sabe.

—Não, o senhor tem razão. Eu a enviei, sim. Taís me pediu que fosse encontrá-la e insistiu muito. Não sabia o que fazer, por isso escrevi a mensagem. Mas eu não fui. Achei melhor não ir. Pretendia ir a Porto Alegre no dia seguinte e preferi não falar com ela. Sei que errei e o que aconteceu com ela foi terrível. Nunca poderia imaginar que ela fosse capaz de tirar a própria vida! Eu me sentia culpado, não conseguia trabalhar.

—Então, mesmo não atendendo o pedido, você passeou próximo ao local, ou seja, no bosque próximo ao rio, o que há de convir, é uma certa incoerência.

—Eu já lhe expliquei isso. Além disso, costumo caminhar pelo bosque, não é um fato incomum. Levo os tênis na mochila, pego um abrigo e caminho por algumas horas.

—Sabe de alguém que o viu nesta caminhada?

—Acho que não, estava muito solitário. Poucas pessoas caminham a esta hora. Além disso, estava um entardecer muito sombrio, havia muita neblina.

Júlio perguntou se não havia nenhum fato importante que Ricardo gostaria de contar-lhe. Com a negativa, ele mesmo decidiu fazer-lhe mais uma pergunta.

— Você falou num tal de Paulo, um namorado antigo de Taís. O que aconteceu com ele?

—Como assim? Pelo que eu saiba, continua trabalhando na oficina. Me deixou em paz, graças a Deus, desde que tivemos uma conversa.

— Ah, tiveram uma conversa?

—Sim, um dia me enchi com aquela perseguição, ele me fechando no trânsito com a moto, mandando recados pelo celular, e decidi ir até a oficina falar com ele.

—E aí?

—Parece que entendeu a situação. Que a menina não queria mais nada com ele e que eu não tinha culpa. O problema era deles. A partir daí, ele nunca mais me procurou.

Júlio ouviu a conversa e prevendo que não haveria mais nada importante a ser dito, apertou-lhe calorosamente a mão e se afastou. Antes, persignou-se e ajoelhou-se por um minuto próximo à porta de saída da capela.

Enquanto fazia isso, Ricardo passou por ele rapidamente e desapareceu em direção ao hospital.

terça-feira, junho 21, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 7º CAPÍTULO


Júlio Ramirez era um detetive aposentado, como dissera à Rosa. Na verdade, nunca fora um profissional muito dedicado, muito menos com grandes vitórias no currículo, mas em alguns casos, fora especialmente primoroso. Às vezes, se dedicava até com paixão, mas precisava surgir um fato muito envolvente para levá-lo a este estado de eficiência.

Naquela noite, estava conversando num boteco da cidade, com um velho amigo, quando surgiu o assunto do assassinato de uma moça da região. Era mais um crime na pequena cidade, só que agora parece que estavam interessados em falar sobre o assunto. Tratava-se da filha do farmacêutico Lucas, velho conhecido nas redondezas.

Júlio, na verdade, queria tomar a sua cachaça batizada e preocupar-se com outras coisas mais interessantes, principalmente agora que estava sozinho, e cansara de não ter com quem conversar. Sabia, no entanto, que era um indício de que devia retomar a sua profissão, afinal, viera à cidade por um pedido que parecia ser de uma pessoa muito preocupada com os fatos. Jairo, o amigo, insistia no assunto mais falado na cidade.

– O Golias, sabe? – Assim chamavam o farmacêutico. – Está revoltado e não é pra menos. Veja você, numa cidadezinha dessas, no fim do mundo, quase uma vila, um cara aparece do nada e mata uma moça inocente!

— Jairo, cheguei hoje no hotel e não ouvi ninguém falar nada. Até mesmo a porteira, uma tal de Rosa, que fala pelos cotovelos, não comentou nada. Além disso, houve outros crimes nesta vila, como você diz…

— É verdade. Só que eram pessoas de fora. Dizem que eram turistas ou vieram aqui motivados por algum trabalho. Entretanto, até hoje, ninguém provou nada. Mas esta moça era conhecida de todos, certamente a sua amiga ainda não soubera da história.

– Mas descobriram o assassino?

– Não, mas o povo está desconfiado. Dizem por aí que foi um médico que se estabeleceu na cidade, há mais ou menos um mês. Gente que não quer ficar aqui, que detesta a cidade. E o que andam falando é que o miserável seduziu a moça!

– Meu caro, nos dias de hoje não existe mais isso de sedução. No nosso tempo, podia acontecer. As mulheres não trabalhavam, viviam na casa dos pais, sem saber de nada, sem se instruir, claro que falo em vilarejos que nem este.

– Mas uma moça fica iludida. Dizem que o homem prometeu casamento.

— Em tão curto tempo?

— Não sei, tudo é possível. Mas sabe-se lá, o povo fala demais, né?

— Como ela morreu?

— Abriram inquérito, porque oficialmente ela se suicidou. Desceu a ribanceira, caminhou pelas pedras e se atirou. Dizem que o corpo foi parar no outro distrito.

— Mas então?

— Ela foi assassinada, porque o perito que veio da Capital encontrou arranhões produzidos em seus braços, antes de ser morta. Eram arranhões que se alastravam pelos braços e pelas costas, assim como no pescoço, como se houvesse lutado. Para mim não há dúvidas que foi assassinada!

– Mas se ela escorregou nas pedras…

– Você vai contestar o perito?

– Não, de modo algum.

Nisso, Saraiva, o botequeiro entrara no assunto. Mostrava conhecer mais detalhes: – Mas o pai não pode fazer nada, não tem provas. Acusa o médico por causa do relacionamento dos dois. Júlio indagou como teriam a certeza de que a moça morrera mesmo naquela região.

Jairo argumentava que havia uma menina no dia da tragédia, ali por perto, e que prestara um depoimento.

– Uma menina?

– É o que dizem. Isto é, o que a polícia diz. – Acrescentou o dono do bar.

– E como esta menina soube do crime? O que ela viu? O que estava fazendo por aquelas bandas?

– Calma, Júlio, calma. Você parece que vai pegar o caso.

– Sou um detetive aposentado, você sabe. Tenho a minha profissão de advogado, na capital, que vou tocando devagarinho. Quero sombra e água fresca. E depois, vim aqui para falar com uma tal de Sara Soares. Você conhece?

— Acho que é a mulher que vive numa casa quase abandonada, no final da colina. Não é muito dada a se misturar com o povo.

—É, meu amigo, como lhe disse, quero sombra e água fresca.

– Por aqui, você não vai encontrar nada disso! – informava sorrindo, Saraiva.

Jairo já um pouco irritado com a intervenção do homem, combinara com Júlio a se retirarem para uma mesa mais distante do balcão. É o que fizeram, e o homem os seguira, perguntando que bebida preferiam.

– O mesmo que estamos bebendo, Saraiva. Traz a cachaça pra ele e uma cerveja pra mim. E estamos conversados, ok?

O homem afastou-se, fazendo uma careta de maus humores. Em seguida voltava com o pedido, e em silêncio esperava que pedissem mais alguma coisa. Por sorte, alguém chegara no bar em direção à caixa.

– Então me conta, Jairo, o que a menina estava fazendo lá?

– Eu não sei tudo, só o que o pessoal fala por aí. O nome dela é Ana, tem mais ou menos 14 anos e ouviu um grito que vinha da ribanceira do rio. Ela, pelo que me consta, estava pelas redondezas. Era tardinha e havia neblina. Muito curiosa, ficou observando, quando percebeu que alguma coisa estranha corria rio abaixo. Em seguida, se deu conta tratar-se de uma pessoa, então correu em busca de socorro. Ela achava que a moça havia se jogado na água.

– Mas então, por que as desconfianças de assassinato?

– Porque a vítima tinha escoriações pelo corpo e não foram produzidas pelas pedras, entende? Além disso, acharam seu celular.

–Sim, você me disse que ela tinha alguns arranhões pelo corpo. Mas onde estava o celular?

– Caído num barranco, bem próximo à água.

– E havia alguma coisa, alguma mensagem que sugerisse uma suspeita?

– Sim, uma mensagem do médico, pedindo que a esperasse na beira do rio. Ele a encontraria às 8:30h.

– Qual é o nome do médico?

– Ricardo Silveira. Está há pouco tempo aqui na cidade e parece não ser bem quisto.

Júlio calou-se. Percebeu que o amigo também não tinha mais nada a dizer. Tomou mais um gole de cachaça e preparou-se para voltar ao hotel. Jairo perguntou se ele pretendia ficar muito tempo na cidade.

– Pretendia ficar um mês mais ou menos, mas não sei se vou aguentar. Esta cidade é muito pequena, todo mundo é muito solitário por aqui. Sei como é, nasci aqui, você sabe.

– Veio pra descansar?

– Na verdade, vim para escrever um livro, uma autobiografia e para conversar com esta tal senhora, que me chamou até aqui. Acho também que está na hora de pesar a minha vida, o que fiz de bom, de ruim. Fui advogado, detetive particular, casei, não tive filhos. Mas acho que tenho muito a contar.

– Ué, você não disse que ainda é advogado?

– Como falei, vou tocando devagarinho. Deixei os grandes casos. Só trabalho pra não perder o hábito… ou pra não ser esquecido. – Fez uma pausa, pensativo. Em seguida, voltou-se para o amigo. – E você Jairo, o que faz da vida?

– Tenho uma pequena propriedade perto do rio, sempre trabalhei com madereira, mas agora, estou mudando de ramo. Quero fazer alguma coisa relacionada a camping. Acho que será onde moro mesmo, bem longe da civilização.

– Nem precisava ir muito longe, meu amigo. Esta cidade já parece longe de tudo.

fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/users/andygraham-2334502/

terça-feira, junho 14, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 5º CAPÍTULO

Capítulo 5


Rosa investigava distraída o celular, quando Ricardo deu uma pequena batidinha no balcão. Ela assustou-se e pediu desculpas pela displicência.

— Não se preocupe dona Rosa. É que estou com um pouco de pressa, esqueci uns documentos no quarto e preciso sair rapidamente.

— Ah, sim. Já lhe dou a chave. Doutor, gostaria de participar do nosso coral da igreja? Olhe, não precisa ser cantor, basta ter boa vontade.

— Dona Rosa, além de eu não ter o mínimo de talento, tenho muito pouco tempo. A senhora sabe, o hospital…

— É verdade, é que a gente sempre está precisando de novas vozes para o coral. Mas quando puder, apareça lá, veja os nossos ensaios. E assim que houver uma apresentação para o público, pode ter certeza que o convidarei. Sou também a maestrina, sabe?

— Ah, sim, muito obrigado.

Quando está se afastando, Rosa ainda pergunta:

— Doutor, é rapidinho. Tem alguma notícia de Raul?

— Raul Soares? A senhora o conhece?

— Sim, este mesmo. Ele é meu colega no coral, disse que iria se apresentar na reunião, mas soube que esteve doente. Ele é meio maluco, mas nunca soube que tinha diabete.

— Está bem, deve dar alta hoje mesmo.

Ricardo subiu ao quarto pensando nas palavras de Rosa. Todos pareciam se conhecer nesta cidade, inclusive a mulher da portaria do hotel era também colega de Raul no coral. No quarto pegou as suas coisas, olhou se estava tudo em ordem e desceu com a intenção de afastar-se logo dali. Entretanto, Rosa ainda tinha outras perguntas.

— Não gostaria de incomodá-lo, mas sabe, um dia desses, Raul esteve na minha casa e bem, andou fumando maconha, sem eu saber. Resumindo, drogou o meu cachorro. Queria saber se é possível isso ou aconteceu alguma outra coisa com o meu animalzinho.

— Ele ficou bem?

— Sim, no outro dia estava normal, alegre como sempre.

— Então pode ser – Dizendo isso, despediu-se e afastou-se, concluindo a conversa. Rosa ficou olhando-o, pensativa. Deixou o celular numa prateleira sob o tampo do balcão e dirigiu-se até a porta envidraçada, observando a rua. Não havia nada interessante, pensou. No entanto, um homem que se aproximava do hotel, chamou a sua atenção. Percebeu tratar-se de um provável hóspede, por isso, voltou ao balcão, sentou-se e esperou que ele abrisse a porta.

Apresentou um amplo sorriso, quando o homem alto e de terno escuro entrou. Esperou que ele se apresentasse e perguntou quantos dias ficaria hospedado.

— Pretendo ficar alguns dias, ainda não sei ao certo. Talvez uns dez dias, mais ou menos.

Ela o olhou intrigada, mas não comentou nada. Afinal, quem se dignaria a ficar dez dias naquela cidade no fim do mundo? O homem esclareceu:

— Vai depender de uns negócios que pretendo fazer. Mas eu lhe direi mais tarde com precisão.

— Qual é o seu nome, por favor?

— Júlio Ramirez. Sou advogado, mas atuo como detetive. Rosa observou pelo documento, que o homem era da Capital. Preencheu rapidamente os dados no computador, imprimiu uma ficha e pediu que assinasse.

— Vou chamar o rapaz para ajudá-lo a carregar a sua mala.

— Não se preocupe. É só uma mala pequena e uma mochila.

Rosa surpreendeu-se, como ele pretendia ficar tanto tempo, trazendo aquela mala minúscula, mas isso não lhe dizia respeito. Entregou a chave com o número 703. Por fim, informou era bem antigo, com uma grade que devia fechar para que funcionasse. Júlio sorriu e acrescentou, satisfeito:

— Estive há pouco numa cidade que tudo era meio ultrapassado. Não se preocupe. Eu também nunca pensei que voltaria à antiga profissão e estou de volta.

— O senhor é advogado?

— Aposentado. E detetive também aposentado. – Concluiu com um sorriso. – Mas agora, parece que voltei à ativa.

Rosa gostaria de perguntar em qual das duas profissões, mas preferiu calar-se. Não era de bom tom intrometer-se na vida dos hóspedes.

Já na porta do elevador, o homem se voltou para a portaria e perguntou:

— Por favor, a senhora, como é seu nome mesmo?

— Rosa.

— Muito bem, Dona Rosa, eu ia perguntar... – Ela o interrompeu, rápida. – Rosa, por favor, me chame de Rosa apenas. Este dona me deixa muito velha – acrescentou, sorrindo.

— Pois não, Rosa… Você por acaso conhece uma senhora chamada Sara Soares?

— Sara Soares?

Rosa tentou lembrar-se de alguém com este nome. Apesar de ser bem conhecida na cidade, ela mesma não costumava recordar o nome das pessoas. Talvez até a conhecesse.

— Não importa. Terei muito tempo para encontrá-la. Rosa então lembrou que Raul possuía este sobrenome. Talvez se tratasse de algum parente, por isso, alertou:

— Espere, eu conheço um rapaz do nosso coral que se chama Raul Soares. Pode ser que seja algum parente. Júlio interessou-se fechando a porta do elevador e dirigindo-se até o balcão onde Rosa estava.

— Ele é casado? Tem filhos?

— Não, imagina. Aquele maluco é um solitário. Teve uma namorada, uma tal de Susi, mas o deixou faz tempo. Certamente não aguentou aquele traste.

— A senhora está bem irritada com ele, não?

— Ah, acho que estou incomodando-o. Não quero atrapalhá-lo, o senhor está chegando e nem o deixei subir até o quarto.

—Rosa, não se preocupe com isso. Eu sou um homem que adora conversar. Depois que me aposentei e fiquei viúvo, sabe, as coisas mudaram muito. Fiquei talvez tão solitário quanto esse seu amigo aí. Por que a senhora acha que a moça não o suportava mais?

— Dona, senhora. O senhor continua com formalidades.

— Sou um homem às antigas, mas já vou me corrigir. Por que você chamou o rapaz de traste?

— Na verdade, eu até gostava muito dele, mas de uns tempos pra cá, ficou fazendo coisas estranhas, sabe? Um dia desses, entrou na minha casa e estava com a minha chave, até hoje não sei como conseguiu. O que sei é que troquei todas as fechaduras, por precaução, claro.

— E por que ele fez isso?

— Queria falar comigo, estava muito nervoso. Mas deixa pra lá, não quero incomodá-lo, como já disse, sobre as histórias de Raul. Mas o que acha sobre o sobrenome? Ele mora com a mãe. Se quiser, posso me informar qual o nome dela. Se for Sara, fechou.

— Muito obrigado, Rosa. Não sei como agradecer-lhe.

— Então, por favor suba e veja se gosta do quarto. Ele dá para a rua da frente do hotel, é bom que você tem a vista da cidade.

— Sim, tenho certeza de que vou gostar.

Afastou-se e desapareceu no elevador. Rosa se perguntava se não teria falado demais. Afinal, nem conhecia o hóspede a ponto de fazer-lhe confidências. Entretanto, procurou o nome de Raul no celular e verificou se havia um número de telefone fixo. Em seguida, decidiu fazer uma ligação. Por fim, certificou-se de que seu palpite estava certo.

Rosa dedicou-se a pesquisar músicas no google, com a expectativa de mais tarde contar a a novidade a Júlio. Era um homem apessoado, pensou. Devia ter seus cinquenta e poucos anos ou mesmo sessenta e parecia bem disposto com a vida. Que estaria ele fazendo ali, naquela cidade pequena, sem nenhuma projeção no Estado, a não ser alguns crimes que ultimamente haviam ocorrido.

Dissera que era um detetive, mas quem o teria chamado. Seria a mãe de Raul? Era bem estranho, pensou.

Deixou as pesquisas de lado e decidiu espiar um pouco a rua. Foi até a porta e reparou que Seu Domingues, um velho conhecido, sentava no banco da praça, como sempre. Como aquele velho podia suportar o frio que fazia, sempre no mesmo lugar, olhando para o nada, mesmo num dia ensolarado como o de hoje?

terça-feira, junho 07, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 3º CAPÍTULO

Capítulo 3

No carro, Ricardo ainda pensava nas palavras do amigo, mas por pouco tempo. Em seguida, chegou no hospital, teve a entrevista com o diretor e em pouco tempo já estava em franca atividade. Um hospital pequeno, com muitos problemas estruturais, não se podia dar ao luxo de priorizar algum espaço de tempo para reconhecimento. Ricardo deveria dar mãos à obra e foi o que se sucedeu durante todo o dia e nos que se seguiram. Ainda procurava um apartamento pequeno, mas a cidade não dispunha de muitas acomodações, por isso, permanecia no hotel, até porque o tempo escasso não permitia contatar as imobiliárias.

Aquela noite, estava especialmente cansado. Participara de uma cirurgia difícil e o andar das emergências estava literalmente ocupado. Tomou um banho, deitou e dormiu por um longo tempo. Quando acordou, já era de madrugada. No celular, algumas mensagens da namorada e de outros colegas, aos quais não fazia muito questão de conversar, naquele dia. Leu as mensagens, respondeu algumas. Respondeu alguns e-mails e tentou comunicar-se com a namorada.

Louise, por certo estaria dormindo àquela hora, mas devia, pelo menos, deixar alguma mensagem, esclarecer que estava exausto e que dormira, sem se dar conta da hora. Fora o que fizera. Depois, levantou-se, tomou água, olhou pela janela. Dobrou um pouco o corpo e espiou para a esquina, onde podia ver o parque que Raul lhe falara. Por um momento, veio-lhe a história à tona, a mensagem do jornal, a angústia do amigo. Esquecera-o completamente.

O que havia acontecido com ele, afinal? Nunca mais o procurara.

Uma aragem fria invadia a janela, empurrando a cortina para os lados.

Ricardo afastou-se e sentou-se na cama, fechando a janela. Pensou em ligar para Raul, mas seria melhor deixar as coisas como estavam. Provavelmente, se falasse com ele, não o deixaria em paz, embora a esta hora, talvez estivesse dormindo.

A notícia do jornal, entretanto não lhe saía da mente. Era uma coisa tão absurda, mas ao mesmo tempo tão plausível, por tudo que lhe contara. “As pessoas que possuem animais de estimação estão assustadas, porque junto ao corpo das vítimas, é deixado uma folha de papel com uma assinatura em forma de “S” ao lado do nome do animal de estimação.”

Ricardo lembrava da cara assustada de Raul, um pânico estampado no olhar, quando afirmou que haviam deixado uma folha no seu bolso, com as mesmas características.

“ ––No meu bolso, havia a mesma assinatura e o nome da Susi. Mas eu me salvei, aí esta a diferença!

––Mas o que a polícia diz disso?

––Ela não admite, acham tudo uma besteira imensa. Não acreditam no que a população fala, no que a população sente.

––Mas então?

––Então, eu quero solucionar este caso. Não sou detetive, mas não quero morrer, entende? Você, que não é daqui e nem é conhecido, pode me ajudar. Você tem que pedir uma necropsia das vítimas.

––De forma alguma, apenas um inspetor ou advogado das famílias das vítimas é que pode solicitar isso.

––Por favor, eu só tenho você, eu só confio em você. Tem que me ajudar. Não pode deixar que me matem, principalmente agora, que eles acham que eu sei de tudo. Eu falei para um policial, ele riu na minha cara e andou espalhando por ai, tenho certeza. Outro dia, um cara da pet esteve na minha casa, fazendo perguntas. Você tem que me ajudar, Ricardo, pelo amor de Deus.

–Está bem, deixe eu acertar a minha vida. Vou fazer umas pesquisas e quem sabe eu descubro o que você quer saber. Além disso, preciso achar um lugar para ficar, tenho que sair daquele hotel.

––Você pode ficar na minha casa, até que consiga encontrar um apartamento. Pode ficar na minha casa o tempo que quiser.

–Eu lhe agradeço, Raul, mas pretendo trazer minha namorada.

––Só até você encontrar o apartamento ideal pra você. Por favor, aceite. É uma boa casa, herança de minha mãe. Eu quero ajudá-lo também.

––Vou pensar, mas agora, preciso ir.

––Esta bem. Ficarei esperando a sua mensagem. Sei que não vai esquecer o meu problema. Não vai me deixar nas mãos deste assassino”

Ricardo abriu uma cerveja, agora um pouco ansioso por ter lembrado detalhes da história de Raul. Afinal, não tinha movido uma palha para ajudá-lo. Sentia-se culpado por ter esquecido completamente o amigo, nestes três dias em que esteve tão envolvido no hospital. E se tivesse acontecido alguma coisa com ele? E se tudo fosse verdade? Se alguém da pet shop estivesse envolvido com os crimes ocorridos? Por um momento, sentiu-se um canalha. Como abandonar uma pessoa que lhe pediu ajuda, quase em desespero, à própria sorte? E se ligasse para ele? Quem sabe, poderia ainda fazer alguma coisa. Daria uma desculpa, diria que tem investigado, pensado muito no seu caso. Foi o que fez. Procurou no celular o número e ligou. Esperou um pouco, apenas uma mensagem. Tentou mais duas vezes e nada. Ele não estava com o telefone ligado ou talvez estivesse dormindo. Sim, provavelmente estava dormindo, afinal, já passavam das duas horas da manhã. Mas, se estivesse morto? Se a desconfiança que tinha se confirmasse? Se eles o tivessem matado e desta vez, não apenas com a insulina, mas uma droga mais forte e letal? Seu coração disparava, assustado. Não podia dar crédito a estas loucuras. Isso só acontecia, porque perdera o sono, porque havia dormido antes da hora, porque andava muito cansado. Não devia mais pensar nisso e sim, tomar outra cerveja e tentar dormir. Neste momento, o telefone tocou. Mas não era Raul. Uma voz de mulher perguntava por que ele havia ligado para aquele número.

–– Desculpe, deve ter sido engano. É que estava tentando falar com um amigo.

–– E com quem você queria falar? –– Interrogava a voz rouca do outro lado.

–– Você não deve conhecer. Foi um equívoco, sim. Devo ter digitado o número errado.

–– Por acaso, não queria falar com Raul?

–– Raul? –– Por um instante, pensou em dizer tratar-se de outra pessoa, e se fossem os assassinos, se tivessem matado Raul e agora, quisessem saber que ligações ele tinha com o morto? –– Raul, você disse?

–– Sim, a pessoa para quem você acabou de ligar.

–– Não, quero dizer… mas quem está falando?

–– É uma pena, ele precisa tanto de ajuda.

–– Conhece Raul?

––Então era ele mesmo. Não me enganei.

–– Não, não se enganou. Onde ele está? Por que não me atendeu?

–– Porque ele não está nada bem. Mas se você quiser, poderá vir visitá-lo.

––A esta hora da noite?

–– E por que não? Não é onde você passa a maior parte do seu dia?

–– Como assim? Não estou entendendo.

–– Raul está no hospital, por isso não pode atendê-lo.

Ricardo calou-se por um momento, se perguntando como a pessoa sabia que se tratava dele.

–– Mas o que aconteceu com ele? Quem é que está falando?

––Ele teve mais um desses acessos de hiperglicemia. Sabe como é, ele não se cuida. Há dias que eu noto que ele vem se alimentando menos. Acho que vai se recuperar logo. É o que espero.

––Ele está consciente?

–– Agora sim, mas anda nervoso, muito assustado. Acho que isso provocou o desencadeamento da doença. Meu filho precisa muito de ajuda. Você prometeu ajudá-lo e o que fez? Abandonou-o à própria sorte.

“Meu filho”, Ricardo repete mentalmente. Raul morava em sua cidade natal, como residia agora em Sul Braga, possuindo segundo ele uma casa herdada pela mãe. Uma situação estranha, pois nunca o havia encontrado, quando fizera a residência médica nesta cidade.

A mulher silenciou, como se não tivesse mais nada a dizer. Ricardo explicou:

– Minha senhora, eu não o deixei à própria sorte. Na verdade, não sei exatamente o que está acontecendo.

– Acho que ninguém sabe, com certeza. — Ela comentava melancólica. Parecia mais tranquila, até arrependida de ter repreendido o amigo do filho. Por fim, convidou-o a ir na sua casa.

– Mas Raul não está no hospital?

– Exatamente. Por isso quero conversar com você, de preferência longe de meu filho.

– Mas hoje é muito tarde.

–Eu sei, mas gostaria que você viesse amanhã, de manhã sem falta. Talvez em nossa conversa esteja ajuda de que meu filho precisa.

Ricardo desligou o telefone. De repente, sentia uma angústia oriunda de fatos passados, cujos problemas não pode resolver. O que sentia não se relacionava ao caso de Raul, sabia, mas alguma coisa trouxe de volta um registro antigo que não conseguia distinguir do que se tratava. No entanto, alguma coisa o deprimia, uma sensação ruim, de confusão, de sentir-se perdido. Não sabia se fora a conversa com a mulher ao telefone, se o fato de dormir poucas horas e acordar assim, de madrugada, sobressaltado ou se fora apenas o cansaço do dia.

Um médico como ele, não podia se deixar levar por pensamentos subterrâneos, como se houvesse uma teoria da conspiração contra si e organizada pela própria mente. Às vezes, tinha convicção de que o mundo conspirava de forma ingrata contra ele. Ele que tinha tudo por que lutara, a sua profissão, a mulher que amava, uma vida cheia de planos e saúde ímpar, às vezes, sentia essa melancolia, como se qualquer coisa ruim desencadeasse o sofrimento contido.

Olhou pela janela novamente. Serviu-se de outra cerveja e ficou observando lá fora. A cidade estava morta. Tinha vontade de ficar ali, indefinidamente e não fazer mais nada. Nada que sugerisse qualquer mudança, até mesmo de posição física junto à janela.

De repente, como que tomado por um sentimento de culpa, decidiu ir ao hospital.

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