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sexta-feira, março 11, 2016

A GOTA DERRAMOU

Sabia o quanto ainda o esperaria. Guardou os chinelos, desfez-se do roupão e deu uma arrumada na casa. Tinha consigo que precisava cumprir o método. Rotina. Repetida, contínua, perfeita. Não devia se prestar a devaneios, a pensar coisas que não se referissem à família. Bem que pensava em si, às vezes. Pensava numa vida fulgurante, cheia de brilhos, luzes ofuscantes nos olhos cinzentos. Como seus olhos poderiam ter um tom assim? A mãe, via de regra, a chamava de olhos de gato. Achava-a, no fundo, estranha. Mas que fazer, se até sua mãe a criticava com tanta acidez.

A vida lhe parecia dura, às vezes. Era uma mulher perfeita: boa mãe, ótima esposa, excelente dona de casa. Não era uma mulher de seu tempo. Não trabalhava fora, como as amigas. Amigas? Muito poucas, aquelas que sobraram dos bancos de escola, das poucas baladas que participara, das noites de verão, quando ficava na casa de uma tia, lá em Florianópolis. Eram dias felizes, em que conhecera rapazes diferentes dos de sua cidade. Talvez pelo clima, ou pela liberdade das férias, traziam consigo uma vivacidade e delicadeza que ela desconhecia.

Mas foi por pouco tempo. Logo voltou à vidinha medíocre de balconista de farmácia. Sabia de cor todos os medicamentos, pelo menos, os mais usados ou mais vendidos. Costumava dar conselhos, indicava alguns, informava os benefícios, investia no cuidado com os presumíveis compradores. Era assim o seu jeito, calma, despretensiosa, desinteressada, quase amiga.

Depois conheceu Fábio. Foi no ano em que faria vestibular. Pretendia cursar letras, nem sabia bem o porquê, talvez porque gostasse de ler. Isso, faz até hoje. Gosta de esparramar-se na cama, enfiar os óculos na ponta do nariz e ler horas a fio os romances mais melosos que encontra. Neles se transporta, viaja a países em que o coração é protagonista. E sente-se ali, envolvida no cenário, como se fizesse parte da trama. Vive e vibra com os personagens. Isso se intensificou desde que casou. Passou a ler com mais frequência. Uma das atividades das quais Fábio não dá a mínima importância. Ainda bem. Nestes momentos, se sente livre, dona de si, tranquila.

Quando casou, desistiu do vestibular, desistiu do curso de letras, desistiu da faculdade. Casou. Era o sonho. O sonho de toda uma geração, talvez não da sua, mas a de sua mãe, ou sua avó. Faz tempo que ocorreu o movimento feminista. Mas ela nunca concordou com aqueles extremos. Homem é homem, tem as coisas de homem. As dificuldades de homem, os desejos de homem, as necessidades de homem. Homem luta, homem provém, homem vence. Mulher é diferente. Mulher é suave, doce, caseira, vive para a família. Mulher observa, aplaude, é plateia. Mulher agradece, obedece. Mulher é romântica. Mulher ama.

Ela pensa muito nisto e talvez por isso tenha vivido uma vida tão coerente com sua realidade. A realidade de uma dona de casa.

Bem que de vez em quando, surge aquela faísca que lhe atinge os olhos de gata cinza e dá uma sacudida na alma. Um estremecer nas pernas. Um tremor no coração. E se fosse tudo diferente? Se a vida existisse além da cozinha, além dos cuidados da casa, dos filhos, do marido. Se ultrapassasse aquela janela de vidro, opaca pelo sereno da manhã e atingisse os trilhos que passam ali, tão perto, quase ao lado? Uns trilhos que se perdem e se encontram, embora paralelos, com outros, formando novos caminhos? Uns trilhos que a conduzissem a outros extremos, outras saídas, que permitissem ações de conquistas e aventuras? E se seu nome não fosse Maria Helena? E seu marido não fosse Fábio Costa? E se não tivesse marido? E se tivesse um amante?

Agora estremece as mãos, que esfriam rápidas e as bochechas fervilham, vermelhas. Por momentos, morde as bochechas por dentro, fazendo um gesto de desgosto ou displicência, não sabe.

Sente forte remorso. Lembra do marido, tão solícito, trabalhando duro para manter uma vida digna. Lembra dos filhos correndo pelo shopping, em busca dos brinquedos, dos lanches, dos jogos, enquanto ela passeia pelas lojas de departamentos, procurando blusas para compor o visual para um passeio que não fará.

Se pudesse voltar a praia, caminhar descalça pela areia, sentindo a espuma bordar-lhe os dedos. Ah, seria bom aquela brisa, aquele ar mais puro impregnando-lhe as narinas, aquele sol flamejante envolvendo seu corpo inteiro. Ela vestida num maiô preto, os cabelos clareados e lisos da chapinha estirados nas costas bronzeadas. O olhar cinza quase furta-cor, na claridade inconfundível da atmosfera de verão.

Ah, seria tão bom sentir estas sensações e não se perder entre as paredes do apartamento, esperando que as coisas aconteçam de acordo com o tempo dos outros. O tempo do marido, dos filhos, o tempo das horas.

Mas já foi um bom tempo. Um tempo em que Fábio voltava mais rápido pra casa. Costumava elogiar seus quitutes, seu bem cuidado com a casa, os bordados das toalhas, a mesa do jantar enfeitada. Tudo brilhava como seus olhos. Às vezes, ele a beijava. Beijava devagarinho, encostando os seus lábios finos nos seus carnudos, a sua língua envolvia-lhe como um pássaro oferecendo comida. Uma comida que a saciava, que a deixava louca, que a consumia. Mas aos poucos, os carinhos e os elogios foram rareando. Como tudo na vida. Já seu corpo não o despertava. Seu olhar pouco expressava algum sentimento ou sensação e sua voz, ah, sua voz, fugia pra longe. Pra outros prados que não ali. Muitas vezes distante. Muitas vezes, perdido em divagações, em mundos que só ele conhecia. Coisas de homem. As gotas enchiam o pote. Rareavam espaços. Por certo, transbordariam, procurariam outros veios produzindo caminhos diversos, formando novos espaços, onde ela não cabia. Outro mundo surgia que não o seu. E a violência, aos poucos foi tomando conta do que outrora era carinho e atenção. Foi ficando omissão e dor. Um dor que se alastrava tão forte que o melhor era ficar quieta, calma, serena, como sempre fora. Assim, a dor passava. Como a mãe recomendava: te encobre no cobertor, o frio passa e acaba a dor. Se não tiver frio, não tem dor. Mas fica quieta. Te acalma. Mesmo assim, a dor continuava latente, cada vez mais forte, atingindo a profundidade do osso, sugerindo morte.

Um dia, o olho roxo. Outro, hematoma no braço. Ele cada vez mais violento.

Às vezes, ela tinha pena dele. Era um homem bom, mas tinha lá seus problemas, por certo não aguentava mais a situação. Devia estar pressionado pelo trabalho, pela vida, pelas finanças. Afinal, ele provia. Ele custeava tudo aquilo, a sua vida, o seu prazer, o seu próprio trabalho.

Mas a dor física não é o suficiente. Só doeu de fato, quando ele a desconsiderou como pessoa, como ser humano, como mulher. Quando ele disse que ela era um trapo, uma inútil, uma vadia. Quando a deixou com tantas dúvidas sobre si mesma, que o pote entornou, de vez. A gota derramou. Mágoa. Foi quando usou a única arma que tinha. Não era sedução, nem beleza, nem cultura. A única arma que a defenderia. A casa, a comida, os filhos. Ele se rendeu e morreu de dor.

terça-feira, fevereiro 23, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO XIV

HOJE, TERÇA-FEIRA 22/02/2016, SEGUE O NOSSO FOLHETIM RASGADO "PÁSSARO INCAUTO NA JANELA" COM O 14º CAPÍTULO. NOVAS REVELAÇÕES!

Capítulo 14

Tenho vontade de dizer para o velho que não estou sozinha, tal como ele, que desapareceu há dias de sua janela, do seu quarto. Será que morreu? Espero que não. É mais um pra minha coleção. Cada dia, um se vai. Quando será a minha vez? Espero que demore bastante, sinto que ainda posso fazer alguma coisa, sinto que posso ajudar Susana. Essa expectativa me dá uma euforia, uma vontade de realizar coisas, um bafejo de vida. Tenho até desejo de tocar piano, como antigamente. Mas já faz tanto tempo, que nem sei se não desaprendi.

_Que terá acontecido com Susana? Por que me chamou daquela maneira? Parecia tão desorientada, a coitadinha.

_De quem tá falando, vovó?

_Ah, não importa. Estou falando sozinha. Que mania vocês tem de chamar de vovó. Eu tenho nome.

_Desculpe, não quis ofender. É que conheço a senhora há tanto tempo, quero dizer, só de pegar os seus remédios na farmácia: é remédio pra pressão, pro colesterol, pro glúten, pra diabete.

_Precisa enumerar todos? E cuida o trânsito, ta uma loucura, não ta vendo?

_Só quis lhe dizer que lhe conheço dessas coisas que faço pra senhora, por isso a chamo assim.

_Por isso mesmo, por me conhecer é que devia me chamar pelo nome. Todo mundo sabe que sou Úrsula. Primeiramente, vocês chamam de tia, tia pra cá, tia pra lá. No meu tempo, as tias eram as putas da esquina, sabia? – o motorista ri, satisfeito. Olha de soslaio para Úrsula e volta a fixar a rua. Ela continua no protesto.

Quando a gente fica mais velha, é vovó. Ora, vá pro diabo com estas manias!

_A senhora ta amarga, hoje, hem? Só porque lhe falei dos remédios.

_E você gosta que eu fale que toma Viagra?

_Quem lhe disse isso? A senhora pirou? – freia o carro, destemperado. Os bigodes muito pretos, as entradas separando fiapos de cabelos, suando. Os olhos arregalados.

Ela sorri, vingada. Continua, irônica.

_Eu não pirei. Quem pirou foi o... o vizinho, ai.

_A senhora é muito abusada. Eu não preciso destas coisas – responde, retomando o caminho.

_É mesmo? Não é o que minha fonte me falou.

_E quem lhe falou?

_Nem sob tortura lhe digo – ainda esboça um sorriso sorrateiro. Ele exclama, irritado.

_Diabos, essa gente não tem o que fazer, se não ficar fuxicando a vida dos outros.

Úrsula volta-se para a vidraça do carro, examinando as pessoas na calçada que agora lhe parecem tão parecidas com ela, ocupadas com sua própria vida. Faz-se silêncio. Ela é a primeira a falar – toca o carro, rapaz. Deixa de bobagem.

Após descer do veículo, Úrsula olha em direção à janela do apartamento de Susana. Está entreaberta, as cortinas produzindo movimento. Esquiva-se do frio, aproximando-se rapidamente do prédio, até atingir o elevador. Ajeita-se olhando-se no espelho. Puxa a gola do casaco, arruma os cabelos e examina-se por um segundo, observando os olhos que lhe parecem um tanto fechados. Deve ser inchaço, em virtude do pouco tempo que consegue dormir. Ao abrir-se a porta, Susana está a sua espera. Evitou parecer aflita, maquiada para não demonstrar nenhum sofrimento, pelo menos perceptível à primeira vista. Aproxima-se e a abraça, com carinho. Úrsula se emociona.

_O que foi minha filha? O que aconteceu com você?

Susana pede que entre. Reconhece de imediato que não deveria tê-la pressionado a vir até lá. Não foi uma boa estratégia, afinal, não tem o direito de envolvê-la em seus problemas. Por fim, afirma que os acontecimentos não tinham esta importância que ela tinha atribuído. Havia sido um desabafo.

Úrsula entra, quieta. Observa os móveis, a estante de livros, as poltronas confortáveis. Percebe a sala despojada, sem uma decoração suntuosa, embora lhe desperte a atenção a presença de alguns moveis antigos e tapetes bem alinhados. Senta-se e a observa, vendo-a caminhar de um lado para o outro. Seus olhos a acompanham intrigada.

_O que foi, dona Úrsula?

_Eu é que pergunto. Você não me fez vir aqui para nada. Diga-me o que aconteceu.

Susana desconversa: – gostaria que conhecesse meu escritório. Lembra quando fui na sua casa, pela primeira vez? Mostrou-me o apartamento, o seu piano, falou de várias coisas e não foi direto ao assunto.

_Porque não confiava em você.

_E agora, confia em mim?

_Confio. Por isso estou aqui, para ajudá-la.

Susana fecha a janela que dá para a rua, deixando apenas a vidraça misturando os vários tons de luzes, que circundam as redondezas. Quando resolve sentar-se em frente à Úrsula, não consegue esquecer a atitude de Roberta Célia, na posição em que estava, enfrentando-a com arrogância, em tom de ameaça. Ela, por sua vez, está na mesma atitude defensiva em que se encontrava naquele momento.

_Gostaria de fazer um chá para nós.

_Nada disso. Você quer desvirtuar o assunto. Olhe, Susana, se não confia em mim, seja sincera. Daí, eu vou embora.

_Não diga isso, Dona Úrsula. Eu confio na senhora. A senhora pra mim, é uma parente muito próxima, que não tenho.

_Você não tem nenhum parente aqui?

_Minha mãe morreu muito cedo, pouco me recordo dela.

_É verdade, se não me engano você me disse isso alguma vez. Não estou bem lembrada. Mas então? É sobre seu pai?

Susana abaixa a cabeça, as mãos trêmulas, pousadas nos joelhos, como se quisesse ampará-los ou segurar-se a si própria num apoio imaginário. A voz soa irregular, mal articulada.

–Dona Úrsula, é uma história muito longa, cheia de meandros, que fazem da minha vida uma angústia constante. Quase uma rotina. Sou uma mulher com muitos erros. Aliás, tenho um crime inconfessável nas costas.

–Por favor, Susana, não me assuste.

–Não, não, é a última coisa que desejo que aconteça. Não sou uma assassina, uma mulher que cometeria um crime por algum motivo vil. Mas eu cometi um crime e o pior de tudo, uma pessoa está me ameaçando, fazendo chantagem.

–Então me conte isso do início.

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A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

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