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A GOTA DERRAMOU

Sabia o quanto ainda o esperaria. Guardou os chinelos, desfez-se do roupão e deu uma arrumada na casa. Tinha consigo que precisava cumprir o método. Rotina. Repetida, contínua, perfeita. Não devia se prestar a devaneios, a pensar coisas que não se referissem à família. Bem que pensava em si, às vezes. Pensava numa vida fulgurante, cheia de brilhos, luzes ofuscantes nos olhos cinzentos. Como seus olhos poderiam ter um tom assim? A mãe, via de regra, a chamava de olhos de gato. Achava-a, no fundo, estranha. Mas que fazer, se até sua mãe a criticava com tanta acidez.

A vida lhe parecia dura, às vezes. Era uma mulher perfeita: boa mãe, ótima esposa, excelente dona de casa. Não era uma mulher de seu tempo. Não trabalhava fora, como as amigas. Amigas? Muito poucas, aquelas que sobraram dos bancos de escola, das poucas baladas que participara, das noites de verão, quando ficava na casa de uma tia, lá em Florianópolis. Eram dias felizes, em que conhecera rapazes diferentes dos de sua cidade. Talvez pelo clima, ou pela liberdade das férias, traziam consigo uma vivacidade e delicadeza que ela desconhecia.

Mas foi por pouco tempo. Logo voltou à vidinha medíocre de balconista de farmácia. Sabia de cor todos os medicamentos, pelo menos, os mais usados ou mais vendidos. Costumava dar conselhos, indicava alguns, informava os benefícios, investia no cuidado com os presumíveis compradores. Era assim o seu jeito, calma, despretensiosa, desinteressada, quase amiga.

Depois conheceu Fábio. Foi no ano em que faria vestibular. Pretendia cursar letras, nem sabia bem o porquê, talvez porque gostasse de ler. Isso, faz até hoje. Gosta de esparramar-se na cama, enfiar os óculos na ponta do nariz e ler horas a fio os romances mais melosos que encontra. Neles se transporta, viaja a países em que o coração é protagonista. E sente-se ali, envolvida no cenário, como se fizesse parte da trama. Vive e vibra com os personagens. Isso se intensificou desde que casou. Passou a ler com mais frequência. Uma das atividades das quais Fábio não dá a mínima importância. Ainda bem. Nestes momentos, se sente livre, dona de si, tranquila.

Quando casou, desistiu do vestibular, desistiu do curso de letras, desistiu da faculdade. Casou. Era o sonho. O sonho de toda uma geração, talvez não da sua, mas a de sua mãe, ou sua avó. Faz tempo que ocorreu o movimento feminista. Mas ela nunca concordou com aqueles extremos. Homem é homem, tem as coisas de homem. As dificuldades de homem, os desejos de homem, as necessidades de homem. Homem luta, homem provém, homem vence. Mulher é diferente. Mulher é suave, doce, caseira, vive para a família. Mulher observa, aplaude, é plateia. Mulher agradece, obedece. Mulher é romântica. Mulher ama.

Ela pensa muito nisto e talvez por isso tenha vivido uma vida tão coerente com sua realidade. A realidade de uma dona de casa.

Bem que de vez em quando, surge aquela faísca que lhe atinge os olhos de gata cinza e dá uma sacudida na alma. Um estremecer nas pernas. Um tremor no coração. E se fosse tudo diferente? Se a vida existisse além da cozinha, além dos cuidados da casa, dos filhos, do marido. Se ultrapassasse aquela janela de vidro, opaca pelo sereno da manhã e atingisse os trilhos que passam ali, tão perto, quase ao lado? Uns trilhos que se perdem e se encontram, embora paralelos, com outros, formando novos caminhos? Uns trilhos que a conduzissem a outros extremos, outras saídas, que permitissem ações de conquistas e aventuras? E se seu nome não fosse Maria Helena? E seu marido não fosse Fábio Costa? E se não tivesse marido? E se tivesse um amante?

Agora estremece as mãos, que esfriam rápidas e as bochechas fervilham, vermelhas. Por momentos, morde as bochechas por dentro, fazendo um gesto de desgosto ou displicência, não sabe.

Sente forte remorso. Lembra do marido, tão solícito, trabalhando duro para manter uma vida digna. Lembra dos filhos correndo pelo shopping, em busca dos brinquedos, dos lanches, dos jogos, enquanto ela passeia pelas lojas de departamentos, procurando blusas para compor o visual para um passeio que não fará.

Se pudesse voltar a praia, caminhar descalça pela areia, sentindo a espuma bordar-lhe os dedos. Ah, seria bom aquela brisa, aquele ar mais puro impregnando-lhe as narinas, aquele sol flamejante envolvendo seu corpo inteiro. Ela vestida num maiô preto, os cabelos clareados e lisos da chapinha estirados nas costas bronzeadas. O olhar cinza quase furta-cor, na claridade inconfundível da atmosfera de verão.

Ah, seria tão bom sentir estas sensações e não se perder entre as paredes do apartamento, esperando que as coisas aconteçam de acordo com o tempo dos outros. O tempo do marido, dos filhos, o tempo das horas.

Mas já foi um bom tempo. Um tempo em que Fábio voltava mais rápido pra casa. Costumava elogiar seus quitutes, seu bem cuidado com a casa, os bordados das toalhas, a mesa do jantar enfeitada. Tudo brilhava como seus olhos. Às vezes, ele a beijava. Beijava devagarinho, encostando os seus lábios finos nos seus carnudos, a sua língua envolvia-lhe como um pássaro oferecendo comida. Uma comida que a saciava, que a deixava louca, que a consumia. Mas aos poucos, os carinhos e os elogios foram rareando. Como tudo na vida. Já seu corpo não o despertava. Seu olhar pouco expressava algum sentimento ou sensação e sua voz, ah, sua voz, fugia pra longe. Pra outros prados que não ali. Muitas vezes distante. Muitas vezes, perdido em divagações, em mundos que só ele conhecia. Coisas de homem. As gotas enchiam o pote. Rareavam espaços. Por certo, transbordariam, procurariam outros veios produzindo caminhos diversos, formando novos espaços, onde ela não cabia. Outro mundo surgia que não o seu. E a violência, aos poucos foi tomando conta do que outrora era carinho e atenção. Foi ficando omissão e dor. Um dor que se alastrava tão forte que o melhor era ficar quieta, calma, serena, como sempre fora. Assim, a dor passava. Como a mãe recomendava: te encobre no cobertor, o frio passa e acaba a dor. Se não tiver frio, não tem dor. Mas fica quieta. Te acalma. Mesmo assim, a dor continuava latente, cada vez mais forte, atingindo a profundidade do osso, sugerindo morte.

Um dia, o olho roxo. Outro, hematoma no braço. Ele cada vez mais violento.

Às vezes, ela tinha pena dele. Era um homem bom, mas tinha lá seus problemas, por certo não aguentava mais a situação. Devia estar pressionado pelo trabalho, pela vida, pelas finanças. Afinal, ele provia. Ele custeava tudo aquilo, a sua vida, o seu prazer, o seu próprio trabalho.

Mas a dor física não é o suficiente. Só doeu de fato, quando ele a desconsiderou como pessoa, como ser humano, como mulher. Quando ele disse que ela era um trapo, uma inútil, uma vadia. Quando a deixou com tantas dúvidas sobre si mesma, que o pote entornou, de vez. A gota derramou. Mágoa. Foi quando usou a única arma que tinha. Não era sedução, nem beleza, nem cultura. A única arma que a defenderia. A casa, a comida, os filhos. Ele se rendeu e morreu de dor.

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