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quarta-feira, maio 24, 2017

O painel do voo

Não sabia o que fazer. Lambuzava-se com a salada. Um olhar no celular, outro no painel do voo.
 

Não sabe por quanto tempo ficou ali, parado, meio perdido, preocupado em mudar a situação. Seu terno era surrado e as meias balançavam nos tornozelos. Andara muito.
 

A cidade plana e quente e seca. Brasília era assim. Incomodava. Incomodava a beleza e a feiura da imensidão. 

Doía-lhe as costas. Esticou-se, pediu um café. Voltou a sentar-se no banco alto do bar.
 

Pessoas passavam com suas malas gigantescas. Tinha a impressão que levavam o mundo. Foi só uma impressão, pois seus pensamentos voltaram a voar para o problema. Olhou para o alto, esfregou os pulsos. Sentiu um leve calafrio, como um desandar da pressão, um mal-estar da comida, um temor de altura.
 

O café apareceu na mesa através de uma mão branca, um meio sorriso, um afastar-se rápido na direção oposta. Quis dizer qualquer coisa: um obrigado, talvez. Não pode. A moça sumiu como desapareceu de sua imagem o que restava dela: a mão branca, as veias azuis e o café preto, borbulhante. Tomou o café, na esperança de ter um up no ânimo. Mas deixou-se ficar ali, alisando o cartão de crédito no granito do balcão. Por um momento, olhou-se na pedra brilhante. Seu rosto contorcido, fundo de colher, como num espelho de circo. Um cheiro de álcool passava entre seus dedos. A limpeza constante do bar, o esfregar de lá pra cá, como se o estivessem correndo dali. Tomou o último gole de café. Voltou para o celular. Abriu o tablet.
 

Por um momento, teve um pensamento estranho: se abandonasse o local, se deixasse o aeroporto e voltasse para o hotel. Não tinha nada a perder quanto às finanças. Tinha tudo emocionalmente. A casa, o lar, a vida que construíra, tudo estava tão longe, distante de seu controle. Via naquela moldura embrumada a mulher desenvolta nas atitudes cotidianas, levar a filha na escola, deixar com a babá, voltar para o trabalho. Via-a sorrindo com as colegas, enfeitando a escola para a copa, fazendo o artesanato das crianças, voltando para casa. Via-a agir, assumir, viver. Ele ali, parado e aquela neblina envolvendo tudo, o retrato ficando longe, cada vez mais, e as nuvens tomando conta. Tudo parecia passado, embora tão presentes em sua mente.
 

A garçonete perguntou alguma coisa. Ele nem ouviu ou se ouviu, fingiu que não. Mesmo assim perguntou se o aeroporto tinha wi-fi. Pergunta boba, mas necessária naquele momento. Precisava dizer alguma coisa e era o que lhe vinha à cabeça. Guardou o tablet na mochila, sem usá-lo. Guardou também o celular no bolso do paletó. Sentia um suor escorrer testa afora e parar na boca. Sentiu o gosto salgado e não fez nada para evitar. Alguma coisa mais forte o mantinha preso àquele lugar. Levantou os olhos na direção das luzes neon do bar e ficou imaginando as letras coloridas da escola. Certamente aquelas que sua filha decorava e enfeitava o caderno. O pequeno caderno colorido, com mais desenhos e ilustrações do que texto. Era o caderno de sua filha. Que estaria fazendo ela, aquela hora?
 

Então, voltou-se para o painel novamente. As linhas mexiam-se rápidas no seu astigmatismo. Tinha quase certeza de que era o seu vôo. Correu em direção ao painel para ver de perto. Um aviãozinho circulava pelo céu de Brasília. Ele não estava lá.
 

terça-feira, fevereiro 07, 2017

Uma bomba e a aeromoça gaúcha



Meu amigo tinha por hábito externar qualquer pequeno problema que o acometesse. Às vezes, um mudança abrupta no seu estado psíquico, como uma melancolia, uma vontade de afastar-se de onde estava ou simplesmente um pequeno ruído que o incomodava. Via de regra, sabíamos que reagia com certo exagero às circunstâncias, mas respeitávamos o seu modo de ser e procurávamos conciliar seus pequenos desajustes aos nossos interesses. 

Naquele dia, porém a coisa fora diferente. Estávamos reunidos no aeroporto para seguirmos à Brasília para um curso relâmpago de três dias. Éramos em torno de 30 pessoas e comemorávamos a ideia de projetar o nosso trabalho de marketing para a instituição em que trabalhávamos. 

Ao entrarmos no avião, fomos para nossos acentos e conversamos animados com a possibilidade de ainda chegarmos cedo à cidade para quem sabe, irmos num bom restaurante após a chegada no hotel e nos prepararmos para o dia seguinte que seria bem puxado. 

Meu amigo Júlio (era seu nome) estava num assento próximo à asa do avião. Fazia alguns selfies com os colegas, tirou também algumas fotos de alguns aviões estacionados e de repente, aquietou-se manifestando uma palidez que nos assustou. 

O avião estava prestes a decolar e Júlio parecia fora de si. Suelma, uma morena de olhos grandes, sempre extrovertida e dada a piadas, perguntou o que acontecera. Sandro, um dos que estavam no lado esquerdo ao de Júlio também ficara apreensivo, achando que o colega iria desmaiar. Eu tentei perguntar alguma coisa e fui interrompido antes que chegasse na primeira frase. 

Júlio avisou que estava ouvindo um ruído estranho que vinha de sua poltrona, era uma espécie de chiado, como se houvesse uma bomba ali instalada. Seus lábios estremeciam e sua voz saía rouca, como se o som precisasse atravessar um túnel que a interceptava. 

Alguns riram, achando que meu amigo fazia piada ou tinha na verdade, era medo de voar. Outros reclamavam, achando tudo uma grande bobagem. 

Sandro porém, era o único que parecia paralisado. Pálido, olhos arregalados, sem conseguir dizer nada. Olhava para a namorada um tanto apalermado, achando que alguma coisa errada estava acontecendo. Neusa, a companheira, ria desajeitada, esclarecendo que isso era coisa de Julinho, como ela o chamava. Nada demais. Ele costuma inventar estas bobagens, dizia sem muita convicção. 

Eu perguntei o que estava acontecendo de verdade.
Júlio voltou a afirmar que o chiado permanecia e cada vez mais insistente, como se o dispositivo estivesse ligado, talvez a ponto de explodir o avião. 

Na poltrona a sua frente, estava uma aeromoça de Porto Alegre. Levantou-se um pouco temerosa, aproximou-se dele e sentou ao seu lado, exclamando, naquele sotaque característico da capital: 
– Bah, eu nunca tinha ouvido este chiado antes! Faz muito tempo que tu ouve isso? 

Júlio apavorado, não sabia o que dizer, na verdade, sabia sim, afirmava que não, nunca tinha ouvido nada igual e que precisavam tomar alguma providência. O avião não poderia decolar de jeito algum. 
Os demais começavam a se irritar com Júlio, não se contendo em suas observações, uns afirmando que era uma situação absurda, não tinha nada a ver com bomba ou coisa parecida, outros porém tinham suas dúvidas e queriam descer do avião a todo custo. 

Sandro agarrava-se ao braço de Neusa, agora muito vermelho, como se ele fosse a própria bomba pronta a explodir. Doía-lhe a barriga e a sensação de que deveria ir ao banheiro imediatamente, pois seu organismo não o obedecia. Temia estar com dengue ou coisa parecida. Neusa acompanhou-o até a porta. Os colegas se olharam indignados. Só faltava agora um cagão no grupo! 

Alguns minutos depois, o que nos parecia um tempo interminável, Sandro voltava alisando a barriga e caminhando devagar ao lado de Neusa, que também ficava vermelha com os olhares curiosos. Sorria, acenando a cabeça, como quem diz, “coisas de Julinho”. Mas a situação piorava a cada instante, não no que concernia a Sandro, mas ao fato observado por Júlio, o tal chiado que não parava. 

A aeromoça, nestas alturas já se afastara, pedindo ajuda aos engenheiros e mecânicos do avião, mostrando-se apavorada. As demais procuravam não intervir e se limitavam a ficar na cabine, esperando os procedimentos do piloto. A ordem porém era impedir a decolagem imediatamente e aguardar a solução do problema. De vez enquanto, o piloto falava no microfone evitando alarmar a tripulação. 
Aproximei-me da aeromoça e perguntei o que ela pensava disso. Ela respondeu com uma pergunta: 
— Capaz!, tu não acha que o caso é sério? Tri responsável o rapaz avisar dessa coisa. Vai ver que é uma bomba, mesmo! 

Eu não tinha o que dizer. Fiz um gesto qualquer e me afastei na direção de minha poltrona, porque a conduta estabelecida era ficarmos em nossos lugares. Dali, observava os colegas, especialmente Sandro que parecia desabar na poltrona. Em dado momento, levantou-se, tentando falar com um comissário de bordo, que insistiu para que ficasse sentado. No entanto, não havia como impedir a marcha pelo corredor do pobre coitado, cujo único destino parecia ser o vaso sanitário. O comissário deu um meio sorriso e deixou-o ir, mas exigiu, dirigindo-se à Neusa: 
– A senhora não precisa acompanhá-lo. Fique onde está, porque estamos trabalhando para que tudo se resolva da melhor forma possível. É preciso que todos fiquem atentos! 

Ao ouvirem isso, todos começaram a falar em uníssono, já desesperados, temendo que o pior acontecesse. Um burburinho que se transformou em algazarra, com os ânimos cada vez mais exaltados. 

Suelma, a piadista, decidira rezar e o fazia em voz alta, deixando os demais ainda mais irritados. De vez enquanto, olhava de vesgueio para Júlio, quase suplicando que dissesse ser uma brincadeira. Em seguida, leu um salmo da bíblia e todos a mandaram calar-se. Ela sentou-se, pensou numa piada, mas decidiu ficar quieta. Era melhor obedecer.

Enquanto isso, os engenheiros e mecânicos trabalhavam no assento em que Julio se acomodara, do qual se ouvia o chiado , que parecia a todos, cada vez mais sinistro. Só faltava uma luzinha vermelha para que o dispositivo fosse acionado. 
Entretanto, os profissionais reviraram o banco de todas as maneiras e não havia nada que confirmasse a suspeita. Onde estaria a tal bomba? O que causava aquele ruído terrível, que deixava todos em pânico. 

Júlio sentou na poltrona próxima a minha, enquanto esperava o resultado fatídico. Sentiu um pouco de frio e vestiu a jaqueta de couro, que trazia no bagageiro. 

Neste momento, Sandro voltava pelo corredor, quase se arrastando, quando meu amigo resolveu enfiar a mão no bolso e retirar o celular. Quando o fez, não se conteve e exclamou animado, como se tivesse salvo a humanidade: 
— Pessoal, é o meu celular que estava ligado na tv fora do ar! 

Houve um silêncio absoluto, apenas quebrado pelo som surdo de Sandro desmaiando no meio do corredor. 

Os engenherios levantaram-se da posição que estavam, investigando a poltrona e o olharam com uma expressão que demandava uma fúria que em mil anos não se repetiria. 

Os demais levantaram-se dos bancos, também furiosos, como uma turba que planejava vingar a pátria e matar o inimigo. Queriam linchá-lo, não fosse Neusa que pedia clemência porque matariam o namorado pisoteado no piso da aeronave. Este abria um olho e o fechava, como se quisesse permanecer no sonho. 

Todos pararam e afastei-me com Júlio para a parte traseira do avião. De lá, ainda vimos Sandro levantar-se devagar e fazer um sinal para a namorada, que não havia mais tempo de ir ao banheiro. Todos voltaram correndo para a parte dianteira do avião. 

Nesse momento, a aeromoça gaúcha deu a palavra final: 
— Pessoal, pega o rabo quente, porque a única bomba que temos aqui é a do mate! 



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