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domingo, setembro 10, 2017

O COVIL

Saímos meio às escondidas, desviando dos pingos grossos da chuva, sentindo na pele uma batida intermitente ao nosso encalço.

Causava-me um certo prazer, misturado com temor, um temor desconhecido, de que alguma coisa não andava bem.

Era frio e escuro e as ruas desertas, como se o mundo todo se escondesse em suas casas, temerosos de uma investida qualquer, uma agressão da qual não tinha como desconfiar.

Apenas as palavras reticentes de meu pai, os dedos frágeis e estremecidos da mãe segurando a bolsa branca, iluminada de vez em quando por algum raio preguiçoso que surgia ao longe. Os olhos de meu pai brilhavam também, mas de ansiedade.

Olhava para os lados, sondava a esquina que desembocava na avenida, ouvia apitos, esfregava a ponta do sapato no paralelepípedo escorregadio que limitava a calçada.

Atrás de nós o muro alto do cemitério. Seria este o temor deles? Não, era de alguma coisa mais palpável, muito mais perigosa e parecia que a cada minuto do atraso do ônibus, o monstro desconhecido se aproximava. E punha garras em todas as direções, pois não se sabia ao certo o seu destino, o seu rumo, o seu objetivo. Apenas me parecia que era tirano e faminto. Não respeitava mulheres nem crianças. Aparecia de súbito, oriundo do covil, burocrático e civilizado, oficial e correto, pronto a consumir o que de vida restava, mesmo na escuridão da esquina, de costas para o muro imenso do cemitério, tão grande quanto uma fortaleza.

Mas com certeza, era mais forte e valente que meu pai, pois ele o temia. Temia mais do que o temporal que se prenunciava, esquecido das trovoadas encobertas, anunciadoras de chuva forte.

Um vento frio fustigava-me o rosto, a boca doía, os lábios rachavam e a testa febril, testemunhada pela mão doce de minha mãe.

Via aflição nos seus olhos, nas poucas vezes que conseguia encará-la. Sempre conversavam sussurrando, temerosos de meus questionamentos.

Um barulho de tropas ao longe, apitos contínuos e sinalizadores, como senhas, talvez emboscadas para civis como nós.

Meu pai apertou-nos junto ao corpo e levou-nos para o portão enorme do cemitério, encostando-nos nas grades, mas protegidos por uma espécie de tapume que cobria o portal e nos deixava de alguma forma ocultos.

Senti os dois corações bem perto, batendo forte, agitados, assustados. Minha cabeça não chegava aos seios apertados de minha mãe, de sutiãs acolchoados sob blusas em buclê e casacão de lã, aberto como tenda. Nem na axila de meu pai, que estendia também a japona rala e esburacada, consumida pelo uso intensivo na fábrica e nos discursos pela liberdade.

Dobrada em minha cabeça, agora sentia-a molhada e fria, inchada na água plangente.

Estávamos juntos, os três e dos medos deles eu não tinha o que temer.

Ao 10 dez anos o que minha fantasia projetava além disso, era o que temia que surgisse detrás das grades. Imaginava uma mão descarnada a atacar-nos e puxar-nos para dentro, impelindo-nos ao ambiente tétrico do mortos. Mortos que estavam sendo importunados em sua privacidade sagrada, cujas almas desgastadas e infelizes, numa noite de chuva e frio, voltavam-se contra nós para se vingarem.

Por isso, meu coração estremecia assustado e minha voz emudecia e minhas pernas finas, de calças curtas e botas inundadas, batiam uma na outra, trêmulas.

Não muito longe, uns faróis pequenos surgiam na rua enlameada, cujos paralelepípedos irregulares luziam, formando pequenas estradas pontiagudas, produzindo caminhos que agitavam o coração de meu pai.

O ônibus verde e amarelo sacolejava na escuridão, e embora não víssemos as cores, sabíamos que se tratava dele. Aquele design arredondado, as janelas oblíquas, das quais tanto avistei as ruas ensolaradas de dias mais felizes. Mas ele parece se desviar do caminho cotidiano, como se um obstáculo enorme se interpusesse entre a nossa liberdade de tomá-lo e voltarmos para casa e a incerteza de ficarmos na chuva à espera do ferrolho da ditadura.

Era do que meu pai sussurrava naquele ano de 65, no qual o mundo se mudara de lado e o toque de recolher se anunciava com os fuzis.

Agora um vento frio acelerava nossos sentimentos de medo.

Percebi que meu pai falava por senhas, quando avistou o soldado, embora as tropas estivessem longe e apenas um carro ficava na esquina, com os faróis desligados.

Não entendia as palavras contravenção, nocivo, subversivo, estorvo. Mas eles se falavam assim, balbuciam coisas disformes, bocas que se abriam na chuva, impelidas pelo vento frio que parecia produzir ódio entre irmãos.

Minha mãe afirmou os dedos em minha cabeça, pegando-me pelos cabelos, meu pai ouviu-o quieto.

O ônibus da linha se afastou do caminho, devagar.

As luzes se apagaram e apenas a fumaça do cigarro do motorista ressaltava embaçando a vidraça, que vez por outra, se enchia de luz.

Levaram meu pai e minha mãe segurou-se à grade, temendo a fera do covil, temendo o ultraje, temendo por nós.

A chuva amainou.

Meu pai sumiu na cerração que tomava conta do caminho, sem antes dar um último olhar, esperando que retribuíssemos emudecidos. Nada mais queria de nós, a não ser ver o que deixava pra trás. Talvez para sempre.

Minha mãe segurou-me mais forte, me abraçou e as lágrimas lavaram meu rosto.

Quando não mais vi a silhueta de meu pai, voltei para as grades do cemitério e meu coração ficou tranqüilo. Nunca mais temi as almas desalmadas, desgastadas e vingativas.

O monstro estava lá fora. No coração dos homens.

sábado, agosto 19, 2017

Impressões de uma Romênia tradicional e bela = Impresii ale unei Românii tradiționale și frumoase

Luisa estabeleceu-se num vagão meio vazio. O trem passava por pequenos vilarejos e ela podia avistar, além deles, Cárpatos, a cadeia de montanhas que domina a paisagem da Romênia.

Havia algumas pessoas e num banco na lateral esquerda, um casal conversava quase em sussurros, ao contrário de algumas senhoras que não paravam de confabular, quase uma discussão política. No entanto, percebia-se um aconchego familiar, risadas e vozes aflitivas, querendo dizer coisas que somente a elas interessavam. Uma outra senhora de lenço azul, com alguns desenhos geométricos coloridos, o ajeitava o tempo todo, tentando cobrir o cabelo, talvez pelo hábito ou por alguma espécie de coceira não identificada. O homem, que devia ser o marido, mexia nos bolsos e mostrava alguns documentos, manifestando um certo nervosismo e discutia o assunto com energia e logo em seguida, os guardava com cuidado. Ficava pensativo e logo examinava os papéis novamente. Discutiam um pouco e ficavam em silêncio, perdendo-se na paisagem velha conhecida.

Luisa esqueceu-os por um momento e ficou também observando as montanhas. Sentia um certo frio, apesar de ser apenas o início do outono, por isso tentava agasalhar-se, vestindo um casaco fino de lã, com uns botões que se fechavam até o pescoço. Deixou-se ficar assim, tentando envolver-se na paisagem bucólica, mas teve um sobressalto, quando um menino loiro correu na direção do fundo do vagão, com a intenção de pegar alguma coisa que lhe havia escapado, fruto de alguma brincadeira.

Luisa tentou descobrir do que se tratava, mas não conseguia ver nada, pois o brinquedo devia ter escorregado para debaixo dos últimos bancos. O barulho chamou a atenção da senhora de lenço azul, pois olhara para trás por alguns minutos. Logo se voltara para o marido e comentara alguma coisa. Os demais pareciam muito envolvidos com seus pensamentos e problemas ou não se interessavam pelo acontecido. Os pais do menino, no entanto um casal que estava na primeira fileira, aos quais Luisa nem percebera, chamaram o menino com severidade. Ele, entretanto, estava agachado entre os últimos bancos, na tentativa de pegar o brinquedo, mas com o balanço do trem, a coisa desembestara para cada vez mais longe, percorrendo cantinhos estranhos e de difícil acesso. O menino não desistia e por isso, escorregou para debaixo do banco, esticando-se e tentando colher o objeto. Luisa, então, levantou-se e sacou uma foto pelo celular. Guardaria aquela cena consigo: um menino romeno procurando o seu brinquedo. O pai levantou-se e encaminhou-se para os fundos, exigindo que ele saísse daquele lugar. Neste momento, Luisa percebeu tratar-se de um cubo mágico. Ele levantou-se com a calça do agasalho empoeirada, mas orgulhoso por ter resgatado o pequeno jogo. Quando passou por Luisa, atrás do pai, sorriu, ao que ela retribuiu. Neste momento, Luisa sentiu uma espécie de conforto, como se a vida se tornasse mais leve, a partir daquela ação do menino.

Luisa ficou observando-os com a sensação de que estava num mundo distante, provavelmente o passado. Era uma jornalista e como tal, tinha ao hábito de observar as pessoas, ouvir as conversas, tal como costumam fazer os escritores. Entretanto, com o passar das horas, tudo aquilo se apagava e ela sentia-se cansada. Esperava chegar cedo à Bucareste, mas sabia que o trem demoraria pelo menos, umas duas horas.

Quando o trem parara na estação de Bucovina, o distrito romeno de Suciava, já da plataforma ela pressentiu o cenário pastoril da região. Sentiu uma estranha vontade de descer ali, misturar-se com aquelas pessoas e descobrir o que faziam. Sabe agora, que deveria ter seguido em frente e alcançar aquelas duas horas que faltava para Bucareste, mas fez tudo ao contrário. Desceu na estação de Bucovina, o que aumentou o tempo de chegada à capital, pois para chegar até lá, era necessário esperar o próximo trem, o que demoraria muito mais do que imaginava. Mas assim, seguiu seu tino jornalístico.

Luisa desceu do trem e espalhou-se entre alguns romenos que pareciam dirigir-se a algum evento muito importante. Na pequena vila, vinham a pé e a maioria era conhecida, e pelo que Luisa conseguia entender, eram conhecidos de muito tempo, desde outras gerações, sendo a maioria vizinhos muito próximos.

Muitas mulheres com lenços na cabeça, vestidas com casacões e alguns homens de gorro de lã e jaquetas pesadas, outros vestidos com menos acessórios, mas bem agasalhados. O frio parecia ser mais intenso devido à região de montanhas. Isto, porém não os impedia de empreenderem conversas bem altas, com muita risada e comentários, que deviam ser relacionados a fatos locais. Por certo, faziam mais sucesso que qualquer publicação em redes sociais.

Luisa percebeu que os vários grupos se dirigiam à igreja ortodoxa, por isso decidiu segui-los um pouco de longe.

Quando todos entraram, ela se estabeleceu ao fundo da igreja e esperou o início do ritual religioso.

Após uma serie de orações e bençãos inerentes à liturgia, Luisa percebeu que o tema principal da cerimônia era a celebração dos vivos e dos mortos, os parentes dos que participavam da cerimônia. Eles recordavam os seus mortos e manifestavam muito mais do que um sofrimento contido, uma espécie de alegria, relembrando frases, expressões ou desejos dos falecidos.

A surpresa para Luisa, entretanto, não parava por aí, porque eles se afastaram da igreja logo após terminar o culto e dirigiram-se para um pequeno cemitério, ali perto, onde conversavam muito e riam e contavam fatos relacionados com os parentes que ali estavam sepultados. Em seguida, estendiam toalhas sobre os túmulos, abriam cestas e serviam sanduíches organizando um piquenique naquele cenário. Todos lembravam os parentes com ternura, algum sofrimento misturado à alegria, mas principalmente a necessidade de trazer à tona a personalidade do indivíduo, como se ainda estivesse entre eles. Conversavam alto e brindavam à vida.

Luisa conversou com um e outro, mais por mímica do que pela fala, pois não falavam inglês, embora como o seu idioma seja latino, arriscava uma frase ou outra e até mesmo algumas expressões conhecidas.

Agora, sentada próxima à janela, observando a paisagem próxima a Bucareste, lembrava dessas imagens e sentia-se recompensada, como se houvesse encontrado pessoas em plenitude de vida, devido à integridade de pensamento, manifestando a liberdade de ser apenas. Sem máscaras.

Ela gostaria tanto de andar pela bela Bucareste, dirigir a bicicleta às margens do rio, passar pelo pomposo prédio do Parlamento e chegar ao Carol Park, desfrutando a harmonia e o sossego das árvores. Sabia, no entanto, que o povo e suas tradições lhe haviam proporcionado uma vertente que indicava alguma coisa no horizonte, que sabia um dia poder alcançar. E ela nem tinha conhecido o castelo e o túmulo de Vlad, pensou sorrindo.

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