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terça-feira, abril 02, 2019

A força e a suavidade do outono

Não pisar em folhas secas nem observar o mato que se agiganta ao longe. Talvez fosse preciso sapatos mais generosos, do tipo que podem oferecer leveza e maciez. No entanto era necessário desafiar as memórias e caminhar de pés descalços sobre o campo, bordado por folhas amarelas, cujas árvores as presenteiam lentamente. Uma delas cai devagar, passeia pelo ar, rodeia o imenso tronco e vai descendo até chegar próxima às raízes fortes que se agarram ao solo com a sabedoria da natureza. Aos poucos, desenham o imenso tapete que se forma aos pés das árvores, como se em gestos suaves, indicassem novos quadros de mosaicos de cores, umidades, orvalhos e flores. Ali se unem e se espalham com o vento, a brisa ou os pequenos rodamoinhos que se formam, traçando novos caminhos e diversos matizes e contornos e desenhos. Ali aspiram a umidade do chão, a pureza do orvalho, a força do húmus que as fortalece. Ali se enchem de insetos, pequenos grilos ou formigas que se entranham no piso tenro recém construído. Tudo parece conspirar pela beleza e suavidade do outono.

Talvez devesse olhar de longe, caminhar um pouco sob o sol, que agora se põe devagar, dourando um pouco mais o ambiente entre as cores verdes e amarelas. Sem pressa, tudo vai ficando dourado e um risco de luz, como um foco que se insere entre as árvores, passeia de leve, iluminando o pouco do dia que se desfaz. Mais longe, uma árvore aqui, outra ali e os corredores se intercalam e o mato se forma, numa vertente da qual desconhecemos a origem. Sabemos que as árvores foram plantadas com fins comerciais, mas ao mesmo tempo a delicadeza do sol, a pintura do outono e o desfrutar da brisa invadem e recriam todo o cenário e já nem sabemos se tudo foi organizado pelo homem ou se apenas a natureza mantém a única beleza que apreciamos, a que nossos olhos se emocionam e choram.

O homem alinhou as árvores que decepará aos poucos, mas a natureza as acolhe e pinta o piso, os espaços, as campinas e recria diariamente o poder do por do sol, inventando de vez em quando um outono que aquece e esfria e volta a aquecer, para avisar que a transição, aos poucos está chegando. Nem a mão imperiosa do homem vencerá a beleza do foco luminoso, desta vez, prateado, porque a lua dá as suas pinceladas também.

Fonte da ilustração:https://pixabay.com/pt/photos/queda-folhagem-musgo-árvore-outono-1913485/

sábado, agosto 19, 2017

Impressões de uma Romênia tradicional e bela = Impresii ale unei Românii tradiționale și frumoase

Luisa estabeleceu-se num vagão meio vazio. O trem passava por pequenos vilarejos e ela podia avistar, além deles, Cárpatos, a cadeia de montanhas que domina a paisagem da Romênia.

Havia algumas pessoas e num banco na lateral esquerda, um casal conversava quase em sussurros, ao contrário de algumas senhoras que não paravam de confabular, quase uma discussão política. No entanto, percebia-se um aconchego familiar, risadas e vozes aflitivas, querendo dizer coisas que somente a elas interessavam. Uma outra senhora de lenço azul, com alguns desenhos geométricos coloridos, o ajeitava o tempo todo, tentando cobrir o cabelo, talvez pelo hábito ou por alguma espécie de coceira não identificada. O homem, que devia ser o marido, mexia nos bolsos e mostrava alguns documentos, manifestando um certo nervosismo e discutia o assunto com energia e logo em seguida, os guardava com cuidado. Ficava pensativo e logo examinava os papéis novamente. Discutiam um pouco e ficavam em silêncio, perdendo-se na paisagem velha conhecida.

Luisa esqueceu-os por um momento e ficou também observando as montanhas. Sentia um certo frio, apesar de ser apenas o início do outono, por isso tentava agasalhar-se, vestindo um casaco fino de lã, com uns botões que se fechavam até o pescoço. Deixou-se ficar assim, tentando envolver-se na paisagem bucólica, mas teve um sobressalto, quando um menino loiro correu na direção do fundo do vagão, com a intenção de pegar alguma coisa que lhe havia escapado, fruto de alguma brincadeira.

Luisa tentou descobrir do que se tratava, mas não conseguia ver nada, pois o brinquedo devia ter escorregado para debaixo dos últimos bancos. O barulho chamou a atenção da senhora de lenço azul, pois olhara para trás por alguns minutos. Logo se voltara para o marido e comentara alguma coisa. Os demais pareciam muito envolvidos com seus pensamentos e problemas ou não se interessavam pelo acontecido. Os pais do menino, no entanto um casal que estava na primeira fileira, aos quais Luisa nem percebera, chamaram o menino com severidade. Ele, entretanto, estava agachado entre os últimos bancos, na tentativa de pegar o brinquedo, mas com o balanço do trem, a coisa desembestara para cada vez mais longe, percorrendo cantinhos estranhos e de difícil acesso. O menino não desistia e por isso, escorregou para debaixo do banco, esticando-se e tentando colher o objeto. Luisa, então, levantou-se e sacou uma foto pelo celular. Guardaria aquela cena consigo: um menino romeno procurando o seu brinquedo. O pai levantou-se e encaminhou-se para os fundos, exigindo que ele saísse daquele lugar. Neste momento, Luisa percebeu tratar-se de um cubo mágico. Ele levantou-se com a calça do agasalho empoeirada, mas orgulhoso por ter resgatado o pequeno jogo. Quando passou por Luisa, atrás do pai, sorriu, ao que ela retribuiu. Neste momento, Luisa sentiu uma espécie de conforto, como se a vida se tornasse mais leve, a partir daquela ação do menino.

Luisa ficou observando-os com a sensação de que estava num mundo distante, provavelmente o passado. Era uma jornalista e como tal, tinha ao hábito de observar as pessoas, ouvir as conversas, tal como costumam fazer os escritores. Entretanto, com o passar das horas, tudo aquilo se apagava e ela sentia-se cansada. Esperava chegar cedo à Bucareste, mas sabia que o trem demoraria pelo menos, umas duas horas.

Quando o trem parara na estação de Bucovina, o distrito romeno de Suciava, já da plataforma ela pressentiu o cenário pastoril da região. Sentiu uma estranha vontade de descer ali, misturar-se com aquelas pessoas e descobrir o que faziam. Sabe agora, que deveria ter seguido em frente e alcançar aquelas duas horas que faltava para Bucareste, mas fez tudo ao contrário. Desceu na estação de Bucovina, o que aumentou o tempo de chegada à capital, pois para chegar até lá, era necessário esperar o próximo trem, o que demoraria muito mais do que imaginava. Mas assim, seguiu seu tino jornalístico.

Luisa desceu do trem e espalhou-se entre alguns romenos que pareciam dirigir-se a algum evento muito importante. Na pequena vila, vinham a pé e a maioria era conhecida, e pelo que Luisa conseguia entender, eram conhecidos de muito tempo, desde outras gerações, sendo a maioria vizinhos muito próximos.

Muitas mulheres com lenços na cabeça, vestidas com casacões e alguns homens de gorro de lã e jaquetas pesadas, outros vestidos com menos acessórios, mas bem agasalhados. O frio parecia ser mais intenso devido à região de montanhas. Isto, porém não os impedia de empreenderem conversas bem altas, com muita risada e comentários, que deviam ser relacionados a fatos locais. Por certo, faziam mais sucesso que qualquer publicação em redes sociais.

Luisa percebeu que os vários grupos se dirigiam à igreja ortodoxa, por isso decidiu segui-los um pouco de longe.

Quando todos entraram, ela se estabeleceu ao fundo da igreja e esperou o início do ritual religioso.

Após uma serie de orações e bençãos inerentes à liturgia, Luisa percebeu que o tema principal da cerimônia era a celebração dos vivos e dos mortos, os parentes dos que participavam da cerimônia. Eles recordavam os seus mortos e manifestavam muito mais do que um sofrimento contido, uma espécie de alegria, relembrando frases, expressões ou desejos dos falecidos.

A surpresa para Luisa, entretanto, não parava por aí, porque eles se afastaram da igreja logo após terminar o culto e dirigiram-se para um pequeno cemitério, ali perto, onde conversavam muito e riam e contavam fatos relacionados com os parentes que ali estavam sepultados. Em seguida, estendiam toalhas sobre os túmulos, abriam cestas e serviam sanduíches organizando um piquenique naquele cenário. Todos lembravam os parentes com ternura, algum sofrimento misturado à alegria, mas principalmente a necessidade de trazer à tona a personalidade do indivíduo, como se ainda estivesse entre eles. Conversavam alto e brindavam à vida.

Luisa conversou com um e outro, mais por mímica do que pela fala, pois não falavam inglês, embora como o seu idioma seja latino, arriscava uma frase ou outra e até mesmo algumas expressões conhecidas.

Agora, sentada próxima à janela, observando a paisagem próxima a Bucareste, lembrava dessas imagens e sentia-se recompensada, como se houvesse encontrado pessoas em plenitude de vida, devido à integridade de pensamento, manifestando a liberdade de ser apenas. Sem máscaras.

Ela gostaria tanto de andar pela bela Bucareste, dirigir a bicicleta às margens do rio, passar pelo pomposo prédio do Parlamento e chegar ao Carol Park, desfrutando a harmonia e o sossego das árvores. Sabia, no entanto, que o povo e suas tradições lhe haviam proporcionado uma vertente que indicava alguma coisa no horizonte, que sabia um dia poder alcançar. E ela nem tinha conhecido o castelo e o túmulo de Vlad, pensou sorrindo.

quarta-feira, novembro 16, 2016

Um amontoado de ossos

Percebia um corpo franzino que se esgueirava rápido, por entre as árvores. A noite já se aproximava e o parque, aos poucos, ficava deserto. De repente, ela sentou num dos bancos, de súbito, como houvesse se assustado de alguma coisa. Eu podia vê-la de longe, e por um momento, pensei fotografá-la com o celular. Mas foi só por um momento. Meu coração disparou, assustado, pois a mulher despencou literalmente no chão. Corri até o banco onde estava e abaixei-me, tentando descobrir o que estava acontecendo.

Ela estava no chão, a cabeça estirada próxima aos pés do banco. Ao seu lado, um cachorro preto olhava compassivo, como se soubesse o que acontecera. Ou como se fosse de rotina.

Tentei acordá-la, olhei para os lados, para ver algum passante por perto que me acudisse. Um que outro olhava de longe e se afastava ainda mais.

Peguei a sua cabeça entre as mãos. Era tão pequena aquela cabeça, que parecia um crânio vazio, sem cabelos, sem pele, sem couro cabeludo, apenas ossos. Tão leve, que nem parecia de um adulto. Pior, de um ser humano.

Ela abriu os olhos que se revelavam ainda maiores, efeito do rosto mirrado. Parecia ensimesmada, como quem diz, o que este cara quer aqui? O que faz ao meu lado? Moveu a cabeça, tentou levantar-se. Então, perguntei se havia se machucado. Não respondeu.

Conseguiu sentar-se ali no chão mesmo. Esticou as pernas finas, envolta em andrajos sujos e os braços seguravam-nas como se tentasse se equilibrar.

Percebia que as mãos tremiam. As mãos eram grandes e disformes, com sulcos esbranquiçados na ponta dos dedos. A pele preta nem tinha uma cor definida, como se o sol, o tempo, o vento ou qualquer fenômeno da natureza a tivesse desbotado.

Tentei ajudá-la a levantar. Ela me empurrou. Tinha medo de mim. Queria afastar-se de qualquer modo. Por certo, dispensava a minha proximidade. Eu era um estranho, que se intrometia na sua vida.

A roupa que cobria seu corpo estava em pedaços. Nem sei se devia chamar de roupa, tal era o estado de sujeira e farrapos em que se encontrava. Havia uma sacola velha sobre o banco, com mais trapos guardados, eu supunha. Ela segurou-a, empurrou o cão com o pé descalço e para minha surpresa, não foi embora. Voltou a sentar no banco e ficou ali, calada, enfiada em suas mais profundas lembranças ou na falta delas. Mascava um ar de nostalgia que me doía o coração.

Nem sei porque eu continuava ali. O fato é que precisava fazer alguma coisa.

Não sentei ao seu lado, pois sei que se o fizesse, ela se afastaria, por mais dificuldade que tivesse. Fiquei em pé, meio distante, eu e o cachorro que agora se preocupava com o seu rabo, procurando-o em círculo. Mesmo assim, perguntei:

— Você está bem agora?

Ela não me olhou. Ao contrário, levantou a cabeça para o horizonte. As árvores ficavam atrás e sol ante seus olhos. O sol que enfraquecia, cujos raios já nem se viam, só uma luminosidade difusa que também ia morrendo. Daqui a pouco, a noite chegava. O que ela faria à noite?

— Você bateu com a cabeça. Não está doendo?

Desta vez, ela se virou em minha direção e pude ver um certo brilho nos olhos. Um brilho que me incentivou a continuar.

— Não está com fome?

Ela disse alguma coisa. A voz era gutural, inaudível. Talvez não falasse com alguém há muito tempo. Mesmo assim, ela proferiu alguma coisa, o que era um avanço. O maior desafio agora, era entender o que queria. Voltei a perguntar se estava com fome.

Ela esboçou um sorriso, onde se via mais gengiva do que dentes. Foi aí que ela apontou para o cachorro.

— O cachorro? Ele está com fome?

— Cachorra.

Agora entendi, ela me corrigia e com bastante consistência. Era a sua companheira, por certo.

— Cida.

—Cida? – Perguntei meio bobo.

Falava da cachorra ou dela? Quem era Cida? Cida, Aparecida, devia ser ela.

Mas ela repetiu a frase, afirmando que Cida estava com fome.

Como insistir na pergunta e revelar, que no fundo, eu a confundia com o animal? Não somente pelo nome, mas pela condição em que se encontrava. Tudo acontecia em nível interno, quase inconsciente, em que meus pensamentos se misturavam com centenas de experiências que não conseguia interpretar.

Quem seria aquela mulher mirrada, de vida espremida, desatenta de tudo. Havia mais vida na cadela, certamente.

Uma mulher infeliz. Uma mulher que acabara de cair, de desmaiar e que se preocupava com a fiel companheira, que estava faminta.

Então, indaguei, tentando ser entendido:

— E você, não está com fome?

Ela abaixou a cabeça, como quem diz, que interessa agora. Alguém tem que se salvar. Que se salve Cida.

Confirmei que traria algum alimento para Cida e também para ela.

Ela me olhou mais uma vez, pensei até que seria a última, porque seus olhos estavam tão vazios e perdidos, que pensei que fosse morrer naquele momento.

Afastei-me rápido, atravessei o parque, procurei um quiosque no outro lado da rua e em seguida, estava de volta. Cida parecia desconfiar de meu propósito, pois me seguia o tempo todo. A cada contorno que fazia, ela me acompanhava solidária. Quando me dava conta de voltar-me, tinha a impressão que me olhava agradecida.

Comprei um sanduíche e já na saída do bar, ela o engoliu quase instantaneamente. A baba ainda escorria da boca, quando lambia o prato de isopor.

Atravessei a pequena viela que conduzia até o interior do parque. Vi ao longe, já quase na escuridão, um amontoado de ossos, encostado no banco. A mulher estava com a cabeça baixa, coberta por um pano, que lhe ocultava a boca.

Aproximei-me com o lanche. Tentei entregar-lhe, mas ela nem me reconheceu. Cheirava alguma coisa numa lata e se enrolava ainda mais no trapo sujo.

Cida afastou-se de mim e se aproximou rápida, da dona. Sentou-se ao seu lado, como se compartilhasse o seu drama. Permaneceu ali, esperando. Talvez esperasse horas por alguma reação. Ou não esperasse nada. Nem um afago na cabeça, um sorriso, um coçar na barriga. Talvez apenas esperasse um empurrão em suas coxas magras. Era de hábito. Um hábito bom, do qual ela já se acostumara. Era o carinho que lhe restara.

De todo modo, estava alimentada. De vez enquanto, seu olhar pairava no movimento tépido das folhas das árvores, investigando algum movimento diferente. Mas eram apenas as folhas, agora amarelecidas pelas lâmpadas que se moviam na noite cada vez mais escura. Somente voltou-se, encantada, quando joguei o lanche que trouxera ao seu encontro. Agora, não o devorou de uma vez, abanou levemente o rabo, satisfeita e o deixou por um momento ali, talvez pensando que não era para ela. Cheirou, cheirou e o engoliu em seguida. Mais devagar, a bem da verdade, mas o engoliu por inteiro.

Afastei-me. Segurei firme a mochila temeroso em voltar a atravessar o parque, pela penumbra que se antecipava. Apalpei o celular, pelo lado de fora, para ter a certeza de que ela estava ali.

Depois, afastei-me devagar e dei uma última olhada para a cena.

Cida voltava a observar as árvores.
13/03/2023 23:37:53

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