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sábado, novembro 19, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 21

Nosso folhetim dramático e exagerado é publicado às terças-feiras e aos sábados. A seguir mais um capítulo, agora nos capítulos finais, no qual os desfechos aos poucos vão acontecendo. Boa diversão!

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/chá-preto-e-branco-bule-de-chá-1001654/

Capítulo 21

Santa desliga o celular e se surpreende com a visita de Letícia. A filha dificilmente apareceria, a menos que fosse chamada para algum encontro de família, como no caso das reuniões que aconteceram há pouco. De todo modo, estava feliz com a presença da filha, embora a achasse um pouco estranha. Leticia tomava chá ao seu lado, na varanda que desembocava num jardim enorme, do qual se avistava algumas montanhas. O por do sol ficava muito bonito, naquela região.

Santa observa a filha com carinho e mostra-se afável. Percebe, no entanto um certo desconforto, que não caracteriza a personalidade de Letícia, afinal sempre categórica e arrogante.

– Fico muito contente que você tenha vindo, Letícia. Anda sempre tão ocupada com o seu serviço, não consegue encontrar um tempo para nada a não ser o seu escritório e o tribunal.

– Não é tanto assim, mamãe. Na verdade, ando um pouco preocupada, com vocês dois: Você e papai.

– Seu pai está bem. Não se queixou mais de nada.

– Mas e você, com aquela história de dividir o patrimônio, de manter aquelas condições absurdas. Estas coisas ainda estão em pé?

– Claro, Letícia. Foi uma missão que recebi de Nossa Senhora e não posso me furtar a obedecê-la. Ela quer o bem das pessoas, a união da família.

– Mamãe, não acha que está exagerando?

– Nós já conversamos sobre isso, Letícia. Tivemos uma reunião para discutir. Para mim, é assunto encerrado.

– Mas Linda me disse que a senhora não anda nada bem.

– Como assim?

– A senhora anda nervosa, esquecendo de coisas importantes, parece que anda alheia a tudo que acontece em casa.

– Esta Linda está me saindo pior do que a encomenda. Mas você acredita nela ou em mim, Letícia?

– Em você, mamãe, é claro. Mas ao mesmo tempo, acho tudo um absurdo. A senhora acha que porque uma bússola emperrou virada não sei pra onde, e a partir de tudo isso, resolveu mandar nas nossas vidas, nós temos que fazer o que quer?

– Minha filha, eu fui bem clara. Contei-lhe sobre o que aconteceu, falei sobre a ilha isolada com a qual eu terei que participar de sua vida, de sua gente, de me transformar numa parceira e utilizar a parte de meu patrimônio para ajudar aquela gente. E se for o caso, ir embora desta casa para sempre.

– Como pode pensar neste absurdo! A senhora parece não estar bem da cabeça!

– É o que querem imputar em mim, uma loucura, não é isso?

– Eu não disse isso, mamãe.

– O que importa, agora? Você não acha que é muito fácil fazer o que eu peço, o que a Virgem me ditou? No seu caso, seria o privilégio da maternidade, terem um filho e se tornarem mais religiosos. O que isto tem de mal, meu Deus?

– Tem que ninguém pode dispor da vida das pessoas assim, de uma hora para outra.

– Mas eu dei um tempo, seis meses. É só ter um pouco de paciência e boa vontade.

– Acha que isso é honesto, mamãe? Dividir a nossa fortuna, o nosso patrimônio em prol de uma causa que nem sabemos muito bem do que se trata. Essa gente dessa ilha, acha que poderá fazer alguma coisa por eles?

– O bispo Martim vai me ajudar.

– O bispo Martim é um canalha. Teve até um caso com a mãe de meu pai.

– Foram coisas do passado e uma das condições, você sabe, era ele contar para a família e se redimir.

– São todos uns hipócritas!Basta abrir o jogo, se confessarem uns aos outros e tudo fica muito bem. O Ricardo andava me traindo, era isso que ficou bem claro na reunião e eu tenho que aturar! Mas ele se alinha com o que penso, ou cai fora.

– E você, o que pretende fazer Letícia?

– Eu vim aqui pedir-lhe que desista desta loucura, mamãe.

– Não posso, minha filha. E saiba, que estou tendo oposição em muitos setores desta casa. Muita gente está contra mim.

– É claro, imagine Tavinho querer levar uma vida regrada, mudar de curso ou coisa parecida. E o próprio Alfredo, acha que ele vai casar algum dia? Ponha na sua cabeça de uma vez por todas, Alfredo é gay, ele jamais casaria com uma mulher, está me entendendo? A senhora não pode obrigá-lo a isso!

– Por que não? Por que não satisfazer a Virgem?

– Porque é desumano, mamãe!

– Então me diga, a reunião que esteve com seu pai não foi desumana? Por que não me convidaram? E Linda, naquela desfaçatez, você acha que ela não está contra mim e em conluio com o seu pai? Sabe o que eles querem que aconteça, que eu seja dada como louca e fiquem com toda a fortuna. Todos vocês!

– Mamãe, a senhora está sendo injusta. Meu pai está preocupado com a senhora. É verdade que a senhora tem proporcionado dúvidas, porque as coisas que diz, que pensa não apropriadas, pense bem.

– São de uma pessoa louca, é isso.

– Não foi isso que quis dizer.

– Mas foi o que pensou, porque é mais fácil acreditar que eu seja louca, do que ter fé, acreditar que eu vi a Virgem se materializar aqui, na minha casa e apontar a bússola para aquela região, aquele povo. Ela só quer o bem de todos e a verdade.Bastam que aceitem se confessarem e mudar de vida, só isso.

– Só uma coisa eu não entendo nesta história toda.

– A que você se refere.

–À presença de Linda, que a senhora tanto insistiu para que ela participasse da reunião. Agora diz que ela está em conluio com o meu pai. Por que a presença dessa mulher era tão importante na nossa reunião? Já bastava o chato do bispo Martim, ainda tinha Linda. Por que mamãe?

– Seu pai não explicou para vocês? Não, ele não teve coragem, é claro. Decidiu ir por outro caminho mais fácil, insinuando que eu havia enlouquecido.

– Então me fale, me diga a verdade. Eu quero estar ao seu lado, eu quero ouvi-la.

– Temos um jardineiro nesta casa, que foi trazido por Linda para trabalhar aqui. Até poucos dias atrás, morava com ela, naquela casa dos fundos, mas agora se mudou para uma antiga casa onde morava antigamente, antes de ser preso.

– O que? Tem um presidiário que trabalha aqui?

– Na verdade, ele está em licença condicional, pois já tem direito, ficou preso durante cinco anos e teve bom comportamento.

– Mas isto é uma verdadeira catástrofe, um ex-presidiário trabalhando nesta casa.

– Pois bem, ele é sobrinho de Linda. Informe-se mais sobre ela, converse com ele, convide seus irmãos a fazê-lo, de repente descobrem mais coisas do que eu. Mas olhe, ele apesar de tudo, é um bom rapaz, eu até o contratei para ajudar-me.

– Ajudá-la? Um bandido!

– Fernando não é um bandido, Letícia. Ele é um homem que teve alguns percalços, andou com maus elementos, mas quer se redimir. Ela vai ajudar-me a descobrir tudo o que estão tramando sobre mim. Se você não acredita, procure informar-se. Fale com Tavinho, quem sabe, ele tem outras ideias.

Letícia fica calada. Talvez sua mãe esteja inventando toda aquela história e sua insanidade esteja aumentando a cada dia. Mas ainda havia alguma coisa dúbia nisso tudo, a presença de Linda na reunião, a qual ela não informara o motivo.

– E quanto à presença de Linda, você ainda não esclareceu.

– Pois bem, já que seu pai não lhe disse, nem aos seus irmãos, eu vou contar-lhe agora. Isso fazia parte de uma das condições e Linda, que fora minha empregada e amiga por tanto tempo, tinha que desabafar, redimir-se também do erro e contar a todos a verdade. Também seu pai seria desmascarado e a verdade seria completa, para ambos os lados.

– Não estou entendendo nada.

– Linda teve um filho com seu pai.

– O que? Só faltava essa! Meu pai, com aquela mulher? Não pode ser mamãe, não pode ser!

– E eu fico me perguntando, se os dois não querem ficar juntos e por isso a solução seria me porem a escanteio. Você não pensa assim, Letícia?

– Eu não sei o que pensar, mamãe, agora não sei de nada. Tenho vontade de encontrar aquela mulher e quebrar as fuças dela!

– Não, na verdade precisamos examinar todos os lados. Saber se ela está unida a Sandoval, ou se está planejando sozinha ou se ele tem os seus próprios planos. Mas desconfio de que um está contra o outro, embora fingindo que possuem o mesmo objetivo.

– E você descobriu alguma coisa?

– Descobri. No dia da reunião de vocês, eu pedi a Linda que gravasse toda a discussão atrás da cortina, mas ela disse que não havia conseguido, que tinha se enganado ou coisa parecida. Mas eu descobri que havia gravado tudo.

– E como, a senhora pegou o celular dela?

– Não, ela enviou a gravação por mensagem para uma amiga, uma mulher que a acompanha na igreja, sempre que vai ao rosário. Eu a procurei e pedi o celular, o qual entregaria mais tarde. É uma senhora simples, que não entende muito da coisa. Foi fácil conseguir.

– Mas como soube que estava com ela?

– No dia da reunião, fui à igeja, lembra? Sentei-me ao lado dessa senhora, chama-se Lúcia e percebi que ela recebia uma mensagem intermitente. Ela não entendia nada, eu então tentei ajudá-la. Era a gravação na íntegra de Linda.

– E ela, o que fez?

– Nada, deu-me o celular para que eu passasse a gravação para o meu. Entreguei-a depois, dizendo que não era nada demais. Apenas uma mensagem de Linda.

– E Linda, não descobriu nada?

– Acredito que não. Esta senhora é muito atrapalhada nestas tecnologias, com certeza nem tocou no assunto. Entregou a gravação para Linda e ficou nisso mesmo.

– Então, o que faremos mamãe, eu estou apavorada com tudo isso.

– Eu dei a sugestão de vocês procurarem este rapaz, ele sabe muito mais do que parece. Não vá sozinha, convença o Tavinho, que é muito mais atilado para estas coisas.

– E sua situação com papai, como está?

– Distante, cada vez pior. Nós quase não nos vemos, ele passa o dia fora. Acho que além da empresa, ele vai para as rodadas de jogos. Mas tudo bem, as minhas condições foram dadas e não voltarei atrás. Agora me diga, Letícia, você acredita em sua mãe? Acha ainda que sou uma maluca, uma alucinada?

– Não sei de nada, mamãe, não quero me precipitar, mas tenha certeza de que o que me disse, me balançou bastante. Vou falar com Tavinho sim, quem sabe, a gente descobre mais coisas sobre esta mulher e a põe no olho da rua!

Neste momento, Linda bate à porta, perguntando se precisam de mais chá. Letícia a olha com frieza. Ela continua, sorridente.

– Fico tão feliz que minha amiga não esteja sozinha. Ela anda tão solitária, ultimamente.

– Linda, limite-se a servir o chá. Deixe que eu cuide da solidão de mamãe.

– Eu pensei que poderia ajudá-la, Dona Santa tem tido umas crises bem difíceis.

– De que está falando, Linda? – pergunta Santa, intrigada.

–Não me leve a mal, Dona Santa, mas é que nós já conversamos sobre isso, lembra?

– Não, não lembro de nada.

– É verdade, aí é que está o problema.

– Linda, não tenho paciência para papo fora de hora. Quero conversar com minha mãe, por favor, se você nos der licença.

Linda retira-se, piscando o olha para Santa, com certa cumplicidade. Santa suspira, desolada.

terça-feira, outubro 18, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 12

No décimo primeiro capítulo Sandoval presidiu a reunião da família, na qual a matriarca Santa não estava presente, muito menos o convidado bispo Martim e Linda, a empregada que Santa fazia questão da presença. Neste encontro, Sandoval conseguiu finalmente convencer os filhos que a mulher estava muito doente, na verdade uma doença mental que a levava a ter visões como a da Virgem e por conseguinte as mensagens que elaborara com a intenção de mudar o comportamento de todos. Para não perder a forturna, a considerariam incapaz de administrar os bens ou decidir qualquer coisa ligada a testamentos. Não sabiam porém, que Linda gravara toda a conversa em seu celular, escondida atrás de uma cortina. A seguir o desenrolar do nosso folhetim dramático, nesta terça-feira, 18/10/16. Todas as terças e sábados, são publicados os capítulos da história “A fotografia da vida de Santa”. Boa diversão.

Capítulo 12

Todos conversam em tom acalorado, após terem tomado a difícil decisão.

Em seguida, porém, a energia adquirida foi se dissipando e seus gestos fragmentados revelavam que seus corações estavam instáveis e confusos.

Aos poucos os filhos e o genro se despediram de Sandoval, deixando-o sozinho na biblioteca.

Sandoval não levantou-se da poltrona, imaginando-os afastarem-se jardim à fora, na ânsia de pegarem os seus carros e correrem para as suas vidas particulares, provavelmente esquecidos rapidamente de tudo que acontecera ali. Afinal, o que importava eram as finanças, os seus bons empregos e o patrimônio que não podiam perder.

Suspirou fundo e sorriu animado. Agora não tinha mais porque se preocupar.

De repente, ouve um barulho e volta-se assustado. Não há ninguém, a não ser ele, na biblioteca. Será que algum dos filhos teria esquecido alguma coisa? Ou Santa havia voltado da igreja?

Levantou-se e passeou pela biblioteca, dando uma olhada para os jardins.

Quando voltou para o lado oposto da janela, surpreendeu-se com a visão de Linda que surgia por entre as cortinas, encarando-o com extrema segurança.

Não disse nada, apenas o observa, enquanto guardava um objeto na bolsa.

— O que significa isso, Linda? O que está fazendo aqui? – Fez uma pausa e concluiu, desolado – Meu Deus, você estava atrás das cortinas! Estava aqui o tempo inteiro!

— Estava sim, Seu Sandoval.

— Mas por quê? Quem lhe mandou ficar ai, sua desgraçada?!

— Talvez eu tenha mais motivos do que o senhor pensa para ficar aqui.

— Ora não seja ridícula, sua empregada de quinta categoria! Vocês está me desrespeitando, isso sim!

— É o que o senhor pensa, né? Eu fui desrespeitada toda a minha vida e agora o senhor se sente assim, que bom!

— O que você quer vivente? Me aborrecer ainda mais!?

— Eu também tenho meus planos, inclusive uma proposta a lhe fazer.

— Quem é você para me fazer propostas, sua infeliz? Saia imediatamente daqui. Hoje mesmo, você será despedida! Vou conversar com Santa e mandá-la para o olho da rua!

— Isso é o que o senhor pensa. Eu não vou sair daqui, até que o senhor ouça o que eu tenho para dizer. E não vou sair desta casa, não.

— É? E por que tem tanta certeza, sua idiota?

— Porque o senhor vai ter que escolher: Ou ouve a minha proposta, ou dona Santa saberá tudo que está acontecendo nesta casa!

Sandoval dá uma risada irônica:

— E você vai lhe contar? Ora, não seja idiota, Santa jamais acreditaria numa criada como você. Saiba que Santa é carola, boazinha para os miseráveis, mas é uma mulher aristocrata, uma mulher que sabe que está numa classe superior! Pensa que é muito esperta, sua imbecil!

— Talvez não seja tão esperta a ponto de contar a todos que nós temos um filho, um filho meu e seu, esqueceu, seu Sandoval?

— Não me chame assim, me respeite, e vá, vá embora daqui. Não quero ouvir a sua voz, não tenho nada a falar com você.

— Mas eu tenho, como lhe disse, tenho uma proposta e acho bom o senhor me ouvir!

— Está me ameaçando?

— Estou sim, porque tenho comigo a gravação de tudo que se passou nesta biblioteca. E vou correndo mostrá-la a dona Santa, ao menos que o senhor ouça o que eu tenho a lhe propor.

— Eu não acredito, eu não acredito que isto está acontecendo na minha casa!

Ele aproxima-se um pouco, e Linda o avisa a parar, porque a gravação do celular já foi enviada para outro número. Neste caso, mesmo que ele a apague, ela já tem uma cópia.
Sandoval fica desesperado.

— Você está louca, Linda. Completamente louca! Pensa que vai ter alguma vantagem em me fazer chantagens? Você não sabe que está num nível inferior, numa classe baixa, muito distante da de nossa família? Você não é nada e mesmo que tenha alguma prova contra mim, nenhum juiz a aceitará. Pense bem.

Linda, no entanto, não parece ouvi-lo. Está muito calma e ciente de seus objetivos.

— Muitas coisas estão acontecendo, que o senhor não sabe. Esta noite um cara entrou no jardim, pulou a área e entrou na copa, deixando propositadamente um cartão com a mensagem de Dona Santa. Ela já anda bem apavorada. Quem sabe a loucura se concretiza?

— O quer dizer com isso?

— O senhor não disse que ela está ficando louca? Pois bem, os seus argumentos são bastante fracos. Mas hoje, ela se mostrou bem assustada. Eu até poderia dizer que havia um traço de loucura na sua fisionomia.

Faz-se um silêncio. Sandoval pensa por um minuto. Encara Linda com raiva, mas entende que ela sabe de alguma coisa sobre Linda.

— Quem era este cara? O que ele queria? Você sabe?

— Calma, seu Sandoval, talvez não soubesse de nada. Talvez fosse apenas uma armação para assustar a pobre coitada.

— Então quer dizer… Linda, você planejou isso?

— Digamos que eu planejei. Agora o senhor já sabe do que sou capaz. Quer ouvir a minha proposta?

Sandoval está transtornado. Seu olhar é de fúria e de espanto. Nunca imaginaria que Linda fosse capaz de elaborar uma história tão maquiavélica.

Ela, no entanto, parece segura, ao ponto de enfrentá-lo, no aguardo paciente de quem conhece os seus limites. Olha-o impassível, com o trunfo nas mãos.

Sandoval a ouve com a argúcia, não convencido ainda de suas artimanhas.

Ele que poderá reverter a situação, afinal, Linda não é nenhuma expert em alinhavar planos mirabolantes. Aí está o seu ponto fraco, não tem dúvidas.

— Você contratou um homem para assaltar a casa, jogar a mensagem de Linda que era dirigida ao bispo Martim e fugir, para deixá-la apavorada, como se a pessoa pretendesse se vingar.

— Mais ou menos isso.

— Em quem era esse homem?

— Meu sobrinho, o senhor conhece, ele já trabalhou aqui, como jardineiro. Conhece a casa como a palma da mão.

— Gentalha! – Respira fundo, com raiva, mas continua – Me diga, quer dizer que este homem que você contratou, este seu sobrinho, como você disse, tinha a incumbência de enlouquecer Santa, de deixá-la transtornada, para que eu aceite tudo o que você planejou.

— Exatamente e quando ela estiver fora do páreo, eu serei a dona desta casa.

Sandoval dá uma gargalhada forçada, com a intenção de menosprezá-la, ao mesmo tempo para deixar claro que é uma hipótese impossível. Linda prossegue, animada:

— É a minha chace de ser a dona desta casa. O senhor nem precisa viver aqui, comigo, basta que me deixe reinar sozinha e absoluta.

— Com que você aprendeu este palavreado? Com a própria mulher que você quer enlouquecer, tirar do seu caminho?

— Dona Santa me ensinou muito, é verdade, mas nunca me apoiou quando soube que estava grávida, obrigou-me a levar o meu filho para bem longe de mim, preocupou-se apenas com o bom nome da família, com as aparências do seu casamento. Sabe, seu Sandoval, eu acho que chegou a minha vez.

—  E você acha que vai ser assim tão fácil? Que vou deixar que tome conta do meu patrimônio, que se torne a dona da casa? Era só o que faltava, meu Deus! Eu querendo livrar-me da loucura de Santa e vem essa vadia querer a mesma coisa! Ora vá se enxergar, Linda!

— Acho que é o mínimo que pode fazer pelo tempo todo em que me dediquei a esta casa.

— Mas você não entendeu, sua louca? Santa está viva! Você quer matá-la também?

— Vocês querem enlouquecê-la, eu só queria ajudar. Basta que façam o que combinaram, afinal, o que a família combinou, não apenas o que uma simples empregada deseja. Todos estavam de acordo em acabar com o reinado da mamãe!

— Não fale desse jeito sua megera!Você é muito dissimulada, mesmo!

— Eu? Dissimulada? É que o senhor não olhou para si próprio, não observou bem os seus queridos filhos, mas se quiser, eu tenho tudo gravado e posso lhe refrescar a memória. Eu, de minha parte, só estou querendo o meu quinhão! Quero o que de fato me pertence!

— E o que você realmente quer, sua demente?

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/casa-construção-in%C3%ADcio-arquitetura-540796/FrankWinkler

sábado, outubro 15, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 11

Hoje é sábado, por isso, publicamos a seguir o décimo primeiro capítulo de nosso folhetim dramático. Sempre publicamos um capítulo na terça-feira e o outro no sábado. Bem, vamos fazer uma síntese do capítulo anterior. No décimo capítulo, Santa fizera um balanço sobre os desdobramentos da reunião familiar, na qual impora algumas condições à família, ao bispo Martim e à Linda. Estava preocupada e um pouco confusa. Não sabia se o que estava fazendo era o correto para a situação. Entretanto, Sandoval decidira fazer uma reunião sem a sua presença, nem a de Linda, o que lhe produzia um sentimento de desconfiança. Por isso, pedira à Linda que se escondesse na biblioteca e ficasse a par dos acontecimentos. Quando a reunião começara, ela tinha ido à igreja. Sandoval, como um trunfo para derrotar as condições de Santa, dissera à família que ela estava louca.

Portanto, a seguir o nosso décimo primeiro capítulo, com a pergunta de Letícia. Divirtam-se, amigos!

Capítulo 11

— Como louca? O senhor é que enlouqueceu, por que está dizendo esta bobagem?

— Voces acham que ela viu a tal Nossa Senhora? Vocês acham que a bússola apontava para aquela comunidade, ora pelo amor de Deus, só por aí, dá para perceber que ela não está no seu juízo normal!

— Eu estou com o sogro, sempre achei muita maluquice por parte de dona Santa esta coisa de visão, de missão, de querer mudar a gente.

— Cale a boca, Ricardo. – Letícia volta-se indignada para o pai – Escute aqui, papai, mamae pode estar estressada, talvez até a visão seja coisa da cabeça dela, afinal, ela é tão religiosa, tão carola, mas chegar ao ponto de acusá-la de demência, é demais!

— Eu sei minha filha, talvez eu esteja exagerando, talvez você tenha razao, mas veja bem ao caos que este capricho está levando a família. Não podemos ficar presos às atitudes insanas de sua mãe. Vocês se lembram qual era a verdadeira missão dela, inicialmente? Deveria juntar-se a uma comunidade de anarquistas, na ilha, depois às comunidades carentes que vivem nas redondezas, por fim, decidiu impor condições à família, exigindo mudanças no nosso comportamento. Ela não tem um rumo certo, não sabe onde chegar.

— E onde o senhor quer chegar papai? – pergunta Alfredo, desconfiado.

— Por favor, Alfredo, não me olhe com esta censura, sei que você ama a sua mãe...

—Todos a amamos, papai. – conclui Letícia, aborrecida.

— Sem dúvida, sem dúvida. Eu também a mãe de vocês, ela é uma mulher maravilhosa. Só está um pouco perturbada e nós temos a obrigação de ajudá-la. Entretanto, meus filhos, por mais que isso pareça duro e desumano, eu não posso deixar de pensar nos bens de nossa família, na indústria que mantém o patrimônio vivo. Do jeito que está, ela vai nos levar à falência.

— Como assim? Explique-se melhor, papai. – Letícia indagava ansiosa, ao mesmo tempo que voltava-se para Tavinho, que parecia muito à vontade com a situação. Por que ele não dizia nada, pensava.

Sandoval prosseguiu com uma voz entrecortada e triste. Às vezes, mostrava-se mais seguro, embora fizesse questão de informar de algum modo que aquela situação o magoava muito.

— O que eu preciso afirmar a vocês e quero que entendam a minha situação, é que sua mãe não pode dividir a herança, não pode dispor da parte dela para doar para esta comunidade. E ela é bem capaz disso, está convicta, diz que a Virgem exigiu. Imagine, se ela comete uma loucura destas, nós todos estaremos perdidos! Porque, pensem bem, eu tenho certeza de que nós jamais faremos o que ela deseja, por mais que tentemos, é impossível. O ser humano não muda, nós já temos os nossos hábitos arraigados, a nossa vida particular e não somos nenhuns monstros. – olhava em torno e perguntava, pedindo socorro. – Concordam comigo? Podemos até melhorar as nossas condutas, mas fazer a mudança que ela quer, é impossível. Já pensaram nisso, meus filhos?

Tavinho então decidiu intervir, sendo acompanhado pelo olhar de Letícia.

— De minha parte, papai, eu já nem pensava nessa bobagem. Eu jamais trabalharia na fábrica como ela quer e nunca vou deixar o meu curso ou mudar de profissão.

— Pois muito bem, Tavinho corrobora com o que eu digo. A gente não consegue, pessoal, por mais que nos esforcemos. Vamos melhorar sim, pelo bem da família, por sua mãe, mas jamais mudar completamente e ela, se vocês se lembram, foi bastante clara: ou nós mudamos ou ela entrega toda a forturna e vocês sabem que ela é bem capaz disso.

— E o que o meu sogro sugere?

— Eu vou ser muito franco, meus filhos, com o coração doído, mas muito racional e lúcido. A minha proposta é que consideremos oficialmente a sua mãe como uma mulher incapaz.

— Como assim? Ela é uma mulher lúcida, em pleno gozo de seus direitos e deveres, uma mulher que sabe o que quer, uma deusa da sociedade, da elite.

— Eu sei leiticia, eu sei. E já acrescentei que é com o coração doído que proponho isso, mas é a única solução. Precisamos provar que sua mãe está incapaz de decider qualquer coisa em relação ao patrimônio de nossa família, que está mentalmente perturbada, para evitar este desastre!

Ao ouvir a declaração de Sandoval, Alfredo intervém, indignado:

— Eu não acredito no que estou ouvindo, o senhor quer que a gente assine embaixo que nossa mae louca! O senhor é um canalha, papai!

— E você o que é Alfredo? O que você fez para ajudar a família, a não ser se esconder nesta carapaça estranha de efeminado?

— O senhor sempre quis dizer isso, não é verdade? O senhor sempre me odiou!

Ricardo percebendo que a discussão envereda por um tema que pode mudar o objetivo de Sandoval, com o qual concorda, interfere tentar conciliar os ânimos.

— Calma, pessoal, olhe, Alfredo, se a gente pensar friamente, com racionalidade, percebemos que seu pai tem razão. Você acha que não é duro para ele também nos falar sobre isso? Eu vi o sofrimento na fisionomia dele.
Sandoval o olhou, um pouco surpreso. Em seguida, voltou-se para Alfredo que gritava com raiva:

— Não é nada disso, será que vocês não enxergam? Ele quer é se livrar dela!

— Não diga isso, Alfredo. Eu amo a sua mãe, apenas não suporto a ideia de ficar na miséria. É crime isso? É crime tentar proteger o nosso patrimônio, a nossa vida em família? – E falando mais pausadamente – Vocês tem uma vida econômica boa, não há dúvidas, entretanto, todos sabemos que ainda precisam de nossos bens. E depois, tudo isso é de vocês! Se ela dividir o patrimônio, caberá uma parte menor a cada um. Então, qual é o problema, não vamos fazê-la sofrer, ela não precisa saber de nada no início, eu tenho um bom advogado, o doutor Orestes e ele acertará todos os trâmites para que a coisa saia a mais tranquila possível, sem atropelos, sem que apareça na imprensa, tudo na surdina.

— Parece que o senhor já encaminhou tudo, papai. – conclui Alfredo, desolado.

— Eu preciso do apoio de vocês. Ela não vai sofrer e aos poucos, cairá na realidade. Isso de visão da Virgem vai passar, vocês verão. Além disso, podemos fazer uma viagem pela Europa, passar um tempo juntos, até baixar a poeira. Tenho certeza, de que sua mae voltará renovada, uma outra mulher.

— Não sei não, mas que seria um alívio, seria. O que você acha, Tavinho?

— Partindo de você, Letícia, a mais revoltada de todos, dá o que pensar. Se não vai fazer mal à mamãe, por que não pensar no assunto?

Ricardo os observa e conclui a ideia, satisfeito:

— E tudo voltaria ao normal, a paz reinaria no seio familiar. Seu pai teve uma grande ideia, Letícia.Não acha?

— Agora, eu entendi tudo, entendi a ausência de mamãe, você preparou tudo, papai. Você foi cruel, desumano. Não papai, muito pior, você a traiu! Aliás, é moda no Brasil este tipo de traição, não é?

— Alfredo, eu precisei fazer isso. A sua mãe está em outro mundo, ela só pensa naquela gente infeliz, naquela comunidade de gente suja e medonha, que só vem perturbar a nossa família. Está na hora, meu filho, na hora de reagirmos. Infelizmente, é a sua mãe que está na roda, mas foi ela que criou esta história absurda, ela nos enredou nesta trama terrível. Por causa dela, vamos prejudicar toda a família. Ela pensa que uniria a família, mas ao contrário, essas condições destruirão odos de uma só vez, caso consiga o seu objetivo. Isso desagregará a família e vai acabar nos separando. Eu não quero isso!

Letícia, parecendo concordar com a proposta de Sandoval, tenta convencer Alfredo. Tavinho absorto, apenas observa o grupo, sem muito interesse.

— Vamos, Alfredo, procure tirar a mamãe desta história toda. O que papai propõe não é contra ela, é a favor da família, entende?

— É impossivel, Leticia, mamãe é o pivô de tudo que está acontecendo. E é com ela que a bomba arrebenta.

— Eu sei, eu sei, meu irmão. Mas lembre-se que não vai acontecer nada de mal a ela, como você pensa, apenas ela ficará alheia às decisões. Tenho certeza de que ela nos agradecerá no futuro.

— Você se convenceu depressa, convenhamos.

— É a vida, meu irmão. Mamãe se meteu onde não devia. Ela arriscou demais. Nós agora, queremos que tudo permaneça como antes, com ela ao nosso lado, mas sem interferir no nosso destino. Pensa bem o que sua irmã experiente está lhe dizendo, você continuará a sua vida, sem prestar contas a ninguém, não é maravilhoso? É a liberdade que ela nos tirou!

Tavinho aproxima-se um pouco dos demais e intercede:

— E depois, isso não ia dar em nada, Alfredo. Mamãe não tem experiência em lidar com pobre, assim, diretamente, como ela queria. Ela ia quebrar a cara.

— Você também, Tavinho, você está a favor desta crueldade?

— Não, eu lavo as minhas maos. Mas de todo modo, que tudo aconteça sem a minha presença, só para assinar alguma coisa, se necessário. Não quero me envolver nestas coisas de papeladas, de burocracia. Quero viver a minha vida, meu irmão.

— Então cunhado, já tomou uma decisão? – Dirigindo-se a Alfredo.

— Eu não sei o que fazer. Adianta eu me recusar?

— Meu filho, segundo o dr. Orestes, todos devem assinar os testemunhos. Está tudo pronto, basta que assinem concordando.

— Quando ela descobrir, ela vai nos odiar! – exclama Lavínia.

— Sua mae nunca os odiará, ao contrário, ela vai entender e certamente se ligará ainda mais à religião. Isso será uma benção, pois teremos a Santa que sempre conhecemos e o senso comum se restabelecerá. Esteja certo, meu filho, eu que convivo com a sua mãe, vinte e quatro horas por dia, tenho certeza de que esta é a saída para a saúde mental dela. Ela está a cada dia mais alucinada e este estresse alto vai levá-la a uma doença mais grave, vocês tenham certeza. Tudo o que fizermos responderá na saúde mental de sua mae. É a única maneira de salvarmos de uma depressão galopante ou de algo pior.

— Está bem. Eu concordo, mas com uma condição, que façam a papelada sem que ela sofra, de modo algum. Eu não quero minha mãe achando que está louca realmente e que nós a abandonamos. – conclui Alfredo, melancólico.

— Ao contrário, meu filho, ao contrário, estaremos cada vez mais perto, mostrando-lhe a realidade. – E emocionado. – Meus filhos, só eu sei o quanto tenho sofrido e escondido de vocês esta realidade, mas Santa às vezes, nem me reconhece. Outras vezes, fica completamente calada, e eu fico muito tempo esperando que melhore. Houve tempo em que eu lhe lia alguns livros para que se sentisse melhor, afinal ela sempre foi uma boa leitora. Mas graças a Deus, ela tem melhorado, até que começou a falar nesta visão escabrosa.

Letícia aproxima-se, emocionada e abraça o pai. Chama em seguida os irmãos e pede que façam o mesmo, afinal, trata-se do bem-estar da família e da saúde mental da mãe. Só agora ela percebera o quanto o pai estava sofrendo. Portanto, é hora de se unirem e fechar o pacto.

Alfredo arrasta-se da poltrona, desanimado, mas mesmo assim, completa o abraço unindo-se aos demais.

Sandoval enxuga algumas lágrimas, afastando-se do grupo, mas é interceptado pelo genro que o abraça efusivamente.

Atrás da cortina, Linda desliga o gravador do celular.

Fonte da ilustração:https://pixabay.com/pt/análise-pagar-empresários-reunião-626881/Geralt

quarta-feira, julho 31, 2013

A CINZA EM QUE ARDI

Sempre a vira expor-se de maneira ridícula. Pelo menos para os padrões da época. Tinha lá seus quase oitenta anos e se vestia como uma mulher de trinta. Um vestido godê preto, que ao vento lhe subia nos ombros, aos meus olhos espantados de 10 anos. Na boca, um batom vermelho delineando os lábios sumidos. Um sorriso largo, de dentes miúdos, com falhas inevitáveis. Gostava de sentir-se assim, livre e talvez a sensibilidade aflorada na pele revelasse apenas o desejo de felicidade. Uma brisa, um aroma, um sopro de vida. Todos ou quase todos a chamavam de louca. Ou senil. Ou velha destemperada. Não lhe permitiam explosões em seus pensamentos, nem alfinetadas nas ideias que não se constituíssem um dedal. Mentes torpes, endurecidas pelo hábito higiênico e padronizado da maioria. Eu, como criança, talvez a seguisse no que tinha de melhor. E o melhor eram os livros que me oferecia. Livros tão antigos quanto à coluna que se comprimia nas vértebras enferrujadas. Livros amarelecidos, capas andrajosas pedintes de leituras, folhas finas, às vezes rasgadas. Pedaços de livros. Frangalhos de histórias. Mas que me faziam beber da fonte inesgotável da aventura, de trajetórias distintas das que seguia, dos vôos altos em que avistava outros prados.

Ela não arrefecia em mostrar-me este novo mundo, talvez porque visse em mim uma sagacidade desconhecida aos demais de sua família. Um desejo de ir mais longe ou de descobrir o que estava tão perto, mas tão perto, que nem fazia sentido.

Ela era assim: alegre, divertida, faceira, estranha. Um estranho absurdo, que talvez a lançasse aos limites da loucura. Mas esta insanidade voraz e desconhecida talvez a tornasse um ser humano íntegro em sua relação peculiar com a vida.

Claro que nem todos a entendiam, nem eu. Apenas não a julgava com o olhar de adulto. Por certo, encontrava em sua imaginação fértil uma afinidade com o universo interior de um pretenso escritor. Tudo que eu escrevia num papel encardido de embrulho era devidamente analisado, anotado e compreendido. Quando muito, uma nova visão, um ponto de vista próprio, difícil de atingir, mas que anunciava uma entrega desavisada com cheiro de sonho e gosto de felicidade.

Morava com um irmão tão velho quanto ela e os três sobrinhos. Todos a consideravam amalucada, rótulo vencido.

Eu sentia um certo constrangimento em me aproximar, tal era o preconceito que expressavam sobre ela.

Certa vez, ela me chamou pelo muro. Estendeu seus braços finos, com um caderno na mão, tão amarelo quanto os livros. As unhas vermelhas apertavam a capa cerzida na restauração improvisada. Percebi que havia uma espécie de tule ou renda branca empoeirada, revelando o guardado num daqueles baús imensos que tinha ao lado da cama. Espichei o meu braço, arrastando-o no reboco rugoso e peguei o caderno. Ela fez um sinal cúmplice com a boca, produzindo mil ruguinhas entre os lábios, pedindo que não o abrisse logo, apenas quando estivesse em casa, engendrando minhas histórias. Obedeci. Guardei o caderno embaixo do travesseiro para lê-lo à noite, sem muito tempo para decifrar o que havia nele. Fui para a escola, de lá para casa, o banho, um pouquinho de tv, o sono e esqueci o presente.

Acordamos pela manhã, eu e meus pais com os gritos. Uma ambulância e um olhar de desespero cercado entre braços fortes que a empurravam para dentro do veículo, como se pudesse resistir a não ser com gritos. Um cheiro de fumaça, de papel queimado, de lixo armazenado no fundo do quintal.

Meu pai perguntou ao sobrinho mais velho o que estava acontecendo, mas não houve tempo para respostas, a sirene já se ouvia forte, abrindo caminho na rua onde se formavam pequenos grupos. Todos comentavam, produzindo explicações que convinham. Alguns meninos no caminho da escola, paravam intrigados, observando a cena. Cenário perfeito para uma investida na imaginação por mais acanhada que fosse. Tudo conspirava para o senso comum se estabelecer: dispensar a tia louca para o sanatório.

Meu pai afastou-se do lugar enquanto minha mãe já tomava as últimas da vizinhança. Entramos, a hora se adiantava. A vida continuava. O mundo girava no mesmo ritmo. Um ritmo desordenado em nossa vida caótica. Lembrei de seu irmão mais velho, que nem aparecera. Devia ter ficado lá, constrangido pela covardia em não lutar contra um destino que mais cedo ou mais tarde seria o seu.

Não me contive e desviei do cuidado de meus pais e pulei o muro, pelos fundos do quintal. Atravessei o pequeno alpendre e passei pela cozinha, dirigindo-me ao quarto dela: reduto pouco visitado, embora lá havia conhecido e ganho os meus primeiros livros. Percebi que o irmão estava encostado no parapeito da janela que dava para o nosso pátio, um cotovelo apoiado, com a mão no queixo, amaciando a barba mal feita e na outra mão, um cigarro de brasa esquecida.

Afastei-me pé ante pé e abri a porta do quarto, lentamente. Observei a cama de mogno desarrumada, a cômoda com os porta-retratos atirados, uns sobre os outros como em efeito dominó, alguns livros rasgados. Mas meus olhos se detiveram espantados na velha estante de madeira que emoldurava toda a parede do lado esquerdo, oposto à janela. Estava vazia, uma estante em que moradores notáveis fizeram historia, um Kafka, um Machado, um Guimarães Rosa, um Joice, um Goethe, um Dostoevisk. Demandaram em derradeira missão, talvez desconhecida e definitiva, jamais almejada.

Corri para os fundos do quintal, segui a cortina que se antecipava aos meus olhos e um pequeno visgo de fumaça, como uma serpente que se insinuava, mostrava o caminho.

Ali estavam os livros, com suas brochuras à mostra como esqueletos restantes do incêndio homicida, costuras desalinhadas, pedaços de folhas em desenhos disformes com olhos negros produzidos pelo fogo, marcas indeléveis, transmutando o que era saudável em feridas fatais. Sangue negro escorrido nas cinzas, fome de vingança jamais aplacada.

Ainda salvei das últimas chamas, alguns farrapos que resistiam aos pingos de sereno. Parte de um livro de Almeida Garret, que li sujando as mãos na página quente, que me doíam os dedos: restos mortais de uma vida que se dissolvia na intolerância.

Seus olhos - se eu sei pintar

O que os meus olhos cegou

Não tinham luz de brilhar.

Era chama de queimar;

Vivaz, eterno, divino,

Como facho do Destino.

Divino, eterno! - e suave


Ao mesmo tempo: mas grave


E de tão fatal poder,


Que, num só momento que a vi,

Queimar toda alma senti...


Nem ficou mais de meu ser,

Senão a cinza em que ardi.

Nunca mais a vi. À noite, abri o caderno de capa cerzida e passei a viver assim, embasbacado, até descobrir o sentido das coisas que avistara. Ela teria feito um apanhado de minhas histórias, como incentivo a prosseguir no desvendar incessante da imaginação. Um dia, seria talvez um aprendiz de um daqueles escritores consagrados. Mais tarde, porém percebi que aquelas narrativas não eram minhas, a não ser a semelhança pela ingenuidade e a descoberta prenhe da vida. Eram histórias de há muito tempo atrás, talvez de seis ou sete décadas, quando ela era tão criança quanto eu e assim, iniciara também seus contos num caderno, hoje cerzido de linha azul, para preservar o sonho. E talvez, a lucidez.

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