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sexta-feira, dezembro 17, 2021

O Natal de Michael José



Michael José surgia na rua morna naquela tarde de dezembro. Nem uma lufada de ar, nem uma brisa desavisada para uma véspera de Natal. Era de um ar apertado, quase desconforto. Digo que ele surgia, porque pessoas como ele não transitam pelas ruas, não passeiam, não caminham por um objetivo específico. Michael José surgia do nada, porque para nada ele era designado. Na verdade, achava-se um ninguém, no meio daquela apatia e desapego. Nada o acolhia, nada o libertava de si mesmo, nada mexia com o seu interesse. Era um desamparo que o consumia desde muito cedo, provavelmente desde a infância, se é que a tivera. Também não havia ninguém nas ruas do centro. A cidade estava morta, esperando as celebrações da noite. Ele também estava morto, há muito tempo. Talvez para ele, a data estivesse errada e em vez de Natal, fosse sexta-feira santa, sem ressureição. A vida, para ele, não passava de um eterno domingo de ramos, no qual festejavam o Mestre, para o apedrejarem depois. Ele, ao contrário, não fazia parte de nenhum grupo, nem dos que homenageavam, nem dos que insultavam. Não se encaixava, não se adequava e seu estranhamento com a vida, persistia desde cedo. Talvez fosse o jumento desajeitado que apenas cumpria a rota determinada.
Mas uma coisa incomodava Michael José, isso ele não tinha como negar. Era a fome. A fome era o seu horizonte, o seu registro apagado, o seu prato preferido, o seu discurso não dito, a sua voz inaudível. Talvez fosse o recrudescer dos sintomas, dos períodos em que a morte sinaliza a vertente que deságua em seu sangue, suas veias, suas pupilas, seu coração. Uma dor tão intensa que a fome é só mais um delírio, uma vontade de sumir em qualquer vala que valha seu corpo esquálido. Uma dor premente. Olhar o caminhão de lixo que se aproxima e pensar que pode ser uma parte daquele entulho, produz uma agonia de não ser alguém, de não fazer parte, não ter. Uma inadequação sem saída.
O caminhão foi mais rápido do que ele, não sobrara nada, nem uma latinha, um resto de yogurte ou gotas de Coca-cola, com a garrafa vestida de um Papai Noel corpulento, de bochechas vermelhas e olhar complacente. Por um momento, ele viu o velho sorrir em sua mão, mas só por um momento, porque avistava apenas os dedos trêmulos e escurecidos pela sujeira.
Michael José precisava seguir em frente. Por isso, surgiu novamente em outro ponto da cidade, num canteiro florido da praça, cuidado com esmero para pessoas como ele não sentarem ali. Que entendia Michael José de beleza, de estética, de harmonia? Sua cara poderia ser a representação da pintura de Edward Munch, O grito, cuja figura revela uma profunda agonia e desespero. Seus olhos vermelhos e esbugalhados, quase o avesso da visão, sua boca murcha e dentes podres. Pobre Michael José, quem teria piedade? Ao contrário, o temiam e se pudessem, rasgavam aquela cara encardida para que se afastasse de vez dos locais onde as famílias de bem se encontram, assim como eliminar qualquer resquício que fosse a sua presença. Ele não disse que os seus dias eram todos domingos de ramos, só que para ele, sem os elogios e celebrações, apenas o apedrejamento tão próximo.
Mas Michael José também pensava no Natal e ao sentar ali, tão próximo do canteiro florido, teve vontade de chorar. Pensou na mãe, nos irmãos, no padrasto, no terreno baldio em que construíram a casa, o arranjo de tábuas e pregos, que ajudou a pôr em pé. Quando anoiteceu, eles pararam para festejar o Natal. O padrasto já bêbado, mas tudo bem, era seu direito. A mãe cozinhou no feijão duas latas de leite condensado que tinha ganho na campanha. Foi o pudim do ano. Quando todos comeram, ficaram olhando para o céu e imaginando como seria, quando finalmente morassem na casa em construção. Michael José teve, pela primeira vez, um sentimento de compreensão do todo, de fazer parte daquele mundo, quase uma epifania. Foi seu primeiro Natal. A festa durou aquela noite. Na mesma semana, a prefeitura derrubou a casa por estarem em terreno da União. E não houve qualquer medida social de acolhimento por parte do governo. Mesmo assim, Michael José lembra, foi um Natal feliz.
Agora, ele quase dormiu e foi acordado abruptamente. Não entendia se se tratava de um delírio, o efeito rebote da droga mais intenso ou se estava sendo preso. Olhou para o homem sem ouvir o que ele dizia. Avistou ao longe, alguém que parecia um fotógrafo, que se desvencilhava dos apetrechos e observava o lago, as flores, os pequenos canteiros, as árvores milenares. Ele se aproximou e ficou ao lado do outro. O outro era um policial. Mas não era noite de Natal, que faziam eles ali? A praça estava tão vazia que nem perigo dele cometer algum delito, havia. O homem insistiu para que levantasse e sumisse dali. O fotógrafo investiu-se das câmeras e ligou o flash para refletir as florezinhas que desandavam pelos entornos. Deviam abrilhantar o Natal que logo começava. 
Michael José obedeceu com esforço, tentando levantar-se, titubeando entre se apoiar no canteiro, no banco próximo ou no policial que o aguardava. Seus olhos não se adequavam àquelas luzes fracas, seu coração não se integrava ao Natal que chegava. Por isso, se afastou como devia, era o que lhe bastava. Um Natal que não era o seu. 


Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/photos/viciado-v%C3%ADcio-dependência-de-drogas-2713526/

terça-feira, março 06, 2018

O verão agoniza

Nem sempre a noite clara, a brisa entre o arvoredo, a avenida com luzes esparsas pairando sobre bancos e jardins, parecem a plenitude da paz no fim de verão. Pode ser sim o reflorescer das esperanças dos que se reencontram, o harmonizar do mate solitário no banco de madeira, o gorjear dos pássaros noturnos que sinalizam o início do descanso.

Ou a emboscada da solidão que martela de leve os que carregam na mochila pesada de vazios, a busca insensata das bebidas e drogas, do ser não sendo quase nada, dos que mendigam amores e dinheiro no chão das esquinas desenhado entre folhas e luar.

Outro dia, o vi recolhendo latinhas perto do parque infantil. Fumava uma bagana e parecia procurar alguma coisa indefinida, talvez uma dúvida da qual não se livrava. Olhou-me de soslaio e sem vacilar, disparou: o que é cupincha? Surpreso, respondi indeciso: comparsa. Ele reagiu com um grunhido e silenciou.

Pensei em afastar-me, mas perguntei se juntava muito material à noite. Ele repetiu cismado: me chamou de cupincha. Tentei descrever a palavra; seria companheiro?

Ele riu com alguns dentes à mostra. Depois, se aproximou, o que me produziu algum receio. Confidenciou que um camarada o mandou levar drogas até determinado lugar, mas não aceitara. Só vivia de sua cachaça e não queria se sujar. Entendi que "se sujar", em sua linguagem, era tornar-se um criminoso. Concordei que não devia se envolver com drogas. Ele deu uma gargalhada e me abandonou de vez, como se entrasse num mundo paralelo, do qual eu não fazia o menor sentido.

Fiquei alguns minutos observando o arvoredo da avenida, as poucas pessoas que passavam, o veraneio que agonizava bonito como o abandono dos pássaros na maciez dos ninhos.

Afastei-me e pensei na ética humana. Aquele homem podia não ter nada, nem esperança, nem saúde, nem importância para os transeuntes, mas tinha ética. Mesmo que tudo fossem devaneios, não importa, ali estava incrustada a ética em suas convicções mais profundas. Ética não é para todos.

sexta-feira, agosto 04, 2017

De cara com o monstro

O monstro se aproximava devagar. Ninguém sabia de onde viera e qual o seu objetivo. Todavia era um monstro singular. Um monstro que se moldava de acordo com nossos desejos ou esperanças, às vezes tentativas de mudança.

Certa vez eu caminhava pela avenida que atravessava a cidade de ponta a ponta, o trânsito já diminuira e a iluminação começava a ficar precária, conforme eu me afastava do centro. Sabia que mais cedo ou mais tarde, eu o encontraria por ali. Diziam que ele costumava ficar naquelas redondezas do grande canalete que dividia a cidade. Talvez entrasse pelas águas turvas e se lambuzasse na sujeira que por dias alimentava aquela travessia aquática. Eu nem tinha certeza se o canalete tinha como objetivo livrar a cidade das enchentes, porque o povo costumava jogar entulhos, garrafas plásticas e além da poluição gerada, por certo um daqueles objetos iria parar numa saída de água obstruindo-a e facilitando a inundação.

Fiquei assim pensativo e decidi sentar num dos bancos, que margeavam os muros do canalete. O monstro daqui a pouco surgiria, mas eu não o temia. Nunca o tinha visto, porém tinha comigo que aquele monstro tão questionado por sua conduta perigosa, não passava de um monstrinho assustado por toda agonia aquática e seu poder de destruição. No fundo, ele tentava apavorar os homens para esquecer o próprio medo.

Mas estava ali, esperando-o e fiquei por horas a fio, nao sei quanto tempo. A lua desapareceu, dando lugar a nuvens escuras e eu temia que chovesse ou ocorresse uma ventania fora de hora, fazendo redemoinhos de folhas e poeira.

Um homem passou correndo por mim, usava boné, moleton escuro e bermudas. Não vi o seu rosto, mas percebi que fugia de alguma coisa ou de alguém. Talvez do monstro. Não por muito tempo, apenas o suficiente para voltar com uma fisionomia diferente, como se fosse outra pessoa. Parecia transtornado e demasiado eufórico, a ponto de gritar coisas sem nexo e me encarar com olhos sanguinolentos, embora revelasse uma total ausência de minha figura. Atingiu com pontapés uma coluna que projetava alguns degraus para o fundo do canal, descendo-os em seguida e ali mesmo aliviou-se, enquanto simulava articular um funk que somente ele entendia. Como chegou, desapareceu sem deixar vestígios.

Continuei sentado, procurando mensagens no celular, mas logo o guardei no bolso, pois não havia nada de novo, a não ser as mesmas publicações das redes sociais, as eternas correntes religiosas do whatsapp e os incontroláveis votos de boa noite. Fiquei ainda mais pensativo, imaginando o monstro e suas ações. Certamente, se encontrasse aquele rapaz, o golpearia com suas patas enormes e após arremessá-lo ao chão, montaria no seu corpo frágil e enfiaria as garras na garganta até sufocá-lo com o próprio sangue em golfadas.

Estava tão absorto que nem percebi que uma motocicleta se aproximava, subindo sobre a calçada e estacionando num rodopio, em frente ao banco em que eu estava. Aquele banco de pedra já me doía a bunda e eu havia decidido afastar-me de vez daquele cenário vazio, quase absurdo, numa noite de outono. Entretanto, um dos motoqueiros, rápido como um flecha, deu um salto da motocicleta e espetou uma faca em minha garganta, de tal modo que eu sentia a ponta quase rasgando a pele, tendo a sensação de que ele a cortaria. A primeira ameaça, a primeira exigência, o grito de guerra, enquanto o outro puxou o celular do bolso, bem como a carteira, examinado algumas notas que ainda sobraram após a compra de uma cerveja. Logo em seguida, o da faca, golpeou-me a cabeça com o cotovelo e deu-me outro soco para arrematar a ação, quebrando-me os dentes, produzindo um jato de sangue que me escorria da boca, enquanto eles pulavam na moto e desapareciam na névoa que se antecipava.

Fiquei ali, patético e humilhado, sem tomar qualquer atitude. Talvez devesse chamar a polícia ou queixar-me às autoridades competentes o fato de um cidadão de bem ser impedido de ficar observando a noite, cuja claridade se esvaía com o aumento da neblina. Neste ínterim, percebi a volta do rapaz eufórico, embora agora parecesse um tanto depressivo. Vinha acompanhado de um grupo de maltrapilhos, como se estivesse cercado por zumbis, cujas chamas iluminavam os olhos sem vida e a fumaça dos cachimbos se agregasse à cerração que ficava cada vez mais densa. Alguns carros paravam próximos ao grupo, dos quais desciam vários jovens. Alguns subiam nos muros do canalete e caminhavam sobre ele, bamboleando os corpos, numa ousadia que os transformava em verdadeiros equilibristas. Davam gritos, risadas e berravam palavras de ordem, que mais pareciam um amontoado de palavrões.

Eu os observava desiludido. As costas doíam, a cabeça, os ombros, todo o meu corpo e meus lábios cortados sangravam. Eles prosseguiam com a tépida chama dos cachimbos, fumando o crack e manifestando uma euforia semelhante ao do rapaz que urinara no canalete, embora bem mais agressivos. Eu esticava as pernas, na tentativa de levantar-me, quando outra motocicleta apareceu, descendo dois jovens, escondidos em capuzes escuros. Senti um arrepio, temeroso de ser agredido novamente ou talvez morto, caso fossem outros assaltantes. Entretanto, pude perceber que se tratava dos encarregados da venda das drogas. Um dos rapazes que descera do carro, puxou a carteira do bolso e pagou a compra, como se estivesse procendendo uma simples operação financeira.

Em dado momento, aproximaram-se de mim, oferecendo-me as drogas, que pareciam ser gratuítas naquele momento. Eu poderia pagar num outro dia qualquer. Esforcei-me em argumentar que não usava drogas de modo algum, eu estava ali com outra finalidade: ver o monstro que todos comentavam, eu queria enfrentá-lo, conhecer a sua ferocidade e a fraqueza. Eu queria vencê-lo. Eles sorriram, dizendo-me que estava no caminho certo, bastava usar um comprimido apenas. Podia esquecer o crack, a cocaína ou qualquer outra pílula da felicidade. Eles tinham a saída para todas as minhas dores, tanto físicas quanto psíquicas.

Por um momento, tentei levantar-me, fugir daquele grupo que me cercava e me deixava atônito, mas se mostravam tão amigos e companheiros que não havia como refutar. Eu, que me sentia tão sozinho, estava ali, entre amigos.

Por fim, ofereceram-me o tal comprimido e naquele instante seguinte, alcancei um excesso de felicidade, quase êxtase, um upgrade no desejo sob todas as formas, energia e bem-estar. O mundo girava a meu favor e a vida rendia perdão aos meus sofrimentos, como se a gratidão se antecipasse à dor ou a qualquer infortúnio. Eu estava feliz. Então, pediram-me o número do celular roubado, eu já nem lembrava, mas isso não importava muito, pois logo, logo saberiam. Como parceria aos meus atos, correram até os bandidos que me assaltaram, fizeram buscas, investigações e com uma pertinácia, quase obsessão, acionaram todas as ferramentas para atingir o objetivo e reouveram os meus pertences, meu celular, a carteira e até os poucos trocados que ainda restavam.

Eles me ajudaram com a mais alta competência. Porém, com o passar das horas, percebi que alguma coisa diferente acontecia comigo. Era como se o mundo debandasse às minhas costas e a vida se tornasse insossa e cada vez menos visível. Como se estivesse envolto em feno e era apenas o seu sabor e cheiro que sentisse. Não tinha a impressão de nada, mas tinha a intuição apurada a ponto de perceber o que sempre sonhara: o monstro se aproximava e desta vez, estava bem perto, me encarando.

quarta-feira, agosto 02, 2017

UM GOLPE NO OUVIDO

Juntou as chapinhas de bebida e sentou-se à sombra, olhando para o nada, mas com a certeza de que aquela árvore o acolheria para sempre. Puxou um real do bolso e pensou no que poderia fazer dali em diante. Quem sabe, voltar à oficina, juntar os seus pertences, pegar a mochila farrapada e tomar um rumo na vida. Entretanto, sentia-se impotente, até assustado com a situação. Voltar a juntar latas de alumínio, chapinhas de refrigerante, limpar as lixeiras e esconder-se embaixo de qualquer marquise era uma onda que não queria reviver.

Lembrou-se do Guto, com aqueles olhos esbugalhados e a boca aberta, o sangue escorrendo pelo chão visguento de diesel. Sentiu um arrepio. Tinha mesmo que dar o fora, antes que alguém chegasse e o acusasse de ter matado o negrão. Por que ele tinha voltado àquele lugar? Tinha passado tanto tempo e tudo ficava na mesma. A mesma galera, as bebidas de sempre, a maconha, a farra, mas nada tão pesado e difícil. Havia um líder e não era ele. Ele era um pobre coitado que se agregara `aquele pessoal que nem se interessava com a sua presença no barraco.

Melhor seria voltar para casa, pra cidade do outro lado do canal e viver a vida que não pedira a Deus. Mas não pedira aquele caos também. Não quisera participar do tráfico e hoje não era nada, mas a qualquer momento, poderia ser mais um presunto espalhado pela cidade.

Tinha que fugir, desaparecer do mapa, esquecer a mochila, esquecer as latinhas, o material pra vender e tomar outro rumo. Já pensara nisso um milhão de vezes, mas não bastava o pensamento. Precisava de ação, mas não tinha coragem. Precisava de uma coisa forte, não uma simples maconha que só o deixava ausente. Queria um crack, uma cocaína, qualquer merda que funcionasse a cabeça, que o libertasse do medo e enfrentasse o mundo.

Outros lhe vinham à mente, principalmente, o Zarão, um x-nove de primeira, aquele que podia levá-lo a ruína. Ele ia juntar as coisas: ver a mochila, as suas roupas, aquele retrato da família e acusá-lo. Não descansaria enquanto não o pegasse e fizesse justiça conforme as leis do bando.

Não, ele não queria ser torturado, trucidado, morrer feito um infeliz pedindo por clemência.

Ele que já fora um poeta, um cara que curtia compor e cantar na comunidade. Ele que sabia distinguir uma boa letra de um agrupamento de frases sem sentido, sem lirismo, sem sentimento, sem beleza.

Ele que chorava, às vezes, ao ouvir determinada melodia, ele que já fora até humano. Mas agora, precisava juntar as latinhas, vender o que podia para ganhar algum e por o pé na estrada.

Por um momento, sentiu-se atropelado por um pensamento estranho, como um golpe no ouvido. E se o Guto não tivesse morrido? E se o presumível assassino estivesse por aí, procurando-o porque ele mexeu nas coisas, investigou o cenário, certificou-se de que havia furos de balas nos carros e que a gasolina se misturava a todos os óleos que faziam parte da oficina.

Mas por que o matariam se o Guto não houvesse morrido? Por que o procurariam se não fez nada, a não ser deixar marcas pelo piso escorregadio e a maldita mochila esfarrapada, nada mais. Por que o acusariam se não poderia responder por nada?

A cabeça dóia, os cabelos grudavam pelo suor e seus olhos pareciam injetados de sangue, como se todas as drogas que usasse fizessem efeito ao mesmo tempo.

Precisava fazer alguma coisa, antes que alguém chegasse e o crucificasse ali, naquela árvore, em plena sombra numa tarde de verão.

Procurou os documentos no bolso e viu um nome que não era seu: Gustavo da Silva. Não deviam estar ali, nos seus bolsos os documentos do Guto, quem os colocara, o que estava acontecendo? Por que não o deixavam em paz?

E seus documentos, e seu nome e sobrenome que haviam desaparecido. Também ele se esquecera, também ele não sabia de quem se tratava e a cabeça doía muito quando tentava lembrar.

Foi aí que o carro da polícia parou ao seu lado. Eles se aproximaram rápidos, levantaram-no do chão e o algemaram.

O que pensam eles? O que querem dele? Não foi ele quem matou o Guto. Ele é que era o dono da boca. Apenas trabalhava na oficina, era um simples borracheiro.

Disse-lhes ainda que era cantor, que tinha sentimentos, que não estava nessa de crimes, de tráfico de drogas.

Eles sorriram e o empurraram para o camburão e o pior: insistiram em chamá-lo de Gustavo da Silva, vulgo Zarão.

quinta-feira, agosto 11, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 20º CAPÍTULO (ÚLTIMO)

Capítulo 20 - último

Após a confissão desesperada de Paulo, fez-se um silêncio complacente. Nada se podia argumentar. A realidade dizia por si. Paulo chorava convulsamente. Seus soluços eram ouvidos do outro lado do vidro que separava as duas peças. Júlio observava e por sua experiência, sabia que ele ficaria mais tranquilo em seguida. Foi o que aconteceu. Paulo voltou a falar, compassado, entre lágrimas, porém um tanto aliviado.

– Rosa não admitia que ela gostasse de mim, que se atirasse daquele jeito sobre mim. Achava que ela era uma puta. E Rosa é muito religiosa, muito moralista. – interrompe-se um instante, como se temesse confessar mais alguma coisa que incriminasse Rosa, porém prossegue. Sabe que agora, precisa ir até o fim. – Pra falar a verdade, detetive, ela não é só a mãe que eu arranjei, entende? Ela é a mulher que me satisfaz na cama e eu faço o possível pra corresponder. Mas eu só vivo pensando em Taís, em mulheres como ela, foi por isso que fui lá e não me contive.

Júlio o ouve quieto. Paulo insiste em defender Rosa, mostrando-se culpado em acusá-la, mas por outro lado, sabe que deve contar tudo, até para atenuar a responsabilidade de Rosa no ato.

— Devo isso a ela, detetive, tudo. Rosa foi a primeira pessoa que me ajudou, a primeira e única. Todos me viraram a cara, mas ela ficou do meu lado, sempre.

Júlio então intervém: — Está bem, Paulo. Eu entendo a sua situação. Mas continue, como aconteceu o crime. Por que você acusou Rosa de ter matado Taís?

Paulo suspira fundo. Olha absorto para a vidraça e depois volta-se para Júlio, agora encarando-o com firmeza.

— Naquele dia, ela me seguiu, eu estava no carro do médico sim, havia tirado da oficina e resolvera dar uma volta, quando vi Taís atravessando a ponte. Logo atrás o grupo fazia aquela festa pervertida, chamando-a de tudo, palavras de baixo calão, mas Taís se divertia com isso. Tanto, que se juntava a eles e dividia com eles as drogas e as bebidas. Começou após muitos pedidos, fazer uma espécie de strip-tease. Foi aí, que me escondi dentro do carro, que estava um pouco atrás do arvoredo, do outro lado da margem. Eu tinha uma visão privilegiada, porque um emaranhado de galhos me protegia. Aquilo me deu muito tesão, e não resisti. foi neste momento que me masturbei. – levanta a voz, ansioso – Eu fiquei louco, detetive, completamente louco e a minha vontade era chegar até Tais, abraçá-la, tirá-la dali, daquele bando. Mas eles continuaram com a festa e ela foi se afastando em direção ao outro lado da cidade, ao contrário do centro, entende? Ela atravessou toda a ponte e o grupo ficou por ali, se divertindo, mexendo com ela, jogando umas roupas que ela havia deixado, pois estava indo só de calcinha e sutiã, dizendo que pretendia se jogar no rio. Mentira dela, era só farsa. Queria se divertir. Daqui a pouco pegaria as roupas e voltaria para casa. Foi neste momento, que vi Rosa se esgueirando pelo mato, às ocultas, sempre pela margem, seguindo-a. Eu estava do outro lado, mas desci rapidamente do carro, atravessei para a outra margem e a segui também. Foi difícil, estava cada vez mais escuro, com muita neblina e os galhos das árvores eram densos e atrapalhavam o caminho. Mas eu vi, no momento crucial, quando Tais estava encostada no parapeito no fim da ponte, fumando um baseado.Rosa chegou e lhe deu um tapa na cara com muita violência. Chamou-a por todos os palavrões que conhecia e sacudiu-a com força, arranhado-lhe os braços e para minha surpresa, sem mais nem menos, a empurrou na direção do rio, mas Taís não caiu, conseguiu segurar-se, apoiando-se na ponte. Então cheguei desesperado e tirei Rosa dali.Eu não podia abandoná-la naquele desespero. Supliquei que deixasse Taís em paz, que a esquecesse de uma vez por todas e fôssemos embora. Rosa parecia voltar a si, sair de um surto terrível e me obedeceu. Corremos em direção ao carro e ela entrou e se deitou no banco para que ninguém a visse. Então eu dei a partida e fomos embora. Ela então sugeriu que eu fosse para a Capital por uns dois dias.

— Mas o que aconteceu com a moça? Ela caiu, afinal?

— Eu acho que sim, não tinha muitas chances para ela. Rosa a matou, não há dúvida. No outro dia, tinha muito comentário que a moça estava toda arranhada e fora levada pela correnteza, rio abaixo.

— Então, você acha que ela não resistiu, talvez pelo estado fragilizado em que estava em virtude das drogas e tenha caído no rio.

— Sim, penso que sim.

– E agora está aliviado? Você não matou a moça, é inocente, apesar que pode ser considerado cúmplice, já que não fez nada para ajudá-la e ainda assistiu a cena.

– Rosa fez tudo por mim, pra me proteger, como sempre. Eu não devia ter contado isso.

— Não se preocupe, mais cedo ou mais tarde, isso apareceria. Rosa não ficaria impune. Além disso, há outras coisas que precisamos descobrir. Há outros crimes envolvidos.

Júlio acenou a cabeça, pesaroso. Abriu a porta para o policial e pediu que ele ouvisse a gravação. Quanto à Rosa, esta pagaria por seus crimes, naquela noite mesmo.

Nesta noite, Júlio fazia um retrospecto de todos os acontecimentos e percebia, insatisfeito que apesar do caso estar parcialmente resolvido, havia uma incongruência nos fatos que não se ajustavam de algum modo.

Paulo, o mecânico estava preso por assassinato e acabara confessando que a autora do crime era Rosa, tornando-se seu cúmplice, por ter abandonado Taís à própria sorte e ainda ter encoberto a verdadeira criminosa.

Por outro lado, Rosa cometera o crime porque julgava Taís uma indecente, que não se ajustava aos seus padrões morais e também porque amava o mecânico e a odiava por se intrometer em sua vida. Entretanto, Paulo não presenciara o desfecho. Ele viu Rosa empurrando a moça, mas ela ainda não havia caído no rio, se apoiava e poderia ser salva por alguém logo após ele e Rosa terem se afastado. Ou quem sabe, alguém a empurrou definitivamente. Como assegurar com precisão que Rosa fora a autora do crime?

Estava assim pensativo, quando o delegado Borba ligou para ele, quase intimando-o a segui-lo até a ponte. Estranho, pensara, o delegado não confiava em seus serviços e agora precisava de sua ajuda. A menos que a sua conclusão inocentando Paulo o tenha agradado a ponto de querer a sua presença. Mas o que teria acontecido para chamá-lo àquela hora ? Desceu rapidamente e pegou o carro no estacionamento correndo ao encontro do delegado. No caminho, imaginava que teriam encontrado alguma pista do crime, talvez alguma prova acusando ou inocentando Rosa. Mas como achariam alguma coisa depois de tanto tempo e o que isso mudaria? De todo modo, mesmo que achassem alguma coisa, não valeria como prova. Além disso, o delegado Borba não estaria ocupado àquela hora da noite, investigando se não houvesse acontecido alguma coisa muito grave. Ao chegar , percebeu próximo à ponte um carro da polícia com giroflex ligado e um policial, além do delegado. Olhavam para baixo, deslocando pelas margens do rio. Júlio aproximou-se e viu um foco de luz lá embaixo, na ribanceira, que chamava a atenção dos dois.

— Que aconteceu, delegado?

— Conhece aquela moça?

— Daqui não consigo ver nada, estou vendo que tem um corpo lá embaixo, mas...

— Trata-se de Ana, a menina que diz que ouviu Taís gritar no dia do crime.

— Meu Deus, pobre menina! Mas então?

— Mais um crime, detetive. Atiraram a moça da ponte também. Parece que preferem matar as mulheres por aqui.

— Foi semelhante ao de Taís? Ela foi empurrada também?

— Desta vez, acertaram com um tiro. Mas venha, vamos descer até lá. Quero mostrar-lhe uma coisa.

Júlio desceu com dificuldade, sendo ajudado às vezes pelo delegado Borba. Ao chegar bem perto, percebeu que a menina estava seminua e uma lagoa de sangue surgia por detrás do corpo. O tiro havia sido no peito, atravessando o corpo frágil da moça, provavelmente perfurando os pulmões. Júlio virou o rosto, angustiado. Poucos dias atrás havia conversado com Ana, inclusive tentara conseguir o seu depoimento, pois Rosa investira contra ela, ameaçando-a. Teria sido Rosa a culpada pelo delito?

O policial afirmou tratar-se de uma simulação de um assalto. Não havia celular, nem documentos, nada que identificasse a moça. O delegado Borba concordou e pediu que Júlio observasse minuciosamente a cena. Não havia nada que indicasse outra causa, apesar de haver associações muito fortes entre os dois crimes. Júlio pediu licença e subiu até a estrutura acima, na ponte. O delegado deu um sorriso e acrescentou, dirigindo-se ao policial: — Um frouxo. E depois quer dar uma de investigador.

Júlio deu uma volta pelos arredores. Dirigiu-se ao local na ponte de onde provavelmente Ana havia caído, ao ser alvejada. Em dado momento, encontrou alguma coisa numa ranhura da ponte, que parecia um cartão de memória. Pegou-o e levou-o consigo sem avisar a polícia. Despediu-se do delegado e partiu em seguida, em direção ao hotel. Ao chegar, Júlio inseriu o cartão num pendrive e tentou abri-lo no notebook. Entretanto, o arquivo não abria, havia uma senha que o protegia, a qual por mais que tentasse, nunca era a correta. Digitou Ana, rio, maconha, lual, tudo que pudesse lembrar de alguma forma a conduta da moça, mas nenhuma servia. Então, pensou Anderson, o garçom que o servia pela manhã e que às vezes, fazia o serviço de porteiro do hotel. Parecia um rapaz inteligente, quem sabe ele poderia ajudá-lo. Certamente, ficaria efetivo neste cargo, pensou.

— Boa noite, detetive. Parece que o senhor anda muito ocupado, ultimamente. Está sempre correndo.

— É verdade, Anderson. Inclusive vim aqui para pedir a sua ajuda.

— Pois não, detetive. Mas antes me diga, é verdade que Rosa é a assassina de Taís?

— Quem lhe disse isso, Anderson?

— Ah, parece que um policial comentou por aí, o senhor sabe, as coisas se espalham.

— É, tinha esquecido que todo mundo sabe de tudo, nesta cidade. Mas não gostaria de falar sobre isso, Anderson. Como lhe disse, preciso da sua ajuda.

Algum tempo depois e Júlio tinha a resposta que queria. Anderson sabia decifrar o programa em que o arquivo fora gravado e em alguns minutos, conseguiu abri-lo.

— Não sei o que o senhor quer saber, detetive, mas não vejo nada demais aqui. São contas, pode ver.

— Contas? Você tem razão. Olhe, cifras enormes, valores volumosos, não? Diga-me uma coisa, agora posso abrir no meu notebook? Será que não precisarei de alguma senha?

— Não, agora eu já criei uma senha própria. Coloquei "cidade". É só o senhor digitar a palavra.

Júlio no quarto, pode observar com mais atenção uma série de contas que percebia serem ligadas ao tráfico e alguns nomes, como o de Carlos, do filho do prefeito. Era de se esperar, pensou. Será que este arquivo estava em posse de Ana e por isso a mataram?

Júlio continuou a pesquisa. Quase ao fim do arquivo, um nome chamou-lhe a atenção, o que o deixou muito intrigado. Foi neste momento, que Anderson bateu a sua porta, dizendo que alguém queria falar-lhe. Ainda preocupado, abriu a porta ao amigo Jairo, que revelava-se extremamente nervoso. Antes de perguntar qualquer coisa, mandou uma mensagem para Anderson e guardou o celular em seguida, dirigindo-se a Jairo.

— Aconteceu alguma coisa grave, Jairo? Você vir aqui, a esta hora da noite.

— Eu vim aqui, porque preciso falar com você Júlio. Vim aqui, fazer-lhe um pedido, em nome de nossa amizade. E você só tem uma alternativa: atender-me.

Júlio afastou-se um pouco, em direção à janela e pediu que ele sentasse na poltrona, próxima à cama. Jairo não obedeceu. Olhava-o de um modo estranho, como se estivesse prestes a atacar ou ser atacado por um inimigo. Júlio então, perguntou, tranquilo: — Você quer que eu o atenda em quê? Me parece muito preocupado, Jairo. Volto a lhe perguntar, aconteceu alguma coisa?

Jairo levanta a voz, irritado.

— Não me venha com esta pedagogia de detetive, Júlio, pelo amor de Deus. Você veio aqui pra cidade, andou mexendo em coisa muito perigosa. Eu vim aqui lhe pedir que pare com isso. Pare com essa investigação. Já deu o que tinha que dar, os caras estão presos, o que você quer mais?

— Não estou entendendo Jairo, eu até lhe falei sobre os suspeitos, sobre as várias possibilidades de confrontamento e até de associações nos crimes. Inclusive pegaram o mecânico e agora estamos sabendo que Rosa está por detrás disso. Por que você está tão assustado?

— Eu não estou assustado. Quero que você acabe com isso!

— Por que?

Neste momento, Jairo tira pistola da cintura e a aponta a arma para Júlio que o olha surpreso e desconfiado.

— Se você não fizer o que lhe peço, eu vou matá-lo Júlio. Você não entende que eu não quero fazer isso?

— Você quer me matar por quê?

— Eu já lhe disse, você está mexendo num vespeiro e a coisa só piora.

— Então me fale, me diga o motivo. Você se refere ao crime da ponte?

— Eu me refiro ao meu negócio. Eu lhe falei que estou há três anos tentando fazer um camping, um negócio de lazer na cidade e o Ibama coloca mil impedimentos, por problemas ambientais e quando eles sinalizam para liberar, essa gentinha vem e corrompe o lugar, quem é que vai fazer turismo numa cidade que não respeita ninguém, que faz orgias à noite, no melhor ponto turístico. Você entende o que está acontecendo, Júlio?

— Não, não entendo.

— Então, eu vou lhe esclarecer. Você há pouco falou em Rosa. Pois saiba que nós nos unimos para acabar com esta canalhice e limpar a cidade.

— Como assim?

— Nós começamos a perseguir aquela gente, já que a polícia não fazia nada. Então, quando morreu a mulher do seu Domingues, que tinha diabete, e segundo diziam na época, por erro médico, tivemos uma ideia. Injetar insulina nos jovens que vinham para as festas organizadas pelo filho do prefeito. Deu certo, todos pensavam que eram turistas, mas na verdade, era gente que vinha só pra se divertir e fazer sacanagem nas nossas fuças. Isso era uma afronta. Como eles não tinham a doença, acabavam morrendo e ninguém descobria a causa. Tanto, que arquivaram todos os inquéritos.

— Mas como vocês faziam isso?

— Nós os atraíamos, Rosa alugava o seu apartamento e eu montava umas barracas não muito longe do lugar onde faziam as festas. Então nos preparávamos para o golpe. Quando voltavam na penúria, drogados e bêbados, tínhamos a ocasião perfeita que precisávamos para injetarmos a insulina.

— E o Paulo estava envolvido nisso?

— Aquele pateta? Claro que não. Ele não sabia de nada. Dizíamos que estávamos tentando ajudar aquela gente, um bando de drogados.

— Tem um rapaz, um tal de Raul que diz que foi injetado também. Desconfia de um pessoal do pet shop.

— Aquele é um maconheiro da pior espécie. Nem sabe o que diz. Na verdade, foi Rosa, por vingança e ele confundiu tudo. Acabou inventando outras histórias, é tudo delírio da cabeça dele.

— Mas e quanto a Taís? Foi a Rosa mesmo quem a matou?

— Claro, com a minha cobertura. Aquele idiota do Paulo é que estava no lugar errado e se meteu. A coisa ficou mais difícil e eu tive que acabar o serviço.

— E tudo isso pra quê, meu Deus?

— Não fui claro? Para limpar a cidade desta corja, para montar o meu negócio para gente de bem, turistas que viessem pra cá, para curtir a natureza, as belezas da cidade. Não dá pra entender isso, Júlio?

— Não, na minha lógica, não. E quanto à Ana? Vocês a mataram também?

— Aquela idiota estava se metendo, abrindo o bico. Ela roubou um cartão de memória que tinha os dados armazenados de todos os envolvidos no tráfico, gente de bem, inclusive Carlos, o filho do prefeito. Sem trocadilho, Júlio, mas foi queima de arquivo.

— Você fez tudo sozinho, Jairo?

— Tenho dois caras que trabalham comigo. Mas não achamos nada. Aquela vadia sumiu com o arquivo.

— Você fala disto aqui, no meu notebook?

— Como você achou? Por que está com você Júlio?

— Como você vê, Jairo, eu sou um investigador tão bom que você está aqui, me ameaçando. Nunca imaginei, porém que seu nome estaria entre eles. Quando o vi, fiquei muito surpreso. Essas contas são muito volumosas, não acha?

— Então Júlio, você também será queima de arquivo. Sinto muito meu amigo, mas você vai desta para melhor.

— Se eu fosse você, não faria isso, Jairo. Na portaria, há um computador com todos os dados copiados e Anderson está sabendo de tudo. Neste momento, ele já deve ter chamado o delegado Borba.

— Você está mentindo! Eu não sou idiota, Júlio!

Neste momento, a porta se abre e o delegado Borba surge, empunhando uma arma na direção de Jairo. Anderson espia da porta, satisfeito e conclui: — Saquei a mensagem, detetive.

Fonte de ilustração: www.pixbay.com

quinta-feira, julho 14, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 14º CAPÍTULO

No capítulo 13, Júlio refletia sobre a personalidade de Rosa, que em poucos dias, conhecera como uma mulher com traços distintos, de acordo com a situação. Se havia alguém mais estranho naquela cidade, era a maestrina, pois um dia era uma pessoa cordata, tranquila, atendendo o pessoal do hotel com esmero e cuidado, bem como, segundo diziam, uma regente do coral com muito talento.Noutro, era uma mulher assustada e ao mesmo tempo indignada, mostrando-se rancorosa e com muitos segredos. Talvez ela estivesse assustada não pelos crimes, que segundo dissera a afetavam profundamente, em virtude de algumas pessoas terem sido assassinadas por um criminoso que ingetava insulina em pessoas saudáveis. Talvez o outro crime fosse a causa de sua aflição, em virtude da presumível implicação de seu protegido. A partir de agora, publicamos o capítulo 14 de nosso folhetim policial.

Capítulo 14

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/bar-bebidas-álcool-geladeira-926256/

Ricardo dirigia-se ao estacionamento, quando sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo. Uma presença muito próxima, quase um bafejo na nuca, como se um espectro se aproximasse para atirá-lo do 3º andar da garagem. Olhou para os lados, mas não viu nada, apenas um barulho metálico, como se alguém deixasse cair uma ferramenta de metal. Respirou fundo e aproximou-se da sacada, tentando ver se alguém descia as escadas ou deixava o estacionamento naquele momento. O lusco-fusco do anoitecer produzia mais dúvidas do que certezas.

Ricardo então voltou para o veículo e ao entrar, um novo barulho, desta vez um estalido de madeira, acompanhada de uma pequena batida no bagageiro do carro. Desceu decidido a descobrir o que o assustava, quando ouviu uma gargalhada irônica que vinha detrás de uma coluna. Indignado, percebeu que Raul o esperava, zombando de seu ar surpreso.

— Puta que pariu, o que você tá fazendo aí?

Raul riu mais uma vez e aproximou-se amistoso, estendendo-lhe a mão. Ricardo afastou-se na direção do carro, ainda mais irritado.

— Desculpa, meu velho, não quis assustar você.

— Ah, não quis? e que significam estes barulhos e você escondido atrás da coluna? Não tem mais o que fazer?

— Mas eu não fiz nada, juro, com excessão da varinha que quebrei ainda há pouco. Vi quando você foi até a sacada, quase me mijei de rir.

— Muito engraçado pra quem não tem o que fazer. Nem vou discutir essa bobagem agora e vou embora, com licença.

Raul corre ao seu encontro, antes que ele ligue o carro e desça a rampa.

— Espere, Ricardo, preciso falar com você.

— Sinto muito, mas tenho compromissos. Vou combinar a vinda de minha namorada no fim de semana.

— Então pode dar-me uma carona?

— Escuta, Raul, por que não volta como veio? Você não mora muito longe daqui.

— Por favor, meu amigo, eu lhe peço. Parece que se afastou de mim para sempre. Não conversa mais, não quer nem saber como estou passando.

— Pelo que sei, Raul, você está muito bem. Mas sabe como ando ocupado. Aconteceu alguma coisa?

— Sempre acontece alguma coisa comigo, você sabe. Depois que fui atacado por aquela gente, nunca mais tive sossego.

— Por que não foi à polícia?

Raul cala-se sem saber o que dizer. Em seguida, corre e senta-se no banco ao seu lado: — Então, vamos?

— Mas você veio até aqui, ao estacionamento do hospital, para pedir-me carona?

— Você pensa muito mal de mim, meu amigo. Vim pegar uma receita, você sabe que to sempre precisando de medicamentos. Quando saía, vi que você estava indo para o estacionamento. É um crime pedir uma carona a um amigo?

Ricardo reflete que não fará diferença se levá-lo até a sua casa, além disso, ele já se instalou ao seu lado e será muito mais difícil convencê-lo a sair.

Raul, entusiasmado o convida para tomarem uma cerveja.

— Você veio buscar remédios e quer tomar cerveja. E a sua diabete?

— A gente não pode se privar de tudo, você não acha?

— Eu não sou um desocupado como você. Não posso ficar bebendo por aí.

— Sabe que você às vezes é um chato?

— Sei, mas não posso fazer nada.

O carro desce a rampa da garagem e em seguida está na rua principal que desemboca na esquina do hotel de Ricardo. Raul prossegue, queixoso: — É que eu queria conversar com você sobre aquele problema.

— Por favor, Raul, não vá começar com esta história de crimes. Como se não bastasse aquele detetive me perguntando mil coisas e o pai de Taís me acusando. Chega!

— O detetive está fazendo perguntas, é? Mas a tal de Taís não passou de uma noite.

— Como você sabe?

— Eu sei o quanto ela se grudou em você. Eu sei que a garota enlouqueceu!
— Me diga uma coisa, Raul, ela costumava fumar maconha com você?

Raul dá uma risada sarcástica: — Isso é coisa que não se pergunta, meu amigo.

Ricardo imagina que seria melhor conversar com calma com Raul, talvez seja a oportunidade de descobrir se havia um envolvimento da jovem assassinada com o pessoal do coral. Precisava saber mais sobre Taís, com quem andava, o que fazia e Raul poderia ajudá-lo, por isso aceita o convite para a cerveja.

Quando chegam no bar, havia poucas mesas vazias, na verdade, talvez duas ou três. Raul escolheu a que ficava próxima à janela, que dava para a rua do lado.

Cumprimentou a moça da caixa, que sorriu atenciosa. Parecia que todos falavam com extrema euforia. Ricardo, de repente, sentiu-se num mundo paralelo, que não era o seu. Desde que viera àquela cidade, convivera com pessoas hostis, que demonstravam confrontá-lo a todo momento, inclusive no próprio local de trabalho, ou então eram inconvenientes, como era o caso de Raul. Ali, no entanto, todos pareciam afáveis e dispostos até a terem uma conversa amistosa com ele. Alguns até o cumprimentavam.

Raul, por seu lado, parecia muito feliz, mas quanto a ele, isso não significava uma grande mudança, pensou Ricardo. Pediu a cerveja, o que foi em seguida, atendido pelo garçom, um velho conhecido do amigo. Conversou algum tempo com ele e enquanto se afastava, Ricardo comentou.

—Parece que você conhece todo mundo aqui.

Raul sorriu, apenas acenou com a cabeça confirmando.

Ricardo tomou a cerveja, sentindo que a garrafa congelava os dedos. Perguntou, indeciso, se Taís participava do coral da igreja.

— Não, aquela lá não tinha estas pretensões. Por que você quer saber isso, Ricardo?

— Veja bem, cara, é muita enrolação. Eu acabei me envolvendo com os problemas da cidade, desde que cheguei aqui. Primeiramente, você quis encontrar-se comigo com aquela história do presumível crime da insulina, que a meu ver, não deu em nada.

— Ainda não sabemos. Essas coisas demoram.

— Depois, a sua mãe quis falar comigo, andava assustada com você.

— Minha mãe? Do que você tá falando, meu irmão?

— Desculpa, Raul, to cometendo uma inconfidência, mas ela me procurou sim, na noite em que você foi hospitalizado. Estava preocupada com você, mas não acreditava nessa história que você andava comentando sobre o ataque no parque, os caras da pet-shop. Enfim, ela acha que você inventou tudo e queria a minha ajuda. É isso.

— Mas que velha sacana! Ela fumou o quê pra lhe falar isso?

— E fiquei sabendo que ela contratou um detetive para ajudá-la. Aliás, o mesmo que o pai da Taís acabou contratando pra descobrir o assassino da filha.

— Puta que pariu, brother, que rolo! Ta todo mundo louco nesta cidade e eu é que fumo baseado!

— Sei lá, cara, às vezes acho que esse pessoal me odeia. Taís, você sabe, ficou no meu pé o tempo todo, a gente transou, não vou negar, só isso. Também não sou de ferro. Mas não havia nada sério entre nós e a menina inventou que eu a seduzi, que coisa ridícula. Como essa gente pode aceitar uma coisa dessas? Agora o pai anda por aí afirmando que a matei, que quer vingança. Ainda bem que o namorado desistiu dela em tempo.

— É, você ta encrencado, meu amigo.

— Eu não fiz nada, cara.

— Bom, então dê tempo ao tempo. Agora, quem sabe esse cara descobre que os donos do pet shop são os responsáveis pelos crimes.

— Mas segundo dizem, Taís foi empurrada da ponte.

— Será que estas histórias tem alguma relação uma com a outra?

— O que você acha, Raul?

— Não sei, meu amigo. Só espero que os crimes não continuem.

— Então me diga, você que conhece todo mundo na cidade. O que o namorado de Taís tem a ver com Rosa?

—Ih, meu velho, essa é uma história dificil de destrinchar.

— Como assim?

— Você fala do mecânico, né? O que eu sei é que eles tem uma ligação muito forte. Rosa é uma pessoa estranha, sabe? Ela se apega às pessoas de uma maneira tal, que se torna possessiva. Acho que é uma carência, sei lá.

— Mas ela é amante dele?

— Amante é uma palavra muito forte. Pode ser que ele tenha dado uns pegas nela.

— Parece que você não respeita ninguém, Raul.

—Eu? Mas é você quem está perguntando se ela é amante do cara.

— É o que ouvi falar, mas Rosa é uma pessoa sensata, uma mulher recatada. Também, que me interessa a vida dos outros, não é mesmo?

— O que dizem é que o cara tava procurando a mãe por aqui, na região, veio de longe o infeliz. Depois, não tinha onde morar, pediu ajuda e a Rosa acabou cedendo um apartamento que ela aluga. Mas o que o povo fala é que a mulher é apaixonada pelo mecânico. Mas o que isto tem a ver com o que a gente tava falando?

— Não sei, é que certa vez Taís comentou isso. Na hora, eu não acreditei. Rosa é uma das poucas pessoas desta cidade que tratou muito bem.

— E o seu amigo aqui, não conta?

—Claro, mas estou falando das pessoas que eu não conhecia. Vamos pedir outra cerveja e esquecer isso.

— Quem sabe a gente rememora as pessoas da cidade e os seus relacionamentos.

— Como assim?

— Como você disse, eu conheço todo mundo. Então, vamos pensar quem poderia ter interesse na morte da moça.

— Parece que quer me ajudar.

— Vou lhe contar uma coisa que você não sabe. Você já ouvir falar em Ana, né, a menina que encontrou o corpo ou que ouviu alguma coisa, sei lá.

— Sim, o detetive me falou alguma coisa sobre isso.

— Pois essa garota faz parte de um grupo com outros adolescentes. São alguns rapazes que usam drogas pesadas, sabe? Eles sempre faziam os luais à beira do rio e o cara que organizava tudo é um tal de Carlos, o filho do prefeito. Nestes luais aconteciam verdadeiras orgias sexuais, até uma garota de programa vinha da capital contratada por eles, para incrementar as festas.

—O que a Taís tem a ver com isso?

— Ela pegava as drogas com eles e participava das festinhas também. Pra você ver, que a moça não era tão santinha assim, pra ser seduzida por você.

— Mas então, todo mundo sabe disso. Por que o silêncio todo, até a polícia finge que não acontece nada!

— Não se esqueça, meu amigo, que o rapaz é o filho do prefeito.

— E você acha que algum deles possa ter matado a moça?

— Tudo é possível, meu amigo. Tudo é possível.

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A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

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