Michael José surgia na rua morna naquela tarde de dezembro. Nem uma lufada de ar, nem uma brisa desavisada para uma véspera de Natal. Era de um ar apertado, quase desconforto. Digo que ele surgia, porque pessoas como ele não transitam pelas ruas, não passeiam, não caminham por um objetivo específico. Michael José surgia do nada, porque para nada ele era designado. Na verdade, achava-se um ninguém, no meio daquela apatia e desapego. Nada o acolhia, nada o libertava de si mesmo, nada mexia com o seu interesse. Era um desamparo que o consumia desde muito cedo, provavelmente desde a infância, se é que a tivera. Também não havia ninguém nas ruas do centro. A cidade estava morta, esperando as celebrações da noite. Ele também estava morto, há muito tempo. Talvez para ele, a data estivesse errada e em vez de Natal, fosse sexta-feira santa, sem ressureição. A vida, para ele, não passava de um eterno domingo de ramos, no qual festejavam o Mestre, para o apedrejarem depois. Ele, ao contrário, não fazia parte de nenhum grupo, nem dos que homenageavam, nem dos que insultavam. Não se encaixava, não se adequava e seu estranhamento com a vida, persistia desde cedo. Talvez fosse o jumento desajeitado que apenas cumpria a rota determinada.
Mas uma coisa incomodava Michael José, isso ele não tinha como negar. Era a fome. A fome era o seu horizonte, o seu registro apagado, o seu prato preferido, o seu discurso não dito, a sua voz inaudível. Talvez fosse o recrudescer dos sintomas, dos períodos em que a morte sinaliza a vertente que deságua em seu sangue, suas veias, suas pupilas, seu coração. Uma dor tão intensa que a fome é só mais um delírio, uma vontade de sumir em qualquer vala que valha seu corpo esquálido. Uma dor premente. Olhar o caminhão de lixo que se aproxima e pensar que pode ser uma parte daquele entulho, produz uma agonia de não ser alguém, de não fazer parte, não ter. Uma inadequação sem saída.
O caminhão foi mais rápido do que ele, não sobrara nada, nem uma latinha, um resto de yogurte ou gotas de Coca-cola, com a garrafa vestida de um Papai Noel corpulento, de bochechas vermelhas e olhar complacente. Por um momento, ele viu o velho sorrir em sua mão, mas só por um momento, porque avistava apenas os dedos trêmulos e escurecidos pela sujeira.
Michael José precisava seguir em frente. Por isso, surgiu novamente em outro ponto da cidade, num canteiro florido da praça, cuidado com esmero para pessoas como ele não sentarem ali. Que entendia Michael José de beleza, de estética, de harmonia? Sua cara poderia ser a representação da pintura de Edward Munch, O grito, cuja figura revela uma profunda agonia e desespero. Seus olhos vermelhos e esbugalhados, quase o avesso da visão, sua boca murcha e dentes podres. Pobre Michael José, quem teria piedade? Ao contrário, o temiam e se pudessem, rasgavam aquela cara encardida para que se afastasse de vez dos locais onde as famílias de bem se encontram, assim como eliminar qualquer resquício que fosse a sua presença. Ele não disse que os seus dias eram todos domingos de ramos, só que para ele, sem os elogios e celebrações, apenas o apedrejamento tão próximo.
Mas Michael José também pensava no Natal e ao sentar ali, tão próximo do canteiro florido, teve vontade de chorar. Pensou na mãe, nos irmãos, no padrasto, no terreno baldio em que construíram a casa, o arranjo de tábuas e pregos, que ajudou a pôr em pé. Quando anoiteceu, eles pararam para festejar o Natal. O padrasto já bêbado, mas tudo bem, era seu direito. A mãe cozinhou no feijão duas latas de leite condensado que tinha ganho na campanha. Foi o pudim do ano. Quando todos comeram, ficaram olhando para o céu e imaginando como seria, quando finalmente morassem na casa em construção.
Michael José teve, pela primeira vez, um sentimento de compreensão do todo, de fazer parte daquele mundo, quase uma epifania. Foi seu primeiro Natal. A festa durou aquela noite. Na mesma semana, a prefeitura derrubou a casa por estarem em terreno da União. E não houve qualquer medida social de acolhimento por parte do governo. Mesmo assim, Michael José lembra, foi um Natal feliz.
Agora, ele quase dormiu e foi acordado abruptamente. Não entendia se se tratava de um delírio, o efeito rebote da droga mais intenso ou se estava sendo preso. Olhou para o homem sem ouvir o que ele dizia. Avistou ao longe, alguém que parecia um fotógrafo, que se desvencilhava dos apetrechos e observava o lago, as flores, os pequenos canteiros, as árvores milenares. Ele se aproximou e ficou ao lado do outro. O outro era um policial. Mas não era noite de Natal, que faziam eles ali? A praça estava tão vazia que nem perigo dele cometer algum delito, havia. O homem insistiu para que levantasse e sumisse dali. O fotógrafo investiu-se das câmeras e ligou o flash para refletir as florezinhas que desandavam pelos entornos. Deviam abrilhantar o Natal que logo começava.
Michael José obedeceu com esforço, tentando levantar-se, titubeando entre se apoiar no canteiro, no banco próximo ou no policial que o aguardava. Seus olhos não se adequavam àquelas luzes fracas, seu coração não se integrava ao Natal que chegava. Por isso, se afastou como devia, era o que lhe bastava. Um Natal que não era o seu.
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