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quinta-feira, agosto 24, 2023

Um só suspiro

Se a noite despertasse um só suspiro que não fosse o meu, se a noite me levasse a sonhos que não despertassem, se a noite dispusesse apenas o silêncio e escamoteasse o medo. Não. Ela se apodera aos poucos de meus pensamentos e sublima as dores esparsas, mas constantes, transforma as linhas da tela, os ecos das músicas, os ruídos da rua. Talvez latidos distantes, resmungos de alguém que surrupia como um mágico também as suas dores. Ali passa, ali funga, ali fuma, ali fica. Depois, quando o mundo já se estabeleceu em sua mente, afasta-se devagar, vivendo outra história. Quem sabe a realidade também mude aqui dentro, as memórias se restabeleçam, a realidade se instaure de vez. Aos poucos, os sons desapareçam e os lamentos fiquem mais lentos e escassos e a noite se reintegre em sua natureza explícita de ceder ao dia que vai nascer.

quarta-feira, julho 27, 2022

É suave a noite

Quando observavas as luzes esparsas da noite, por certo, vias estrelas tão suaves e distantes, que quase sumiam na visão etérea de nossos sentimentos. Era só nossa, como a daquela versão antiga de “Tender is the night”. “É suave a noite, a noite é de nós dois.” Sabias que o amanhecer era a fronteira entre nossos encontros, mas nossos beijos permaneceriam para sempre, em nossos lábios sedentos, mentes melancólicas e pensamentos afetuosos. Lábios que se tocavam suavemente na brisa de verão, embora tudo passasse tão rápido, desafiando o tempo.

Era nossa última noite. Agora, quem sabe, nem a lembras mais. Pode ter ficado apenas em minha memória, em minha sensação, meus sentimentos. Talvez tenhas vivido outras noites, outros momentos, outros verões. “Ternuras de luar, a brisa a murmurar sua canção. Tudo tem suave encanto, quando a noite vem”. Nem percebes perdida no tempo, que as brumas da noite não são as mesmas que vivíamos, cujos encantos jamais seriam compartilhados por outros. “A noite é só nossa, no mundo não há mais ninguém”. Ou não? Ainda tenho nas mãos a doçura do encontro, o silêncio da noite, a plenitude do amor. Ainda tens? Quem sabe, noutro universo, ainda nossas mãos se toquem e os lábios confirmem nosso sonho.


Ilustração: https://pixabay.com/pt/photos/oceano-via-láctea-barco-navegando-3605547/Jplenio

sexta-feira, dezembro 17, 2021

O Natal de Michael José



Michael José surgia na rua morna naquela tarde de dezembro. Nem uma lufada de ar, nem uma brisa desavisada para uma véspera de Natal. Era de um ar apertado, quase desconforto. Digo que ele surgia, porque pessoas como ele não transitam pelas ruas, não passeiam, não caminham por um objetivo específico. Michael José surgia do nada, porque para nada ele era designado. Na verdade, achava-se um ninguém, no meio daquela apatia e desapego. Nada o acolhia, nada o libertava de si mesmo, nada mexia com o seu interesse. Era um desamparo que o consumia desde muito cedo, provavelmente desde a infância, se é que a tivera. Também não havia ninguém nas ruas do centro. A cidade estava morta, esperando as celebrações da noite. Ele também estava morto, há muito tempo. Talvez para ele, a data estivesse errada e em vez de Natal, fosse sexta-feira santa, sem ressureição. A vida, para ele, não passava de um eterno domingo de ramos, no qual festejavam o Mestre, para o apedrejarem depois. Ele, ao contrário, não fazia parte de nenhum grupo, nem dos que homenageavam, nem dos que insultavam. Não se encaixava, não se adequava e seu estranhamento com a vida, persistia desde cedo. Talvez fosse o jumento desajeitado que apenas cumpria a rota determinada.
Mas uma coisa incomodava Michael José, isso ele não tinha como negar. Era a fome. A fome era o seu horizonte, o seu registro apagado, o seu prato preferido, o seu discurso não dito, a sua voz inaudível. Talvez fosse o recrudescer dos sintomas, dos períodos em que a morte sinaliza a vertente que deságua em seu sangue, suas veias, suas pupilas, seu coração. Uma dor tão intensa que a fome é só mais um delírio, uma vontade de sumir em qualquer vala que valha seu corpo esquálido. Uma dor premente. Olhar o caminhão de lixo que se aproxima e pensar que pode ser uma parte daquele entulho, produz uma agonia de não ser alguém, de não fazer parte, não ter. Uma inadequação sem saída.
O caminhão foi mais rápido do que ele, não sobrara nada, nem uma latinha, um resto de yogurte ou gotas de Coca-cola, com a garrafa vestida de um Papai Noel corpulento, de bochechas vermelhas e olhar complacente. Por um momento, ele viu o velho sorrir em sua mão, mas só por um momento, porque avistava apenas os dedos trêmulos e escurecidos pela sujeira.
Michael José precisava seguir em frente. Por isso, surgiu novamente em outro ponto da cidade, num canteiro florido da praça, cuidado com esmero para pessoas como ele não sentarem ali. Que entendia Michael José de beleza, de estética, de harmonia? Sua cara poderia ser a representação da pintura de Edward Munch, O grito, cuja figura revela uma profunda agonia e desespero. Seus olhos vermelhos e esbugalhados, quase o avesso da visão, sua boca murcha e dentes podres. Pobre Michael José, quem teria piedade? Ao contrário, o temiam e se pudessem, rasgavam aquela cara encardida para que se afastasse de vez dos locais onde as famílias de bem se encontram, assim como eliminar qualquer resquício que fosse a sua presença. Ele não disse que os seus dias eram todos domingos de ramos, só que para ele, sem os elogios e celebrações, apenas o apedrejamento tão próximo.
Mas Michael José também pensava no Natal e ao sentar ali, tão próximo do canteiro florido, teve vontade de chorar. Pensou na mãe, nos irmãos, no padrasto, no terreno baldio em que construíram a casa, o arranjo de tábuas e pregos, que ajudou a pôr em pé. Quando anoiteceu, eles pararam para festejar o Natal. O padrasto já bêbado, mas tudo bem, era seu direito. A mãe cozinhou no feijão duas latas de leite condensado que tinha ganho na campanha. Foi o pudim do ano. Quando todos comeram, ficaram olhando para o céu e imaginando como seria, quando finalmente morassem na casa em construção. Michael José teve, pela primeira vez, um sentimento de compreensão do todo, de fazer parte daquele mundo, quase uma epifania. Foi seu primeiro Natal. A festa durou aquela noite. Na mesma semana, a prefeitura derrubou a casa por estarem em terreno da União. E não houve qualquer medida social de acolhimento por parte do governo. Mesmo assim, Michael José lembra, foi um Natal feliz.
Agora, ele quase dormiu e foi acordado abruptamente. Não entendia se se tratava de um delírio, o efeito rebote da droga mais intenso ou se estava sendo preso. Olhou para o homem sem ouvir o que ele dizia. Avistou ao longe, alguém que parecia um fotógrafo, que se desvencilhava dos apetrechos e observava o lago, as flores, os pequenos canteiros, as árvores milenares. Ele se aproximou e ficou ao lado do outro. O outro era um policial. Mas não era noite de Natal, que faziam eles ali? A praça estava tão vazia que nem perigo dele cometer algum delito, havia. O homem insistiu para que levantasse e sumisse dali. O fotógrafo investiu-se das câmeras e ligou o flash para refletir as florezinhas que desandavam pelos entornos. Deviam abrilhantar o Natal que logo começava. 
Michael José obedeceu com esforço, tentando levantar-se, titubeando entre se apoiar no canteiro, no banco próximo ou no policial que o aguardava. Seus olhos não se adequavam àquelas luzes fracas, seu coração não se integrava ao Natal que chegava. Por isso, se afastou como devia, era o que lhe bastava. Um Natal que não era o seu. 


Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/photos/viciado-v%C3%ADcio-dependência-de-drogas-2713526/

terça-feira, agosto 24, 2021

Quase parente

Ela nem tinha chegado aqui e eu já me emocionara com a sua presença. Era forte, altiva, esclarecida e divertida. Nas poucas horas em que tínhamos contato, na verdade, eu que ficava hipnotizado por ela, meu dia ficava mais festivo. Ou melhor, a noite, o período em que realmente nos encontrávamos na casa de uns amigos de meus pais. Depois, passávamos praticamente uma semana sem nos vermos. Até que chegou o grande dia. Ela apareceu majestosa, imponente, tomando conta da casa como se fosse uma visita. Uma visita esperada, aguardada e que já tomava ares de hóspede eterna. Ficava no melhor lugar da sala, defronte ao sofá, onde permanecia mais exposta e parecia estar sempre pronta ao diálogo. Diga-se, a bem da verdade, que às vezes, parecia indisposta, um tanto alheia e embora fizéssemos o possível e o impossível para que correspondesse, não dava as caras. Mas nunca a censurávamos, ao contrário, ficávamos felizes quando ela voltava. Muitas vezes, não foi exclusividade minha, amigos apareciam e ansiavam desesperados pela sua presença. Outros estranhos, a espiavam pela janela. E em ocasiões especiais, grandes eventos, como a copa do mundo, a janela ficava desenhada de cotovelos estranhos, olhos fascinados com a sua presença. Com o tempo, ela ficou atrevida, não era mais uma visita, muito menos uma hóspede transitória, era um de nós, quase parente. Tornou-se tão à vontade que começou a ficar não apenas na sala, mas transitou da cozinha ao quarto, imaginem. Sua presença tornou-se cada vez mais íntima, a ponto de não descolarmos de suas projeções. Mas o tempo é duro para todo mundo, e ela envelheceu e apesar de estar praticamente em todos os lugares, foi se tornando quase obsoleta, dando lugar a outras mais jovens e fagueiras. Agora, talvez o streaming a salve e restitua a sua imagem daqueles tempos da velha TV de nossa infância.

segunda-feira, maio 17, 2021

Quando a noite se aproxima

Quando a noite se aproxima, assim tão lenta e desesperançada, me pergunto por ela. Será que pensa como eu, que sente as mesmas dores, os mesmos males e febres infindas? Será que vela com pensamentos escusos achando que a noite passa e tal como veio arrastada, se afasta e se nivela ao mar, com sol, luzes e sombras? Será que a voz da noite responde e detém meu sangue agitado? Será que provoca o caos, que ocupa as vielas escuras e as transforma em caminhos?

Talvez o muro se rompa e a vida que outrora parecia embaçada, se encha de luz e os homens se encontrem e liguem os princípios tão próximos e distantes, tão aparentes e ocultos, tão coletivos e solitários.

Quando a noite se aproxima, assim tão rápida e confiante, me pergunto por ela. Será que abrirá as comportas e mostrará a força que possui? Será que vigia acordada e zela cuidadosa o sonho que carrega consigo, como o filho primogênito recém-chegado? Será que se aproxima acesa como lamparina trêmula ao vento sob mãos frágeis, mas determinadas?

Não sei. Quisera que a noite fosse apenas a passagem de brumas macias sob um horizonte ditoso. E que tudo não passasse do olhar de sentinela do sol, que já está por vir. Tenho medo porém, que a noite não passe e o sol se afaste para bem longe do nível do mar, ficando tão fraco que já não mais o sintamos. Que a sua voz se cale.


Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/photos/lua-mar-lua-cheia-reflexos-de-luz-2762111/

sexta-feira, agosto 04, 2017

De cara com o monstro

O monstro se aproximava devagar. Ninguém sabia de onde viera e qual o seu objetivo. Todavia era um monstro singular. Um monstro que se moldava de acordo com nossos desejos ou esperanças, às vezes tentativas de mudança.

Certa vez eu caminhava pela avenida que atravessava a cidade de ponta a ponta, o trânsito já diminuira e a iluminação começava a ficar precária, conforme eu me afastava do centro. Sabia que mais cedo ou mais tarde, eu o encontraria por ali. Diziam que ele costumava ficar naquelas redondezas do grande canalete que dividia a cidade. Talvez entrasse pelas águas turvas e se lambuzasse na sujeira que por dias alimentava aquela travessia aquática. Eu nem tinha certeza se o canalete tinha como objetivo livrar a cidade das enchentes, porque o povo costumava jogar entulhos, garrafas plásticas e além da poluição gerada, por certo um daqueles objetos iria parar numa saída de água obstruindo-a e facilitando a inundação.

Fiquei assim pensativo e decidi sentar num dos bancos, que margeavam os muros do canalete. O monstro daqui a pouco surgiria, mas eu não o temia. Nunca o tinha visto, porém tinha comigo que aquele monstro tão questionado por sua conduta perigosa, não passava de um monstrinho assustado por toda agonia aquática e seu poder de destruição. No fundo, ele tentava apavorar os homens para esquecer o próprio medo.

Mas estava ali, esperando-o e fiquei por horas a fio, nao sei quanto tempo. A lua desapareceu, dando lugar a nuvens escuras e eu temia que chovesse ou ocorresse uma ventania fora de hora, fazendo redemoinhos de folhas e poeira.

Um homem passou correndo por mim, usava boné, moleton escuro e bermudas. Não vi o seu rosto, mas percebi que fugia de alguma coisa ou de alguém. Talvez do monstro. Não por muito tempo, apenas o suficiente para voltar com uma fisionomia diferente, como se fosse outra pessoa. Parecia transtornado e demasiado eufórico, a ponto de gritar coisas sem nexo e me encarar com olhos sanguinolentos, embora revelasse uma total ausência de minha figura. Atingiu com pontapés uma coluna que projetava alguns degraus para o fundo do canal, descendo-os em seguida e ali mesmo aliviou-se, enquanto simulava articular um funk que somente ele entendia. Como chegou, desapareceu sem deixar vestígios.

Continuei sentado, procurando mensagens no celular, mas logo o guardei no bolso, pois não havia nada de novo, a não ser as mesmas publicações das redes sociais, as eternas correntes religiosas do whatsapp e os incontroláveis votos de boa noite. Fiquei ainda mais pensativo, imaginando o monstro e suas ações. Certamente, se encontrasse aquele rapaz, o golpearia com suas patas enormes e após arremessá-lo ao chão, montaria no seu corpo frágil e enfiaria as garras na garganta até sufocá-lo com o próprio sangue em golfadas.

Estava tão absorto que nem percebi que uma motocicleta se aproximava, subindo sobre a calçada e estacionando num rodopio, em frente ao banco em que eu estava. Aquele banco de pedra já me doía a bunda e eu havia decidido afastar-me de vez daquele cenário vazio, quase absurdo, numa noite de outono. Entretanto, um dos motoqueiros, rápido como um flecha, deu um salto da motocicleta e espetou uma faca em minha garganta, de tal modo que eu sentia a ponta quase rasgando a pele, tendo a sensação de que ele a cortaria. A primeira ameaça, a primeira exigência, o grito de guerra, enquanto o outro puxou o celular do bolso, bem como a carteira, examinado algumas notas que ainda sobraram após a compra de uma cerveja. Logo em seguida, o da faca, golpeou-me a cabeça com o cotovelo e deu-me outro soco para arrematar a ação, quebrando-me os dentes, produzindo um jato de sangue que me escorria da boca, enquanto eles pulavam na moto e desapareciam na névoa que se antecipava.

Fiquei ali, patético e humilhado, sem tomar qualquer atitude. Talvez devesse chamar a polícia ou queixar-me às autoridades competentes o fato de um cidadão de bem ser impedido de ficar observando a noite, cuja claridade se esvaía com o aumento da neblina. Neste ínterim, percebi a volta do rapaz eufórico, embora agora parecesse um tanto depressivo. Vinha acompanhado de um grupo de maltrapilhos, como se estivesse cercado por zumbis, cujas chamas iluminavam os olhos sem vida e a fumaça dos cachimbos se agregasse à cerração que ficava cada vez mais densa. Alguns carros paravam próximos ao grupo, dos quais desciam vários jovens. Alguns subiam nos muros do canalete e caminhavam sobre ele, bamboleando os corpos, numa ousadia que os transformava em verdadeiros equilibristas. Davam gritos, risadas e berravam palavras de ordem, que mais pareciam um amontoado de palavrões.

Eu os observava desiludido. As costas doíam, a cabeça, os ombros, todo o meu corpo e meus lábios cortados sangravam. Eles prosseguiam com a tépida chama dos cachimbos, fumando o crack e manifestando uma euforia semelhante ao do rapaz que urinara no canalete, embora bem mais agressivos. Eu esticava as pernas, na tentativa de levantar-me, quando outra motocicleta apareceu, descendo dois jovens, escondidos em capuzes escuros. Senti um arrepio, temeroso de ser agredido novamente ou talvez morto, caso fossem outros assaltantes. Entretanto, pude perceber que se tratava dos encarregados da venda das drogas. Um dos rapazes que descera do carro, puxou a carteira do bolso e pagou a compra, como se estivesse procendendo uma simples operação financeira.

Em dado momento, aproximaram-se de mim, oferecendo-me as drogas, que pareciam ser gratuítas naquele momento. Eu poderia pagar num outro dia qualquer. Esforcei-me em argumentar que não usava drogas de modo algum, eu estava ali com outra finalidade: ver o monstro que todos comentavam, eu queria enfrentá-lo, conhecer a sua ferocidade e a fraqueza. Eu queria vencê-lo. Eles sorriram, dizendo-me que estava no caminho certo, bastava usar um comprimido apenas. Podia esquecer o crack, a cocaína ou qualquer outra pílula da felicidade. Eles tinham a saída para todas as minhas dores, tanto físicas quanto psíquicas.

Por um momento, tentei levantar-me, fugir daquele grupo que me cercava e me deixava atônito, mas se mostravam tão amigos e companheiros que não havia como refutar. Eu, que me sentia tão sozinho, estava ali, entre amigos.

Por fim, ofereceram-me o tal comprimido e naquele instante seguinte, alcancei um excesso de felicidade, quase êxtase, um upgrade no desejo sob todas as formas, energia e bem-estar. O mundo girava a meu favor e a vida rendia perdão aos meus sofrimentos, como se a gratidão se antecipasse à dor ou a qualquer infortúnio. Eu estava feliz. Então, pediram-me o número do celular roubado, eu já nem lembrava, mas isso não importava muito, pois logo, logo saberiam. Como parceria aos meus atos, correram até os bandidos que me assaltaram, fizeram buscas, investigações e com uma pertinácia, quase obsessão, acionaram todas as ferramentas para atingir o objetivo e reouveram os meus pertences, meu celular, a carteira e até os poucos trocados que ainda restavam.

Eles me ajudaram com a mais alta competência. Porém, com o passar das horas, percebi que alguma coisa diferente acontecia comigo. Era como se o mundo debandasse às minhas costas e a vida se tornasse insossa e cada vez menos visível. Como se estivesse envolto em feno e era apenas o seu sabor e cheiro que sentisse. Não tinha a impressão de nada, mas tinha a intuição apurada a ponto de perceber o que sempre sonhara: o monstro se aproximava e desta vez, estava bem perto, me encarando.

sexta-feira, julho 15, 2016

MORTE LENTA

Cai a noite. Por certo, os meteorologistas se preparam para as últimas informações sobre o clima. Nada do que palmilhar os mapas da mente e descobrir o clima interior, este tão próprio, tão intimo, tão vulnerável.

Pudera seguir o caleidoscópio da paixão. Sentir o calor que se abrasa em meu ser frágil.

Pudera ver as novas vertentes das cores que se abrem, misturadas às múltiplas facetas do mundo que se explora.

Mas está frio aqui dentro. Lá fora também.

A noite é intolerável.

A noite é uma mulher má, austera, fria. Sem consolo. Nem lágrimas derretem seu coração. Meu coração, certamente se derrete mais no gelo do que no calor.

Mais um dia, ou melhor, uma noite, em que me coração ficará sozinho, disforme no sofá rasgado da sala.

Por que não tenho um gato para se aninhar nos meus pés e aquecer meus tornozelos? Um gato submisso, quedme espia atrás da poltrona, enlaça seu rabo de leve no pé da mesa e passeia pela sala ao meu encontro.

Não, não tenho gato. Não gosto de gatos, nem de crianças, nem de cachorros.

Mas que faria um cachorro aqui, numa noite vazia a não ser ganir de frio ou de fome e solicitar a noite inteira o meu carinho?

Eu é que preciso de cuidado, de carinho, de atenção.

Pudera sair pela noite fria, pisar meus pés no sereno quase geada e afundar na lama das enxurradas. Ali, não teria mesmo ninguém para me aquecer. Talvez os marginais das esquinas ou os mendigos que se aquecem com chamas de papel queimado.

Quisera atravessar as praças escuras, palmilhar com cuidado os degraus da catedral e me sentar ao relento, esperando que a noite passasse e que o dia despejasse os frágeis raios de inverno. Por que o inverno é tão duro, tão inóspito para pessoas sozinhas como eu? Por que não fico me aquecendo ao pé da lareira ou mesmo no aquecedor barato que vez que outra se desliga da tomada, produzindo pequenas faíscas, anunciando o excesso de energia. Energia que não tenho, que não se acumula num corpo que se aniquila.

Cai a noite. Cai devagar, lenta, preguiçosa. Mas ela sabe o quanto dura: uma eternidade. Ela sabe que o espaço que ocupa foge das zonas geográficas da cidade, e se limita ao meu peito, aos meus braços quase inertes, às minhas pernas magras, ao meu coração estático.

Pudera fugir da noite e avançar dia após dia, sem esperar que a noite venha. É a pior espera. Um solitário como eu não pode se dar ao luxo de esperar a noite. Ela é fria, é cruel. E traz consigo sombras que subjazem nas calçadas, nos viadutos, sob as marquises.

Quem sabe, hoje, o sangue flua generoso de minha boca, num só golpe, num único esforço e jorre pela casa toda, pela calçada, pelos túneis e eu definha como um vampiro faminto. Será a morte lenta de quem não tem um sol para se recompor.

terça-feira, julho 12, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 13º CAPÍTULO

Na conversa com Rosa, o detetive Júlio Ramirez descobre que ela está assustada com a onda de crimes por ingestão indevida de insulina a quem é saudável. Um crime que não deixa marcas. Confusa, Rosa está mais temerosa, porque contraiu a doença. Mas há outra expectativa de Júlio em relação a ela, o seu relacionamento com o mecânico Paulo e o assassinato da jovem Taís.

Júlio volta para o hotel refletindo sobre tudo que ouvira. A história de Rosa estava muito mal contada. Afinal, defendera o mecânico com muita firmeza, ao mesmo tempo que acusava a vítima de ser uma leviana, revelando todo o ódio que sentia. Por fim, acusara o médico, dizendo que o seu carro estava no local do crime. Mas como sabia que o carro estava lá?

Em poucos dias, conhecera uma mulher com traços completamente distintos, de acordo com a situação. Se havia alguém mais estranho naquela cidade, era a maestrina, pois um dia era uma pessoa cordata, tranquila, atendendo o pessoal do hotel com esmero e cuidado, bem como, segundo diziam, uma regente do coral com muito talento. Noutro, era uma mulher assustada e ao mesmo tempo indignada, mostrando-se rancorosa e com muitos segredos. Mas talvez estivesse aí, a chave do problema. Talvez ela estivesse assustada não pelos crimes, que segundo dissera a afetavam profundamente, em virtude de algumas pessoas terem sido assassinadas por um criminoso que injetava insulina em pessoas saudáveis. Talvez o outro crime fosse a causa de sua aflição, em virtude da presumível implicação de seu protegido. Isso ele precisava descobrir. Por isso, ligou para o médico para esclarecer sobre o carro. Segundo Ricardo o informara, ele fizera uma caminhada perto do rio. Mas teria levado o carro até lá? Se foi de carro até certo ponto, para prosseguir o caminho a pé, a menina não mentiu. Ana afirmou ter visto um carro conversível e disse que era do médico. Agora Rosa confirmava que o carro estava perto do rio, no dia do crime. Ricardo atende o celular depois de muito resistir, entretanto não havia como fugir do detetive. Era insistente, e talvez tivesse alguma novidade que precisasse saber.

– Então, detetive, quer saber alguma coisa ou tem alguma novidade para mim?

– Por enquanto, não tenho nenhuma novidade, que valha à pena, dr. Ricardo. Queria fazer-lhe uma pergunta. Naquela tarde-noite, você disse que caminhou pela beira do rio para se acalmar. Me diga uma coisa, você foi de carro?

– Claro que não, o meu carro estava na oficina.

– Na oficina Silva, naquela em que trabalha Paulo?

– Essa mesma. É a única na cidade.

– Mas então, alguém usou o seu carro naquele dia.

– Como assim?

– Deixa pra lá, me diga, quando entregaram o carro pra você?

– Se bem me lembro, logo no dia seguinte. Não era nada grave, apenas a bateria que estava fraca. Mas por que pergunta? Quem andou com meu carro?

– Não se preocupe com isso. Obrigado pela informação. Grande abraço, doutor. Descanse.

– Espere, o senhor não me respondeu…

– Passe bem, doutor Ricardo.

Júlio senta-se numa pequena escrivaninha em seu quarto e começa a fazer um esquema. Faz ligações entre os envolvidos e pensa numa maneira de acareação, embora este seja um procedimento policial. Jairo havia dito que segundo a perícia, a moça havia sido realmente assassinada. Então não tinha porque conjecturar sobre suicídio ou acidente. Ela foi jogada no rio e os ferimentos revelam que foram feitos antes da queda. Além disso, provavelmente tenha sido empurrada para a ribanceira após a ponte, onde as águas são mais profundas e com muita força, além de ser haver muitas pedras submersas. Precisava falar com o delegado para que conseguisse juntar as pessoas. Ficou muito tempo fazendo verdadeiras acrobacias mentais, por fim, resolvera deixar tudo para o dia seguinte. Os esboços já estavam de tamanho suficiente para que se desenvolvessem mais tarde. Decidiu dar uma navegada na internet e depois leria um livro, para cair no sono. Deitou-se só de cuecas na cama, pois fazia certo calor, no quarto. Não fez nada do que se propusera e caiu num sono intenso. Começou a sonhar com o passado, a pequena casa que morava não tão distante do rio, os pais, os irmãos que partiram para longe, a mulher que o deixara há pouco tempo, o livro que gostaria de escrever. Estava assim mergulhado em sonhos entremeados com pesadelos, porque alguma coisa o deixava angustiado nas imagens que seu cérebro produzia, na impossibilidade de discutir os problemas que envolviam a pequena cidade natal.

terça-feira, fevereiro 23, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO XIV

HOJE, TERÇA-FEIRA 22/02/2016, SEGUE O NOSSO FOLHETIM RASGADO "PÁSSARO INCAUTO NA JANELA" COM O 14º CAPÍTULO. NOVAS REVELAÇÕES!

Capítulo 14

Tenho vontade de dizer para o velho que não estou sozinha, tal como ele, que desapareceu há dias de sua janela, do seu quarto. Será que morreu? Espero que não. É mais um pra minha coleção. Cada dia, um se vai. Quando será a minha vez? Espero que demore bastante, sinto que ainda posso fazer alguma coisa, sinto que posso ajudar Susana. Essa expectativa me dá uma euforia, uma vontade de realizar coisas, um bafejo de vida. Tenho até desejo de tocar piano, como antigamente. Mas já faz tanto tempo, que nem sei se não desaprendi.

_Que terá acontecido com Susana? Por que me chamou daquela maneira? Parecia tão desorientada, a coitadinha.

_De quem tá falando, vovó?

_Ah, não importa. Estou falando sozinha. Que mania vocês tem de chamar de vovó. Eu tenho nome.

_Desculpe, não quis ofender. É que conheço a senhora há tanto tempo, quero dizer, só de pegar os seus remédios na farmácia: é remédio pra pressão, pro colesterol, pro glúten, pra diabete.

_Precisa enumerar todos? E cuida o trânsito, ta uma loucura, não ta vendo?

_Só quis lhe dizer que lhe conheço dessas coisas que faço pra senhora, por isso a chamo assim.

_Por isso mesmo, por me conhecer é que devia me chamar pelo nome. Todo mundo sabe que sou Úrsula. Primeiramente, vocês chamam de tia, tia pra cá, tia pra lá. No meu tempo, as tias eram as putas da esquina, sabia? – o motorista ri, satisfeito. Olha de soslaio para Úrsula e volta a fixar a rua. Ela continua no protesto.

Quando a gente fica mais velha, é vovó. Ora, vá pro diabo com estas manias!

_A senhora ta amarga, hoje, hem? Só porque lhe falei dos remédios.

_E você gosta que eu fale que toma Viagra?

_Quem lhe disse isso? A senhora pirou? – freia o carro, destemperado. Os bigodes muito pretos, as entradas separando fiapos de cabelos, suando. Os olhos arregalados.

Ela sorri, vingada. Continua, irônica.

_Eu não pirei. Quem pirou foi o... o vizinho, ai.

_A senhora é muito abusada. Eu não preciso destas coisas – responde, retomando o caminho.

_É mesmo? Não é o que minha fonte me falou.

_E quem lhe falou?

_Nem sob tortura lhe digo – ainda esboça um sorriso sorrateiro. Ele exclama, irritado.

_Diabos, essa gente não tem o que fazer, se não ficar fuxicando a vida dos outros.

Úrsula volta-se para a vidraça do carro, examinando as pessoas na calçada que agora lhe parecem tão parecidas com ela, ocupadas com sua própria vida. Faz-se silêncio. Ela é a primeira a falar – toca o carro, rapaz. Deixa de bobagem.

Após descer do veículo, Úrsula olha em direção à janela do apartamento de Susana. Está entreaberta, as cortinas produzindo movimento. Esquiva-se do frio, aproximando-se rapidamente do prédio, até atingir o elevador. Ajeita-se olhando-se no espelho. Puxa a gola do casaco, arruma os cabelos e examina-se por um segundo, observando os olhos que lhe parecem um tanto fechados. Deve ser inchaço, em virtude do pouco tempo que consegue dormir. Ao abrir-se a porta, Susana está a sua espera. Evitou parecer aflita, maquiada para não demonstrar nenhum sofrimento, pelo menos perceptível à primeira vista. Aproxima-se e a abraça, com carinho. Úrsula se emociona.

_O que foi minha filha? O que aconteceu com você?

Susana pede que entre. Reconhece de imediato que não deveria tê-la pressionado a vir até lá. Não foi uma boa estratégia, afinal, não tem o direito de envolvê-la em seus problemas. Por fim, afirma que os acontecimentos não tinham esta importância que ela tinha atribuído. Havia sido um desabafo.

Úrsula entra, quieta. Observa os móveis, a estante de livros, as poltronas confortáveis. Percebe a sala despojada, sem uma decoração suntuosa, embora lhe desperte a atenção a presença de alguns moveis antigos e tapetes bem alinhados. Senta-se e a observa, vendo-a caminhar de um lado para o outro. Seus olhos a acompanham intrigada.

_O que foi, dona Úrsula?

_Eu é que pergunto. Você não me fez vir aqui para nada. Diga-me o que aconteceu.

Susana desconversa: – gostaria que conhecesse meu escritório. Lembra quando fui na sua casa, pela primeira vez? Mostrou-me o apartamento, o seu piano, falou de várias coisas e não foi direto ao assunto.

_Porque não confiava em você.

_E agora, confia em mim?

_Confio. Por isso estou aqui, para ajudá-la.

Susana fecha a janela que dá para a rua, deixando apenas a vidraça misturando os vários tons de luzes, que circundam as redondezas. Quando resolve sentar-se em frente à Úrsula, não consegue esquecer a atitude de Roberta Célia, na posição em que estava, enfrentando-a com arrogância, em tom de ameaça. Ela, por sua vez, está na mesma atitude defensiva em que se encontrava naquele momento.

_Gostaria de fazer um chá para nós.

_Nada disso. Você quer desvirtuar o assunto. Olhe, Susana, se não confia em mim, seja sincera. Daí, eu vou embora.

_Não diga isso, Dona Úrsula. Eu confio na senhora. A senhora pra mim, é uma parente muito próxima, que não tenho.

_Você não tem nenhum parente aqui?

_Minha mãe morreu muito cedo, pouco me recordo dela.

_É verdade, se não me engano você me disse isso alguma vez. Não estou bem lembrada. Mas então? É sobre seu pai?

Susana abaixa a cabeça, as mãos trêmulas, pousadas nos joelhos, como se quisesse ampará-los ou segurar-se a si própria num apoio imaginário. A voz soa irregular, mal articulada.

–Dona Úrsula, é uma história muito longa, cheia de meandros, que fazem da minha vida uma angústia constante. Quase uma rotina. Sou uma mulher com muitos erros. Aliás, tenho um crime inconfessável nas costas.

–Por favor, Susana, não me assuste.

–Não, não, é a última coisa que desejo que aconteça. Não sou uma assassina, uma mulher que cometeria um crime por algum motivo vil. Mas eu cometi um crime e o pior de tudo, uma pessoa está me ameaçando, fazendo chantagem.

–Então me conte isso do início.

sábado, janeiro 09, 2016

SEDUÇÃO

Saiu à noite, pelas vielas escuras. Um impulso indefinido. Talvez sentir-se vivo. Impulso, pulsão, compulsivo. Tudo que milhares de psiquiatras, psicólogos, psicanalistas, até autores de autoajuda já tinham informado. Sabia, entretanto que precisava seguir o ritual. Um sentimento de busca, uma verdade inconteste que latejava no peito e respondia no sexo, o degrau inferior que percorria pensamentos, mas que o impelia a sentir-se alguém.

Talvez fosse um louco, destes que andam às escuras, escondidos nas brumas das árvores dos parques, prontos a atacar ou serem atacados. A praça o seduzia; uma atração tão forte, que não ousava fugir.

Lembrava-lhe brinquedos, dias ensolarados, o avô ao seu lado, o carinho seguro, o passo certo e a certeza de que a vida se resumia na firmeza da mão. Nada os separaria, estariam sempre juntos, ele, ouvindo suas histórias enfadonhas, que o transportavam a sua vida rural: um modelo tão estranho e diferente do seu. Aos dez anos, tinha poucos amigos.

O pai, distante, executivo sempre temeroso da falência aviltada eternamente a seus ouvidos, a mãe envolvida na sua vida social e decadente.

Nada mais restava a não ser o avô, um velho marginalizado pela pouca cultura, narrador de histórias rudes, baseadas no manuseio dos animais, cercado por gente simples como ele, considerada desprezível pelo pai e por toda a família. Também não se importavam com a sua presença, desde que se mantivesse contida no elo familiar do menino. Este aprendera quase tudo sobre cavalos, éguas no cio, vacas prenhes e caças proibidas. Mas o que mais o fascinava não era o enredo inverossímil das histórias, mas o ambiente lúdico da praça, que ficava próxima a sua casa, onde tudo acontecia, onde elas se desenrolavam em narrativas fantásticas. O que o encantava era a intimidade com o avô, naquele espaço de liberdade e paz, onde pombas sobrevoavam, atrevidas, e palhaços produziam publicidade dos circos que chegavam à cidade. Onde percebia nos olhos do avô um certo ar de inocência.

Agora, aos trinta anos, o velho já enterrado há mais de dez, não lhe importavam as luzes da praça, nem o ensolarado dos recantos, nem a mágoa ressentida de se afastar dos meninos mais corajosos, que se arriscavam na gangorra, em pé, ou na roda gigante, da qual se avistava o topo das árvores. Nem a humilhação de se sentir confortável apenas no carrossel, com a certeza de que colocaria os pés em terra firme. Bobagem. Nada disso causava qualquer emoção, apenas lembranças distantes, nos quais a verdade se escondia em seu coração e o refúgio maior era o coração do velho.

Viver pelos becos sombrios, atravessar as vielas sórdidas, envoltas no negrume dos desejos mais recônditos produzia um prazer muito maior do que o gozo que procurava. No entanto, um vazio imenso se instalava em seu peito, que sentia o suor escorrer gelado através das roupas grossas de lã, um frio intenso de bater joelhos, parceiro nestas buscas intermináveis. Via em cada olhar entre as sombras, uma provável fonte de prazer, mais forte do que o medo de ser atacado ou cruelmente humilhado. Em todos, talvez avistasse os meninos que o desprezavam, e por isso, quisesse agradá-los, para se sentir um igual. Ou talvez, as imagens sombrias e disformes traduzissem a rudeza do avô, que mesmo no ensolarado do sol, carregasse com ele, a crueza de um mundo marginalizado, que o atraía intensamente. Olhos passeavam nas sombras agitadas, de rumos diferentes, que se cruzavam a todo momento, que se aproximavam, se tocavam, pedindo sexo. Homens, mulheres, prostitutas, vadios, mendigos, ladrões, traficantes, drogados, policiais, travestis, garotos de programa, todos em fila, à espera de um beijo seu. Uma confirmação que finalmente cederia a sua sina. Coração alerta, as pernas trêmulas, doente de frio.

Noite límpida. Só estrelas no céu e a lua se inseria entre aqueles galhos retorcidos, desenhando imagens absurdas. Ali, próximo, seres que se esgueiravam no ambiente insípido, molhados de sereno e suor, bocas úmidas que procuravam outras bocas e outros corpos. E ele, ali, como um malabarista entre os galhos secos e disformes, meio escondido, obedecendo à hierarquia da sedução, temeroso de ceder também, de se sentir um igual, tão igual que jamais voltasse a ser o que deveria. Alguns sorriam, outros se masturbavam indecentes, na noite vazia de sonhos e ilusões, outros se locupletavam com as moedas que proviam a miséria de seus cofres sem dono. Ladrões de corpos e almas. Ladrões de si mesmos, de suas vidas, seus destinos, desafiados a cada momento no brilhar de facas, no tilintar de faróis oficiais, no disparar de pistolas.

Se pudesse fugir, mas estava preso ao chão, realizando o ritual que ousava repetir.

Foi assim, que percebeu um olhar mais forte, a voz que não se produzia na boca, mas no corpo inteiro, que o deixou tão atraído que pensou que fosse morrer. Até sorriu, quando a beleza se alternou entre a miséria humana e pensou ser um dos seus. Com sonhos, esperanças, ideais, quem sabe, um dia evadir-se daquela vida e se transformar num novo homem, esquecer este universo avesso à realidade dos outros de bem. Então o acompanhou, tropeçando, a voz embargada, o coração aos pulos, a boca estremecida. Excitado. Sua chance. Só uma vez. Um homem como ele não se atreveria jamais a prosseguir naquele caminho. Bastava ser feliz, por alguns momentos e esquecer para sempre. Seguiu-o para uma touceira, desfiou o blusão nos nódulos do tronco, entorpeceu os braços, estendido no alto e, sem ação, enlevou-se em frases bonitas, gestos sedutores que certamente outro homem não faria, pelo menos não um como o avô. Sentiu-se apalpado, invadido. Foi beijado com lascívia e aflição. Suas pernas aconchegavam o sexo vigoroso e deixou-se ficar quieto. Manteve-se como o menino à procura de amigos, frustrando-se por ser covarde, agarrado na figura firme e segura do avô. Não precisava mais dele, porém. Estava seguro, quando o encarou, seduzido na voz sussurrante. Até quando avistou a arma brilhar e pairaram exigências rápidas, como cartão de crédito, dinheiro ou chave do carro. Nada dizia, pois nada acreditava. O torpor impediu a voz. A mãe sorria, afirmando que a página policial não era para a sua família; o pai por sua vez não acreditava na exiguidade da hora, no confronto da conversa, no contra-argumento e por isso se afastava, acenando a cabeça, enfadado.

Apenas o avô, com suas histórias, no ensolarado da praça, contando como se sacrificava o porco e como o sangue jorrava, lavando a mesa improvisada, após gritos dilacerantes de dor. Então, sentiu o sangue correr na mão, oriundo do pescoço, como o porco sacrificado e pensou que encontraria o avô e certamente, seria novamente feliz.

sábado, dezembro 19, 2015

PENSO NO NATAL

Talvez falasse em consumo, em presentes, em comilança, em festa.

Talvez falasse no Aniversariante, engendrando questões que explicassem, sob um viés capitalista, porque não se preocupam com Ele, ou só o consideram de passagem.

Talvez falasse do Natal, como um feriado para compartilhar com parentes e amigos, a celebração da vida, a tentativa de ser feliz, pelo menos por um dia.

Talvez comentasse tudo isso, mas prefiro pensar no silêncio.

No silêncio daqueles que sofrem em hospitais, dos marginalizados nos depósitos psiquiátricos, dos alienados da vida real, dos que perambulam pelas ruas, dos que bebem da água que sobra nas garrafas sujas, jogadas após uma noite de festa.

Dos amargurados, impedidos de falar, silenciados pelo peso da dor ou do jugo do parceiro.

Das mulheres que descreem da vida, apartadas do seus, nos desvios produzidos por regimes.

Nos pais que não enterraram os filhos, ocultados sob a dor de períodos de trevas, onde a liberdade era apenas um discurso político, e apesar do passar do tempo, revivem a cada Natal, o sorriso do filho, que deixou o quarto intacto.

No silêncio dos meninos de rua, dos palhaços de sinal, dos pedintes, dos incapazes de sonhar. Nos que morrem no trânsito, nos que se suicidam nas estradas, nos que fugiram covardemente da vida.

Nos bêbados andrajosos, nos viciados, perdidos em noites escuras estruturadas em túneis sem fim, bamboleando entre vielas sujas e mal cheirosas, buscando o pouco de vida que lhes foge a cada acesso de prazer.

Nos solitários, nos patéticos frente a monitores, assistindo de longe a vida como cenário abstrato de poucos, tão fugaz e inatingível. Dos que se perdem nos bastidores de softwares, chips, megas, tentando encontrar outros ou a si mesmos, ineptos das ações mais humanas.

Nos velhos solitários, observando a vida da janela, borbulhando a dor nos ossos, na pele flácida, nos olhar aguado, assistindo as imagens em movimento, com alma em apuros; um item do passado, que o mundo esqueceu de conferir.

Penso neles. E também nos que percorrem a vida com calma, vivenciam a dor humana, consolam, ajudam, compartilham. Por tudo isso, penso no Natal. Um Natal que muitos não possuem, ou talvez, não propriamente como imaginamos, mas um Natal que se consagra aos poucos, no dia a dia de suas atribulações, quem sabe, um respaldo para o encontro maior com o Senhor.

sexta-feira, dezembro 04, 2015

NOITE FELIZ

Noite feliz

Meu avô, lembras, das noites natalinas, à espera daquela consagrada a Ele?

Lembras das carruagens enfeitadas com luzes, em cenários enluarados, onde fogos riscavam céus e nossos olhos encantados nos anjos vestidos de gente?

Lembras das tuas frases curiosas, tuas histórias brilhantes, teu afago em meu peito, enquanto seguravas firme a minha mão, assim, pequena, na tua tão grande? Mão de avô, firme, forte, segura. Lembras? Não, não mais lembras e se o fazes, deve ser de uma maneira diferente em que as lembranças ecoam contagiadas da mesma alegria anterior, sem esta melancolia que me atinge.

Talvez não haja mais passado para ti, nem futuro. Só o presente em que me acompanhas de longe, inspirando-me melodias e poemas, que inventas sem que eu perceba, para que seja feliz.

És bem capaz disso. Teu coração sublime, tua verdade inabalável.

Tuas histórias em que me incluías ao lado de cada herói, de cada passagem vibrante, onde a vida brotasse plena em nossas mãos. E eu ficava ao teu lado, observando o brilho que purificava o teu olhar, iluminando o teu rosto, e por vezes, revelava um ser diáfano na noite.

Noite de estrelas. Noite de luzes e vozes. Noites de alegria e paz.

Quisera te ver ainda, rodeado desses bônus que a vida, às vezes, nos proporciona. Quisera sentir a brisa leve no rosto, percebendo o friozinho gostoso do sereno, mergulhado na expectativa das celebrações, dos corais, dos anjos, das bailarinas, do presépio e do menino Jesus na manjedoura.

Quisera estar ao teu lado, experimentar a brisa suave, o abraço afetuoso e ter a certeza de que o espírito de Natal ainda permanence.

Mas esbarro numa criança, alguém que se apressa para não perder nenhum acontecimento nesta noite e me volto surpreso.

Por um momento, imaginei que estavas aqui, tão próximo, infundindo em minha alma este desejo de ser feliz, de sentir novamente o espírito sublime desta noite. Quem sabe, me inspiravas mesmo e eu compartilho também esta Noite Feliz?

quinta-feira, setembro 17, 2015

Minha avó e a Apollo 11

Havia um clima de angústia e alguma agitação na casa. Foi no dia do casamento dos dois.

Minha avó estava deitada em seu quarto. Eu tinha a impressão de que ela observava a minha mãe com um olhar de súplica e até um pouco de desconfiança. Talvez imaginasse que aquele casamento pudesse curar a sua doença, ou pelo menos, não a matasse de vez.

Minha mãe, ao contrário, por mais que evitasse demonstrar, apresentava uma inquietação em cada movimento ou conversa. No fundo, ela sabia que a morte era inevitável. Apenas, desejava que a mãe não sofresse tanto!

E aquela falta de ar que não passava, aquela angustiosa espera de que alguma coisa acontecesse e por um milagre, ela voltasse a conversar normalmente, a respirar com fluidez, voltar a sorrir.

Minha mãe chorava pelos cantos, mas na frente dela, sorria e dava esperanças.

Meu avô parecia não entender bem aquela história, mas aceitava pacificamente a ideia do casamento. Não sabia porque a filha inventara um casamento religioso, tanto tempo depois, velhos e cansados, que diferença fazia? Mas se é o que se devia fazer, que se cumprisse.

Naquela época, o homem estava prestes a ir à lua. Era uma esperança para a humanidade, a certeza de que muitas coisas mudariam, talvez doenças fossem curadas, ou em consequência dessas viagens espaciais, até se descobrisse alguma forma de vida. Não se conhecia muito do assunto, mas tínhamos certeza de que alguma coisa boa viria daquelas viagens interplanetárias. O homem riscando os céus, descobrindo novos mundos, enfrentando o espaço. Havia slogans na TV, na rádio, nos jornais. Todo mundo falava na era espacial.

Eu ficava dividido entre estes dois mundos. O mundo imaginário, com um quê de realidade, bastava que o homem pisasse na lua para tudo ficar real e decisivo. Por outro lado, havia o meu mundo pequeno, real, no qual as noites eram intermináveis, em de algum modo, participava das dificuldades de meus pais, na tentativa de uma melhora de minha avó, na busca por médicos, por remédios especializados ou uma provável hospitalização.

Até que marcaram o dia em que a Apolo 11 rasgaria o céu em direção ao astro tão almejado, no caso o satélite natural da terra.

No meu mundo particular, marcaram a data do casamento. Era uma noite fria de maio. Um maio que se arrastava em suas derradeiras noites, porque nas noites as coisas aconteciam, nas noites em que minha avó gravitava como um pêndulo, numa falta de ar que ia e vinha, sem tempo da oscilação parar. Um maio quase junho parecendo persistir no frio. Um vento que também oscilava lá fora.

O Padre Costa chegou e aproximou-se dos dois, sorrindo. Meu avô o olhava desconfiado, sentado ao lado da cama.

De meus olhos de criança, observei a cena, através de uma janela que dava para uma área lateral. O cenário pronto, os protagonistas aptos e os personagens em volta.

Com a presença do padre, minha avó parecia ter melhorado da falta de ar. Uma tia de olhar intrigado afastava-se do quarto, em direção à cozinha. Não acreditava que nada mudasse. Para ela, tudo não passava de crendices. Minha mãe nada argumentava. Ela sabia que a esperança era quase nula, mas por que não levá-los ao encontro com o sacramento, por que morrerem sem esta oportunidade?(No fundo, era o que pensava).

O padre realizou a cerimônia. Eles, sentados e encostados na cabeceira da cama. O ritual consolidado. Cumprimentos. Sorrisos.

Quando o padre foi embora, houve um certo alívio para a tia descrente e parece que tudo se aquietou.

O maio terminou. Junho chegou rápido e foi um dos meses mais frios do ano.

Em 20 de julho de 1969, o homem pisou na lua pela primeira vez. Minha avó ainda resistiu um tempo, até para descrer daquela façanha. E numa noite de julho, dois anos depois, ela também se foi. Foi uma noite fria, tão fria quanto àquela.

O dia? Foi cinzento.

domingo, julho 19, 2015

Divagações de um futuro prefeito

Pescava às margens da lagoa, entre pequenas regiões escarpadas, formando uma enseada de rara beleza. Talvez pelo brilho do sol que se confundia pela luminosidade fraca, mas insistente da noite, ou pelo seu jeito de ver as coisas, especialmente naquele dia. Tinha consigo que as coisas mudariam e para melhor. Conversava com os peixes, em silêncio. Sabia que o escutavam. Encostou um pouco mais na ribanceira, soltou a barriga branca e empinada sobre o calção velho e deixou-se ficar assim, pensativo, malandreando no dia que findava. Passou a mão pelos cabelos grisalhos, enfiando os dedos desajeitados, puxando-os para trás. Este era o seu último dia sem a preocupação dos grandes gestos, das atitudes severas, dos compromissos inadiáveis. Deu vontade de dormir ali mesmo, deixar a mulher esticada na rede, como de hábito até que a aragem noturna a empurrasse para o interior da casa. Ficou ali, desistindo da pesca, desistindo de conversar com os peixes, pensando apenas no seu futuro. Um futuro tão diferente do que era a sua vida, um homem do mar e da agricultura, acostumado a sujar as unhas na lama, a engraxar os dedos no caldo oleoso do peixe, a estrebuchar as tripas, limpar as escamas, contar os trocados da venda. Além é claro, das manifestações políticas, que já há algum tempo faziam parte de sua vida. Mas era coisa pequena, coisa de sindicato de pescador: algumas lutas sobre o tempo do defeso, brigas particulares entre os seus, nada de muito porte. Agora iria assumir a direção de uma cidade. Aí a coisa pega. Diocleia não estava acostumada com aquela gente na cidade, ao contrário, tinha até as suas rixas com o povo esnobe, principalmente ela, que tinha dificuldades com as letras. Mas ele era muito senhor de si e sabia o que estava fazendo. Também tinha Moira, a morena da venda do Seu Chico. Essa ia ficar pra lá. Como é que ia viver sem os agrados daquela zinha? Mas tinha que deixar a sua ilha, a sua lagoa, as suas galinhas e as poucas plantações que enfeitavam sua horta e partir para a cidade. Lá começava a sua saga. Sem nada disso, sem a Moira, a morena dos peitos duros e a voz de taquara rachada. Só com a sua Diocleia. Essa não tinha jeito de largar. Agora seria a primeira dama. Dizem que tem político que conserva a mulher, como o único amor de sua vida. Ele não acreditava. Para ele, que tudo acontecera de repente, sem se preparar, era quase impossível. Talvez para os que viveram na luta politica durante muito tempo, juntos, eles e as esposas, mas não era o caso. E depois, como diz o povo, todo politico é meio sacana. Não pode fugir à regra. Ainda tem o futuro dos filhos para cuidar. O tempo passa rápido e mais dia, menos dia, ele tomarão o seu lugar. E precisam estar preparados. Um dia, a família Preto fará nome na cidade! E quem sabe, sejam prefeitos, filhos do prefeito, sobrinhos do prefeito, primos do prefeito, noras, genros, tios...

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