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segunda-feira, julho 10, 2023

Mordaça

Queria criar um balaio de flores

Símbolo de beleza em cenários esparsos

Na esperança de criar valores

Que desfaçam laços e cadarços


Da mordaça que invade nossas vidas

Do medo que instiga os desejos

Das vitórias que não temos definidas

Das lutas que se furtam aos ensejos


Quem sabe tais flores invadam espaços

Vazios com feridas abertas

Varrendo retrocessos engessados

Numa vanguarda de ideias


E num mundo assim debilitado

Transgridam os ferrolhos das cancelas

Libertem as mentes magoadas

E desaferrem, num ímpeto, as celas.


Fonte da ilustração: autor Acedev

in www.pixbay.com

sexta-feira, dezembro 17, 2021

O Natal de Michael José



Michael José surgia na rua morna naquela tarde de dezembro. Nem uma lufada de ar, nem uma brisa desavisada para uma véspera de Natal. Era de um ar apertado, quase desconforto. Digo que ele surgia, porque pessoas como ele não transitam pelas ruas, não passeiam, não caminham por um objetivo específico. Michael José surgia do nada, porque para nada ele era designado. Na verdade, achava-se um ninguém, no meio daquela apatia e desapego. Nada o acolhia, nada o libertava de si mesmo, nada mexia com o seu interesse. Era um desamparo que o consumia desde muito cedo, provavelmente desde a infância, se é que a tivera. Também não havia ninguém nas ruas do centro. A cidade estava morta, esperando as celebrações da noite. Ele também estava morto, há muito tempo. Talvez para ele, a data estivesse errada e em vez de Natal, fosse sexta-feira santa, sem ressureição. A vida, para ele, não passava de um eterno domingo de ramos, no qual festejavam o Mestre, para o apedrejarem depois. Ele, ao contrário, não fazia parte de nenhum grupo, nem dos que homenageavam, nem dos que insultavam. Não se encaixava, não se adequava e seu estranhamento com a vida, persistia desde cedo. Talvez fosse o jumento desajeitado que apenas cumpria a rota determinada.
Mas uma coisa incomodava Michael José, isso ele não tinha como negar. Era a fome. A fome era o seu horizonte, o seu registro apagado, o seu prato preferido, o seu discurso não dito, a sua voz inaudível. Talvez fosse o recrudescer dos sintomas, dos períodos em que a morte sinaliza a vertente que deságua em seu sangue, suas veias, suas pupilas, seu coração. Uma dor tão intensa que a fome é só mais um delírio, uma vontade de sumir em qualquer vala que valha seu corpo esquálido. Uma dor premente. Olhar o caminhão de lixo que se aproxima e pensar que pode ser uma parte daquele entulho, produz uma agonia de não ser alguém, de não fazer parte, não ter. Uma inadequação sem saída.
O caminhão foi mais rápido do que ele, não sobrara nada, nem uma latinha, um resto de yogurte ou gotas de Coca-cola, com a garrafa vestida de um Papai Noel corpulento, de bochechas vermelhas e olhar complacente. Por um momento, ele viu o velho sorrir em sua mão, mas só por um momento, porque avistava apenas os dedos trêmulos e escurecidos pela sujeira.
Michael José precisava seguir em frente. Por isso, surgiu novamente em outro ponto da cidade, num canteiro florido da praça, cuidado com esmero para pessoas como ele não sentarem ali. Que entendia Michael José de beleza, de estética, de harmonia? Sua cara poderia ser a representação da pintura de Edward Munch, O grito, cuja figura revela uma profunda agonia e desespero. Seus olhos vermelhos e esbugalhados, quase o avesso da visão, sua boca murcha e dentes podres. Pobre Michael José, quem teria piedade? Ao contrário, o temiam e se pudessem, rasgavam aquela cara encardida para que se afastasse de vez dos locais onde as famílias de bem se encontram, assim como eliminar qualquer resquício que fosse a sua presença. Ele não disse que os seus dias eram todos domingos de ramos, só que para ele, sem os elogios e celebrações, apenas o apedrejamento tão próximo.
Mas Michael José também pensava no Natal e ao sentar ali, tão próximo do canteiro florido, teve vontade de chorar. Pensou na mãe, nos irmãos, no padrasto, no terreno baldio em que construíram a casa, o arranjo de tábuas e pregos, que ajudou a pôr em pé. Quando anoiteceu, eles pararam para festejar o Natal. O padrasto já bêbado, mas tudo bem, era seu direito. A mãe cozinhou no feijão duas latas de leite condensado que tinha ganho na campanha. Foi o pudim do ano. Quando todos comeram, ficaram olhando para o céu e imaginando como seria, quando finalmente morassem na casa em construção. Michael José teve, pela primeira vez, um sentimento de compreensão do todo, de fazer parte daquele mundo, quase uma epifania. Foi seu primeiro Natal. A festa durou aquela noite. Na mesma semana, a prefeitura derrubou a casa por estarem em terreno da União. E não houve qualquer medida social de acolhimento por parte do governo. Mesmo assim, Michael José lembra, foi um Natal feliz.
Agora, ele quase dormiu e foi acordado abruptamente. Não entendia se se tratava de um delírio, o efeito rebote da droga mais intenso ou se estava sendo preso. Olhou para o homem sem ouvir o que ele dizia. Avistou ao longe, alguém que parecia um fotógrafo, que se desvencilhava dos apetrechos e observava o lago, as flores, os pequenos canteiros, as árvores milenares. Ele se aproximou e ficou ao lado do outro. O outro era um policial. Mas não era noite de Natal, que faziam eles ali? A praça estava tão vazia que nem perigo dele cometer algum delito, havia. O homem insistiu para que levantasse e sumisse dali. O fotógrafo investiu-se das câmeras e ligou o flash para refletir as florezinhas que desandavam pelos entornos. Deviam abrilhantar o Natal que logo começava. 
Michael José obedeceu com esforço, tentando levantar-se, titubeando entre se apoiar no canteiro, no banco próximo ou no policial que o aguardava. Seus olhos não se adequavam àquelas luzes fracas, seu coração não se integrava ao Natal que chegava. Por isso, se afastou como devia, era o que lhe bastava. Um Natal que não era o seu. 


Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/photos/viciado-v%C3%ADcio-dependência-de-drogas-2713526/

quarta-feira, maio 12, 2021

Mãe no jardim

Às vezes, lembro a velha janela de veneziana e postigos verdes. Observava os rodamoinhos, folhas que giravam numa agitação festiva e alguns sacos plásticos efetuavam rápidos vôos para mergulharem em seguida na calçada ou no meio do rua. O vento fustigava a janela. A tarde era melancólica.
Minha mãe passeava entre as dálias, diversas begônias, umas com folhas riscadas de vermelho, outras com um verde mais intenso, algumas com pendões de flores azuladas, além de uma roseira de rosas pequeninas que ela insistia que se grudassem ao muro. Brigava com as formigas que rendavam as folhas, lutava no pequeno jardim, no qual canteiros simbolizavam o seu afeto e dedicação pelas plantas.

Havia arbustos maiores, a tal da Eva e do Adão, com folhas imensas, bem desenhadas e muito verdes. E as hortênsias? As hortênsias eram o seu xodó, sempre floriam na hora certa e mudavam a cor conforme a distância entre elas. Se havia hortênsias rosas próximas a azuis, elas trocavam de cor. As rosas mais azuladas e talvez as azuis um tanto brancas, não sei. Havia o jasmim, este já no corredor, ao lado da casa. Tinha um perfume poderoso e era cultivado com muito cuidado. E os brincos-de-princesa, flores vistosas, em forma de um pequeno vaso, com pétalas roxas e vermelhas. Não tenho certeza. Havia os dias de calma.
Os dias em que a janela permanecia aberta e dali, se apreciava o jardim, a rua, a calçada, os meninos brincando. Havia dias de pouca brisa, mas que investigava a sala, as cortinas de voal (voil) que lambiam o peitoril da janela e desenhavam pela casa pequenas sombras que se espraiavam pelas paredes.
Às vezes, havia uma vela, bem ali, perto do peitoral da janela, acendida para algum santo, talvez para comemorar alguma dádiva, não sei. O vento leve, mas assobiava no corredor, vez que outra. Ele vinha e ia e a chama se deitava, oscilando de modo a quase apagar-se, mas resistia e coloria de vermelho a proximidade da cortina, quando o vento amainava. Ficava forte, como a fé que ora se deslocava pra lá, ou pra cá. Ora se enfraquecia, ora se fortalecia e iluminava o ambiente, como a vela. A vela apropriada.
Por vezes, a via por ali. Ou por todos os lugares, ocupando todos os espaços. Ficava entre as flores, a luz da chama iluminando, resistindo aos ventos fortes, oscilando entre a fé e a alegria, buscando. E sua busca não cedia, não esmorecia, tal como a vela no velho castiçal de bronze. Ãs vezes fraca, titubeante, às vezes forte e iluminada.
Ainda a vejo ali, atravessando os pequenos canteiros, aproximando-se da sala e puxando as cortinas com cuidado, fechando os postigos, as venezianas e lacrando a janela verde, porque o vento agora surgia forte e poderoso. Hora de respeitar a natureza.
Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/photos/anêmona-azul-flor-pétalas-verão-2396299/

quinta-feira, outubro 11, 2018

A primavera e o ódio

Talvez eu devesse falar na primavera, afinal ela está aí, já brotando flores e enfeitando árvores, apesar do frio que ainda persiste em acompanhá-la em seus dias.

Talvez eu devesse caminhar a esmo, de preferência pelas margens da laguna e observar a mudança gradativa dos ventos, das nuvens, dos novos cheiros e brisas.

Talvez devesse espiar as escolas, os adolescentes que na primavera, parecem explodir em sentimentos e lutas internas, como frutos, sementes e flores ressurgindo do nada, inspirados nos raios do sol e nos sussurros dos entardeceres.

Talvez eu devesse estudar novos rumos e pesquisar os trabalhadores que voltam às pressas para casa, envolvidos nas compras eventuais, nas contas a pagar, nas obrigações mensais. Talvez contem o dinheiro comezinho que lhes sobre, o tumulto do ônibus, as horas perdidas no trânsito, as horas inglórias da espera. Trabalhadores que perdem os seus direitos dia a dia, que quase sucumbem aos desmandos de um governo congelado numa depredação de patrimônio físico e humano.

Talvez, como o Severino de João Cabral de Melo Neto, venha a morrer de fome, de ódio, de bala, que segundo o irmão das almas, “mais garantido de bala, mais longe vara”. Sempre há uma bala voando desocupada.

Talvez eu devesse retornar, esquecer os tempos sombrios que se avizinham e pensar que o passado não está voltando. Que o retrocesso, o pior do século passado, já passou realmente.

Entretanto, há o temor de que o ódio persista e a humanidade pereça.

A esperança, porém é que talvez o círculo do tempo pare e uma força progressista se alastre e o mal se dissolva.

Porque há primavera e não há bala que a destrua.

Fonte da ilustração: MabelAmber in: www.pixbay.com

segunda-feira, abril 09, 2018

Para não dizer que não falei das flores I

Talvez não faça diferença ler um ou outro, em qualquer ordem. Ou seja tudo a mesma coisa. Para não dizer que não falei das flores I ou II.

A manobra foi lenta e gradual. Bem estudada, desenhada segundo os meandros mais complicados que se apresentavam.

Usava-se das estratégias arquitetadas com cuidado, apreensão, focalizando o ponto de partida, que seria a vitória final. Sem retrocesso, sem voltar ao ponto de partida, sem pedidos esdrúxulos de recuos providenciais ou renúncia ao poder tomado pelos dedos fortes que empunharam as bandeiras das escolhas.

E a mão foi firme, optando por linhas vibrantes, que condissessem com os objetivos do desenho, principalmente, no ferir despudoradamente o tecido, sem antes porém escolher a dedo o fio necessário, aquele que abrange todo o molde, transformando uma imagem disforme num alto-relevo emergente.

Usar o dedal com precisão, para que não se esparja o sangue e arruíne a estrutura, puxar devagar a linha, com cuidado, quase com carinho, enfiando-a na agulha e trazendo para próximo ao peito, para não perder o equilíbrio e deixar que se escoe por entre os dedos, como água que jamais será retomada.

Esquecer o carretel ou o novelo e focar nas meadas, nas quais as linhas se dispõem paralelas revelando os vários tons, permitindo o descortinar da criatura sendo produzida.

Assim se deu a manobra lenta e gradual de se mostrar o talento no desdobrar do bordado, desde as costuras mais simples, porém necessárias, até os floreios mais personalizados.

sábado, dezembro 23, 2017

Se o Natal te oferece

Se o Natal te oferece música, luzes e cores, aproveita. Usufrui da alegria e festeja.

Se o Natal te oferece abraços, risos e flores, aproveita. Corresponde à euforia e brilha.

Se o Natal te oferece fé, orações e lembranças do Aniversariante, aproveita. Ameniza os sentimentos, te doa, te alegra e reza.

Se o Natal te oferece passeios, encontros e festas, aproveita. Compartilha com os amigos e parentes as tuas memórias, os teus desejos, os teus caminhos para acertar nos trilhos e urgente, refaz o desfeito, acerta o erro e resgata a história.

Se o Natal te oferecer a mão, a comida, o amor, a bondade, aproveita. Retorna com mais amor, mais amizade, mais bondade e sustenta a mudança que talvez advenha desta passagem para o bem. Vive feliz e despreocupado. Te desembaraça de pensamentos confusos, de medos e cicatrizes. Te livra do mal.

Mas não esquece jamais, dos que ficam lá fora, longe das festas e dos fogos, longe dos amigos, dos parentes, dos vizinhos. Afastados da vida, mortos em seu caminhar obtuso, zumbis. Aqueles invisíveis que parecem passar por nós nas ruas do dia a dia. Lembra deles agora, porque é Natal. Lembra dos que juntam latas no lixo, dos que vivem no lixo, dos que chafurdam nas calçadas, deitados e papelões afugentando-se do frio e da sede, vivendo a morte em vida. Lembra dos que se sentem perdidos, em trajetórias aleatórias, pseudoescolhas sob domínio de drogas, arrebatados dos princípios mais íntimos que os impede de viver. Párias numa terra do nada.

Lembra dos exilados da própria pátria, pois são nada, talvez nem um número que os identifique entre os humanos. Os miseráveis que amplificam a cada dia a desumanidade das celas, provavelmente culpados, mas talvez elos nesta engrenagem suja e hipócrita em que vivemos, na qual a maioria dos que são presos e julgados são negros e pobres.

Lembra dos excluídos pela cor, pela orientação sexual, pela etnia, pela pobreza, por quaisquer preconceitos que desvalorizem o ser humano, dando-lhe uma dimensão aquém para rotulá-los e conformar o coração “bondoso" e afiado do brasileiro.

Lembra dos pacientes em leitos de hospital, dos que sofrem as mazelas dos governos que fingem protelar o orçamento em nome de uma administração financeira falsa ou mal intencionada.

Não reza pelos governos. Reza por ti por que te falta o 13º salário, reza por ti que não tens esperanças.

Não reza por quem bateu panelas numa manifestação seletiva, porque até a corrupção é seletiva, segundo o Juremir Machado da Silva (Correio do Povo). “Uma das mais contundentes expressões do irrealismo brasileiro é dizer que a população não bate panelas contra Michel Temer por estar cansada, desiludida, anestesiada. As panelas não batem porque a corrupção do governo Temer não incomoda tanto quanto incomodava a do PT. No Brasil, até a corrupção é seletiva. Tem corrupção e corrupção. O corrupto chega nas altas instâncias e diz: “Você sabe com que ladrão está falando? E sai voando. Com Temer a turma dos camarotes vai se ajeitar nas poltronas de grife e continuar assistindo ao triste espetáculo da miséria nacional. Que importa a esse pessoal sofisticado se negros patinam na pobreza? Temer é herói nacional para o mercado, que ansiava pela reforma trabalhista, mesmo se ela está produzindo demissões em cascata em alguns setores. Era esse mesmo o objetivo.”

Entretanto, reza e sonha, porque é Natal. Tem esperança e te veste de azul, amarelo, verde, vermelho, cores alegres que manifestem a tua alegria. Mas não te esquece jamais, que o Cristo que vive em nosso coração, para quem é religioso, ou a sensibilidade que está em tua alma, só pode ser apurada e tornar-se plena, se lembrares que lá fora há outros Cristos esquecidos. Revigora teus sentimentos. Alimenta tuas esperanças, mas lembra, hoje os mísseis da indiferença, da covardia, do racismo, do fascismo, da face perversa do poder, da intolerância religiosa arrastam seguidores como um rio bravo e por enquanto, não escolhem os culpados, porque em breve, todos o serão.

Finalizando, citamos o dramaturgo alemão Bertolt Brecht que diz: “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem.”

Feliz Natal!

sábado, julho 01, 2017

Havia flores em Lisboa

Havia flores nas janelas e outras que se acomodavam em espaços menores, juntando seus galhos e pétalas e espécies diferentes e inúmeros brotos que surgiam à luz primeira da manhã.

Eram rosas, jasmins, gerânios e se estendiam pelas janelas, pelos pequenos canteiros, pelas intersecções das ruas, pelas rótulas, pelos caminhos, pelos passeios.

Eram lindas as flores e alvissareiro o dia que mergulhava mais e mais nas horas da manhã que aos poucos se adiantava.

Foi ali, que parei um momento, sentado num banco verde, observando as construções antigas ao longe, as igrejas seculares, as ruas estreitas e o rio que se desenhava ao fundo. Não poderia ser diferente. Acomodar-me naquele ambiente valorizado pela natureza cultivada, era reviver um pouco das memórias ocultas que se restabeleciam com a beleza.

Memórias de um passado que esquecemos, mas que ressurge quando invocados pelo sentimento.

Talvez devesse ficar ali todo o dia, se outros compromissos não me absorvessem, não me chamassem para a realidade árdua que nos atinge como sinos simbolizando a chegada ou partida.

Sinos que vem e que vão, trazendo consigo lembranças, exigindo chegadas e acenos ou levando consigo esperanças e procuras a outros ninhos.

Mas, de todo modo, ficar ali, observando as pessoas, as crianças, os jovens e idosos, o refluir da diversidade da natureza era pintar um quadro na memória e usufruir dessa júbilo para jamais esquecer.

Assim deve ser a realidade, norteada pelo sonho e pela esperança. Acrescentada à beleza das flores, dos pássaros, dos sons das crianças e dos afazeres dos homens. Tudo junto eleva a beleza da vida.

Partilhar essa realidade é experenciar a vida com o vigor dos que amam e absorvem a beleza do momento.

Linda Lisboa!

sábado, setembro 17, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 3

No 2º capítulo, Santa entrou na igreja ao lado do marido, observando a família. O filho, artista multimedia estava à esquerda dos demais, um pouco afastado dos parentes. Parecia intrigado com aquela exposição da mãe no dia de seu aniversário. Noutro banco, estavam a filha, uma promotora estadual que mostrava-se muito emocionada e o genro que acenava prudente. O outro filho, muito sisudo, esforçava-se em ajeitar a gravata e naquele momento, esboçar um sorriso. Mas uma outra surpresa foi capaz de desestabilizar Santa por completo, um relicário, um presente doado peloa igreja, através do bispo, que se mostrava sensibilizado. Era uma bússola, que provoca no marido de Santa uma certa indignação. Como hoje é sábado e nosso folhetim dramatico é publicado nas terças-feiras e no sábado, prosseguimos com o 3º capítulo. Divirtam-se!

CAPÍTULO 3

Fonte da ilustração: site www.morgfile.com

Nem dava para perceber, mas o dia seguinte para Santa havia sido por demais estressante. Estivera entretida entre fotografias, álbuns, além de idas às compras vez por outra, para aviar as tarefas de rotina.

Talvez não precisasse disso tudo, pensou consigo. Afinal era uma mulher rica, que dispunha de um número razoável de empregados; havia coisas porém, que se atribuía a necessidade de se ocupar.

De repente, após o almoço, ficou sozinha.

As vozes que ouvia eram de pessoas quase estranhas, apesar de conviverem há bastante tempo. Pessoas que lhe serviam, que traziam chás, ou transmitiam recados. Pessoas que mantinham o seu bem estar.

Mas não se sentia bem.

A quantas andava o marido, não sabia.

Os filhos já voltaram para as suas atividades.

O tempo passava quase insalubre.

Doíam-lhe as pernas. Doía-lhe o corpo.

Deixou que os últimos servidores se afastassem e deitou-se no velho sofá da saleta de leitura, ajeitou as pernas, deixando os tornozelos encostados no tecido, meio que estirados.

Precisava se refazer do cansaço do dia. Um dia sem nada para contar, sem ter o que lembrar.

A festa do dia anterior, as expressões de carinho, de congratulações. Tudo já era passado.

Agora restava o dia depois, aquele que não devia existir. Como uma ressaca, uma vontade de não fazer nada, um tédio acumulado.

Que fazer, se as coisas mudavam assim, tão repentinamente e ela não mais desfrutava o passado recente como coisa presente. Não, ela já não se dava a estes desfrutes.

Ela se repetia na rotina e a dor parecia bem mais intensa e duradoura. Uma dor de saudade, de distância dos seus, de vontade de permanecer junto. Uma dor a mais.

Ligou a tv, trocou várias vezes de canal.

A tragédia da vida cotidiana pintava todas as telas. Nada acrescentava ao espírito. Quando muito, um filme arrastado, ao qual nem tinha paciência de assistir.

Seus pensamentos retomavam a infância, talvez a idade em que fora mais feliz.

As lembranças se acumulavam lentas, ultrapassando uma a outra numa tela distante. Tanto, que os olhos foram pesando e uma leve sonolência tomou conta.

Embora sem abrir os olhos, teve a sensação de ter alguém muito próximo.

Uma voz cálida que lhe dizia coisas difíceis de entender.

Aos poucos, a imagem foi surgindo, cada vez mais nítida e seu coração saltava em êxtase.

Um aroma suave de flores enchia o ar. Uma sensação de alegria genuína. Uma resposta a todas as dores e sofrimentos. Uma passagem para o bem.

Tinha a certeza de que a Virgem Maria estava ali, ao seu lado.

Encolheu-se no sofá, estremecendo. A voz cessou e um objeto tomava forma na mão da Virgem.

Uma bússola, tal como a sua, com a agulha apontando para o norte, indicando algum lugar por detrás das cortinas.

Santa tinha a sensação desfalecer.

A presença de Virgem Maria ali, na sua casa, com uma bússola devia ter um significado muito importante.

Alguma coisa que certamente mudaria a sua vida, que a transformaria numa outra pessoa, ou então, que ratificaria o rumo correto que alcançara na vida.

Mas por que aquela bússola na direção da janela?

O que havia lá, a não ser uma colina que se estendia até uma pequena ilha.

Por que ela surgira assim, daquela maneira, sem os habituais adereços, sem o rosário, sem as flores?

Por que trouxera um objeto que não agregava um símbolo significativo de sua missão?

Por que não aparecera como de hábito, apenas como a Senhora, a Mãe de Jesus, a Mulher que convidava ao conforto da oração ?

Por que a instigava daquela maneira, ela que sempre seguira os mandamentos, que fora uma mulher exemplar, uma benemérita da comunidade?

O que mais queria dela?

Que caminho estranho estava indicando para que seguisse?

Que chamado era aquele?

Por que ela não virara a bússola para outra direção, para o centro, por exemplo ou mesmo para o bairro onde se situava a catedral?

O que havia de tão importante naquele rumo?

Seria então este o caminho indicado pela Virgem? Uma trajetória desconhecida, a qual deveria se determinar a seguir?

Levantou-se num salto e abriu bem os olhos, mas a imagem não estava mais ali. Não havia nada, a não ser uma pequena brisa que balançava as cortinas da janela.

Então, com as pernas trôpegas aproximou-se da janela e olhou ao longe.

O que havia lá, além da colina, além daquela ilha solitária?

Uma região afastada, na qual vivia uma comunidade isolacionista?

Um povo estranho que se dizia sem regras nem leis?

Uns desviados da política, do poder, do governo.

Uns anarquistas, sem eira nem beira, que viviam às custas do que plantavam ou das trocas que faziam?

Santa estremeceu. Anarquistas? Seria este o caminho? Seria para que ela deveria seguir? Seria este o norte mostrado pela Virgem?

Começou a andar pela casa em absoluto desespero. Chamou os empregados.

Poucos apareceram. Não lhes disse nada. Pediu apenas que Linda, uma velha empregada que lhe servia há muitos anos, ficasse. Pediu que sentasse ao seu lado.

— A senhora quer que traga alguma coisa, Dona Santa? Um chá, um café?

— Não, não quero nada Linda. – a voz estava trêmula e uma ansiedade se fixava em cada sílaba – Linda, escute, se eu lhe dissesse que vi Nossa Senhora, você acreditaria?

Linda encarou a patroa, intrigada. Sempre fora religiosa, e já tinha visto muita coisa nessa vida, mas ver Nossa Senhora, assim, do nada, era demais.

Evitou porém, dizer qualquer coisa, mas por certo, concordaria com a patroa, para agradá-la.

— Você acha que estou louca, não é mesmo?

— Não, imagina, Dona Santa. Se a senhora disse, é porque é. Afinal, a senhora é tão religiosa. Nada mais justo que Ela aparecesse para a senhora.

Santa levantou-se e dirigiu-se à janela. Avistou um pássaro pousando suave no telhado vermelho que cobria a sacada lateral. As patas finas, o passo gracioso. Olhou para o alto e se benzeu.

Linda a observava, procurando certificar-se de que dissera a coisa certa. Dona Santa parecia transtornada. Melhor não contrariar.

Santa voltou-se e a interceptou, num ímpeto.

— Isso não importa, agora. Preciso saber de outra coisa.

— Como não importa, dona Santa? – insistiu, sem muita convicção. – É uma coisa maravilhosa! Se ela apareceu, é porque tem um motivo. A senhora lhe deve alguma coisa.

— Este é o problema, Linda, o motivo. Ela me pediu uma coisa extraordinária – afasta-se devagar da janela, aproximando-se da poltrona. Segura o encosto por trás, com as duas maos, dobrando o corpo e fala em tom quase confessional – Linda, ela quer que eu me envolva com aquela gente do lado de lá.

Linda ficou ainda mais confusa. – Aquela gente... do lado de lá...? – pergunta tentando adivinhar, sem saber a quem a patroa se referia.

Santa soltou o encosto do sofá e sentou-se na frente de Linda. Insistiu: — Você sabe sim a quem me refiro. O povo lá da colina, ou melhor, depois da colina. O tal povo da Ilha Libertária, parece que é assim que se autodenominam.

Deus me livre, aquela gente não presta. A Virgem não ia mandar a senhora pra aquelas bandas!

— Mas eu não sei ainda o que ela quer de mim, Linda – acrescenta, angustiada. – Talvez ela queira que eu me embrenhe naquela ilha, que convença aquele povo... ou... – refletindo – talvez eu deva dividir a minha fortuna, minhas jóias, meus bens.

— Como assim, dona Santa?

— Eu sei muito pouco deles, mas dizem que não aceitam dinheiro, que utilizam trocas. Eles são militantes contra o nosso sistema capitalista. Cristo também era assim, como eles. Cristo era um anarquista e queria dividir tudo com todos. E também ele não aceitava governos, nem senhores. – Santa respira fundo, agora a voz soa forte e precisa. Parece fazer um discurso.

Linda a observa sem entender o que realmente pretende. Esforça-se em achar uma frase para participar da conversa.

— Não quero contrariar a senhora, não, dona Santa, mas aquela gente lá não é normal. Como é que um povo pode viver assim, isolado de todo mundo, meu Deus? Pra mim, eles usam é drogas.

— Não é nada disso, Linda. Você não entendeu a proposta, mas eu estou refletindo e aos poucos, estou chegando lá. Quem pode afirmar que eles não estão certos? Talvez seja esta a minha missão, entrar naquela comunidade, participar das suas crenças, ajudá-los. Se eles não usam dinheiro, eu posso ajudar a vida deles com o meu. Dizem inclusive, que são naturalistas, que respeitam a natureza, que vivem com a maior simplicidade.

— Contam por aí, que eles vivem do que plantam – confirma Linda.

Santa levanta-se mais uma vez e caminha pela sala enquanto fala. Quem a visse, além de Linda, diria que se trata de outra pessoa. Uma pessoa que encontrou um norte, um novo objetivo na vida.

– Eles são pessoas simples, que vivem do que plantam, você disse. Pois eu quero viver esta vida simples. Não foi o que Cristo disse aos dois irmãos ricos que lhe perguntaram como alcançariam o céu? Vá, vende tudo o que possuís e dá-o aos pobres. Pois bem, eu me acercarei destes pobres e seguirei as palavras de Jesus. A agulha da bússola apontava para aquela região. Pois lá, edificarei a minha seara.

— Dona Santa, não sei se deveria perguntar, mas os seus filhos vão aceitar isso?

— Claro, Linda. Todos entenderão que a partir de hoje, eu tenho um novo caminho a seguir. Portanto, vou reuni-los o mais breve possível, toda a família, para contar-lhes esta empreitada.

quinta-feira, março 31, 2016

PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI EM FLORES II

Rosas se espalhavam pelo alambrado, tingindo de vermelho o cenário, no qual se avistavam pequenos pedaços de azul da parede do prédio.

Quase não se via o outro lado da cerca, tão fortes estavam as rosas.

Tínhamos a impressão que o verde era apenas um adereço à beleza e ao perfume que revelavam.

Houve momentos em que cresceram tanto, que atingiram o jardim por trás da cerca, envolvendo-se nas margaridas, nas frágeis papoulas ou nos vigorosos cravos amarelos.

Achavamos que o vermelho suplantava as cores da discórdia, do ódio, da intolerância.

Pensávamos que o desafio estava tomado, que o sangue vertido nas lutas pela democracia representava os anseios de uma sociedade fragilizada por anos e anos de dissociação cidadã de sua pátria. Achávamos por fim que a sociedade estava madura.

Mas as pétalas foram caindo aos poucos, lentamente, no subterrâneo dos insetos devoradores, minando as raízes, as folhas, os galhos. Minando o verde da esperança até chegar no vermelho. O vermelho símbolo de tantas lutas, para estas formigas, pulgões e toda a sorte de predadores estimula o ódio, a intolerância, o desamor, o desrespeito, o embate furioso contra as leis, contra a democracia, o golpe.

Pois as pétalas se espalhavam, as rosas vermelhas que enfeitavam e transformavam milhares de cenários cinzas e pobres em espaços de esperança e melhoria, hoje estão sendo dizimadas através da mão canhestra do carrasco, até mesmo dos alienados que seguem o fluxo dos desinformados (ou manipulados).

Mas o mundo gira, e as flores tem a temperança da natureza, há tempo de brotar e por certo nem todas serão destruídas, porque a terra é fértil e o adubo está aí, pra ser espalhado.

sexta-feira, março 18, 2016

Pra não dizer que não falei em flores

A manobra foi lenta e gradual. Bem estudada, desenhada segundo os meandros mais complicados que se apresentavam.

Usava-se das estratégias arquitetadas com cuidado, apreensão, focalizando o ponto de partida, que seria a vitória final. Sem retrocesso, sem voltar ao ponto de partida, sem pedidos esdrúxulos de recuos providenciais ou renúncia ao poder tomado pelos dedos fortes que empunharam as bandeiras das escolhas.

E a mão foi firme, optando por linhas vibrantes, que condissessem com os objetivos do desenho, principalmente, no ferir despudoradamente o tecido, sem antes porém escolher a dedo o fio necessário, aquele que abrange todo o molde, transformando uma imagem disforme num alto-relevo emergente.

Usar o dedal com precisão, para que não se esparja o sangue e arruíne a estrutura, puxar devagar a linha, com cuidado, quase com carinho, enfiando-a na agulha e trazendo para próximo ao peito, para não perder o equilíbrio e deixar que se escoe por entre os dedos, como água que jamais será retomada.

Esquecer o carretel ou o novelo e focar nas meadas, nas quais as linhas se dispõem paralelas revelando os vários tons, permitindo o descortinar da criatura sendo produzida.

Assim se deu a manobra lenta e gradual de se mostrar o talento no desdobrar do bordado, desde as costuras mais simples, porém necessárias, até os floreios mais personalizados.

quinta-feira, fevereiro 18, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULOS XII E XIII

HOJE, QUINTA-FEIRA 18/02/2016, SEGUE O NOSSO FOLHETIM RASGADO "PÁSSARO INCAUTO NA JANELA" COM O 12º E 13º CAPÍTULOS. NOVAS REVELAÇÕES!

Capítulo 12

Susana aguarda o elevador em seu andar. Está prestes a entrar, mas é impedida pela voz urgente, quando a porta se abre. A mulher a impede de entrar, praticamente suplicando em falar-lhe. Ela tenta entender o que está acontecendo, sem dar muita importância à situação. Está preocupada com o horário, segurando a bolsa numa mão e uma série de documentos numa pasta azul. Na outra mão, digita no celular, tentando conseguir algum estagiário para o trabalho em campo. Detém, ao ouvir o seu nome. A mulher é magra e alta, cabelo vermelho, curto, aparentando quarenta anos.

_Susana? Você é Susana Medeiros?

O zelador que subia a escada, antecipa-se ao diálogo, esclarecendo que ela a havia procurado e não pudera impedir. Tentara explicar-lhe que daria o recado, mas a coisa parecia séria.

_Não se preocupe, João. Está tudo certo – e voltando-se para a mulher, a interroga sobre a gravidade do assunto, já que está em saída para o serviço. Esta, mostra-se decidida.

_Desculpe-me, mas precisei investigar onde morava. Não foi difícil, a senhora é uma jornalista bem conhecida. Se me der alguns minutos, eu agradecerei eternamente.

_A senhora quer falar sobre alguma coluna do jornal?

_Não, na verdade, trata-se de outro assunto. Eu não sei a quem recorrer, sabe. Aliás, não tenho muitos conhecidos influentes. Mas talvez a senhora possa me ajudar. Eu sei que você está fazendo uma entrevista com... – interrompe-se, enigmática – com Dona Úrsula.

_Sim, mas não entendo em quê possa ajudá-la. Dona Úrsula é a viúva de um jornalista, a fonte mais adequada para a biografia que pretendo fazer. O que a trouxe aqui, realmente?

_Eu sei, ela era mulher de um jornalista famoso. Foi até preso na época da ditadura. Ele fez uma reportagem na serra pelada, criticando aquele comércio e foi crucificado por isso. Mas esse acontecimento foi mais tarde, depois da prisão. Ele não se emendava.

_Pelo que parece, a senhora está muito bem informada.

_Ah, sim, sem dúvida. Sei muito sobre ele. Inclusive, se quiser, posso ajudá-la. Tenho o maior interesse, pode ter certeza.

_ Como a senhora o conheceu?

_Dona Úrsula deve falar muito no filho, não ?

_É verdade.

_Pois bem, eu sou a nora dela. A mulher do Luis Afonso.

_A das flores de plástico?

_Como assim?

_Desculpe. Uma referência, apenas. Coisa de jornalista. Como é seu nome?

_Roberta Célia. Pode chamar-me apenas de Roberta. Esses nomes compostos só atrapalham, sabe? É o caso do Luis Afonso, poucos o conheciam por Afonso. Já a velha, tinha a mania de chamá-lo por Luisinho.

_Sei. Mas então você é a viúva de Luisinho?

_Do Luis Afonso.

_Claro, me desculpe. Acostumei a chamá-lo assim, tal como Dona Úrsula.

_E também como se refere a mim?

_Como assim?

_A das flores de plástico?

_Foi um ato falho.

_Não se incomode. É assim mesmo. A velha sempre criticou as flores que levo para o túmulo do Luis Afonso. Mas olhe, se não se importa, poderíamos conversar na sua casa?

_Não me importo, de modo algum. Só que neste momento, é impossível. Estou indo direto para a redação do jornal. Tenho uma ideia, poderia ir comigo, no meu carro. Poderíamos conversar no caminho e marcamos um encontro para outra oportunidade.

_É que o jornal fica muito distante do meu caminho.

_Neste caso, marcamos outro dia?

_Se pudesse ser ainda hoje...

_Dê-me o seu n°, que eu lhe ligo, está bem assim?

Roberta Célia obedeceu, percebendo que esta seria a estratégia mais adequada. Ao cair da tarde, atendeu, animada.

Capítulo 13

Ao entrar no apartamento de Susana, porém, não demonstrava a mesma disposição. Parecia mergulhada numa espécie de contrição, de sofrimento interno, que a impedia de sentir-se à vontade. Vestia-se com simplicidade, mas bom gosto. Uma blusa cinza, com detalhes em faixas trespassadas salientando a cintura, acompanhando uma calça preta, que a deixava mais esguia. No pescoço, uma corrente de ouro, guarnecida com pingente em forma de pentágono. Observou o cenário em que se inseria, registrando rapidamente com o olhar arrebatado a estante de livros. Não que fosse muito adepta à leitura, mas interessava-lhe saber as coletâneas de crônicas organizadas pelo Jaime, inclusive as centenas escritas nos jornais, que estavam catalogadas em livros. Passeou em seguida os olhos pelo móvel no qual situavam-se algumas fotografias. Espichou o pescoço, tentando talvez encontrar a figura de algum conhecido. Todas as suas atitudes demonstravam grande curiosidade.

Susana convidou-a sentar e percebendo o interesse, comentou sobre algumas fotos. Apontou para um porta-retratos, indicando tratar-se de seu pai.

_Ah, seu pai. Um homem muito bonito, apesar da barba. Sabe, tenho uma aflição com homem de barba. Me incomoda. Mas e sua mãe, não consta nas suas fotos?

_Não. Tenho poucas fotos de minha mãe. Ela morreu muito jovem.

_Você é casada, Susana?

_Sou divorciada.

– Os casamentos hoje em dia não duram nada. A mulher se preocupa muito consigo mesma, com sua beleza, seu trabalho, suas amigas e deixa o marido de lado. Homem não gosta destas coisas.

_Você pensa assim mesmo?

_Sem dúvida, Susana, se me permite, a mulher está se excedendo em todas as áreas. Está além dos limites. Uma mulher decente deve se preocupar com o lar, com os filhos. Acho um absurdo deixar uma criança com a babá ou numa creche.

_Você tem certeza de que é deste século?

Roberta Célia detém-se, surpresa. Susana desculpa-se – desculpe, Roberta, mas pensei que estava apenas ironizando. Acha mesmo que a mulher deve só ficar em casa, cuidando dos filhos, do marido?

–Não, eu não disse isso. Seria uma idiota. Pelo contrário, acho que a mulher tem que sair, tem que badalar, ir às lojas, ao cabeleireiro, cuidar da aparência. Afinal tem que estar bonitinha quando o marido chegar do trabalho. Mas não deve se afastar das atividades sociais, das amigas sempre prontas para uma fofoquinha, você sabe, deve ter um monte assim, no seu jornal.

–Não, não. Ou melhor, deve ter sim. Sempre tem, em qualquer lugar.

–Mas você não é ligada, né? Já percebi. Você é voltada para os estudos, à pesquisa, à investigação – termina a última palavra enfatizando sílaba final, com certa censura. Reduz o tom e prossegue, entusiasmada – me diga uma coisa, Susana, mas não me leve a mal: será que não foi por isso que se separou?

Susana cala-se por um instante, aturdida.

– Deve ser, sim. Deve ser.

– Eu não disse? Aí tá o erro da mulher trabalhar fora. Veja que o seu exemplo reforça a minha tese. Mulher na rua é desperdício!

– Meus Deus, ela fala como um homem!

_Que disse?

_Roberta, você queria falar comigo sobre um assunto urgente, mas até agora, não disse a que veio. Seria melhor, começarmos, não acha?

Roberta Célia respondeu, eufórica.

_É claro, é claro. Preciso da sua ajuda. Inclusive, em casa, estive pensando, que em troca, posso ajudá-la na sua biografia. Sei de muita coisa do meu sogro.

_Sim, acho que você será muito útil.

Susana observava que Roberta Célia tinha o hábito de puxar a franja vermelha para trás num movimento continuo, parecendo ansiosa.

–Pois é, nem sei como começar. O problema todo está na cabeça dura de Dona Úrsula. Você sabe que ela tem uma casa, quer dizer, uma casa que não é só dela, é de dona Carmen, do irmão, o Carlos e minha.

_Sua?

_Sim, porque pertencia ao Luis Afonso também.

_Mas não haviam doado a ela?

_Diz ela, ninguém viu documento algum. Dona Carmem disse que foi só de boca e na ocasião em que o velho era vivo, todos concordaram. Porém, nunca corrigiram a situação, nunca registraram no cartório o consentimento de todos, entende? Eu já estive falando com um advogado a respeito. Ele foi taxativo. O Luis Afonso tem direito.

_Mas pelo pouco que sei, o irmão nem se interessa pela casa.

_É, esse nem se liga em nada. Além disso, o coitadinho ta numa fria, que dói. A barra pretiou pro lado dele.

Susana levantou-se dirigindo-se à janela, olhando de soslaio para a rua. Fingia desinteresse.

_Do que se trata?

_O namorado morreu.

_Namorado?

_É, ficou vexada? Você, uma mulher moderna, imagina a irmã e a própria Dona Úrsula! elas tentam abafar, fingem que desconhecem a viadagem do irmão, mas eu sei de tudo. O Tal Carlos tem um namorado há muito tempo. Agora o dito cujo morreu e o Carlos quer fazer o enterro aqui, na terra dele. Parece que os funerais serão ainda nesta semana. Vai trazer o corpo da Holanda.

_Mas dona Ursula não sabe de nada.

_Aquela vive alienada num mundo paralelo. Pouco liga para o irmão.

_Mas e Carmem?

_Ah, esta vem com o irmão, está dando todo o conforto a ele. Deve ter se atualizado ou pelo menos, fingindo que é apenas um amigo querido. Pelo que me contaram, ele quer a família inteira no velório do namorado, ou marido, sei lá. Mais conveniente, parceiro, não é mesmo?

_Tanto faz.

Roberta Célia faz um silêncio proposital. Com um leve suspiro, resmunga.

_Ele gosta muito de mim. Ele me quer junto – em seguida, altera a voz, agitada - será um funeral maravilhoso, estilo americano. Já alugou todos os serviços. Já pensou que luxo? Ficaremos hospedados numa mansão, com várias dependências, salas especiais com hometheater, bons quartos. Um hotel 5 estrelas. Era a vontade do amigo.

_Pobre Dona Úrsula.

_Mas o Carlos é muito rico, se deu bem no estrangeiro. Você sabe que ele trabalhou no ramo de construções na Arábia Saudita? Dizem que até mexia com petróleo. Essa gente é esperta, diversifica os empreendimentos. Diversifica até os relacionamentos, não é mesmo? – faz um gesto malicioso, escondendo a boca com a mão em concha. Logo prossegue no tom anterior - faz o que quer do dinheiro, tanto que aquela casa mixuruca nem lhe apetece.

_Então você quer que eu convença Dona Úrsula a ceder a tal casa para você.

_Pra mim, não. Para todos.

_Mas os outros não querem. Pelo que eu saiba, a irmã desistiu há muito tempo. Para ela, são águas passadas. Dona Úrsula mesma me contou.

_Pode ser, mas a minha parte tem que ser dividida. É justo, você não acha? Pra que aquela velha vai querer uma casa que nem usa? Pra pagar os remédios dela?

_Não sei, mas até para isso. Só quero lhe dizer uma coisa, Roberta Célia...

_ Por favor, só Roberta.

_Está bem, Roberta. Eu não posso me envolver nisso, por preço nenhum. Não posso trair a confiança de Dona Úrsula. Pra mim, ela é uma mulher autêntica, às vezes até severa demais, porque diz o que pensa sem meias palavras. Mas eu gosto muito dela.

Roberta Célia a analisa, examinando-a detidamente, como se quisesse mostrar que sabia alguma coisa de seu passado, de sua vida, quase uma ameaça.

_Parece que você se agarrou nela como uma tábua de salvação.

_Por que está dizendo isso? – Susana afasta-se da janela e volta a sentar-se. Segura entre os dedos, um folheto que estava sobre a mesa, na tentativa de tomar alguma atitude, como apoio.

_Você sabe.

_Não, eu não sei do que está falando.

Roberta Célia reflete um pouco, em silêncio. Abre a bolsa e tira uma carteira de cigarros, descolando o rótulo dourado, delicadamente. Retira um, levanta a cabeça observando a insegurança de Susana e faz o pedido: – sei que não é conveniente, mas posso ficar próxima à janela. Sou viciada, sabe?

_Sei o que é isso. Também fumei um dia.

Roberta Célia, que já se havia levantado, volta-se sorrindo, uma alegria infantil – é verdade? E como deixou?

_Ah, foi muito difícil. Com apoio, remédios. Mas antes de tudo, foi preciso decidir-me.

_Você tem razão. Decisão! Esta é a palavra chave – debruça-se na janela, enquanto acende o cigarro. Olha para baixo, sem nenhum interesse. Após a primeira tragada, jogando a fumaça para a rua, prossegue, contrita – eu sei que não vou conseguir. Não sou forte como você. Não tenho coragem, ousadia, força de vontade. Sou uma fracassada, sabe?

Susana sente-se importunada com o assunto, mas não tem como impedi-la. Sabe que Roberta Célia invade a sua privacidade, fazendo um jogo, do qual ela não conhece ainda o motivo. Tenta, pelo menos, mostrar-se interessada, evitando parecer ansiosa.

– Você está exagerando. Todos somos capazes de deixar o vício.

_Não. Há pessoas especiais, como você, outras são comuns, como eu.

_Se você pensar deste modo derrotista, nunca vai conseguir mesmo.

Roberta Célia dá uma última tragada e atira displicentemente o cigarro pela janela. Ensaia alguns passos em direção à Susana e teatralmente, segura-lhe as mãos.

_Que bom, Susana, que bom que quer ajudar-me. Eu sinto que você quer me passar esta força, esta vontade e lhe agradeço muito por isso!

_Ora por favor, Roberta – intervém, embaraçada - não cheguemos a tanto. Sente-se e vamos conversar. Espere, quem sabe você toma alguma coisa? Um licor, um vermute, talvez? – afasta-se, livrando-se da situação. Dirige-se a um armário antigo, com algumas bebidas.

Roberta Célia, por seu lado, revela-se muito à vontade com o diálogo.

_Se você tiver um licor de abricó, eu serei eternamente grata! Adoro, acho que é em virtude de um sabor da infância, uma coisa natural do subconsciente.

_Mas como assim? Como pode associar um sabor de licor à infância?

Roberta Célia dá uma risada exagerada, mostrando a gengiva vermelha e novamente, ajeitando o cabelo com as mãos.

_Ah, menina, não pense bobagens. Sou viciada no cigarro, mas em bebida, não.

_Eu não afirmei isso. Apenas estranhei esta sua lembrança.

Roberta Célia junta os joelhos e pousa as mãos delicadas, baixando a cabeça, mostrando-se triste. As unhas são vermelhas e longas. Raspa suave a meia de náilon.

_Na verdade, trata-se de uma mistura de emoções. Lembro de minha avó, que era de São Luís do Maranhão. Quando a visitava, tinha contato com a fruta, que ela adorava. Até costumava fazer doce de abricó, também o licor, sem dúvida. Sabe Susana, ela me pegava no colo, com suas pernas imensas, suas ancas gordas, fortes, me aninhava daquele jeito gostoso, gentil. Eu, pequenininnnnha – estica a sílaba, num sibilo de voz – ali, me ajustando naquele corpanzil, um conforto só. Ela tinha o cheiro doce, sabe daquele sabor do abricó, da fruta macia e agradável. Ah, lembranças da infância – enxuga uma lágrima com a ponta do mindinho – desculpa, não dá para evitar.

Susana procura uma bebida qualquer, tentando satisfazer a mulher e acabar de vez com o assunto. Não possui o licor de abricó e serve-lhe o primeiro que encontra.

_Se não se importa, vou lhe servir um Cointreau.

_Você só bebe coisa de primeira, heim? Dizem que este licor é um dos melhores! É feito de laranja. O Luis Afonso me explicava que a fruta não podia tocar no álcool, por um bom tempo, até desprender o seu bouquet, é assim que se diz, o aroma, não é?

_Me parece que você entende mais do que eu. Este licor ganhei de um amigo da redação.

_Você tem muitos amigos, né? É bom a gente ter amigos, sempre tem uma mão pronta a nos ajudar. Não é o meu caso. Depois que morreu o Luis Afonso, fiquei meio perdida no mundo.

Susana entregou-lhe o licor e dirigiu-se à poltrona. Ficou em silêncio, observando-a deliciar-se com a bebida. Tudo em Roberta Célia parecia desproporcional, desde os expressões dos sentimentos até os gestos triviais. Que pretendia aquela mulher na sua casa? Que troca era essa que supunha poder aceitar? Havia, no entanto, alguma coisa oculta, que não estava bem esclarecida. Resolveu então, clarear a situação.

_Bem, Susana, conversamos sobre vários assuntos, mas não está explícito o que deseja de mim. Eu sei que você quer a minha ajuda para convencer Dona Úrsula a fazer o inventário, ou desistir da casa. Mas, há algo mais. Você aludiu à dependência minha em relação à Dona Úrsula, estabeleceu-a, inclusive como uma tábua de salvação. Por quê?

_Susana! O seu licor está divino! Sabe que o Luis Afonso tinha razão? O Cointreau é melhor que o de abricó. Naturalmente, que o sabor da minha infância é que predomina no meu sentimento, mas...

_Mas chega deste assunto, Roberta Célia.

Toma o último gole, olhando nos olhos de Susana. Replica: apenas, Roberta, por favor.

_Então seja clara. O que quer de mim?

Roberta Célia larga o cálice sobre a mesa e coloca a carteira de cigarros dentro da bolsa. Volta-se para Susana e conclui: se estivesse nervosa, era o momento de pegar outro cigarro. Mas não se preocupe – antecipa-se, rápida, ante o olhar intrigado da outra – não é o caso.

_Então?

Susana funga, assoando uma inesperada alergia nasal. Silencia. Suspira fundo e encara Susana com serenidade.

_Bem, Susana, já que precisamos abrir o jogo, vou ser sincera com você.

–Estou esperando isto desde o primeiro momento – responde impaciente. A outra concorda, tranquila: eu sei. Mas há um tempo para tudo. A bíblia não diz que há um tempo para plantar e outro para colher?

–Roberta, me poupe dessas alusões à bíblia, por favor.

_Então está bem, Susana. Vou ser objetiva. Me parece que tem problemas demais. Problemas que podem evoluir para uma situação muito perigosa.

_Seja mais clara.

_Na verdade, eu só tenho você pra convencer a velha, mas você deve ter mais confiança em mim, porque sei coisas muito graves do seu passado.

Susana dá um salto da poltrona.

–Eu não tenho nada a esconder, você está louca?

–Não se desespere.

–Não estou desesperada. Estou achando tudo isso um grande absurdo, você vir na minha casa para fazer-me ameaças. O que você sabe sobre mim, afinal?

–A história triste de seu pai.

Susana sente um soco na boca do estomago, sem esboçar qualquer reação. Ensaia alguns passos, afastando-se de onde estava, juntando-se ao móvel das bebidas. Roberta Célia, ao contrário, continua na poltrona, fitando-a tranquilamente.

–Não culpo você, talvez na sua situação, eu agisse da mesma forma. Não é fácil tomar uma decisão que pode ceifar uma vida – Susana a interrompe mais uma vez, agora quase em desespero – o que você está dizendo, que história é esta? – Roberta prossegue convicta e serena – por isso, eu disse naquele momento que você era especial, que você toma as decisões com coragem, ousadia. Mas tudo tem um preço, Susana. Você deve à justiça, você sabe. Você não está limpa como todo mundo pensa. Então, eu pensei, podemos fazer uma troca. Eu não conto a ninguém o que sei e você convence a velha a dividir legalmente a casa. Quem saber doá-la em memória do Luis Afonso.

Desta vez, é Susana que mexe no cabelo, puxando-o num rabo, envolvendo-o numa única madeixa, logo desmanchando-a por completo. Volta-se para ela, os olhos congestionados, a voz rouca, insegura.

– O que você sabe?

–Tudo, minha querida, tudo.

– Não há nada contra mim. Eu não devo nada à justiça –defende-se, indecisa.

–Você tem certeza, Susana?

– O que você quer? Fazer-me chantagem, é isso? Pois saiba que não vou entrar na sua, não sou louca para entrar neste delírio.

_Se você pensa assim.

_Eu não penso assim, as coisas são assim. Sou uma mulher honesta. Quem é você para me dar lições em moral, para me ameaçar?

_Você está exagerando, amiguinha.

_Exagerando? Você quer usurpar-me, quer convencer-me a tirar os bens de outra pessoa e diz que estou exagerando?

_Você está me insultando, Susana.

_Pois estou sim. Você é uma idiota, se pensou que eu ia cair nesta sua paranoia, nesta armadilha que está tramando! E se me dá licença, saia da minha casa.

Mas Roberta Célia é fria, precisa. Joga a isca com objetivo, com certeza: se você considera uma paranoia matar o próprio pai, então...

Susana não se controla e a xinga, com ódio, correndo até ela e segurando-a pelo braço, agressiva – o que está dizendo, sua vadia?

_Me largue, não me insulte. Eu não sou vagabunda. Aliás, não sou a divorciada, cheia de amiguinhos, ganhando presentes...

Susana aplica-lhe um tapa com raiva. A outra enche os olhos de lágrimas e se afasta alguns passos, em silêncio. Tenta recuperar-se, pega a bolsa que estava estirada num canto da poltrona e retira novamente a carteira que havia guardado. Por fim, acrescenta.

– Eu fiz a minha parte. Tentei ajudá-la, certo, que queria a sua ajuda em sua contrapartida, mas você é cabeça dura, que nem a velha. Então dane-se. Você sabe onde procurar-me, se voltar atrás.

_Saia da minha casa.

_Se quiser saber detalhes, me procure. Não descobri tudo à toda. Tudo tem um motivo. É a minha chance e também a sua. Nossos destinos estão relacionados. Agora, depende de você, tocar o barco, ir à frente ou retroceder.

_Eu já pedi que saia da minha casa. Se ficar mais um minuto, vou chamar a policia.

–Isso, faça isso. Chame a policia. Quem sabe eu falo agora o que está aqui, engasgado na minha garganta, mas não quero brigar com você, pelo contrário, quero paz. Sou uma mulher de paz, da concórdia, do amor ao próximo. Não sou o que você esta pensando.

–Ah, tenho certeza de que não. É muito pior. É uma cobra cascavel.

–Que pena, Susana, como baixou o nível. Só para encerrar: eu ainda não desisti de ajudá-la. Me procure. Eu vou explicar tudo a você. Vou livrá-la deste carma, desta culpa, deste sofrimento. Sei que o que você fez foi por amor, foi o melhor para ele, coitadinho. Eu, ao contrário, não teria coragem de tirar a vida de um animal, quando mais de um ser humano, mesmo porque nunca se sabe se ele não teria alguma chance, a ciência está aí para comprovar a todo instante que as pessoas se recuperam. Mas sua alma, sua palma. – Susana digita rapidamente no celular. Roberta Célia a interrompe, aproximando-se e colocando-lhe a mão no ombro – não, por favor, não chame a policia, não se exponha. Eu vou embora. Mas tenha certeza de que vou procurá-la. Ainda seremos grandes amigas.

E afasta-se empurrando a porta com delicadeza. Susana a fita com um sentimento de impotência que atiça ainda mais o seu ódio. Quando a outra desaparece, desaba num choro convulso, em absoluto desespero. Corre ao banheiro, abre desajeitada, a porta do armário, as mãos tremulas, indecisas. Suas pernas parecem não obedecer o corpo, bamboleando no assoalho frio. Retira uma pílula de um vidro de remédios e engole em seco. Põe as mãos na cabeça por alguns segundos, olhando-se desorientada, no espelho. Depois, lava o rosto várias vezes, tentando apagar da mente a imagem absurda de Roberta Célia acusando-a. Dirige-se ao seu quarto com o celular na mão e digita o número de dona Úrsula. Não consegue evitar o choro, enquanto fala.

–Dona Úrsula, me ajude, preciso da senhora, preciso muito da senhora, por favor!

– Minha filha, que está acontecendo?

–Não posso explicar-lhe agora, por telefone. Precisamos conversar. Não tenho ninguém nesta minha vida, só a senhora.

– Então, que farei?

–Sei que não pode vir, mas não tenho condições de sair....estou muito abalada – interrompe-se, arrependida por ter envolvido a pobre velha em seu drama íntimo. Então, tenta desfazer a preocupação – espere, estou sendo egoísta, o que me aconteceu vai passar daqui a pouco, vou melhorar e logo que nos encontrarmos, eu lhe explicarei tudo. Não se preocupe comigo.

– Aconteceu alguma coisa grave? Você perdeu um ente querido?

–Não, não é nada disso.
¬

–Então eu vou aí.

– Não, a senhora não pode sair a esta hora da noite. Por favor, não. Lembra-se como é perigoso? Se for preciso, eu vou aí.

–Não seja boba, eu tomo um táxi. Não sou uma velha inútil. Só me dê o endereço, que esqueci. Se guardei na agenda, já perdi. Por favor, Susana, se quer ajudar-me também, deixe-me ir. Deixe-me ajudá-la, não pense que é só por você. É um gesto egoísta meu. Quero provar que sou útil a alguém. Por favor, deixe-me ajudá-la. Quero provar a mim mesma, que sou um ser vivo.

Susana cala-se, pensativa. Sente um ardor, uma força inexplicável na voz de dona Úrsula, que teme humilhá-la. Ela ainda insiste.

–Por favor, você acredita em mim, não? Acredita que eu sou capaz de alguma coisa?

–Está bem Dona Úrsula. Eu concordo, mas tome todo o cuidado, chame o taxista da esquina da farmácia, aquele que já a conhece.

Do outro lado da linha, ouve a voz inspirada, quase feliz de dona Úrsula.

–Pode deixar. Estamos combinadas. Eu vou até ai. Sabe que independente do seu sofrimento, você proporcionou uma certa alegria, me desculpe dizer, mas, me lembrei de Luisinho. É como se eu estivesse fazendo alguma coisa por ele, entende?

–Entendo.

–Então, vou desligar. Achei o seu endereço. Está bem aqui, na primeira página. Me espere ai, quietinha, está bem?

–Dona Úrsula...não desligue.

–O que foi?

–Quero dizer que a amo. Que a amo muito.

Úrsula sorri, emocionada. Reclama, com voz fraca – sua boba – desliga o telefone e prepara-se para sair.

quarta-feira, fevereiro 17, 2016

A FAINA DA BRASA

Animais dão-se as mãos nas campinas

verdes, que se espraiam olhar afora.

Vozes que flutuam em zumbidos longínquos

Homens se agrupam na prática eufórica.


Quando eles chegam de mansinho,

deixam os pastos repousar

Deitam as arestas de seu sono

e dormem em flores sem vicejar.


Humanos acendem fogueiras


Perpetuam fogos, parecem lutar

por vitórias que chegam com os arreios

e ferramentas que lá vão provar.


No dia da desova das paixões

Agitam-se, desesperados na rotina

e animais afastam-se, em vão

Da brasa que lhes cede a alma ferina.


Homens violentam seus bordões

Riem, na luta da guerra à vida

Gritam, rudes, na faina da brasa

A morte que chega, sem saída.


Animais caem ao relento

Esbaforidos, sedentos e sofridos

Olhares perdidos nas vagas madrugadas

que anseiam, mas que nada

Se sonham, nem sabem decifrar


A morte é certa, a berrar

na brasa ardente escaldando as carnes

O sangue transbordado na terra ferida


A morte é certa, a berrar


Homens dão as mãos nas campinas

Entoam canções e gritos de guerra

Vibram pelo sangue que mediram

no sereno da fatigada terra.


Animais fracos, mortos em vida

na luta do rodeio desonesto

onde o forte esquece o fraco no labirinto

e a vida se perde no sangue derramado.


Animais caem ao relento

Esbaforidos, sedentos e sofridos

Olhares perdidos nas vagas madrugadas

que anseiam, mas que nada

se sonham, nem sabem decifrar

A morte é certa, a berrar

a brasa ardente escaldando as carnes

o sangue transbordado na terra ferida


Homens dão as mãos nas campinas

Cantam canções de vitórias e gritos de guerra

Vibram pelo sangue que mediram

nos serenos da terra gripada


Animais fracos, mortos em vida

na luta do rodeio desonesto

onde o forte esquece o fraco no labirinto

e a vida se perde no sangue derramado


terça-feira, janeiro 19, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO IV

HOJE TERÇA-FEIRA, 19 DE JANEIRO DE 2016, PUBLICAMOS O QUARTO CAPÍTULO DE NOSSO FOLHETIM. ESPERO QUE GOSTEM E CONTINUEM LENDO A SEQUÊNCIA DOS CAPÍTULOS.A RELAÇÃO DE ÚRSULA E SUSANA, CADA VEZ A COLOCA FRENTE A FRENTE COM SEUS PROBLEMAS E COMO CONSEQUÊNCIA UM APRENDIZADO QUE VAI SE EFETUANDO. CONFLITOS QUE SURGEM E ENFRENTAMENTO COM SEUS MEDOS E ERROS DO PASSADO. UMA HISTÓRIA DE AMIZADE E AFETO.

Capítulo 4

Às vezes, me surpreendo pensando em meu pai. Nem sei se em virtude da visita, mas as lembranças me vêem tão nítidas, tão poderosas, que tenho a impressão de experimentar as mesmas sensações daquela época. Esta noite, eu até sonhei, imagine, eu sonhar, eu que permaneço eternamente em minha janela, olhando o mundo, deixando que as coisas aconteçam, esperando que os últimos rumores da noite sosseguem dando lugar ao silêncio perturbador. Você vê, Rita, como são as coisas: fico ouvindo os primeiros gorjeios das aves. Sabe aquela espécie de jacarandá, quase na esquina, defronte à farmácia, ela é um recanto de pássaros. Se eu dormisse, por certo me acordavam, não tenha dúvida. Eles começam devagarinho a fazer seus primeiros contatos. É um bem-te-vi daqui, uma alma de gato dali, uma tesourinha, lembra desse? Elas vivem aqui, nas cercanias. Mas esta noite, aconteceu algo impressionante comigo. Eu adormeci, nem sei quanto tempo, claro que não foi grande coisa, não. O fato é que desandei de minha janela. Adormeci sentada na poltrona, os braços apoiados no parapeito, como uma infeliz. Mas o bom disso tudo é que sonhei com meu pai. Há tanto tempo isso não acontecia comigo, que estou quase feliz. Nem Dulcina me tira do sério, hoje.

Meu pai era um homem extraordinário, tinha lá suas teimosias, suas crenças antigas, mas nós sabíamos qual era o seu limite. Como ele trabalhava na marcenaria, um galpão enorme que ficava no nosso quintal, estava sempre por perto. Tinha consigo que os móveis que reparava eram obras de arte. Usava de cuidado, esmero, carinho e nós nem sonhávamos em mexer em nenhuma daquelas peças. Quando punha o olhar numa peça, se detinha em cada detalhe, a ponto de transformar um móvel danificado, num outro objeto, que não aquele. Era perfeccionista, não arredava pé, até dar-se por satisfeito. Mas quando estava conosco, principalmente à mesa, quase não levantava a cabeça. Era muito severo, de poucas palavras, talvez o seu universo se resumisse no seu trabalho e as coisas da casa não inspiravam tanto desvelo. Chegava a ser ríspido, distante, mas eu o sentia sempre por perto. Talvez porque o compreendesse. São estas coisas, Rita, que somente a alma pode absorver.

Numa dessas noites em que nos preparávamos para a janta, ele apareceu à porta tão estranho que minha mãe virou-se de súbito de suas panelas, como se não reconhecesse aquele homem. Seu olhar pairou no ambiente, cenário taciturno, modelado ao momento de indecisão em que passávamos. Meu irmão nem percebeu nada de diferente e ficou manuseando soldadinhos de chumbo sobre a mesa, preocupado que estava com a estratégia de guerra que engendrava em sua mente. Eu larguei o livro da Senhora Leandro Dupré, quase escondendo-o como se o olhar de censura se dirigisse a mim, em virtude da história tratar-se de uma mulher desquitada. Aproximou-se e dirigiu-se a um canto da peça, encostando-se no parapeito da janela para dar uma última tragada no cigarro de palha. Ali, voltava o rosto para a rua e deixava-se ficar, perdido, perscrutando o silêncio da rua. Minha mãe aproximou-se e disse-lhe alguma coisa quase em sussurro, mas alertei os ouvidos e suas palavras ainda ressoam em minha mente.
¬

_Você está certo que deve abandonar o barco, homem? Você não é um rato que abandona o navio. Aquela casa é sua, é a sua vida.

_Mas não tenho como lutar. A hipoteca vence daqui um mês. Se não entregar, vão tomar o maquinário, as minhas ferramentas. De que a gente vai viver?

_Úrsula sabe do piano?

_Como assim? Ela é uma criança e eu proíbo a você que fale alguma coisa.

_Mas precisa saber do piano.

Eu estremeci, minhas pernas batiam uma na outra como se uma enfermidade produzisse aquele movimento involuntário. Não conseguia afastar os olhos daquele quadro, pendurado na janela, tendo como fundo os últimos raios do dia. A noite se dissipava, mas a penumbra não esmorecia com a lâmpada fraca que guarnecia nosso teto. Meu irmão voltou para os soldados de chumbo, aproveitando que a conversa não lhe interessava. Senti o olhar de meu pai pousado por um momento em nossas figuras, então baixei a cabeça e fingi folhear o livro.

_O piano não. O piano fica!

_Mas eles sabem que tem um piano na casa. Se está tudo hipotecado!

_Mas não vão hipotecar o sonho de Ursula! Ah, isso não.

_Você sonha demais, homem. Pois se é assim, lute, lute pra não entregar a casa. Vamos pensar numa maneira, tem que haver uma maneira!

Ao dizer isso, ela voltou para as panelas, encerrando o assunto. Provou o molho, temperando o dorso da mão e esbravejou, em seguida, impondo a arrumação na mesa. Que Carlos guardasse os soldados e eu levasse aquele livro para o quarto. Que pusesse a mesa, que a comida estava pronta. Meu pai jogou a bagana fora pela janela e afastou-se por algum tempo. Quando voltou, o rosto ainda molhado, sentou-se no lugar de costume, fez as orações de rotina e não mais levantou a cabeça. Eu suspirei aliviada, meu piano estava salvo. Na verdade, o que era de minha avó.

Mas, por hoje chega dessas lembranças de antanho, Rita. Quando a gente fica velha, parece que o passado bate a nossa porta, todo o tempo. Mas não pode ser assim, você não acha? O mundo precisa está aí, para mexer a sua engrenagem e tocar pra frente. Mesmo que pessoas como eu, não tenham mais esperança nesta vida. Pensando bem, viver do passado, ainda é uma forma de viver.

Daqui a pouco, sairei com Susana. Ela tem lá os seus problemas, suas dificuldades, mas nada que não possa ser resolvido, na idade dela, no mundo em que vive, na geração de liberdade em que foi criada. Somos mulheres muito diferentes, eu nasci num mundo em que a mulher era dedicada ao marido, que viera de uma escola de mãe para filha, em que a mulher vivia de suas lides domésticas, suas habilidades com o crochê, a culinária, o cuidado com os filhos. Imagine que a Senhora Leandro Dupre, assinava o nome do marido, nunca o de solteira para entregar-se à literatura. Mulher escritora era mal vista naquele tempo. A maioria usava pseudônimos. Eu gostava tanto dos livros dela. Diziam muito o que ia em nossa alma. E o romance de Tereza Bernad, ela discutia o tema da mulher desquitada, um escândalo para época. Depois, veio “Éramos seis” e eu não parei de lê-la. Dona Lola não era a mulher submissa que outros escritores pintavam, ao contrário, era uma mulher de sua época, que se dedicava ao marido e aos filhos, que compreendia o seu mundo, o mundo feminino sem questionar, apenas isso. Seus questionamentos eram contra a injustiça, a desumanidade, o poder da guerra, do dinheiro, do preconceito. Era uma mulher autentica.

Escute, Dulcina acaba de atender a porta. Não quero confianças com ela, é extremamente mal criada.

Dulcina afasta-se da cozinha, rapidamente, enxugando as mãos no avental e pára por um minuto e mira-se no imenso espelho do corredor. Limpa o suor da testa com o dorso da mão direita, enquanto que com a outra, ajeita a gola da blusa, por debaixo do avental. Imagina ser o entregador de gás e sente um certo frenesi. Aquele homem jambo, sorriso aberto, lhe desperta uma certa atração, que a desconcerta. Abre a porta e sorri, escancarada, mas logo cerra os dentes, irritada. Espantada, estica o pescoço, numa interrogação.

Abre a porta e pára espantada. Estica o pescoço numa interrogação.

_Bom dia, Dona Úrsula está me esperando.

_Pra que?

_Bem, temos um encontro.

_Aquela lá? Minha filha, ela não sai nem que o prédio pegue fogo.

_Mas eu posso falar com ela?

Dulcina faz um muxoxo. Em seguida, com a mão esquerda espalmada, pede que espere. Afasta-se alguns passos e acrescenta: _vou anunciar.

_Não é preciso, Dulcina.

Dulcina se surpreende com a chegada inusitada da patroa. Explica-se, embaraçada.

_Ah, a moça tá aqui, lhe esperando, eu ia...

__Não se preocupe Dulcina. Parece que você tem muito a fazer na cozinha.

_Ih, tem caroço neste angu! – e afasta-se rebolando os quadris.

_Não lhe dê importância, Susana. Dulcina é muito ousada. Às vezes, desconhece o seu lugar.
_Não estou nem um pouco preocupada, Dona Úrsula. Ela é um tipo bem engraçado. Mas como está a senhora?

Úrsula percebeu os traços negros sob os olhos acinzentados de Susana, que lhe realçaram sobremaneira a pele clara. Os cabelos, hoje melhor acomodados, num penteado despojado, sem aquele esticado para trás do primeiro dia. Caíam-lhe levemente no rosto, voltados para o lado esquerdo. Pareciam mais curtos.

_Você cortou o cabelo, Susana?

Susana sorri, um tanto desconcertada, não esperando a pergunta. Mas sente-se feliz, em ser notada.
¬

_A senhora percebeu?

Imagine, se eu perguntei... Às vezes, acho que esta menina não pensa o que diz. Mas vá lá, tenho que ter paciência. Tenho que ter tantos predicados, que me assusto. Como que ser paciente, sem ser arrogante, ser delicada, sem ser falsa, ser educada, sem ser bajuladora. Os velhos tinham de se libertar disso. Na verdade, acho que a mulher nunca se libertou de suas convenções. Por mais que se diga que a mulher evoluiu, ela nunca terá a mesma liberdade dos homens. Nunca teve uma liberdade real. Sempre deve alguma coisa.

_Então dona Úrsula, está preparada para sairmos? Por um momento, pareceu-me que ficou indecisa.

_Não, de modo algum. Estava apenas pensando. Na minha idade, a gente pensa muito, sabia? – já estou me justificando. Que fazer, fui criada para ser educada. Além disso, tenho os meus próprios valores. _ Estou até bem disposta.. Ainda há pouco estava dizendo à Rita ... – ah, não devia ter mencionado Rita, ela jamais entenderia – eu disse Rita?

_Disse.

_Ah, falava com minhas flores.

_Ah, sim.

_E dizia que há muito tempo não sonhava com meu pai. Hoje tive boas lembranças. Mas se está pronta, podemos ir.

Dulcina observa da janela do apartamento a saída das duas. Dona Úrsula encaminha-se até o carro, com dificuldade. Se não fosse tão esnobe, por certo levaria uma bengala. Uma velha daquelas não devia andar por aí, falseando o pé nas calçadas irregulares. Mas elas que são brancas, que se entendam. Dulcina desiste da cena e volta para a sua cozinha. Espera que o mundo lhe sorria com mais calma, mais leveza, principalmente porque está sozinha. Corre até a sala contígua, liga o aparelho e som e tira da bolsa um cd de pagode. Começa a canta e sacudir-se no sentido aivoso da música, à medida que pega uma almofada aqui, colocando-a na posição destinada, uma revista acolá, enquanto dirige-se para as atividades em que estava.

Da rua, Úrsula levanta a cabeça, através da janela do veículo, como se suspeitasse do descomedimento da empregada. Mas logo a esquece, afogueada pelos raios do sol que parecem queimarem-lhe a retina. Franze o cenho, destemperada, reclamando da dor, suspeitando precisar de oculista. Susana oferece-lhe óculos escuros, que recusa terminante. Aos poucos, se acostumará. É questão de tempo.

Susana tenta criar uma atmosfera amigável entre as duas, tentando ser espontânea. Fala de seu apartamento, do trabalho incessante na redação do jornal, da academia que costuma frequentar bem cedo. Úrsula, por sua vez, comenta sobre Dulcina, sobre o temperamento exacerbado, no despreparo nas atividades de empregada doméstica e finaliza falando de suas poucas qualidades. Sabe, que apesar de tudo, precisa de sua presença, mesmo que a incomode um pouco.

_Por que ela a incomoda?

Úrsula faz uma breve pausa. Certamente concluiria que a causa principal era o próprio comportamento de Dulcina, mas nem sabe porque motivo, resolve ser sincera.

_Na verdade, me sinto bem sozinha. Incomoda-me a presença de Dulcina, o seu vai-e-vem pela casa, a sua habilidade em contar histórias, em se relacionar com as pessoas. Sabe, Susana, talvez eu tenha um pouco de inveja dela.

_Inveja?

Úrsula observa as ruas atentamente, sem olhar para Susana. Fala como se confessasse a si mesma.

_Sim, esta peculiaridade em ser mais aberta, em relacionar-se com facilidade, até mesmo a ousadia... ela é uma mulher livre.

_E a senhora é livre?

_Você acha que existe alguma mulher livre neste mundo, na ampla acepção da palavra?

_Mas a senhora acabou de falar sobre Dulcina...

_Dulcina é exceção à regra. Talvez porque o seu mundo seja muito distante do meu, do seu. Dizem os sociólogos que há duas classes que se permitem a liberdade: a classe dos dominantes, a classe alta, dos muito ricos ou até mesmo artistas e os miseráveis, muito pobres. Obviamente, Dulcina se enquadra no segundo. Claro que ela não é uma miserável, mas vive no meio mais rude, mais tosco que um ser humano pode viver.

_E a senhora nunca pensou porque acontece isso?

_Acho que nunca pensei nisso. As coisas somente acontecem, não ficamos refletindo porque isso é assim, porque aquilo se dá daquela maneira.

_É verdade. Mas a mulher venceu muitas barreiras. Atualmente, nós buscamos a nossa liberdade.

_Você acha? Mas não quero fazer panfletagem. Não me interessa modismos, nem feminismos, nem levantar bandeiras de luta. Estou muito velha para isso.

_Mas voltando à Dulcina, diria que a senhora gosta muito dela, só não admite isso.

_É uma bobagem.

_Pode ser, concordo. Mas o fato de reconhecer que ela a incomoda, já é uma ponte para chegar até ela, para vir a gostar dela. Não acha?

_Dulcina é uma bárbara, inculta, grosseira.

_Talvez a incomode o fato dela ser assim, realmente. É um entrave para o relacionamento de vocês.

_E eu quero me relacionar com aquela lá? Só me interessa a faxina que faz na minha casa.

_Mas ela poderia ser uma companhia agradável. Não a deixaria tão solitária.

Úrsula irrita-se com a insistência de Susana. Intransigente, recusa-se a continuar com o assunto.

_Por favor, Susana, este é um tema encerrado pra mim. Não insista.

_Está bem dona Úrsula. Acho que me excedi.

_Se excedeu sim. Dulcina é problema meu. Aliás, nem é assunto a ser abordado.

Susana calou-se um tanto arrependida de ter insistido. Não quer causar danos à entrevista. Úrsula representa a principal fonte de sua pesquisa e precisa conquistá-la.

Ao chegar ao cemitério, descem no estacionamento. Úrsula, por um momento, torna-se de uma palidez intensa, fraquejando as pernas, encostando o corpo no carro, com dificuldade. Susana a ampara, perguntando se quer voltar atrás. Quem sabe voltam outro dia. Úrsula ressente-se da indisposição, pede uma água, mas não pretende desistir da visita. Na primeira melhora, resolve seguir caminho e desfilam pelos corredores em busca do mausoléu onde estão o marido e o filho sepultado. Susana segura-a pelo braço, apoiando-a. Por um momento, Úrsula retrai-se, considerando uma ajuda desnecessária. Mas evitou mostrar-se ingrata e deixou-se levar pela mão suave e firme da jornalista. Aos poucos, sentia-se protegida e segura.

No túmulo, separaram-se, porque Ursula se antecipou indo ao encontro da fotografia do filho. Aponta, mostrando-lhe, como se estivesse apresentando-o como se vivo estivesse.

Susana observa o comportamento metódico, a maneira cuidadosa como se aproxima, a mão clara e tremula que estende no granito escuro, acariciando levemente a fotografia do filho. Ao lado, uma foto do pai, que ela reconhece ser o grande jornalista, motivo de sua pesquisa. Fazem um silêncio cúmplice. Susana percebe que Úrsula enxuga uma lágrima, com o dorso da mão. Funga, ajeita-se no corpo frágil e faz uma pequena oração. Em seguida, volta-se para Susana e pergunta: _você já perdeu alguém, Susana?

_Sim, minha mãe. Faz muito tempo.

Abaixa os olhos e volta-se para a imagem na lápide.

_Ele é lindo, você não acha?

_Sim, era um rapaz muito bonito. Não lhe deixou netos?

Uma sombra perpassa o olhar de Úrsula, como se o sol se escondesse por minutos e a nuvem negra ocultasse as nuances da vida que brotavam aqui e ali, revelando apenas sombras. Não esconde o ódio que brota inevitável e se espalha pela face e todo o corpo, como um espírito maligno.

_Aquela lá era estéril, uma figueira maldita.

Susana não fez nenhum comentário. A ira já era de bom tamanho. Acomodou-se num degrau do mausoléu, sentando-se reticente. Procurava organizar as idéias, comportar-se de modo distanciado de suas aflições mais íntimas, mas o ambiente soturno a deixava ansiosa. De qualquer forma, respeitava a dor daquela mulher que de alguma maneira confiava seus sentimentos a ela. Procurou mergulhar no tema, como se fizesse parte de sua vida.

Úrsula prosseguiu no mesmo tom agastado, embora com alguma mágoa, um sofrimento escondido que não se limitava apenas ao filho.

_Ela nunca foi uma boa nora. Na verdade, nunca gostou de mim, apenas me aturava. Aliás, fez o que pôde para separar-me de meu filho. Por isso, ele morreu de desgosto.

_A senhora nunca mais a procurou?

_Não tenho motivos. Não vou lhe mentir, eu a procurei sim. Afinal, éramos duas abandonadas pela vida. Ela perdeu o marido, eu o filho. Achei que devíamos nos unir.

_E não o fizeram?

_Não houve clima. Até me aproximei, no inicio. Mas logo em seguida, acabamos discutindo. Não valia à pena. O único motivo que nos unia, não existe mais.

_Mas a lembrança pode uni-las. Talvez vocês tivessem coisas a resolver. Certamente, seriam mais felizes se conversassem, talvez até, se discutissem.

_Como você pode me sugerir isso? Você não sabe quem é aquela mulher.

_Realmente, não sei nada dela, mas diz a experiência que se houver diálogo, tudo pode se resolver.

_É muito fácil falar, é muito fácil. Na sua idade, tudo é possível, tudo se resolve na conversa. Mas não é bem assim, Susana. Há marcas intensas, que nada pode apagar. Há feridas que não curam.

Susana respira curto. Reflete que não é o caminho certo, que precisa de uma brecha para embrenhar-se no tema principal, que é motivo da entrevista. Então dispara à queima roupa. Quem sabe, uma sacudidela, resolve.

_Seu marido parecia um homem muito tranquilo.

_Jaime era um fascinado pela vida. Não deveria ter ido tão cedo.

_Mas foi um homem que viveu a plenitude da vida, que realizou-se como jornalista, como pai, esposo. A senhora o amava muito, não é verdade?

Úrsula adoça a voz. Fala em tom mais baixo e pausado.

_Sim, eu o amava muito – e retribui a pergunta, o que deixa Susana perplexa. Parece que há uma barreira, um obstáculo forte que ela interpõe, sempre que tenta aproximar o tema do marido – e você, ama alguém?

_Eu? Talvez não assim com esta intensidade.

_Mas o que sabe de minha vida? O que você sabe, Susana, leu nos jornais. Não é melhor ouvir mais fontes para conhecer melhor, para saber como era o meu relacionamento com Jaime?

_Sim, sem dúvida. Tem razão, tudo que sei é o que dizem por ai nas revistas, nos jornais ou até mesmo nas redações. Não se esqueça que ele sempre foi exemplo para muita gente.

_Mas você não me respondeu. Você tem namorado?

_Fui casada por dois anos. Felizmente, não tivemos filhos. Atualmente tenho um namorado, mas as coisas andam meio frias entre nós.

_Hoje em dia, as mulheres pulam de galho em galho, de cama em cama. Você acha isso liberdade? Querer ser igual aos homens?

–Não é um assunto para discutirmos neste ambiente, não acha?

_Talvez para você. Pra mim é o lugar ideal. Aqui estão os três homens que amei.

_Três?

_Sim, me refiro também a meu pai. Além disso, é aqui que quero ficar, quando morrer, ao lado de meu filho e de Jaime. Mas se aquela morrer, que fique bem longe de mim. Não a coloquem no mausoléu da família, ela não merece.

_A senhora se refere a sua nora?

_E quem haveria de ser?

_As perdas ficam maiores e mais pesadas, quando se tem amargura, rancor.

_E o que você sabe de amargura. Que experiência tem você da vida, para me dar lições? Ora vá pro diabo! – e afasta-se, resmungando, abandonando em definitivo a discussão que não admitia.

Susana percebe que o destempero de Úrsula é uma maneira de recusar-se a discussão do que considera ponto pacifico, do que não pretende afastar-se um milímetro em suas concepções. Tenta segui-la, mas um gesto de Úrsula a impede, deixando-a estagnada, sem mover um músculo. Empurra-a com o cotovelo, mexendo o corpo descompassado em direção a um banco de pedra, ali perto. Susana a acompanha com o olhar. Deixa-se ficar quieta, pensando numa provável saída. Talvez se pedisse desculpas, se voltasse a falar no filho, se perguntasse alguma coisa agradável sobre o marido. Mas o que dizer frente a uma atitude inóspita, inesperada? De repente, percebe que Úrsula a espia de soslaio, com uma expressão mais triste do que brava. Sente-se encorajada a aproximar-se. Ensaia alguns passos e pousa as mãos delicadas em seus ombros, produzindo uma leve massagem.

_Desculpe, Dona Úrsula. Não quis ofendê-la.

_Mas ofendeu. Eu não vim aqui pra isso, pra ficar escutando idiotices. O meu ouvido não é penico!

_A senhora tem razão. Meu objetivo não é esse, ao contrário, quero aproximar-me da senhora. Olhe, se deixar, posso ser sua amiga.

Úrsula levanta os olhos, amuada. Pergunta como uma criança emburrada. _E você acha que é possível? Não foi um bom começo.

Susana calou-se. Deu meia volta e perguntou: _Não trouxe flores?

_Não, apenas faço minhas orações.

Ficaram as duas, em silêncio. Úrsula se persignou e rezou por alguns minutos, no lugar onde estava. Depois, levantou-se lentamente, sugerindo irem embora. Antes que Susana respondesse, alguém exclamou o nome de Úrsula com indisfarçável surpresa.

segunda-feira, maio 04, 2009

OS PÓS-MODERNOS E EU

Sempre ouvindo o que tem a me dizer, a esclarecer sem que eu peça. Às vezes, sinto o ímpeto indefinível e prático de dizer o que penso. Está aqui, na ponta da língua. Mas não o faço. Como faz toda a gente. Como dizem os que se julgam de auto-estima prolongada. Existe esta expressão? Não sei, mas são os fortes, os que não levam desaforo pra casa, os que cortam o trânsito, arriscam suas vidas e a dos outros, os que imergem em soluções mágicas para sobreviver ou que se interpolam entre os que usam a inteligência e a moral, os políticos, os emergentes, os de pouca índole, os que se “acham”, como se diz na gíria popular. Não consigo ser assim, sou velho, desgastado, educado demais para os padrões pós-modernos. Mas que dizer dos que não tem padrão? Ou não seguem nenhum? Melhor não definir nada, não identificar os projetos e planos que assolam as mentes conturbadas, iludidas e manipuladas pela mídia, pelo outro que já foi manipulado e não sabe, e ainda se julga eficiente e moderno, uma modernidade de superfície, estática e de fachada. Estes são os fortes, valentes, que sobem nas calçadas em seus carros avantajados, que buzinam na frente de hospitais, que trovejam seus sons de funck ou coisa parecida, que olham e não vêem, que cheiram aromas desconhecidos porque desconhecem o perfume mais tenro de flores que não se criaram. São eles, sem duvida, os que estão aqui e ali, as falsas celebridades, os falsos profissionais, os falsos cidadãos. Cidadãos? Nem se situam nestas categorias. Quem sabe, no máximo, imitam o papel das novelas, aquele esperto e audacioso, que ganha a mocinha, não tão mocinha atualmente e vence todas as batalhas para erguer o pulso vitorioso, ganhando e enganando, cultuando o corpo e ocultando a alma. Este é o padrão, o mais utilizado, o que enche de silicone tórax flácidos ou bundas omissas. Esses são os verdadeiros líderes que invadem o país, que assolam a humanidade, que ressurgem dos arremedos infames de gente subordinada, subalterna à mensagem única, padronizada, grotesca, que molha a boca de pequenas gotas, mas não engole o orvalho, não espia a lua, não expia a alma.
Não, não quero ser destes fortes e valentes Stalones ou outros mais recentes. Não, não quero pertencer a esta raça de clones fatigados de energéticos, entediados de viagra, de bebida e drogas. Não, não quero buscar esta coisa igual que consome e se alastra, entre bordoadas e facetas nazistas.
Não, quero viver. E para isso, aspirar o perfume da flor tenra de minha janela, uma janela única que dá pro céu e aquece
a alma. A alma? Pra quem tem.

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A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

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