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sexta-feira, dezembro 17, 2021

O Natal de Michael José



Michael José surgia na rua morna naquela tarde de dezembro. Nem uma lufada de ar, nem uma brisa desavisada para uma véspera de Natal. Era de um ar apertado, quase desconforto. Digo que ele surgia, porque pessoas como ele não transitam pelas ruas, não passeiam, não caminham por um objetivo específico. Michael José surgia do nada, porque para nada ele era designado. Na verdade, achava-se um ninguém, no meio daquela apatia e desapego. Nada o acolhia, nada o libertava de si mesmo, nada mexia com o seu interesse. Era um desamparo que o consumia desde muito cedo, provavelmente desde a infância, se é que a tivera. Também não havia ninguém nas ruas do centro. A cidade estava morta, esperando as celebrações da noite. Ele também estava morto, há muito tempo. Talvez para ele, a data estivesse errada e em vez de Natal, fosse sexta-feira santa, sem ressureição. A vida, para ele, não passava de um eterno domingo de ramos, no qual festejavam o Mestre, para o apedrejarem depois. Ele, ao contrário, não fazia parte de nenhum grupo, nem dos que homenageavam, nem dos que insultavam. Não se encaixava, não se adequava e seu estranhamento com a vida, persistia desde cedo. Talvez fosse o jumento desajeitado que apenas cumpria a rota determinada.
Mas uma coisa incomodava Michael José, isso ele não tinha como negar. Era a fome. A fome era o seu horizonte, o seu registro apagado, o seu prato preferido, o seu discurso não dito, a sua voz inaudível. Talvez fosse o recrudescer dos sintomas, dos períodos em que a morte sinaliza a vertente que deságua em seu sangue, suas veias, suas pupilas, seu coração. Uma dor tão intensa que a fome é só mais um delírio, uma vontade de sumir em qualquer vala que valha seu corpo esquálido. Uma dor premente. Olhar o caminhão de lixo que se aproxima e pensar que pode ser uma parte daquele entulho, produz uma agonia de não ser alguém, de não fazer parte, não ter. Uma inadequação sem saída.
O caminhão foi mais rápido do que ele, não sobrara nada, nem uma latinha, um resto de yogurte ou gotas de Coca-cola, com a garrafa vestida de um Papai Noel corpulento, de bochechas vermelhas e olhar complacente. Por um momento, ele viu o velho sorrir em sua mão, mas só por um momento, porque avistava apenas os dedos trêmulos e escurecidos pela sujeira.
Michael José precisava seguir em frente. Por isso, surgiu novamente em outro ponto da cidade, num canteiro florido da praça, cuidado com esmero para pessoas como ele não sentarem ali. Que entendia Michael José de beleza, de estética, de harmonia? Sua cara poderia ser a representação da pintura de Edward Munch, O grito, cuja figura revela uma profunda agonia e desespero. Seus olhos vermelhos e esbugalhados, quase o avesso da visão, sua boca murcha e dentes podres. Pobre Michael José, quem teria piedade? Ao contrário, o temiam e se pudessem, rasgavam aquela cara encardida para que se afastasse de vez dos locais onde as famílias de bem se encontram, assim como eliminar qualquer resquício que fosse a sua presença. Ele não disse que os seus dias eram todos domingos de ramos, só que para ele, sem os elogios e celebrações, apenas o apedrejamento tão próximo.
Mas Michael José também pensava no Natal e ao sentar ali, tão próximo do canteiro florido, teve vontade de chorar. Pensou na mãe, nos irmãos, no padrasto, no terreno baldio em que construíram a casa, o arranjo de tábuas e pregos, que ajudou a pôr em pé. Quando anoiteceu, eles pararam para festejar o Natal. O padrasto já bêbado, mas tudo bem, era seu direito. A mãe cozinhou no feijão duas latas de leite condensado que tinha ganho na campanha. Foi o pudim do ano. Quando todos comeram, ficaram olhando para o céu e imaginando como seria, quando finalmente morassem na casa em construção. Michael José teve, pela primeira vez, um sentimento de compreensão do todo, de fazer parte daquele mundo, quase uma epifania. Foi seu primeiro Natal. A festa durou aquela noite. Na mesma semana, a prefeitura derrubou a casa por estarem em terreno da União. E não houve qualquer medida social de acolhimento por parte do governo. Mesmo assim, Michael José lembra, foi um Natal feliz.
Agora, ele quase dormiu e foi acordado abruptamente. Não entendia se se tratava de um delírio, o efeito rebote da droga mais intenso ou se estava sendo preso. Olhou para o homem sem ouvir o que ele dizia. Avistou ao longe, alguém que parecia um fotógrafo, que se desvencilhava dos apetrechos e observava o lago, as flores, os pequenos canteiros, as árvores milenares. Ele se aproximou e ficou ao lado do outro. O outro era um policial. Mas não era noite de Natal, que faziam eles ali? A praça estava tão vazia que nem perigo dele cometer algum delito, havia. O homem insistiu para que levantasse e sumisse dali. O fotógrafo investiu-se das câmeras e ligou o flash para refletir as florezinhas que desandavam pelos entornos. Deviam abrilhantar o Natal que logo começava. 
Michael José obedeceu com esforço, tentando levantar-se, titubeando entre se apoiar no canteiro, no banco próximo ou no policial que o aguardava. Seus olhos não se adequavam àquelas luzes fracas, seu coração não se integrava ao Natal que chegava. Por isso, se afastou como devia, era o que lhe bastava. Um Natal que não era o seu. 


Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/photos/viciado-v%C3%ADcio-dependência-de-drogas-2713526/

sábado, julho 15, 2017

UMA PLANTAÇÃO DE BONECAS

Centenas de bonecas se espalhavam no jardim. Quando passeávamos por ali, tínhamos a impressão de que um leilão de brinquedos era instalado ou talvez, tudo procedesse de um longo pesadelo do qual não podíamos acordar.

Passamos por perto, chutando o que nos vinha pela frente, tanto as bonecas, quanto pedras e pequenos objetos de madeira que não significavam nada. Pelo menos, nada relacionado a brinquedos.

Continuamos nosso percurso, um tanto desolados. Parecia também que uma inundação havia deixado aqueles rastros espalhados, a água viera, se acumulara até as janelas, mergulhara os jardins e por fim, retomava ao seu curso, deixando as bonecas arremessadas e sujas ao relento.

Sentia pena. Não podia ser verdade o que diziam. Uma plantação de bonecas, como se fossem espantalhos no meio do milharal? Cada coisa estranha se passava em nossas cabeças, por isso, parei um pouco e tentei refletir sem qualquer emoção. Talvez aqueles objetos fossem apenas fruto de um total desconsolo pessoal, de um desapego de sentimentos relacionados à infancia.

Sentei num dos bancos e o estagiário de psicologia parou alguns segundos me observando. Percebi que ele tinha uma questão que evitava, talvez por imaginar que fosse demasiado primitiva. Então, incentivei-o e ele perguntou, entredentes:

__ Estive pensando... Tudo isso pode ser apenas uma negligência, uma falta de cuidado, mas...

Silenciei por um momento, esperando o desfecho. Como ele deixou o pensamento no ar, conclui:

__Uma falta de cuidado não significa apenas isso, uma negligência. A própria negligência, a falta de interesse revela uma provável tristeza.

__ Então, fico imaginando de onde tantas bonecas? Quem as acumulava? Quem as guardava?

__ Acredito serem de um orfanato antigo.

__ Então os donos que assumiram a casa as jogaram fora.

__ E as deixaram espalhadas pelo jardim? Não há lógica.

Ficamos novamente em silêncio. O círculo se fechava.

Olhei em torno e avistei as bonecas atiradas bem ao longe, tanto que pareciam diminutas. Por um momento, pensei num parque maravilhoso, muito verde e iluminado no qual as pessoas desfrutavam seus pequeniques. Traziam suas maletas vermelhas e abriam os guardanapos xadrez, a toalha, a szarlotka, a torta de maçã ou sękacz, ou os pães de mel em forma de anel. As mães de lenço de seda escondendo os cabelos ruivos e os pais de chapéu, inventando brincadeiras com os meninos. Ah, foi só um pensamento involuntário!

O estagiário sentou ao meu lado e suspirou fundo. Eu sorri e perguntei:

__ Você falou com alguém sobre isso? Alguém da casa?

Não havia ninguém na casa. Talvez nem houvesse novos donos, como imaginávamos. E se tentássemos entrar, e se tentássemos algum encontro?

O dia agora estava mais cinza, mais nublado e as bonecas pareciam pontos escuros no meio do verde arranhado pela lama. Nada do que falássemos nos levaria a algum desfecho.

Por isso, levantei-me e quando pretendia convidá-lo a fazer o mesmo, percebi que fumava uma bagana escura. Talvez tirasse do bolso uma bagana de maconha, já fumada lá mesmo, entre as bonecas. Aquele cheiro adocicado, por um momento me prendeu ao banco, mas resisti e afastei-me uns dez metros. Ele sorriu e permaneceu no mesmo lugar. Queria terminar o processo e parecia se dar bem no que fazia. Sorria de vez enquanto e às vezes, cuspia, limpando a borda da boca com a mão esquerda. Sentia uns arrepios e se mexia todo, sempre sorrindo.

Afastei-me mais alguns metros em direção às bonecas.

Quanto mais me aproximava, mais meu coração me ludibriava descompassado e eu tinha a impressão de não pertencimento ao local.

O cenário ficava lúgubre, áspero, uma dor que me alfinetava, como se um punhal muito fino e afiado me espetasse bem próximo ao coração, entre as costelas, tentando perfurar-me as carnes.

Eu já sentia até o sangue jorrar, mas não era o meu sangue, era um sangue sujo, misturado à lama e brotava das bonecas. Seus olhinhos aguados, as bocas entreabertas, os cabelos queimados, as carecas de plástico cheias de pontos de agulha e fios, aparecendo, como se fossem escalpeladas. Outras de louça, se quebravam no primeiro impacto dos pés.

Dei mais alguns passos na direção delas e percebi que havia sapatos e roupas e óculos e malas. As bonecas não estavam sozinhas, elas tiveram vida algum dia. Elas respiraram, sorriram, foram aos piqueniques nos parques verdes, foram às escolas, às brincadeiras nas casas das amigas, às festinhas de aniversários. Eram lindas as bonecas, eram vistosas e tinham sonhos, muitos sonhos. Agora estavam lá, arremessadas como coisas do passado, coisas usadas e abandonadas, símbolos de uma vida que se rompeu arrebatada pela força, pelo medo, pelo preconceito, pelo ódio, pelo nazismo.

Queria ser como o estagiário e ter a coragem de me afastar daquele mundo, de sorrir de tudo, de zombar da vida e da morte, do ódio e da clemência, da violência e do clamor dos inocentes. Mas não pude.

Meu dever era enfrentar a dor. As bonecas, os brinquedos, os óculos, as malas, as maletas, os sapatos, as mochilas da escola, os retratos na parede. Não podia ficar alheio, precisava abrir bem meus olhos e perceber que elas não mais estavam estiradas no chão, era tudo uma ilusão que minha alma surrada e sofrida criava para me proteger.

Elas estavam bem guardadas entre paredes envidraçadas, em cúpulas de vidro para mostrar a mim e ao mundo que o sofrimento ainda não acabara. Elas estavam lá, me encarando e alertando que tudo voltava como um círculo sem fim. As bonecas de Auschwitz, os laços de fita de Auschwitz, os sapatos, os óculos, os brinquedos, as malas, os retratos na parede de Auschwitz. Elas estão lá e eu jamais as esquecerei. Ficarão na minha mente como semente de dor e horror, como emblema do ódio e da desesperança, do preconceito e da desumanidade.

Quisera ser como o estagiário e nublar minha mente e me desviar da dor, mas não posso.

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