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segunda-feira, julho 30, 2018

As sutilezas da felicidade

Os dias pareciam dissolver-se no anoitecer que se alongava. Ao voltar do trabalho, o seu hábito era tomar o chimarrão, enquanto ouvia o Repórter Esso. Após o jantar, costumava abrir o Correio do Povo para lê-lo na mesa. Era um ritual ao qual estávamos habituados e sempre interagíamos entre algum comentário ou mesmo sobre a dúvida de um vocábulo desconhecido. Olhávamos para meu pai e procurávamos descobrir a solução através de dicas que ele informava. Lembro de minha irmã e eu buscando métodos mais rápidos para chegarmos a algum resultado. Ela pegava os dicionários ou revistas nos quais houvesse palavras semelhantes. Também ele tinha por hábito pesquisar os atlas, cujos mapas mostravam centenas de países e cidades das quais nem imaginávamos a procedência. Até mesmo no Brasil, começávamos com as capitais, depois as cidades do interior e teríamos que procurar no mapa e ao acertarmos, ganhávamos um ponto. Tudo era considerado uma competição, na qual nos esforçávamos para chegar à vitória.

Naquela mesa de toalha branca e alguns ramos de flores bordados, eu o observava e, de algum modo, assinalava um tipo de felicidade, se é que felicidade possa ser classificada. Uma felicidade que eu jamais voltara a experienciar. Talvez, nem minha irmã. Era uma alegria genuína, que nos unia e transportava a lugares e objetos, como se fosse um jogo. Um jogo cujas regras meu pai delimitava com disciplina. Havia um tempo para cada um. Um espaço para que nós também procurássemos palavras no jornal e nos mapas, a saga era por cidades, países, rios ou picos elevados.

Tínhamos um tempo que era só nosso, ao seu lado. Um tempo em que a sua presença era tão importante, que nem nos dávamos conta, por ser uma circunstância natural.

Minha mãe passeava pela copa e vez que outra, surgia da cozinha para também exercer a sua presença com um palpite, mas logo se debruçava na costura, bem ali, ao lado e ouvíamos o som cadenciado do pedal da máquina.

Às vezes, lembro melancólico desse cenário familiar. Lembro de meu pai e ainda o vejo à mesa, com os cabelos negros caídos à testa e bem curtos atrás, as mangas arregaçadas e um sorriso nos lábios iluminado pela luz minguada que surgia pela janela ou talvez pela alegria de despertar-nos a curiosidade e o diálogo entre nós. Agora, resta a saudade, que dói e que aparece assim, de repente, sem pedir licença, a abraçar delicada os pensamentos.

Também recordo minha mãe, coadjuvante naquele momento, envolvida noutra tarefa, mas dando os palpites e de vez enquanto, levantando-se da cadeira, deixando o pedal da máquina de costura e aproximando-se da porta, como quem observa uma cena da qual é cúmplice e se despoja de sua opinião para que a ação prevalecesse. Lembro dela noutros momentos, em que era a protagonista, mas também aqui sinto saudades, porque sei que sua presença silenciosa nada mais era do que apoiar a nossa maneira de ser feliz.

Isso era felicidade? Acho que sim, nas suas sutilezas, nas circunstâncias em que a vida não pede nada, mas nos entrega de mão beijada.

Fonte da ilustração: Artsy Bee in: pixbay.com

segunda-feira, novembro 20, 2017

A bandeira e o eclipse

Minha mãe era muito zelosa com as atribuições da escola. Na primavera de 66, estávamos mais preocupados com o provável eclipse que ocorreria no Brasil, especialmente na região sul, do que outros eventos cotidianos, como por exemplo confecionar bandeiras brasileiras.

Eu já tinha tudo pronto em minha mente, usaria uma chapa de raios x para observar o céu, até que o sol desparecesse e a terra se alinhasse com a lua, escurecendo a cidade.

No balneário Cassino, no entanto, a situação seria ainda mais eufórica e esperada. Afinal, a Nasa lançaria 14 foguetes na praia com a intenção de investigar o fenômeno. Havia muita gente no Cassino, inclusive mais de 300 cientistas do exterior.

Minha mãe, entretanto estava disposta a cumprir a sua tarefa. Levou-me à loja Isaac Woolf e com a paciência das mulheres em escolher tons para os tecidos, permanecemos na loja mais de uma hora. Eram matizes que não acabavam mais. Tons que iam do verde escuro ao mais claro, azul que deveria compor um céu infinito e inatingível, o amarelo que se desmanchava entre o dourado e a gema de ovo, ou outro tom qualquer que somente ela sabia distinguir. Quando finalmente decidiu, a noite já dava sinais de vestir a cidade com sombras. Eu só pensava no eclipse do próximo dia. Ela com as bandeirolas que a professora a incubira para o passeio dos alunos até à praia, para assistir aos dois eventos e mostrar a nossa brasilidade e força nacionalista.

Em casa, com paciência redobrada e após muitos cálculos sobre as escalas, ela desenrolou os tecidos sobre a mesa e pediu que eu a ajudasse a organizar as peças, de acordo com as cores respectivas. Enquanto eu obedecia, ela investia nas figuras geométricas, associando as cores aos desenhos, desde o verde para o retângulo, o amarelo para o losango, além das estrelas representativas dos vários estados. Por fim, tentava transmitir a sua impressão sobre as bandeiras, prosseguindo enfática:

Sei o quanto o eclipse impressiona, sei do poder flamejante dos foguetes que voarão aos céus, que transformarão os olhos e mentes em memórias jamais esquecidas. Mas estas memórias devem ser acompanhadas pela nossa cidadania, a nossa percepção de nação e isso só acontece, se tivermos um símbolo, um emblema, que nos identifique como nação, que represente o nosso povo e nosso solo, enfim a natureza, além da paz que deve ser prepoderante entre os povos.

Já ouvindo a história que parecia não terminar, concordei que a professora tinha razão em querer confeccionar as 24 bandeiras para a nossa turma que saudariam o eclipse e os foguetes.

Ela retificou: mais do que saudar, vai mostrar a todos, a presença do Brasil neste evento e mais do que nunca o nosso símbolo maior será a representação absoluta.

Naquele momento, já me interessava em levar a bandeira, agitada e altiva, junto com os colegas de classe, convicto que fazia parte do grande evento. Só despertei de meus pensamentos, quando ouvi o barulho metálico da máquina de costura, aprumada em desvendar caminhos que levassem à perfeição.

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