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quinta-feira, junho 30, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 10º CAPÍTULO

No capítulo anterior, Júlio conversara com duas pessoas: Lucas, o farmacêutico que o procurara para acusar o médico Ricardo de que sua filha fora assassinada por ele. No dia seguinte, conversara com Sara, que dissera que os crimes foram elaborados pela maestrina Rosa. Apesar de ouvir as suas justificativas, Júlio estava decidido a conversar com o médico, primeiramente. Não podia sair acusando todo mundo e quanto à Rosa, mais lhe parecia um ciúme, por um motivo ainda obscuro, que ele ainda procuraria descobrir. Voltamos com o nosso folhetim policial e com o desenrolar da trama, saberemos quais são as justificativas de Rosa. A seguir o 10º capítulo de nossa história.

Júlio esforçou-se para conversar com Ricardo Silveira, o médico que passara de plantão toda a noite no hospital. Sabia que em dado momento, o encontraria, pois ele deveria sair alguma hora e ir para a casa. Aguardou-o até a hora do almoço, e logo que o viu dirigir-se à cantina do hospital, aproximou-se e o encontrou ao lado de um colega.

Apresentou-se e pediu para conversar com ele. Observou que o rapaz aparentava uns 30 anos, tinha cabelos castanhos e olhos muito perspicazes. Parecia sempre antenado em algum movimento na sala ou numa conversa no outro lado da mesa. Cabelos curtos e óculos pesados compunham a fisionomia, que apesar da pretensa curiosidade, revelava-se muito tranquila.

— Sei que é o seu horário de almoço e que em seguida terá muito trabalho com os pacientes, mas gostaria de agendar uma visita. Onde você quiser, quando quiser. Pode ser?

—Pode, é claro, só não estou entendendo a razão.

— É um assunto meio desagradável. Não gostaria de incomodá-lo agora.

— Desculpe perguntar, mas quem é o senhor mesmo?

— Bem, sou advogado e detetive particular aposentado.

— E sobre o que vamos conversar?

—Você poderia agendar uma hora? Pode ser num bar, no hotel onde estou hospedado ou até mesmo no seu consultório.

—Eu não tenho consultório, senhor… senhor?

—Júlio, Júlio Ramirez, às suas ordens. Olhe o meu cartão.

—Quer me vender alguma coisa?

— Não, de forma alguma. Se não se importa, pode ser no restaurante do meu hotel. À noite, eles servem apenas uns drinques.

—O senhor está no hotel, então deve ser o mesmo em que estou morando. Não há noutro na cidade.

— Ah, que bom. Assim fica mais fácil, então.

— Pode me adiantar alguma coisa?

—Bem, se insiste. É sobre a moça que foi assassinada ou se matou, não se sabe. O pai dela o acusa de sua morte!

—Aquele homem é um louco, um imbecil! Olhe aqui, eu não tenho nada com esse assunto. Nem tenho nada a discutir com o senhor nem com ninguém. Portanto, não me espere, porque não vou até o restaurante.

—Desculpe, Ricardo, eu não queria que você se irritasse. Sei que tem razão em ficar nervoso com esta história, afinal, é muito desagradável esta acusação e estes falatórios pela cidade. Mas, acho que está na hora de provar que você é inocente. Olhe, eu pessoalmente, acho que não há nada que o ligue à morte daquela moça.

—Então, por que está me procurando?

—Porque é meu trabalho de detetive e na minha profissão, não se pode descartar nada. Mas acho sinceramente, que este esclarecimento só vai ajudá-lo. Afinal, você tem um nome a preservar. Imagine se as pessoas da Capital fiquem na dúvida de sua honestidade? E os negócios que poderão ser anulados?

—O que quer dizer com isso?

—Meu caro, só digo o que ouço, mas você sabe muito melhor do que eu o que essa gente é capaz! Se eu fosse você, eu iria encontrar-se comigo. Acho muito melhor comigo do que com a polícia, porque vai acabar nisso, pelo que ouvi daquele homem. Vou deixar o meu cartão, meu número do celular. Até lá, você pensa e decide o que achar melhor, ok? Mas saiba que não estou contra você, até mesmo porque não costumo fazer julgamentos! Júlio afasta-se em direção ao jardim, saindo do refeitório onde o médico se encontra. Os colegas já estão se retirando para as suas tarefas. Quando está atravessando as vielas que o separam do portão para a rua, passando por uma pequena capela, percebe que alguém se aproxima rapidamente, em sua direção. É Ricardo, que o convida a entrar na capela.

A capela está na penumbra e não ninguém lá dentro. Sentam no último banco e o médico é o primeiro a falar.

—Acho melhor não encontrá-lo hotel. Vou dar muita bandeira.

—Você é quem sabe, meu rapaz. Apesar que você estando lá, ficaria até natural nos encontrarmos.

— Mas já que existe uma investigação, é melhor que saiba tudo e por mim.

—Ok, sou todo ouvidos. Você é um homem de bem, já percebi.

—Obrigado. É o seguinte: eu realmente estava namorando a Taís, se é que se pode chamar de namoro, alguns encontros em poucas semanas. Mas que seja. De todo modo, a verdade é que desde que cheguei aqui, ela não me deixou em paz, tinha verdadeira fixação por mim. Isso aconteceu há um ano atrás, quando estive aqui fazendo residência. Agora, há pouco, ela voltou a procurar-me, tentando reviver uma coisa que nunca aconteceu. Eu nunca me apaixonei como ela pretendia. Nós tivemos um caso, no passado, mas tudo não passou de encontros casuais, sem maiores compromissos, pelo menos para mim. Ela cismou que eu me apaixonaria, que ficaria ao seu lado, que jamais a deixaria, mesmo eu dizendo que tinha namorada na capital, que não queria nada com ela. Inclusive disse que abandonara um namorado por minha causa, era um cara que trabalhava na oficina, parece que se chamava Paulo, não importa. Mas o fato que até com isso, me incomodei, porque o cara passou alguns dias me perseguindo, até que decidiu me deixar em paz. Não vou negar que me senti atraído, mas inicialmente, eu não queria nada com ela. Ela não desgrudava de mim! Ela apenas estudava e de repente inventou de trabalhar no hospital, fazendo faxina. Não sei como conseguiu a vaga tão depressa, deve ter mexido os pauzinhos. Ela mudou a minha vida a partir daquele momento. Não me deixava respirar, se envolvia nas minhas coisas, mexia até no meu celular, quando eu menos imaginava. Até que aconteceu. Uma vez, nós transamos e eu decidi que ela deveria me deixar e desaparecer da minha vida. Nos encontramos algumas vezes, mesmo ela sabendo que logo que me estruturasse na cidade, traria a minha namorada para cá, e isso eu deixava bem claro para ela.

Depois da saraivada de acontecimentos e queixas, Júlio engendrou a primeira pergunta:

– Você passou a odiá-la?

Ele parecia não respirar por um momento. Quando respondeu, fazia-o num desabafo:

– No início, não. Eu até gostava dela, só detestava aquela insistência. Mas por fim, eu acabei odiando-a sim, porque voltou tudo como era antes. Ela passou a perseguir-me, a me procurar em todos os lugares, a viver na minha volta.

—Então, você tinha motivos para matá-la.

—Pelo amor de Deus, vou matar uma garota só porque me perseguia, que queria ficar comigo a qualquer custo! Era só uma cabeça-oca, uma infeliz, coitada. Sou um homem que salva vidas, detetive, não as tira!

— Você há de convir que preciso fazer todas as perguntas para observar as reações dos interrogados. Por outro lado, acho que não é motivo de tanto ódio. Bastava dar um chute nas intenções da moça e acabar por aí.

— É que o senhor não a conhecia. Hoje, passado algum tempo, acho que ela era uma psicótica. Não era normal a maneira como me tratava, como se eu fosse um objeto, um bem que não queria partilhar com ninguém. Taís era doente.

— Pensando bem, a sua reação foi bastante estranha.

— O senhor parece estar contra mim. Como pode pensar que eu faria uma coisa dessas? Eu jamais tive intenção de lhe fazer mal!

—Eu não pensei em nada, caro Ricardo. Mas, me diga, naquele entardecer cheio de neblina, você foi dar uma volta, próximo ao rio. Na mesma hora em que Taís foi assassinada ou se matou, não sabemos.

—Não, eu não fui.

—Não foi? E o que me diz da mensagem do celular dela em que marcara o horário de 8:30 para encontrá-lo lá, na beira do rio?

—Não, claro que não, dei uma volta pelo bosque, ali perto. Uma longa volta para esfriar a cabeça. Como lhe disse, ela era maluca, estava sempre me chamando.

— Por que você queria esfriar a cabeça?

—Sr. Júlio, um médico tem seus momentos de stress, de decepção. Naquele dia, eu perdera um paciente e estava muito nervoso.

—Então não tinha nada a ver com Taís e sim com a perda do seu paciente?

—Não, eu já disse que não!

—Então como explica a mensagem no celular da moça? Nega tê-la mandado?

Ricardo faz um pequeno silêncio. Sente-se perdido, como se a acusação contra ele ratificada a cada justificativa. Por isso, insiste em esclarecer o que sabe.

—Não, o senhor tem razão. Eu a enviei, sim. Taís me pediu que fosse encontrá-la e insistiu muito. Não sabia o que fazer, por isso escrevi a mensagem. Mas eu não fui. Achei melhor não ir. Pretendia ir a Porto Alegre no dia seguinte e preferi não falar com ela. Sei que errei e o que aconteceu com ela foi terrível. Nunca poderia imaginar que ela fosse capaz de tirar a própria vida! Eu me sentia culpado, não conseguia trabalhar.

—Então, mesmo não atendendo o pedido, você passeou próximo ao local, ou seja, no bosque próximo ao rio, o que há de convir, é uma certa incoerência.

—Eu já lhe expliquei isso. Além disso, costumo caminhar pelo bosque, não é um fato incomum. Levo os tênis na mochila, pego um abrigo e caminho por algumas horas.

—Sabe de alguém que o viu nesta caminhada?

—Acho que não, estava muito solitário. Poucas pessoas caminham a esta hora. Além disso, estava um entardecer muito sombrio, havia muita neblina.

Júlio perguntou se não havia nenhum fato importante que Ricardo gostaria de contar-lhe. Com a negativa, ele mesmo decidiu fazer-lhe mais uma pergunta.

— Você falou num tal de Paulo, um namorado antigo de Taís. O que aconteceu com ele?

—Como assim? Pelo que eu saiba, continua trabalhando na oficina. Me deixou em paz, graças a Deus, desde que tivemos uma conversa.

— Ah, tiveram uma conversa?

—Sim, um dia me enchi com aquela perseguição, ele me fechando no trânsito com a moto, mandando recados pelo celular, e decidi ir até a oficina falar com ele.

—E aí?

—Parece que entendeu a situação. Que a menina não queria mais nada com ele e que eu não tinha culpa. O problema era deles. A partir daí, ele nunca mais me procurou.

Júlio ouviu a conversa e prevendo que não haveria mais nada importante a ser dito, apertou-lhe calorosamente a mão e se afastou. Antes, persignou-se e ajoelhou-se por um minuto próximo à porta de saída da capela.

Enquanto fazia isso, Ricardo passou por ele rapidamente e desapareceu em direção ao hospital.

terça-feira, junho 28, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 9º CAPÍTULO

Capítulo 9

Júlio esperou algum tempo, após tocar a campainha do portão. O muro não era alto e podia ver a casa ao fundo, uma calçada de lajotas que perfilava um pequeno jardim e dois bancos instalados oportunamente sob uma árvore frondosa. Observou que a mulher que surgia à porta, parecia abatida e o atendia quase como uma obrigação, talvez por o ter chamado e agora não tinha como dispensá-lo. Ela apresentou-se, conduziu-o ao interior da casa , indicou-lhe uma poltrona para que sentasse, enquanto trazia um café. Ele recusou o café e insistiu que não entendera exatamente o que ela queria dizer no e-mail que lhe enviara.

—Vou lhe antecipar que sou um detetive particular, não tenho relação nenhuma com o setor policial.

— Caro detetive, eu quero a polícia longe de mim. Foi por isso que o chamei. Inclusive, por uma felicidade do destino, eu descobri que o senhor viria para cá, pois estava interessado em escrever um livro sobre a sua vida.

Júlio a olhava surpreso, imaginando como ela poderia saber de seu projeto. Ela percebendo o estranhamento do homem, decidiu esclarecer.

— Não leve a mal, é que meu filho costuma cantar no coral da igreja, sabe. Ele tem uma amiga que também trabalha no hotel. Parece que ela comentou alguma coisa.

— A senhora fala da mulher que trabalha na portaria?

— Essa mesma. Ela também é maestrina do coral e o seu nome é Rosa. Já conversou com ela, certamente. Se não me engano, ela trabalha três noites na portaria do hotel e mais duas manhãs nos dias que sobram.

— A senhora parece bem informada sobre ela.

Sara ficou em silêncio. Ajeitou-se na cadeira e retirou um pequeno folder com a ilustração do coral de uma apresentação passada. Mostrou a ele.

— Olhe, aqui ela escreveu à caneta os seus horários no hotel para facilitar o seu encontro, quando não está na igreja. Ela era professora, sabia?

— Não, dona Sara, eu não sei nada dessa senhora. Mas me diga uma coisa, como ela poderia saber sobre os meus planos, antes de eu vir para cá?

— Não sei de nada, a bem da verdade ela comentou isso com o meu filho. Provavelmente o senhor tenha dito alguma coisa, quando reservou o quarto.

Júlio então lembrou-se que comentara alguma coisa, como escrever um livro, que morava na cidade, que boca a sua, pensara. Mas agora isso não tinha qualquer relevância. Queria saber o motivo de ter sido chamado por aquela mulher.

— Não sei se deveria tê-lo chamado, Sr. Júlio, o meu filho chegará a qualquer momento. É que ele é o motivo de eu ter me comunicado consigo. Aliás, ele é motivo de minha preocupação.

— Mas então?

— Não sei se o senhor percebeu, mas estou muito nervosa. Meu filho é uma pessoa especial, um rapaz maravilhoso, mas anda meio problemático e isso já faz um bom tempo.

— Está bem, dona Sara, neste caso, a senhora me explique do início. Se o seu filho chegar, seremos o mais discretos possível. Quero que me esclareça porque pretendia que eu a ajudasse. Falou-me de serviços investigativos, mas não foi precisa no que queria.

— Está bem. Veja detetive, posso chamá-lo assim?

— A senhora já me chamou assim, quando cheguei e fiquei muito lisonjeado. Na verdade, estou meio enferrujado, mas ainda sou um detetive particular. O interessante, é que já me procuraram pela mesma razão.

— Sim?

— Mas, deixemos pra lá. Vamos ao que tem a me dizer, por favor.

— Quando eu mandei o e-mail, como lhe disse, houve este comentário que o senhor viria para cá. Eu já sabia de seus serviços como advogado e detetive. Não foi difícil fazer uma pequena pesquisa no google.

— Por isso me procurou. Mas qual é o motivo?

— Como lhe disse, eu estava muito preocupada com meu filho. Ele tinha uma namorada chamada Susi, com quem viveu por mais de dois anos, bem esta moça o abandonou e ele ficou muito depressivo, fazendo umas bobagens, inventando coisas meio absurdas.

— Não entendi como poderia ajudá-lo. A menos que estas bobagens a que a senhora se refere sejam atos ilícitos, contra a lei.

— Não, nada disso. Meu filho é um excelente rapaz. Eu me refiro ao fato de ele contar histórias que não condizem com a realidade. Ele falou que tentaram matá-lo.

— E como aconteceu isso?

— Bem, é uma história meio fantasiosa. Mas eu lhe explico em detalhes mais tarde. O problema, que junto a tudo isso, estão ocorrendo fatos extraordinários na cidade. Houve alguns assassinatos, não sei se o senhor soube.

— Sim, em sua maioria arquivados, com exceção do último, da filha do farmacêutico que dizem foi assassinada. Não há uma certeza absoluta.

— Eu soube do caso da filha do Seu Jairo, sim. Foi terrível.

— Mas a senhora me mandou o e-mail antes. Tem a ver com os crimes?

— Meu filho tem algumas suspeitas, mas eu não concordo com ele.

— Acho que preciso conversar com o seu filho.

Sara calou-se, ainda mais ansiosa. A respiração sôfrega, um ar de arrependimento pelo que dissera. Por fim, concluiu:

— Eu mandei o e-mail porque estou assustada sim, com o que está acontecendo. Mas é que tenho uma pessoa suspeita.

— A senhora se refere ao médico?

— O doutor Ricardo? Imagine, ele é um homem decente. Um ótimo médico. Quando chegou na cidade, eu até gostaria que morasse aqui, até arranjar um lugar para ficar, mas ele foi resistente. Acabou ficando no hotel mesmo. Acho que fizeram um acerto com ele, como um aluguel, entende? O coitado não achou nenhum apartamento que servisse até agora.

— Ouvi comentários de que o acusam do assassinato da moça.

— Esta gente fala o que não sabe. Todos aqui falam de todo mundo. São um bando de bisbilhoteiros, uma gente que não tem o que fazer! Só porque ele namorou a moça, inventaram esta história. Aliás, nem sei se ele teve algum envolvimento com ela, na verdade.

— Parece que a senhora está bem inteirada dos assuntos.

— Aqui, a gente fica sabendo de tudo, meu amigo.

— Me diga então, de quem a senhora suspeita?

— Eu deveria falar com a polícia, mas não tenho provas, é só uma intuição. De todo modo, o que vou lhe pedir que este assunto tem que ficar entre nós, não quero me envolver com esta gente! Tenho medo que alguma coisa me aconteça, entende?

— Sem dúvidas. Sigilo total.

— E depois, eu tentei falar com o senhor, principalmente, porque meu filho está neste coral há algum tempo, e sempre foi humilhado por esta mulher. Eu juntei as coisas e fiquei me perguntando se ela não teria alguma ligação com os crimes, não digo todos, mas os que se referem aos turistas… e agora, pensando bem, até mesmo em relação à jovem que morreu.

— De quem a senhora está falando?

— Da mulher sobre a qual conversamos ainda há pouco: de Rosa, a maestrina. A mesma mulher que trabalha no hotel onde o senhor está hospedado. A mesma que comentou sobre a sua vinda para cá. É sobre ela que me refiro. A mulher que tem interesse no meu filho.

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/inspetor-homem-detetive-masculino-160143/

quinta-feira, junho 23, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 8º CAPÍTULO

CAPÍTULO 8


Depois desta conversa com Jairo, os dois se separaram e Júlio voltou para o hotel. Na portaria, deparou-se com outra pessoa. Certamente, não era o turno de Rosa.

No quarto, tomou um banho longo, vestiu um pijama e deitou-se um pouco. Adormecera talvez por meia hora ou mais. Estava com fome, aquela cachaça o deixara faminto. Ligou para a recepção, perguntando se serviam jantar. Não era hábito do hotel, até porque era um estabelecimento de pequeno porte, mas adiantariam o lanche da manhã para ele, com alguns ovos fritos e talvez, até acrescentassem um copo de vinho.

No restaurante do hotel, apenas algumas luzes foram acesas, iluminando principalmente a mesa onde Júlio se encontrava. Tomara o restante do vinho e observara a rua pela vidraça. Era uma avenida estreita, com pouquíssimas residências. Sabia que a alguns quilômetros apenas ficava o rio que dividia a cidade, mas cuja região mais desolada ficava após a ponte. Talvez meia hora dali. Recordou a sua infância, a vida pacata na pequena cidade, os pais trabalhadores rurais que com dificuldade lhe possibilitaram estudar e afastar-se em definitivo para a capital. Pouco os viu desde que saiu da região até que faleceram e desde então, nunca mais havia voltado.

Agora, entretanto, sentia falta dessa simplicidade em encarar os fatos de maneira tão objetiva e ao mesmo tempo estranha do povo da região. Praticamente todos se conheciam, falavam de tudo e de todos e um acontecimento trágico mexia com a comunidade. Talvez por isso, seu amigo Jairo e o próprio dono do bar estivessem tão envolvidos com o assunto do assassinato ou suicídio da filha do farmacêutico. Era razoável.

Estava tão entretido em seus pensamentos que nem percebera o garçom ao seu lado, perguntando se precisava de alguma coisa. Logo avisava que fechariam o restaurante para se preparem para o outro dia. Júlio percebera que devia retirar-se e se afastou, cumprimentando o rapaz e dirigindo-se ao elevador, porém foi obrigado a voltar, informado de que alguém o esperava no saguão. Surpreso, perguntou de quem se tratava. Seria o seu amigo Jairo? O garçom mostrava-se nervoso ao dizer a Júlio quem queria falar-lhe naquele momento. Júlio o olhava, intrigado. O outro, completou:

— Não, não é seu amigo Jairo, senhor, que quer falar-lhe. Trata-se de Golias. Desculpe, é como todo mundo chama o farmacêutico da cidade.

Farmacêutico? Então o pai da moça assassinada queria falar com ele. Mas não teria nada o que conversar. O que poderia querer… -– Nisso, o homem a quem o garçom se referia, irrompe na sala e dirige-se a Júlio revelando intensa ansiedade. – Por favor, preciso falar-lhe. Preciso da sua ajuda.

Júlio pensou em seguida que não poderia ajudá-lo em nada, mas ficou quieto. O homem insistiu:

– Sei que o senhor já morou nesta cidade, meu pai que era enfermeiro, conhecia muito bem a sua família. Se não se importa, eu gostaria de falar-lhe.

Como não tinha como recusar, Júlio pediu que o acompanhasse até o quarto.

Júlio abriu a porta com dificuldade. Sua mão tremia, mas não estava temeroso com a presença do homem. Já enfrentara centenas de casos difíceis, homens traídos, políticos presos em falcatruas, mulheres que investigavam a vida de maridos no auge do ódio doentio, mas estava especialmente confuso com aquela presença. Talvez não estivesse preparado para a visita, queria descansar, aproveitar a aposentadoria, escrever o seu livro, rever os poucos amigos da cidade, encontrar o ritmo há tanto esquecido daquele povo. Contudo, aquele homem parecia disposto a falar-lhe uma coisa muito importante. O que pretendia contar-lhe?

Ao entrar, ofereceu-lhe a poltrona próxima à cama. Sentou-se numa pequena cadeira ao lado da cômoda, em seguida.

—Então, o senhor queria falar comigo?

—Peço desculpas pelo adiantado da hora, aqui na cidade, a gente costuma dormir antes das dez.

– Quanto a isso, não se preocupe. Eu durmo muito tarde.

—Bem, o meu nome é Lucas, como o rapaz do hotel disse, sou o farmacêutico da cidade.

— Sim?

—Pois é. Por ironia, me chamam de Golias, veja você, com a minha baixa estatura, isso é até uma piada, além de ser bastante franzino.

Júlio fez uma pausa, como se medisse as palavras. Por fim, disparou:

– Mas o senhor não veio me procurar para me falar sobre a sua estatura, não?

O homem levantou-se, enquanto falava.

– Não, claro que não! – E se dirigiu a janela que dava para a frente do hotel. Olhava para baixo, um ar desolado. Os olhos miúdos, algumas rugas permanentes e as olheiras davam um ar de desamparo, como se houvesse passado muitas horas sem dormir, nem se alimentar.

Júlio ficou observando-o, na espera de que falasse alguma coisa. Penalizou-se com a figura que devia ser um resquício do homem que era, tão desconsolado e triste parecia. Não lhe saía da cabeça a tragédia da filha.

Neste momento, ele voltou da janela e correu ao seu encontro, quase gritando.

– Preciso da sua ajuda, Sr. Júlio, preciso da sua ajuda!

Júlio também levantou-se e tentou conduzi-lo à poltrona.

— Por favor, se acalme. Seja o que for que precisa de mim, tem que me contar com calma. Não se desespere.

O homem começou a chorar convulsivamente. Segurava a cabeça, em prantos. Júlio não interveio e esperou que se acalmasse.

Aos poucos, o homem se recompôs, respirando fundo, olhando para o nada.

—Quer beber alguma coisa?

— Tem um copo d’água?

Júlio entregou a água e voltou a sentar-se, desta vez, na própria cama.

—Desculpe o meu desabafo. Eu não poderia ter feito isso, foi um constrangimento enorme pra mim, mas estou muito nervoso, entende?

— Não se preocupe com isso, eu entendo que esteja passando por momentos difíceis.

—É sobre isso que vim lhe falar. O senhor sabe do assassinato de minha filha.

—Foi a primeira coisa que soube quando cheguei. Estava no bar conversando com um amigo meu e ele contou-me o ocorrido.

— Sim, Jairo, foi ele que me convenceu a falar com o senhor! Júlio irritou-se com o amigo. Como ele foi capaz de dar aquela sugestão infeliz ao homem. Agora compreendera, porque ele lhe contara a história com uma riqueza de detalhes, já estava com o objetivo formalizado.

—Bem, sei que é detetive, e que pode me ajudar.

— Eu sou aposentado.

—Melhor assim, tem mais experiência. Por favor, eu lhe suplico. A minha filha foi assassinada por aquele miserável, aquele médico maldito que veio só pra destruir a nossa família, a nossa vida! Um homem da cidade, cheio de salamaleques, cheio de bossa, minha filha se encantou e deu no que deu! Ela se apaixonou por ele, acabou fazendo o que não devia. Ele até prometeu casar com ela, ela acreditava nisso! Mas ele tinha outra na cidade, na capital. Ele tinha noiva ou namorada, não sei, só que estava decidido a acabar com tudo. Como ela insistiu, como disse que estava grávida e contaria para a noiva dele, ele acabou matando-a! Ele matou a minha filha!

O homem falou tudo de um supetão. Não havia como interromper, nem argumentar. Finalmente, quando conseguiu, Júlio perguntou:

– Mas me diga uma coisa, essa história de gravidez, eu não sabia. E depois, pelo que saiba eles se conheceram há pouco menos de um mês.

— Ela teve a triste ideia de inventar esta bobagem e o pior é que ele acreditou. Deu no que deu!

—Então este médico é um idiota, convenhamos! Não seria mais fácil ele abrir o jogo, dizer que não casaria, e depois contaria para a noiva, se fosse o caso? Afinal, nos dias de hoje, uma gravidez não é garantia de nenhum casamento. E depois, se era mentira…

— O problema todo é que a tal moça da cidade, a namorada é filha de um grande empresário no ramo hospitalar. Isto significa o futuro dele, entende? Por isso a matou, eu não tenho dúvidas!

— Após contar-lhe toda a história e descrever posteriormente em detalhes o que julgava o encontro do médico com a filha, ele perguntou se Júlio aceitava o caso.

Júlio experimentou uma certa euforia que costumava sentir em frente a um caso novo, quando estava na ativa. Por um momento, sentiu-se mais vivo do que nunca e muito produtivo. A biografia, o livro que ficasse para trás. Entretanto, havia um porém.

— Espere, Lucas, eu vim para cá com um objetivo. Na verdade, uma mulher chamada Sara quer falar comigo, quer me contratar para alguma coisa. Eu preciso saber antes do que se trata, entende? E depois, pode haver outra possibilidade em relação ao caso de sua filha.

—Como assim?

— Não lhe garanto, mas dependendo da situação, talvez eu aceite o seu caso, mas isso não quer dizer que você terá uma resposta satisfatória. Eu posso encontrar outro assassino, ou talvez, provar que foi apenas um suicídio.

—Isso não acontecerá, porque eu tenho certeza de que aquele canalha a matou! Você então aceita o caso?

Quando o homem retirou-se, Júlio elaborou um esquema dos procedimentos que teria a partir daquele dia. Não estava certo de que pegaria o caso, mas e se os outros crimes estivessem relacionados? E se Sara o havia chamado exatamente para falar sobre isso? Um dos primeiros passos, seria o que deveria ter feito desde o primeiro momento em que pisara na cidade, falar com a mulher que o chamara. Foi isso o que planejou para o dia seguinte.

terça-feira, julho 21, 2015

Tio Pedro e a Mangacha

Chamava-se Pedro. Tinha por hábito visitar-nos, mesmo que meus pais não estivessem em casa. Eu, embora adolescente, costumava prestar atenção as suas conversas. Por mais rebeldia que tivesse, não hostilizava as normas da família. Entretanto, intimamente, me incomodava a sua presença. Quando se aproximava e ao vê-lo, disfarçava o desconforto. Nunca era a visita esperada. Entretanto, me esforçava para recebê-lo e agir de forma semelhante a meu pai ou minha mãe. Ou ambos. Servir um café, um chimarrão, jogar conversa fora. O pior de tudo é que via de regra, suas conversas eram recheadas de lamúrias. Ou a vida estava cara demais, pela hora da morte, como dizia, ou os médicos sempre receitavam medicamentos desnecessários, bastava um melhoral para passar a febre, o refriado, a dor de ouvido e eles empurravam-lhe uma série de injeções com cálcio e vitamina c. Também se queixava do fígado. Se lhe doía a cabeça, o culpado era o fígado, se coçava a planta dos pés, o culpado era o fígado e se a digestão estava atravancada, o fígado também era o vilão. Quando estes assuntos não eram ventilados, começava a perguntar por meus pais, indagar sobre minhas irmãs e por fim, sobre meus estudos. E quando nada mais havia a dizer, fazia um silêncio sepulcral, para o qual eu amealhava todos os temas em meus pensamentos para interrompê-lo, mas nada que dissesse parecia aplicar-se ao meu tio. Aliás, pouco sabia sobre ele, a não ser que era um tio distante, se é que este parentesco existe. Nós pelo menos, o considerávamos nosso tio, mas talvez fosse apenas um velho amigo de meus pais. Às vezes, ficava observando-o. Tinha umas feições severas, um olhar arguto, embora, às vezes, parado no nada. Parecia-me que era um homem solitário, viúvo, cujos filhos não o consideravam muito. Costumava reclamar deles. Explicava sobre os pés de laranja que gostava de cultivar, além das bergamotas e goiabas. Gostava de descrever o plantio, as formas de proteção às raízes, aos caules, às folhas para que sobrevivessem ao frio e protegessem os frutos. Mas queixava-se dos filhos que não deixavam que as plantas crescessem, que revelassem o seu esplendor e pudessem ornamentar o pomar que tanto gostava. Eles não respeitavam o tempo de maturação dos frutos, muito menos as suas medidas de cultivo.

Apesar de toda pouca vontade de conversar com aquele tio que sempre vinha nas horas erradas, eu tinha um pouco de piedade dele. E ao aceitar um café, o papo ficava até mais interessante, porque talvez inebriado pela cafeína, ele mostrava-se mais entusiasmado e sua conversa tomava outros rumos. Certa vez, contou-me sobre uma atriz, que conhecera e para minha surpresa, se tornara sua namorada. Uma atriz? Um tio agricultor, dono de um pequeno sítio, um homem da terra, cujas únicas aventuras eram as de aprender novas formas de cultivo e a mania de investir em plantas exóticas, vindas de outras regiões. Como poderia ele ter se apaixonado por uma atriz? E onde acontecera isso? Pois me contara tudo, satisfeito, numa dessas visitas não enderaçadas a mim, mas a minha família, que mais uma vez estava ausente. Às vezes, até desconfiava de que ele gostava de conversar comigo e escolhia os dias e horas certas em que não encontraria meus pais. Mas isso é egocentrismo de adolescente. Pois, segundo o seu relato, ele a conhecera no Cabaré da Mangacha. Lembra-se, como se fosse hoje, como me contara no momento.

"Naquela época, ele estava passando um tempo na cidade, bem longe do sítio da família. Era um pequeno quarto alugado, pois estava procurando emprego no Frigorífico Swift, para afastar-se em definitivo do campo.

Vestira o chapéu e saira às pressas, fechando a porta atrás de si, sem olhar para os lados. A noite se agigantava escura. Ele dobrou a esquina, pegou o bonde que passava em frente ao abrigo de bondes e dirigiu-se para a rua Uruguaiana. Olhou para os lados. O veículo estava quase vazio, a não ser um homem meio barbudo, que desandava a cabeça a cada minuto, num sono sobressaltado. Quando chegou ao ponto, pagou ao cobrador e cumprimentou o motorneiro. Ficou ali parado, na esquina até o bonde desaparecer na rua em direção ao bairro portuário. Olhou para os lados, ensimesmado. Deu alguns passos e observou o prédio, um sobrado bem na esquina. Já ouvia a música da orquestra. Sentiu um certo estremecimento. Era a primeira vez que adentrava no grande salão. Sabia que o esperavam as danças, os shows, a orquestra e principalmente as mulheres que faziam do cabaret, o mais famoso da cidade.

Aproximou-se da porta. Um homem com uma farad colorida o recebeu e disse-lhe alguma coisa inaudível. Ouvia um piano tocar, uma voz feminina que se distanciava pela imensidão do aposento. O homem mandou-o entrar. Finalmente, chegara na Mangacha. Lá chegou a conhecer Dona Ludovina, que era a proprietária do estabelecimento.

Pois nessa noite, chegou à cidade uma atriz linda oriunda do Rio de Janeiro. Era uma morena maravilhosa, olhos amendoados, cabelos crespos e uma pele de seda. Tinha seios fartos e umas ancas de dar arrepios na espinha. Ele ficara embascado com o show, mas mais ainda pela presença daquela mulher lindíssima. Os engomadinhos estavam todos ouriçados, homens de terno e gravata, regados a uísque e notas de dollars embutidos nos couverts. Mas ela só tinha olhos para ele. Os homens se desdobravam em mesuras, galanteios e sorrisos afoitos, ele se resguardava num canto, com seu terno de linho amassado. Vez que outra, ela enderaçava olhares sugestivos que o deixavam louco. Mas o que ele poderia fazer, um quase analfabeto, um agricultor acostumado às atividades rústicas de sua terra, sem o verniz dos homens da cidade? Seus pensamentos se agitavam e seu coração batia descompassado. O que faria? A levaria até a rua Uruguaiana para tonar o bonde em direção ao centro e passariam a noite em seu quarto alugado, quase espelunca? Mas os olhares, os sorrisos e algumas palavras a meia boca se sucediam. E por fim, seu coração estremeceu de vez e suas pernas não se sustentavam sob a mesa, batendo uma na outra, quando ela se aproximou após o show, e entre palmas e assobios, sentou-se a sua mesa. Em seguida, apareceu uma garrafa de uísque importado. E dali em diante, não precisou explicar mais nada. Só sorrir e aproveitar a vida. Acabaram a noite no hotel onde ela se hospedara e por uma semana ficaram juntos.”

Claro que meu tio Pedro não me contou com esta riqueza de detalhes, só mais tarde fui saber as informações complementares e enriquecedoras através de meu pai.

Ele continou nos visitando por algum tempo. Nunca mais falou-me na história e na mulher que chamava de namorada, usando certa autocensura. As visitas foram rareando e quando ele aparecia, eu já tinha muitas atividades, já trabalhava e a fase da adolescência dera lugar a uma fase em que o tempo ficava cada vez mais escasso. Esquecera-o aos poucos, quase por completo. Mas, às vezes, recordo o seu jeito acabrunhado e introvertido, um pouco ranzinza e lamurioso, mas que vez que outra, parece abrir-se para a vida e conta sua trajetória enriquecida de histórias. E ao visitar algum sobrinho, fico me perguntando, será que não sou recebido assim, com cuidados e educação, como o fazia com o tio Pedro? A vida se repete, o tio chato e solitário de ontem, pode ser o visitante de hoje. Espero que não.

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