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Mostrando postagens com o rótulo outono

Um mergulho

Um mergulho significa muito, mergulho nas ideias, na observação das pessoas, nas trajetórias cotidianas. Um mergulho no mar, bem assim, no finalzinho do verão. Absorver cada gota em nosso corpo sedento. Sentir o revirar das ondas, o vai e vem das correntezas, o repuxo e, de vez em quando, a calmaria, uma pausa para respirar, olhar as dunas e voltar ao processo do enxague, de percepções quase etéreas dos respingos no rosto ou densas, espalhando-se pelo corpo e derrubando-nos as pernas. Os mergulhos se dão sem que nos demos conta, mergulhos em pensamentos, que descontrolados, vão e vem das mais distintas intuições ou sentimentos. Como as ondas, eles crescem desordenados, embora tenham um objetivo intenso e final, que é o de nos alertar de alguma coisa que nos incomoda, um perigo iminente, real ou imaginário, um perigo talvez ao ato de viver plenamente. Mas é preciso apaziguá-los, como a pausa das ondas, deixar que o repuxo se desvaneça e espumas se produzam, desenhando traços e abrind

Não posso calar

Como falar dos dias tranquilos e ensolarados do outono, das tarde agradáveis e noites frias. Como falar das folhas amarelando pátios, calçadas e ruas? Como falar das aves que se apropriam dos espaços agora um tanto vazios e se mostram encantadas e encantando na sua beleza natural e avidez de liberdade e alimento? Como falar do vento que cria e recria dunas, que as destrói e reconstrói, que as troca de lugar e potencializa caminhos, às vezes mais arenosos, às vezes mais úmidos pela água do mar. Como falar das pequenas flores que se erguem submissas ao vento, calmas entre as depressões ali mesmo nos cômoros quase ondulantes? Como falar das ondas do mar, que se ajustam ao entardecer conservando vagas platinadas, quase translúcidas num avantajado azul? Como falar das gaivotas que riscam o céu, tão próximo ao mar que quase o tocamos, esticando o braço, esperando o pousar entre o céu e a mão nas garras molhadas e o bico salgado da pesca habitual. Como falar da lua que surge lenta e cordial

Folhas

Folhas caem lentamente Pairam algumas, seguem devagar a corrente Parecem sonhar e mergulham como plumas no ar Folhas caem lentamente Trazem consigo olhares e nostalgia Talvez de um passado recente Ou de uma vontade vazia Folhas caem lentamente Aproximam-se do chão e das raízes Pesam na grama impunemente Ou se debatem em rodamoinhos, às vezes Folhas caem lentamente Transformam a realidade mais bonita Não importa se afofam o chão clemente Se a árvore fica fria e despida Se os grãos viram semente Apenas que o outono abranda a desdita Fonte: https://pixabay.com/pt/users/rihaij-2145/

A força e a suavidade do outono

Não pisar em folhas secas nem observar o mato que se agiganta ao longe. Talvez fosse preciso sapatos mais generosos, do tipo que podem oferecer leveza e maciez. No entanto era necessário desafiar as memórias e caminhar de pés descalços sobre o campo, bordado por folhas amarelas, cujas árvores as presenteiam lentamente. Uma delas cai devagar, passeia pelo ar, rodeia o imenso tronco e vai descendo até chegar próxima às raízes fortes que se agarram ao solo com a sabedoria da natureza. Aos poucos, desenham o imenso tapete que se forma aos pés das árvores, como se em gestos suaves, indicassem novos quadros de mosaicos de cores, umidades, orvalhos e flores. Ali se unem e se espalham com o vento, a brisa ou os pequenos rodamoinhos que se formam, traçando novos caminhos e diversos matizes e contornos e desenhos. Ali aspiram a umidade do chão, a pureza do orvalho, a força do húmus que as fortalece. Ali se enchem de insetos, pequenos grilos ou formigas que se entranham no piso tenro recém co

DE MINHA NATUREZA

(Do livro Anti-heróis que reúne contos selecionados para o II Concurso Literário da Metamorfose Cursos. Enfoca o anti-herói e enceta um diálogo importante com a tradição literária, mas sem perder de vista a contemporaneidade.) Quando Ramiro desceu do ônibus, percebeu uma certa bruma que há muito não via na cidade. Era como se o inverno rapidamente avançasse e a umidade tomasse conta das casas desprotegidas. Mas o outono ainda estava no berço e pouco mais de calor preservava as suas costas suadas e seu olhar abalroado pela dúvida. Dirigiu-se ao cais e a neblina aumentava, como naqueles filmes de Stephen King, nos quais sempre havia uma atmosfera estranha para qualquer época do ano. Sentou-se à beira do cais, quase desconhecendo a cidade do outro lado do canal. Pouco a via, a não ser as torres da matriz, a única parte que ficava a descoberto da neblina. Devia ser um aviso para seus pecados. Uma ameaça, talvez. Mesmo assim, ele desenrolou um cigarro de maconha lentamente, afi

Condutas da vida

Fonte da ilustração: Pexels in: pixbay De repente, o tempo de calor intenso muda e parece que uma nova estação surge do nada. Para um escritor, falar do tempo soa como clichê, mas o que acontece é que, às vezes, este estado de mudança atmosférica parece intimamente ligado a nossas emoções, acompanhando situações e condutas de nossa vida. Olhei para a rua ainda com as beiradas das calçadas com algum resquício de água, mas os paralelepípedos já brilhavam secos, pelo vento que soprava folhas ou a poeira instalada nas bordas, esvaziando o cenário. Tudo expressava renovação, talvez não com os auspícios de dias floridos da primavera, mas com ares de outono hibernal, que aos poucos vai dando mostras de sua força. Um friozinho que se instala entre as persianas, um vento que ruge de quando em vez, varrendo qualquer possibilidade de fuligem ou folhagens como pequenas sombras desgarradas na noite de poucas luzes. Uma limpeza que a natureza se propõe. Pena que nem sempre o nosso eu interior

A CASA OBLÍQUA - CAP. XXXIII

Clara examinou os textos, se perguntando porque Dona Luisa nunca se referia ao filho. O que teria havido com a criança? Haveria alguma fato relatado naquelas páginas, que ela ocultou durante tantos anos? Lembrou a chave do cofre. Se ao menos pudesse ir até lá, descobrir o que realmente existe guardado com tanto critério. Entretanto, seria uma temeridade afastar-se do hotel. Precisava acalmar-se e encontrar uma saída. Deveria constituir um advogado para elaborar um hábeas corpus, que possibilitasse a sua liberdade. Por um momento, ela pensou em Nael. Ele estava numa situação mais difícil ainda. Estaria ele pensando nela, com o mesmo carinho que lhe dispensou quando esteve ao seu lado? Não queria voltar a iludir-se como acontecera com Bruno. Não era uma adolescente. Era uma mulher adulta, que sabia o que queria, os seus objetivos na vida. Mas agora, de uma hora para outra, se transformara noutra pessoa: uma mulher frágil, insegura, assustada e ao mesmo tempo, obstinada c

A VISITA

Chegar a casa, percorrendo as ruas estreitas, de paralelepípedos irregulares, batida incerta no peito, olhos febris. Difícil saber o significado da visita, entender a expectativa da hora, o aperto de mão. Minha mão na do meu pai, caminhando orgulhoso, torcendo os pés nas pedras incólumes. Tropeçando, olhos pairando nos céus, gestos hesitantes, braços indagando inquietos. Segui-o em tudo, até na incerteza. Tinha de fazê-lo para chegar lá. Saber como o tal tio nos receberia e ter ao mesmo tempo a convicção do acolhimento sereno. Muito se falava nele. Meu pai tinha orgulho da sabedoria, da linguagem precisa, do seu amor pelas letras e filosofia. Eu divagava, mão apertada, coração aos saltos. Via as sombras das pernas longas de meu pai no sol da calçada. Os pés grandes, apressados. Se soubesse o quão distante seria o caminho, talvez não me levasse. Mas valia à pena o sacrifício para transmitir conceitos saudáveis que talvez eu apreendesse. Agora sei que ele estava certo, porq