Mostrando postagens com marcador jornalista. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador jornalista. Mostrar todas as postagens

terça-feira, março 22, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO XXII

HOJE, TERÇA-FEIRA 22/03/2016, APRESENTAMOS A SEGUIR AS EMOÇÕES FINAIS DE NOSSO FOLHETIM RASGADO, O 22º E ÚLTIMO CAPÍTULO DE PÁSSARO INCAUTO NA JANELA. OBRIGADO PELOS LEITORES QUE ACOMPANHARAM A HISTÓRIA.

Capítulo 22

Úrsula ouviu barulho no elevador e alertou os ouvidos, na espera de que o alvo fosse o seu endereço.

Atualmente, vivia sempre esperando que alguém chegasse, e a convidasse para tomar um chá, passear pelo parque, ou quem sabe, sobreviver numa dose de uísque.

Provavelmente Dulcina voltava para a faxina, quando bateram na porta, entretanto, seu coração bateu acelerado. E se fosse Susana, se o tribunal do júri a tivesse absolvido e ela estivesse pronta para acompanhá-la na maior pesquisa de sua vida.

Com algum esforço, antecipou-se até a porta. Abriu-a rapidamente, machucando a mão na maçaneta.

Não conseguiu evitar a decepção, quando um homem a aguardava com uma calma indefinida no olhar. A barba crescida, totalmente branca, o cabelo alinhado, embora ralo, com uma leve caída desenhando o perfil.

Úrsula percebia alguma coisa familiar naquela figura, mas não conseguia identificar o quê.

Seu coração estava aflito, apertado e por um momento, estremeceu completamente. Teve a ilusão de que Jaime estava ali, a sua espera, talvez para acusá-la de não ter participado como ele do movimento contra o regime, ou por não ter colaborado na sua biografia.

Sentiu-se fraca e temendo cair, acomodou-se na coluna próxima à porta e ficou ali, paralisada, como se estivesse à frente do espectro do marido. Ou do carrasco.

Um suor intenso inundava-lhe as têmporas e nem o sorriso afável do homem a afastava do torpor que sentia. Ele, percebendo que alguma coisa desagradável acontecia, apressou-se em apresentar-se.

–Úrsula, não está me reconhecendo? É normal, faz tanto tempo. Mas olhe, você é a mesma de quando a conheci.

Ela não reagiu. Nenhuma palavra articulava. Quem era aquele homem? O que queria dela? Como sabia o seu nome e lhe falava com tanta intimidade que a deixava ainda mais apavorada?

– Desculpe, acho que não vim num bom momento. Eu sou Gregório Bastos, o professor de português, lembra, amigo de seu marido.

Gregório Bastos, sim, como ela poderia esquecer. Era ele, um ativista que fora torturado durante muitos meses, tendo que se exilar do Brasil e que participara de todos os movimentos ao lado de Jaime. Além disso, eram extremamente amigos.

Agora percebia aquele mesmo olhar tranquilo, a voz clara, a linguagem correta, como se estivesse sempre dialogando com os alunos.

Não havia dúvidas, era ele. Apenas mais velho, com os cabelos e a barba branca, mas os mesmos olhos claros na pele avermelhada, o mesmo jeito brando e agradável de segurar a mão com firmeza num cumprimento demorado. O mesmo tom seguro ao dizer o que pensava.

A repressão o teria transformado? Quem era aquele homem após tantos anos?

– Bem, acho que realmente estou importunando você, mas não se preocupe. Eu voltarei outro dia.

– Não, por favor, fique – respondeu com voz sumida. Ele sorriu:_agora me reconheceu, Úrsula?

– Sim, Gregório. Eu o reconheci.

– O tempo passou e a gente se afastou demais. Mas há um momento para o encontro, quem sabe é agora, não é mesmo?

Ele tinha esta mania de instigar uma atitude, mesmo que não se quisesse. Além disso, sempre tinha uma solução para tudo. Um conciliador. Um homem de bem.

– Entre, Gregório. Pode acreditar, estou muito feliz que esteja aqui. É que ainda não me recuperei do susto.

– Pensou que eu estivesse morto?

– Não, é que faz tanto tempo e há muitas lembranças deste passado.

– Não vamos ficar falando em tempo, porque ele só existe porque falamos nele. O tempo é o que vivemos, registramos. Se não fazemos nada, nada significa. Não é tempo. Que nos interessa a ampulheta desandando aquela areia, nos deixando malucos? Interessa-nos a vida que vivemos no dia a dia, na cumplicidade dos gestos simples e solidários, do viver parelho, não paralelo. Você também não pensa assim, Úrsula?

Ela sorriu, ainda um pouco zonza. Confessa que ficara meio confusa com a conversa, mas pede que entre.
Gregório prossegue, entusiasmado. Segura as suas mãos e acrescenta, carinhoso : – desculpe se a embaracei Úrsula, juro que não era minha intenção. Ela afasta as mãos e recua um pouco o corpo, num recato que nem sabia que ainda experimentava. Um leve fulgor invadiu a face.

Gregório entra e instala-se no sofá, sem antes observar o velho piano em que recorda Úrsula tantas vezes, ali sentada, tocando suas eternas canções, embalando os sonhos de todos que se reuniam naquela sala.

– Você se lembra, Úrsula? Enquanto nós ficávamos horas discutindo estratégias para atingir o inimigo, você ficava no seu piano, um pouco distante, enchendo nossos ouvidos, pelo menos de alguma poesia.

– Não me lembre isso, me sinto tão culpada.

– Que isso, não se sinta culpada. Você deixava o ambiente menos tenso. Nós gostávamos muito.

–É verdade?

–Claro. Jaime nunca lhe falou?

–Jaime dizia tantas coisas para me agradar.

Os dois silenciam por um breve momento. Úrsula então decide oferecer-lhe uma bebida.

–Não se preocupe comigo, Úrsula. Já não bebo como antigamente, acho que nenhum de nós, não é mesmo? De qualquer maneira, o que eu gostaria mesmo é de um cafébem forte. O café aguça a mente.

Úrsula se esquiva, indecisa. Dulcina não está, teria que ir à cozinha, deixá-lo ali e não conseguia entender a si mesma, mas sentia-se impedida, os gestos imprecisos. Estava ainda perturbada.

Ele percebe a hesitação.

– Se você não se importa, eu lhe ajudo a fazer o café.

–Não diga isso.

–Digo sim. Vamos para a cozinha que eu mesmo preparo. Nestes anos todos sozinho, eu aprendi tudo nesta minha vida.

–Você está sozinho?

–Há mais de dez anos que Berta me deixou. E não tivemos filhos, você sabe.

Ela não sabia. Na verdade, não sabia nada sobre o seu passado recente. Enquanto se dirigem à cozinha, ele conversa com uma energia que a surpreende.

Uma pergunta não lhe sai da mente: qual é o motivo da visita.

Enquanto tomam o café, Úrsula fica mais à vontade. A mesa, às vezes, une as pessoas, talvez pela proximidade, por estarem no mesmo nível, por partilharem do mesmo prazer. Não sabe. Ele parece adivinhar a indagação.

– Não lhe disse que o café aguça a mente, deixa a gente mais solto, mais vibrante? Você me parece bem melhor.

Úrsula irrita-se com a observação. Quem é ele para julgar o seu estado de espírito. Ele então, complementa.

–Eu também sou assim. Quando alguma coisa me incomoda, quando recebo uma visita inesperada, às vezes, até desagradável, convido para um café. Assim, fica-se mais perto da pessoa e se desenvolve melhor o raciocínio. Esta bebida sagrada também ajuda.

–Então é um estratagema seu. Você pediu o café de caso pensado.

–Sim e não. Na verdade, eu gosto muito de café e pensei que você também gostasse. Por outro lado, é uma boa desculpa para ficarmos mais próximos, você não acha, Úrsula?

–Não sei, Gregório. Até agora, eu não descobri o motivo da sua visita. Tem um motivo, não tem?

–Naturalmente. Desde que eu conheci o Vinícius, tenho pensado muito em você.

–Vinícius?

–Você não o conhece?

–Nem imagino de quem se trata.

–Ah, então me desculpe. Acho que fui indelicado. Mas pelo que ele me falou, eu tinha certeza de que vocês se conheciam, inclusive porque ele está trabalhando na biografia do Jaime.

–Trabalhando? Como assim? Quem está fazendo a biografia do Jaime é Susana Medeiros, a jornalista do Diário de Hoje.

– Ah, exatamente. Não se inquiete, Úrsula, não há equívoco nenhum, nem ninguém está roubando o trabalho da sua jornalista. É verdade, ele me falou sobre ela. Inclusive, pensei que fosse me procurar, porque segundo ele, sou uma fonte privilegiada.

–Mas quem é este tal de Vinícius?

–É o editor do jornal, o chefe dela. Está muito interessado na biografia. Pretendem fazer uma série de reportagens revelando ao público o período de exceção que o Brasil viveu. Querem mostrar a cicatriz, revelar a ferida, sem esconder nada. Espero que ajude à sociedade a analisar o movimento como um período histórico que deve ser discutido, aprofundado, sem medo. Não há mais motivo para se esconder mais nada neste País, você não acha? Devem abrir os porões da ditadura. Você não acha isso, Úrsula?

–Gregório, você tem essa mania de querer sempre a minha opinião. Eu não sei de nada.

Ele a fita, afetuoso. Fala pausado.

–Você tem razão, Úrsula. Eu não devo questionar nada, nem ninguém. Mas como lhe disse, tenho pensado muito em você, desde que conheci o Vinicius. Agora, você já sabe o motivo. É porque quero ajudar esta moça a concluir o seu trabalho, quero que além das reportagens, ela publique um excelente livro, em que a verdade venha à tona. Que a história de Jaime seja um exemplo, para que nunca mais em nosso País, aconteça algo semelhante ao que lhe aconteceu. Você não concorda? Espere, espere, não vou perguntar nada.

–Mas eu concordo, Gregório. Eu concordo e juro que vou ajudá-lo. Jaime será o protagonista que exemplificará toda a saga de horrores que a nossa geração vivenciou e lutou contra. Ou pelo menos, a geração mais nova do que a minha, que foi muito atuante. Jaime e você foram quase exceções. Já eram homens maduros, estabilizados em seus empregos que resolveram compartilhar suas ideologias, lutar por suas ideias. Pensar um País diferente para nossos filhos e netos. O que eu não fiz naquela época, o que omiti, vou fazer agora, de uma outra maneira, é claro, mas vou tentar participar.

Jaime segura-lhe as mãos com carinho. Percebe que uma lágrima escorre rápida pela face de Úrsula.

–Você fez, Úrsula. Você fez muito. Você o amou.

Ela levanta a cabeça e por um momento seus olhares compartilham da mesma visão, vendo um no outro, o que seus corações balbuciam baixinho, indecisos, à espera.

Úrsula desfaz-se do enlevo, soltando-se as mãos e levantando-se, dirige-se à sala, sendo seguida pelo olhar afetuoso de Gregório.

Ela dá alguns passos, tamborila levemente as teclas do piano, aproxima-se da janela, mas não olha para a rua. Como um pássaro incauto se debate na vidraça. Mas só por um instante.

Agora desfruta a quietude da alma.

Instintivamente, levanta a cabeça em direção ao quadro de Rita Rayworth. Volta-se rapidamente e torna a olhar, porque tem a impressão de que ela piscou o olho, maliciosa.

FIM


quinta-feira, fevereiro 18, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULOS XII E XIII

HOJE, QUINTA-FEIRA 18/02/2016, SEGUE O NOSSO FOLHETIM RASGADO "PÁSSARO INCAUTO NA JANELA" COM O 12º E 13º CAPÍTULOS. NOVAS REVELAÇÕES!

Capítulo 12

Susana aguarda o elevador em seu andar. Está prestes a entrar, mas é impedida pela voz urgente, quando a porta se abre. A mulher a impede de entrar, praticamente suplicando em falar-lhe. Ela tenta entender o que está acontecendo, sem dar muita importância à situação. Está preocupada com o horário, segurando a bolsa numa mão e uma série de documentos numa pasta azul. Na outra mão, digita no celular, tentando conseguir algum estagiário para o trabalho em campo. Detém, ao ouvir o seu nome. A mulher é magra e alta, cabelo vermelho, curto, aparentando quarenta anos.

_Susana? Você é Susana Medeiros?

O zelador que subia a escada, antecipa-se ao diálogo, esclarecendo que ela a havia procurado e não pudera impedir. Tentara explicar-lhe que daria o recado, mas a coisa parecia séria.

_Não se preocupe, João. Está tudo certo – e voltando-se para a mulher, a interroga sobre a gravidade do assunto, já que está em saída para o serviço. Esta, mostra-se decidida.

_Desculpe-me, mas precisei investigar onde morava. Não foi difícil, a senhora é uma jornalista bem conhecida. Se me der alguns minutos, eu agradecerei eternamente.

_A senhora quer falar sobre alguma coluna do jornal?

_Não, na verdade, trata-se de outro assunto. Eu não sei a quem recorrer, sabe. Aliás, não tenho muitos conhecidos influentes. Mas talvez a senhora possa me ajudar. Eu sei que você está fazendo uma entrevista com... – interrompe-se, enigmática – com Dona Úrsula.

_Sim, mas não entendo em quê possa ajudá-la. Dona Úrsula é a viúva de um jornalista, a fonte mais adequada para a biografia que pretendo fazer. O que a trouxe aqui, realmente?

_Eu sei, ela era mulher de um jornalista famoso. Foi até preso na época da ditadura. Ele fez uma reportagem na serra pelada, criticando aquele comércio e foi crucificado por isso. Mas esse acontecimento foi mais tarde, depois da prisão. Ele não se emendava.

_Pelo que parece, a senhora está muito bem informada.

_Ah, sim, sem dúvida. Sei muito sobre ele. Inclusive, se quiser, posso ajudá-la. Tenho o maior interesse, pode ter certeza.

_ Como a senhora o conheceu?

_Dona Úrsula deve falar muito no filho, não ?

_É verdade.

_Pois bem, eu sou a nora dela. A mulher do Luis Afonso.

_A das flores de plástico?

_Como assim?

_Desculpe. Uma referência, apenas. Coisa de jornalista. Como é seu nome?

_Roberta Célia. Pode chamar-me apenas de Roberta. Esses nomes compostos só atrapalham, sabe? É o caso do Luis Afonso, poucos o conheciam por Afonso. Já a velha, tinha a mania de chamá-lo por Luisinho.

_Sei. Mas então você é a viúva de Luisinho?

_Do Luis Afonso.

_Claro, me desculpe. Acostumei a chamá-lo assim, tal como Dona Úrsula.

_E também como se refere a mim?

_Como assim?

_A das flores de plástico?

_Foi um ato falho.

_Não se incomode. É assim mesmo. A velha sempre criticou as flores que levo para o túmulo do Luis Afonso. Mas olhe, se não se importa, poderíamos conversar na sua casa?

_Não me importo, de modo algum. Só que neste momento, é impossível. Estou indo direto para a redação do jornal. Tenho uma ideia, poderia ir comigo, no meu carro. Poderíamos conversar no caminho e marcamos um encontro para outra oportunidade.

_É que o jornal fica muito distante do meu caminho.

_Neste caso, marcamos outro dia?

_Se pudesse ser ainda hoje...

_Dê-me o seu n°, que eu lhe ligo, está bem assim?

Roberta Célia obedeceu, percebendo que esta seria a estratégia mais adequada. Ao cair da tarde, atendeu, animada.

Capítulo 13

Ao entrar no apartamento de Susana, porém, não demonstrava a mesma disposição. Parecia mergulhada numa espécie de contrição, de sofrimento interno, que a impedia de sentir-se à vontade. Vestia-se com simplicidade, mas bom gosto. Uma blusa cinza, com detalhes em faixas trespassadas salientando a cintura, acompanhando uma calça preta, que a deixava mais esguia. No pescoço, uma corrente de ouro, guarnecida com pingente em forma de pentágono. Observou o cenário em que se inseria, registrando rapidamente com o olhar arrebatado a estante de livros. Não que fosse muito adepta à leitura, mas interessava-lhe saber as coletâneas de crônicas organizadas pelo Jaime, inclusive as centenas escritas nos jornais, que estavam catalogadas em livros. Passeou em seguida os olhos pelo móvel no qual situavam-se algumas fotografias. Espichou o pescoço, tentando talvez encontrar a figura de algum conhecido. Todas as suas atitudes demonstravam grande curiosidade.

Susana convidou-a sentar e percebendo o interesse, comentou sobre algumas fotos. Apontou para um porta-retratos, indicando tratar-se de seu pai.

_Ah, seu pai. Um homem muito bonito, apesar da barba. Sabe, tenho uma aflição com homem de barba. Me incomoda. Mas e sua mãe, não consta nas suas fotos?

_Não. Tenho poucas fotos de minha mãe. Ela morreu muito jovem.

_Você é casada, Susana?

_Sou divorciada.

– Os casamentos hoje em dia não duram nada. A mulher se preocupa muito consigo mesma, com sua beleza, seu trabalho, suas amigas e deixa o marido de lado. Homem não gosta destas coisas.

_Você pensa assim mesmo?

_Sem dúvida, Susana, se me permite, a mulher está se excedendo em todas as áreas. Está além dos limites. Uma mulher decente deve se preocupar com o lar, com os filhos. Acho um absurdo deixar uma criança com a babá ou numa creche.

_Você tem certeza de que é deste século?

Roberta Célia detém-se, surpresa. Susana desculpa-se – desculpe, Roberta, mas pensei que estava apenas ironizando. Acha mesmo que a mulher deve só ficar em casa, cuidando dos filhos, do marido?

–Não, eu não disse isso. Seria uma idiota. Pelo contrário, acho que a mulher tem que sair, tem que badalar, ir às lojas, ao cabeleireiro, cuidar da aparência. Afinal tem que estar bonitinha quando o marido chegar do trabalho. Mas não deve se afastar das atividades sociais, das amigas sempre prontas para uma fofoquinha, você sabe, deve ter um monte assim, no seu jornal.

–Não, não. Ou melhor, deve ter sim. Sempre tem, em qualquer lugar.

–Mas você não é ligada, né? Já percebi. Você é voltada para os estudos, à pesquisa, à investigação – termina a última palavra enfatizando sílaba final, com certa censura. Reduz o tom e prossegue, entusiasmada – me diga uma coisa, Susana, mas não me leve a mal: será que não foi por isso que se separou?

Susana cala-se por um instante, aturdida.

– Deve ser, sim. Deve ser.

– Eu não disse? Aí tá o erro da mulher trabalhar fora. Veja que o seu exemplo reforça a minha tese. Mulher na rua é desperdício!

– Meus Deus, ela fala como um homem!

_Que disse?

_Roberta, você queria falar comigo sobre um assunto urgente, mas até agora, não disse a que veio. Seria melhor, começarmos, não acha?

Roberta Célia respondeu, eufórica.

_É claro, é claro. Preciso da sua ajuda. Inclusive, em casa, estive pensando, que em troca, posso ajudá-la na sua biografia. Sei de muita coisa do meu sogro.

_Sim, acho que você será muito útil.

Susana observava que Roberta Célia tinha o hábito de puxar a franja vermelha para trás num movimento continuo, parecendo ansiosa.

–Pois é, nem sei como começar. O problema todo está na cabeça dura de Dona Úrsula. Você sabe que ela tem uma casa, quer dizer, uma casa que não é só dela, é de dona Carmen, do irmão, o Carlos e minha.

_Sua?

_Sim, porque pertencia ao Luis Afonso também.

_Mas não haviam doado a ela?

_Diz ela, ninguém viu documento algum. Dona Carmem disse que foi só de boca e na ocasião em que o velho era vivo, todos concordaram. Porém, nunca corrigiram a situação, nunca registraram no cartório o consentimento de todos, entende? Eu já estive falando com um advogado a respeito. Ele foi taxativo. O Luis Afonso tem direito.

_Mas pelo pouco que sei, o irmão nem se interessa pela casa.

_É, esse nem se liga em nada. Além disso, o coitadinho ta numa fria, que dói. A barra pretiou pro lado dele.

Susana levantou-se dirigindo-se à janela, olhando de soslaio para a rua. Fingia desinteresse.

_Do que se trata?

_O namorado morreu.

_Namorado?

_É, ficou vexada? Você, uma mulher moderna, imagina a irmã e a própria Dona Úrsula! elas tentam abafar, fingem que desconhecem a viadagem do irmão, mas eu sei de tudo. O Tal Carlos tem um namorado há muito tempo. Agora o dito cujo morreu e o Carlos quer fazer o enterro aqui, na terra dele. Parece que os funerais serão ainda nesta semana. Vai trazer o corpo da Holanda.

_Mas dona Ursula não sabe de nada.

_Aquela vive alienada num mundo paralelo. Pouco liga para o irmão.

_Mas e Carmem?

_Ah, esta vem com o irmão, está dando todo o conforto a ele. Deve ter se atualizado ou pelo menos, fingindo que é apenas um amigo querido. Pelo que me contaram, ele quer a família inteira no velório do namorado, ou marido, sei lá. Mais conveniente, parceiro, não é mesmo?

_Tanto faz.

Roberta Célia faz um silêncio proposital. Com um leve suspiro, resmunga.

_Ele gosta muito de mim. Ele me quer junto – em seguida, altera a voz, agitada - será um funeral maravilhoso, estilo americano. Já alugou todos os serviços. Já pensou que luxo? Ficaremos hospedados numa mansão, com várias dependências, salas especiais com hometheater, bons quartos. Um hotel 5 estrelas. Era a vontade do amigo.

_Pobre Dona Úrsula.

_Mas o Carlos é muito rico, se deu bem no estrangeiro. Você sabe que ele trabalhou no ramo de construções na Arábia Saudita? Dizem que até mexia com petróleo. Essa gente é esperta, diversifica os empreendimentos. Diversifica até os relacionamentos, não é mesmo? – faz um gesto malicioso, escondendo a boca com a mão em concha. Logo prossegue no tom anterior - faz o que quer do dinheiro, tanto que aquela casa mixuruca nem lhe apetece.

_Então você quer que eu convença Dona Úrsula a ceder a tal casa para você.

_Pra mim, não. Para todos.

_Mas os outros não querem. Pelo que eu saiba, a irmã desistiu há muito tempo. Para ela, são águas passadas. Dona Úrsula mesma me contou.

_Pode ser, mas a minha parte tem que ser dividida. É justo, você não acha? Pra que aquela velha vai querer uma casa que nem usa? Pra pagar os remédios dela?

_Não sei, mas até para isso. Só quero lhe dizer uma coisa, Roberta Célia...

_ Por favor, só Roberta.

_Está bem, Roberta. Eu não posso me envolver nisso, por preço nenhum. Não posso trair a confiança de Dona Úrsula. Pra mim, ela é uma mulher autêntica, às vezes até severa demais, porque diz o que pensa sem meias palavras. Mas eu gosto muito dela.

Roberta Célia a analisa, examinando-a detidamente, como se quisesse mostrar que sabia alguma coisa de seu passado, de sua vida, quase uma ameaça.

_Parece que você se agarrou nela como uma tábua de salvação.

_Por que está dizendo isso? – Susana afasta-se da janela e volta a sentar-se. Segura entre os dedos, um folheto que estava sobre a mesa, na tentativa de tomar alguma atitude, como apoio.

_Você sabe.

_Não, eu não sei do que está falando.

Roberta Célia reflete um pouco, em silêncio. Abre a bolsa e tira uma carteira de cigarros, descolando o rótulo dourado, delicadamente. Retira um, levanta a cabeça observando a insegurança de Susana e faz o pedido: – sei que não é conveniente, mas posso ficar próxima à janela. Sou viciada, sabe?

_Sei o que é isso. Também fumei um dia.

Roberta Célia, que já se havia levantado, volta-se sorrindo, uma alegria infantil – é verdade? E como deixou?

_Ah, foi muito difícil. Com apoio, remédios. Mas antes de tudo, foi preciso decidir-me.

_Você tem razão. Decisão! Esta é a palavra chave – debruça-se na janela, enquanto acende o cigarro. Olha para baixo, sem nenhum interesse. Após a primeira tragada, jogando a fumaça para a rua, prossegue, contrita – eu sei que não vou conseguir. Não sou forte como você. Não tenho coragem, ousadia, força de vontade. Sou uma fracassada, sabe?

Susana sente-se importunada com o assunto, mas não tem como impedi-la. Sabe que Roberta Célia invade a sua privacidade, fazendo um jogo, do qual ela não conhece ainda o motivo. Tenta, pelo menos, mostrar-se interessada, evitando parecer ansiosa.

– Você está exagerando. Todos somos capazes de deixar o vício.

_Não. Há pessoas especiais, como você, outras são comuns, como eu.

_Se você pensar deste modo derrotista, nunca vai conseguir mesmo.

Roberta Célia dá uma última tragada e atira displicentemente o cigarro pela janela. Ensaia alguns passos em direção à Susana e teatralmente, segura-lhe as mãos.

_Que bom, Susana, que bom que quer ajudar-me. Eu sinto que você quer me passar esta força, esta vontade e lhe agradeço muito por isso!

_Ora por favor, Roberta – intervém, embaraçada - não cheguemos a tanto. Sente-se e vamos conversar. Espere, quem sabe você toma alguma coisa? Um licor, um vermute, talvez? – afasta-se, livrando-se da situação. Dirige-se a um armário antigo, com algumas bebidas.

Roberta Célia, por seu lado, revela-se muito à vontade com o diálogo.

_Se você tiver um licor de abricó, eu serei eternamente grata! Adoro, acho que é em virtude de um sabor da infância, uma coisa natural do subconsciente.

_Mas como assim? Como pode associar um sabor de licor à infância?

Roberta Célia dá uma risada exagerada, mostrando a gengiva vermelha e novamente, ajeitando o cabelo com as mãos.

_Ah, menina, não pense bobagens. Sou viciada no cigarro, mas em bebida, não.

_Eu não afirmei isso. Apenas estranhei esta sua lembrança.

Roberta Célia junta os joelhos e pousa as mãos delicadas, baixando a cabeça, mostrando-se triste. As unhas são vermelhas e longas. Raspa suave a meia de náilon.

_Na verdade, trata-se de uma mistura de emoções. Lembro de minha avó, que era de São Luís do Maranhão. Quando a visitava, tinha contato com a fruta, que ela adorava. Até costumava fazer doce de abricó, também o licor, sem dúvida. Sabe Susana, ela me pegava no colo, com suas pernas imensas, suas ancas gordas, fortes, me aninhava daquele jeito gostoso, gentil. Eu, pequenininnnnha – estica a sílaba, num sibilo de voz – ali, me ajustando naquele corpanzil, um conforto só. Ela tinha o cheiro doce, sabe daquele sabor do abricó, da fruta macia e agradável. Ah, lembranças da infância – enxuga uma lágrima com a ponta do mindinho – desculpa, não dá para evitar.

Susana procura uma bebida qualquer, tentando satisfazer a mulher e acabar de vez com o assunto. Não possui o licor de abricó e serve-lhe o primeiro que encontra.

_Se não se importa, vou lhe servir um Cointreau.

_Você só bebe coisa de primeira, heim? Dizem que este licor é um dos melhores! É feito de laranja. O Luis Afonso me explicava que a fruta não podia tocar no álcool, por um bom tempo, até desprender o seu bouquet, é assim que se diz, o aroma, não é?

_Me parece que você entende mais do que eu. Este licor ganhei de um amigo da redação.

_Você tem muitos amigos, né? É bom a gente ter amigos, sempre tem uma mão pronta a nos ajudar. Não é o meu caso. Depois que morreu o Luis Afonso, fiquei meio perdida no mundo.

Susana entregou-lhe o licor e dirigiu-se à poltrona. Ficou em silêncio, observando-a deliciar-se com a bebida. Tudo em Roberta Célia parecia desproporcional, desde os expressões dos sentimentos até os gestos triviais. Que pretendia aquela mulher na sua casa? Que troca era essa que supunha poder aceitar? Havia, no entanto, alguma coisa oculta, que não estava bem esclarecida. Resolveu então, clarear a situação.

_Bem, Susana, conversamos sobre vários assuntos, mas não está explícito o que deseja de mim. Eu sei que você quer a minha ajuda para convencer Dona Úrsula a fazer o inventário, ou desistir da casa. Mas, há algo mais. Você aludiu à dependência minha em relação à Dona Úrsula, estabeleceu-a, inclusive como uma tábua de salvação. Por quê?

_Susana! O seu licor está divino! Sabe que o Luis Afonso tinha razão? O Cointreau é melhor que o de abricó. Naturalmente, que o sabor da minha infância é que predomina no meu sentimento, mas...

_Mas chega deste assunto, Roberta Célia.

Toma o último gole, olhando nos olhos de Susana. Replica: apenas, Roberta, por favor.

_Então seja clara. O que quer de mim?

Roberta Célia larga o cálice sobre a mesa e coloca a carteira de cigarros dentro da bolsa. Volta-se para Susana e conclui: se estivesse nervosa, era o momento de pegar outro cigarro. Mas não se preocupe – antecipa-se, rápida, ante o olhar intrigado da outra – não é o caso.

_Então?

Susana funga, assoando uma inesperada alergia nasal. Silencia. Suspira fundo e encara Susana com serenidade.

_Bem, Susana, já que precisamos abrir o jogo, vou ser sincera com você.

–Estou esperando isto desde o primeiro momento – responde impaciente. A outra concorda, tranquila: eu sei. Mas há um tempo para tudo. A bíblia não diz que há um tempo para plantar e outro para colher?

–Roberta, me poupe dessas alusões à bíblia, por favor.

_Então está bem, Susana. Vou ser objetiva. Me parece que tem problemas demais. Problemas que podem evoluir para uma situação muito perigosa.

_Seja mais clara.

_Na verdade, eu só tenho você pra convencer a velha, mas você deve ter mais confiança em mim, porque sei coisas muito graves do seu passado.

Susana dá um salto da poltrona.

–Eu não tenho nada a esconder, você está louca?

–Não se desespere.

–Não estou desesperada. Estou achando tudo isso um grande absurdo, você vir na minha casa para fazer-me ameaças. O que você sabe sobre mim, afinal?

–A história triste de seu pai.

Susana sente um soco na boca do estomago, sem esboçar qualquer reação. Ensaia alguns passos, afastando-se de onde estava, juntando-se ao móvel das bebidas. Roberta Célia, ao contrário, continua na poltrona, fitando-a tranquilamente.

–Não culpo você, talvez na sua situação, eu agisse da mesma forma. Não é fácil tomar uma decisão que pode ceifar uma vida – Susana a interrompe mais uma vez, agora quase em desespero – o que você está dizendo, que história é esta? – Roberta prossegue convicta e serena – por isso, eu disse naquele momento que você era especial, que você toma as decisões com coragem, ousadia. Mas tudo tem um preço, Susana. Você deve à justiça, você sabe. Você não está limpa como todo mundo pensa. Então, eu pensei, podemos fazer uma troca. Eu não conto a ninguém o que sei e você convence a velha a dividir legalmente a casa. Quem saber doá-la em memória do Luis Afonso.

Desta vez, é Susana que mexe no cabelo, puxando-o num rabo, envolvendo-o numa única madeixa, logo desmanchando-a por completo. Volta-se para ela, os olhos congestionados, a voz rouca, insegura.

– O que você sabe?

–Tudo, minha querida, tudo.

– Não há nada contra mim. Eu não devo nada à justiça –defende-se, indecisa.

–Você tem certeza, Susana?

– O que você quer? Fazer-me chantagem, é isso? Pois saiba que não vou entrar na sua, não sou louca para entrar neste delírio.

_Se você pensa assim.

_Eu não penso assim, as coisas são assim. Sou uma mulher honesta. Quem é você para me dar lições em moral, para me ameaçar?

_Você está exagerando, amiguinha.

_Exagerando? Você quer usurpar-me, quer convencer-me a tirar os bens de outra pessoa e diz que estou exagerando?

_Você está me insultando, Susana.

_Pois estou sim. Você é uma idiota, se pensou que eu ia cair nesta sua paranoia, nesta armadilha que está tramando! E se me dá licença, saia da minha casa.

Mas Roberta Célia é fria, precisa. Joga a isca com objetivo, com certeza: se você considera uma paranoia matar o próprio pai, então...

Susana não se controla e a xinga, com ódio, correndo até ela e segurando-a pelo braço, agressiva – o que está dizendo, sua vadia?

_Me largue, não me insulte. Eu não sou vagabunda. Aliás, não sou a divorciada, cheia de amiguinhos, ganhando presentes...

Susana aplica-lhe um tapa com raiva. A outra enche os olhos de lágrimas e se afasta alguns passos, em silêncio. Tenta recuperar-se, pega a bolsa que estava estirada num canto da poltrona e retira novamente a carteira que havia guardado. Por fim, acrescenta.

– Eu fiz a minha parte. Tentei ajudá-la, certo, que queria a sua ajuda em sua contrapartida, mas você é cabeça dura, que nem a velha. Então dane-se. Você sabe onde procurar-me, se voltar atrás.

_Saia da minha casa.

_Se quiser saber detalhes, me procure. Não descobri tudo à toda. Tudo tem um motivo. É a minha chance e também a sua. Nossos destinos estão relacionados. Agora, depende de você, tocar o barco, ir à frente ou retroceder.

_Eu já pedi que saia da minha casa. Se ficar mais um minuto, vou chamar a policia.

–Isso, faça isso. Chame a policia. Quem sabe eu falo agora o que está aqui, engasgado na minha garganta, mas não quero brigar com você, pelo contrário, quero paz. Sou uma mulher de paz, da concórdia, do amor ao próximo. Não sou o que você esta pensando.

–Ah, tenho certeza de que não. É muito pior. É uma cobra cascavel.

–Que pena, Susana, como baixou o nível. Só para encerrar: eu ainda não desisti de ajudá-la. Me procure. Eu vou explicar tudo a você. Vou livrá-la deste carma, desta culpa, deste sofrimento. Sei que o que você fez foi por amor, foi o melhor para ele, coitadinho. Eu, ao contrário, não teria coragem de tirar a vida de um animal, quando mais de um ser humano, mesmo porque nunca se sabe se ele não teria alguma chance, a ciência está aí para comprovar a todo instante que as pessoas se recuperam. Mas sua alma, sua palma. – Susana digita rapidamente no celular. Roberta Célia a interrompe, aproximando-se e colocando-lhe a mão no ombro – não, por favor, não chame a policia, não se exponha. Eu vou embora. Mas tenha certeza de que vou procurá-la. Ainda seremos grandes amigas.

E afasta-se empurrando a porta com delicadeza. Susana a fita com um sentimento de impotência que atiça ainda mais o seu ódio. Quando a outra desaparece, desaba num choro convulso, em absoluto desespero. Corre ao banheiro, abre desajeitada, a porta do armário, as mãos tremulas, indecisas. Suas pernas parecem não obedecer o corpo, bamboleando no assoalho frio. Retira uma pílula de um vidro de remédios e engole em seco. Põe as mãos na cabeça por alguns segundos, olhando-se desorientada, no espelho. Depois, lava o rosto várias vezes, tentando apagar da mente a imagem absurda de Roberta Célia acusando-a. Dirige-se ao seu quarto com o celular na mão e digita o número de dona Úrsula. Não consegue evitar o choro, enquanto fala.

–Dona Úrsula, me ajude, preciso da senhora, preciso muito da senhora, por favor!

– Minha filha, que está acontecendo?

–Não posso explicar-lhe agora, por telefone. Precisamos conversar. Não tenho ninguém nesta minha vida, só a senhora.

– Então, que farei?

–Sei que não pode vir, mas não tenho condições de sair....estou muito abalada – interrompe-se, arrependida por ter envolvido a pobre velha em seu drama íntimo. Então, tenta desfazer a preocupação – espere, estou sendo egoísta, o que me aconteceu vai passar daqui a pouco, vou melhorar e logo que nos encontrarmos, eu lhe explicarei tudo. Não se preocupe comigo.

– Aconteceu alguma coisa grave? Você perdeu um ente querido?

–Não, não é nada disso.
¬

–Então eu vou aí.

– Não, a senhora não pode sair a esta hora da noite. Por favor, não. Lembra-se como é perigoso? Se for preciso, eu vou aí.

–Não seja boba, eu tomo um táxi. Não sou uma velha inútil. Só me dê o endereço, que esqueci. Se guardei na agenda, já perdi. Por favor, Susana, se quer ajudar-me também, deixe-me ir. Deixe-me ajudá-la, não pense que é só por você. É um gesto egoísta meu. Quero provar que sou útil a alguém. Por favor, deixe-me ajudá-la. Quero provar a mim mesma, que sou um ser vivo.

Susana cala-se, pensativa. Sente um ardor, uma força inexplicável na voz de dona Úrsula, que teme humilhá-la. Ela ainda insiste.

–Por favor, você acredita em mim, não? Acredita que eu sou capaz de alguma coisa?

–Está bem Dona Úrsula. Eu concordo, mas tome todo o cuidado, chame o taxista da esquina da farmácia, aquele que já a conhece.

Do outro lado da linha, ouve a voz inspirada, quase feliz de dona Úrsula.

–Pode deixar. Estamos combinadas. Eu vou até ai. Sabe que independente do seu sofrimento, você proporcionou uma certa alegria, me desculpe dizer, mas, me lembrei de Luisinho. É como se eu estivesse fazendo alguma coisa por ele, entende?

–Entendo.

–Então, vou desligar. Achei o seu endereço. Está bem aqui, na primeira página. Me espere ai, quietinha, está bem?

–Dona Úrsula...não desligue.

–O que foi?

–Quero dizer que a amo. Que a amo muito.

Úrsula sorri, emocionada. Reclama, com voz fraca – sua boba – desliga o telefone e prepara-se para sair.

terça-feira, fevereiro 09, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO IX

HOJE, TERÇA-FEIRA 09/02/2016, CONTINUAMOS O NOSSO FOLHETIM "PÁSSARO INCAUTO NA JANELA" COM O 9º CAPÍTULO.

Capítulo 9


Susana temia demonstrar o caos que estava sua mente e em seu coração. Quantas vezes viera à clínica, quantas vezes entrara naquele quarto de reflexos nas paredes, um quarto despido de vida, de sensibilidade, de sensações. Um quarto nu.

Entrou devagar, passos imprecisos, falseando o salto, como se obstáculos ocultos a impedissem de avançar, de se aproximar do homem que vivia distante, alienado, transbordando de dor e mágoa, ou apenas inerte, como uma poça dágua inatingível, escondida sob o alpendre, se deteriorando dia a dia.

Estava lá, na cadeira isolada na sala branca, de sombras esparsas na parede, como se o sol de vez em quando aparecesse entre as nuvens e produzisse figuras que passeavam indiscretas, incontestes sem qualquer censura. Figuras que não significavam nada, apenas a solidão, a apatia, o desapego dos vivos.

Ele a olhou como quem avista um objeto qualquer, um móvel, um livro já lido, um brinquedo velho, uma roupa usada. Logo desviou o olhar e se deteve nas mãos, examinando-as com cuidado, observando-lhes talvez as reentrâncias das veias que modelavam mapas frágeis, quase apagados. Mãos brancas, descarnadas, transparentes. Assim como a face, na qual Susana observava as veias azuladas, os olhos fundos, claros, com um brilho aquoso, disperso. A boca entreaberta, com falhas de dentes, o nariz saliente, vermelho, contrastando com a palidez do rosto. Examinava as mãos em direção à luz da janela, ora uma, ora outra. Às vezes, juntava-as em gesto de prece e punha-as no queixo, por alguns segundos. Logo desistia e prosseguia na posição anterior. Quando muito, cansava-se e abandonava-as sobre as pernas, vestidas em pijamas de algodão. Tão finas, tão frágeis, que escapavam da cadeira, os pés vez que outra, desandavam ao solo, caindo do suporte e assim, perdendo os chinelos de couro. Seus pés também tinham veias azuis e eram tão brancos e transparentes quanto as mãos.

Susana aproximou-se mais e pousou delicada, a mão nos cabelos raros, brancos sobre o couro róseo e talvez se observasse atenta, também veria veias azuis, como pequenos fios na iminência de serem rompidos.

Ele sorriu, reflexo do carinho inesperado. Mas ela não se animou: sabia tratar-se de reação instintiva. Doía ainda mais aquele sorriso desdentado, aquele olhar enfermo, quase infantil. Uma larva que se soltava do casulo, lentamente, metamorfoseando-se, despedindo-se da vida medíocre; quem sabe alcançando outra dimensão, tal como a borboleta, cujas asas pousam perpendiculares ao corpo, mostrando ao mundo o equilíbrio jamais acessado.

Em seguida, esqueceu o carinho. Voltou-se para a janela que jogava luz do pátio, fabricando sombras e deixou-se ficar, absorto, alheio a tudo, sem lembranças, sem passado, sem futuro.

Susana ficou ali, tentando lembrar a imagem do pai, no passado e carregar consigo apenas aquela, que lhe transmitia segurança, integridade, virtuosismo. Um homem que emancipara mentes, que programara padrões de comportamento, que nunca prescindira da realidade, que tratara os pacientes como indivíduos, revelando neles as capacidades que temiam enxergar. Agora estava ali, como um trapo inerte, um objeto obtuso, sem qualquer valor, a não ser deixar o tempo passar e consumir os momentos conclusivos de sua existência.

Afasta-se alguns passos e enxuga as lágrimas com o dorso da mão. Sente-se vergar como bambu ao vento, arremessado pela força invisível, cujas estratégias e comandos desconhece. Um peso que não consegue carregar com dignidade. Uma dor que corrói, avassala, destrói.

Suspira e passeia pela sala, tentando ver o que seu coração não admite: o mundo particular em que o pai se escondeu e dali não encontra saída, labirinto execrável, que também a envolve, que a esconde do passado, que a afasta do presente. Um mergulho irreal no cotidiano, vivendo do jeito disforme, estranho, de quem perde a fé, a esperança, o amor. De quem desconhece o sabor do carinho, do afeto, da chegada. De quem só avista partidas, cujas voltas nada significam a não ser o desvio da realidade para uma vida virtual que não é a sua. Nem a dele.

Aproxima-se novamente e o beija no rosto. Mais um carinho na fronte, mais um olhar nos olhos. Ritual que cumpre, apenas factível e rotineiro. Não queria permanecer ali, não queria aquela lembrança do pai, não queria assistir um fantasma, um corpo quase objeto. Repetiu os passos de volta, rapidamente e abriu a porta com cautela, sem fazer barulho. Ao torcer a maçaneta, porém, teve a impressão de uma presença, como se ele tivesse reagido de algum modo. Era apenas uma impressão, sabia. Um devaneio, um delírio. Mas havia algo estranho, um som inaudito, um sussurro, um suspiro inesperado. Largou a maçaneta, esfolando os dedos afoitos, voltou-se estarrecida. Ele virava o rosto em sua direção, fixando o olhar com ternura. Sua voz soou trêmula, sumida, mas com uma verdade tão lúcida, que a fez estremecer, segurando-se à porta. Suas pernas fraquejaram, seu coração antecipou-se, batendo desordenado. Seus olhos encheram-se de lágrimas. Seus ouvidos alertaram-se.

_Por favor, minha filha. Não me deixe perder a lucidez. Quando acontecer novamente, faça alguma coisa para o meu coração parar. Eu lhe peço. É um ato de amor.

Naquele momento, não conteve a explosão de soluços, como se as lágrimas se espalhassem, comportas fossem abertas, deixando evadir toda a mágoa e sofrimento. Era muito doído o que ele expressava. Mas ao mesmo tempo, muito humano e muito digno.

Não continha as lágrimas enquanto deixava o estacionamento do jornal. Naquele dia, especialmente, sentia-se desprotegida e só. O passado que revirava em virtude das conversas com Úrsula, inclusive a imagem desfocada do homem do prédio defronte, produziam em seu íntimo uma angústia que a oprimia. De repente, todas as culpas, todos os sentimentos estranhos de quem tomou uma atitude decisiva e inevitável, surgem em polvorosa, descambando por caminhos íngremes, irregulares, povoando a sua mente. Como se pisasse em charcos, moldando a lama, insurgindo-se entre ratos fugidios de bueiros ocultos, olhos reluzentes sob faróis inesperados. Sentia um arrepio estranho. Enxugava as lágrimas, tentando se recompor na presença do manobrista. Fez do pequeno espelho seu escudo, retocando a maquiagem, de modo a produzir um semblante tranquilo, escondendo o que seu coração oprimido revelava. Despediu-se rapidamente, enquanto outros colegas se aproximavam de seus veículos. O editor que havia discutido a pauta diária e ainda sugerido pressa na conclusão da biografia, correra ao seu encontro. Um homem magro, rosto fino e longo, olhos claros, argutos, de quem possui a sagacidade como instrumento preponderante de suas atitudes. Susana fingiu não vê-lo, mas o manobrista fez sinal com o apito, obrigando-a a frear o carro próximo a uma coluna.

O que aconteceu, Vinícius?

–Susana, acabei de obter uma informação importante sobre a sua biografia. Não podia deixar de avisá-la. Nem desci pelo elevador, pra poder alcançá-la mais rápido.

–Por que não ligou?

–Queria falar pessoalmente, é que se você quiser, podemos ir juntos. O lugar onde a fonte mora não é lá estas coisas de segurança. Um lugar meio mal afamado.

–De quem se trata?

–Um amigo do seu biografado. Parece que conhecia muito bem o Jaime. Pode ser até que você consiga outro viés da imagem dele.

–Você está muito interessado no meu trabalho.

–Sou o editor de reportagem, esquece? Que há com você Susana, to prestando um favor e parece não estar interessada!

–Desculpe, Vinícius. Estou muito interessada, sim. É que hoje foi um dia daqueles, você mesmo viu na discussão da pauta. Com a barafunda econômica que está o mundo, nós é que sofremos. Sim, porque atualmente, não há um especialista por área, todo mundo faz tudo, qualquer dia, um cara especializado em literatura, vai discutir economia.

–Que rebelião é esta, menina? Não se esqueça que sou o seu chefe.

–Está bem, chefe. Podemos conversar amanhã sobre a tal fonte?

–Eu pensei que poderíamos falar nisso mais tarde.

–Mais tarde, eu vou dormir. Agora, eu vou pra minha casinha e você pra sua. Só me diga o nome da pessoa, dona Úrsula pode conhecer.

–Parece que é um professor aposentado. Um tal de Gregório, se não me engano.

Quando se afastou do prédio, sentia a alma livre. Ainda observara a figura de Vinicius, conversando com o manobrista, todo sorrisos, como é do seu feitio.

terça-feira, janeiro 19, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO IV

HOJE TERÇA-FEIRA, 19 DE JANEIRO DE 2016, PUBLICAMOS O QUARTO CAPÍTULO DE NOSSO FOLHETIM. ESPERO QUE GOSTEM E CONTINUEM LENDO A SEQUÊNCIA DOS CAPÍTULOS.A RELAÇÃO DE ÚRSULA E SUSANA, CADA VEZ A COLOCA FRENTE A FRENTE COM SEUS PROBLEMAS E COMO CONSEQUÊNCIA UM APRENDIZADO QUE VAI SE EFETUANDO. CONFLITOS QUE SURGEM E ENFRENTAMENTO COM SEUS MEDOS E ERROS DO PASSADO. UMA HISTÓRIA DE AMIZADE E AFETO.

Capítulo 4

Às vezes, me surpreendo pensando em meu pai. Nem sei se em virtude da visita, mas as lembranças me vêem tão nítidas, tão poderosas, que tenho a impressão de experimentar as mesmas sensações daquela época. Esta noite, eu até sonhei, imagine, eu sonhar, eu que permaneço eternamente em minha janela, olhando o mundo, deixando que as coisas aconteçam, esperando que os últimos rumores da noite sosseguem dando lugar ao silêncio perturbador. Você vê, Rita, como são as coisas: fico ouvindo os primeiros gorjeios das aves. Sabe aquela espécie de jacarandá, quase na esquina, defronte à farmácia, ela é um recanto de pássaros. Se eu dormisse, por certo me acordavam, não tenha dúvida. Eles começam devagarinho a fazer seus primeiros contatos. É um bem-te-vi daqui, uma alma de gato dali, uma tesourinha, lembra desse? Elas vivem aqui, nas cercanias. Mas esta noite, aconteceu algo impressionante comigo. Eu adormeci, nem sei quanto tempo, claro que não foi grande coisa, não. O fato é que desandei de minha janela. Adormeci sentada na poltrona, os braços apoiados no parapeito, como uma infeliz. Mas o bom disso tudo é que sonhei com meu pai. Há tanto tempo isso não acontecia comigo, que estou quase feliz. Nem Dulcina me tira do sério, hoje.

Meu pai era um homem extraordinário, tinha lá suas teimosias, suas crenças antigas, mas nós sabíamos qual era o seu limite. Como ele trabalhava na marcenaria, um galpão enorme que ficava no nosso quintal, estava sempre por perto. Tinha consigo que os móveis que reparava eram obras de arte. Usava de cuidado, esmero, carinho e nós nem sonhávamos em mexer em nenhuma daquelas peças. Quando punha o olhar numa peça, se detinha em cada detalhe, a ponto de transformar um móvel danificado, num outro objeto, que não aquele. Era perfeccionista, não arredava pé, até dar-se por satisfeito. Mas quando estava conosco, principalmente à mesa, quase não levantava a cabeça. Era muito severo, de poucas palavras, talvez o seu universo se resumisse no seu trabalho e as coisas da casa não inspiravam tanto desvelo. Chegava a ser ríspido, distante, mas eu o sentia sempre por perto. Talvez porque o compreendesse. São estas coisas, Rita, que somente a alma pode absorver.

Numa dessas noites em que nos preparávamos para a janta, ele apareceu à porta tão estranho que minha mãe virou-se de súbito de suas panelas, como se não reconhecesse aquele homem. Seu olhar pairou no ambiente, cenário taciturno, modelado ao momento de indecisão em que passávamos. Meu irmão nem percebeu nada de diferente e ficou manuseando soldadinhos de chumbo sobre a mesa, preocupado que estava com a estratégia de guerra que engendrava em sua mente. Eu larguei o livro da Senhora Leandro Dupré, quase escondendo-o como se o olhar de censura se dirigisse a mim, em virtude da história tratar-se de uma mulher desquitada. Aproximou-se e dirigiu-se a um canto da peça, encostando-se no parapeito da janela para dar uma última tragada no cigarro de palha. Ali, voltava o rosto para a rua e deixava-se ficar, perdido, perscrutando o silêncio da rua. Minha mãe aproximou-se e disse-lhe alguma coisa quase em sussurro, mas alertei os ouvidos e suas palavras ainda ressoam em minha mente.
¬

_Você está certo que deve abandonar o barco, homem? Você não é um rato que abandona o navio. Aquela casa é sua, é a sua vida.

_Mas não tenho como lutar. A hipoteca vence daqui um mês. Se não entregar, vão tomar o maquinário, as minhas ferramentas. De que a gente vai viver?

_Úrsula sabe do piano?

_Como assim? Ela é uma criança e eu proíbo a você que fale alguma coisa.

_Mas precisa saber do piano.

Eu estremeci, minhas pernas batiam uma na outra como se uma enfermidade produzisse aquele movimento involuntário. Não conseguia afastar os olhos daquele quadro, pendurado na janela, tendo como fundo os últimos raios do dia. A noite se dissipava, mas a penumbra não esmorecia com a lâmpada fraca que guarnecia nosso teto. Meu irmão voltou para os soldados de chumbo, aproveitando que a conversa não lhe interessava. Senti o olhar de meu pai pousado por um momento em nossas figuras, então baixei a cabeça e fingi folhear o livro.

_O piano não. O piano fica!

_Mas eles sabem que tem um piano na casa. Se está tudo hipotecado!

_Mas não vão hipotecar o sonho de Ursula! Ah, isso não.

_Você sonha demais, homem. Pois se é assim, lute, lute pra não entregar a casa. Vamos pensar numa maneira, tem que haver uma maneira!

Ao dizer isso, ela voltou para as panelas, encerrando o assunto. Provou o molho, temperando o dorso da mão e esbravejou, em seguida, impondo a arrumação na mesa. Que Carlos guardasse os soldados e eu levasse aquele livro para o quarto. Que pusesse a mesa, que a comida estava pronta. Meu pai jogou a bagana fora pela janela e afastou-se por algum tempo. Quando voltou, o rosto ainda molhado, sentou-se no lugar de costume, fez as orações de rotina e não mais levantou a cabeça. Eu suspirei aliviada, meu piano estava salvo. Na verdade, o que era de minha avó.

Mas, por hoje chega dessas lembranças de antanho, Rita. Quando a gente fica velha, parece que o passado bate a nossa porta, todo o tempo. Mas não pode ser assim, você não acha? O mundo precisa está aí, para mexer a sua engrenagem e tocar pra frente. Mesmo que pessoas como eu, não tenham mais esperança nesta vida. Pensando bem, viver do passado, ainda é uma forma de viver.

Daqui a pouco, sairei com Susana. Ela tem lá os seus problemas, suas dificuldades, mas nada que não possa ser resolvido, na idade dela, no mundo em que vive, na geração de liberdade em que foi criada. Somos mulheres muito diferentes, eu nasci num mundo em que a mulher era dedicada ao marido, que viera de uma escola de mãe para filha, em que a mulher vivia de suas lides domésticas, suas habilidades com o crochê, a culinária, o cuidado com os filhos. Imagine que a Senhora Leandro Dupre, assinava o nome do marido, nunca o de solteira para entregar-se à literatura. Mulher escritora era mal vista naquele tempo. A maioria usava pseudônimos. Eu gostava tanto dos livros dela. Diziam muito o que ia em nossa alma. E o romance de Tereza Bernad, ela discutia o tema da mulher desquitada, um escândalo para época. Depois, veio “Éramos seis” e eu não parei de lê-la. Dona Lola não era a mulher submissa que outros escritores pintavam, ao contrário, era uma mulher de sua época, que se dedicava ao marido e aos filhos, que compreendia o seu mundo, o mundo feminino sem questionar, apenas isso. Seus questionamentos eram contra a injustiça, a desumanidade, o poder da guerra, do dinheiro, do preconceito. Era uma mulher autentica.

Escute, Dulcina acaba de atender a porta. Não quero confianças com ela, é extremamente mal criada.

Dulcina afasta-se da cozinha, rapidamente, enxugando as mãos no avental e pára por um minuto e mira-se no imenso espelho do corredor. Limpa o suor da testa com o dorso da mão direita, enquanto que com a outra, ajeita a gola da blusa, por debaixo do avental. Imagina ser o entregador de gás e sente um certo frenesi. Aquele homem jambo, sorriso aberto, lhe desperta uma certa atração, que a desconcerta. Abre a porta e sorri, escancarada, mas logo cerra os dentes, irritada. Espantada, estica o pescoço, numa interrogação.

Abre a porta e pára espantada. Estica o pescoço numa interrogação.

_Bom dia, Dona Úrsula está me esperando.

_Pra que?

_Bem, temos um encontro.

_Aquela lá? Minha filha, ela não sai nem que o prédio pegue fogo.

_Mas eu posso falar com ela?

Dulcina faz um muxoxo. Em seguida, com a mão esquerda espalmada, pede que espere. Afasta-se alguns passos e acrescenta: _vou anunciar.

_Não é preciso, Dulcina.

Dulcina se surpreende com a chegada inusitada da patroa. Explica-se, embaraçada.

_Ah, a moça tá aqui, lhe esperando, eu ia...

__Não se preocupe Dulcina. Parece que você tem muito a fazer na cozinha.

_Ih, tem caroço neste angu! – e afasta-se rebolando os quadris.

_Não lhe dê importância, Susana. Dulcina é muito ousada. Às vezes, desconhece o seu lugar.
_Não estou nem um pouco preocupada, Dona Úrsula. Ela é um tipo bem engraçado. Mas como está a senhora?

Úrsula percebeu os traços negros sob os olhos acinzentados de Susana, que lhe realçaram sobremaneira a pele clara. Os cabelos, hoje melhor acomodados, num penteado despojado, sem aquele esticado para trás do primeiro dia. Caíam-lhe levemente no rosto, voltados para o lado esquerdo. Pareciam mais curtos.

_Você cortou o cabelo, Susana?

Susana sorri, um tanto desconcertada, não esperando a pergunta. Mas sente-se feliz, em ser notada.
¬

_A senhora percebeu?

Imagine, se eu perguntei... Às vezes, acho que esta menina não pensa o que diz. Mas vá lá, tenho que ter paciência. Tenho que ter tantos predicados, que me assusto. Como que ser paciente, sem ser arrogante, ser delicada, sem ser falsa, ser educada, sem ser bajuladora. Os velhos tinham de se libertar disso. Na verdade, acho que a mulher nunca se libertou de suas convenções. Por mais que se diga que a mulher evoluiu, ela nunca terá a mesma liberdade dos homens. Nunca teve uma liberdade real. Sempre deve alguma coisa.

_Então dona Úrsula, está preparada para sairmos? Por um momento, pareceu-me que ficou indecisa.

_Não, de modo algum. Estava apenas pensando. Na minha idade, a gente pensa muito, sabia? – já estou me justificando. Que fazer, fui criada para ser educada. Além disso, tenho os meus próprios valores. _ Estou até bem disposta.. Ainda há pouco estava dizendo à Rita ... – ah, não devia ter mencionado Rita, ela jamais entenderia – eu disse Rita?

_Disse.

_Ah, falava com minhas flores.

_Ah, sim.

_E dizia que há muito tempo não sonhava com meu pai. Hoje tive boas lembranças. Mas se está pronta, podemos ir.

Dulcina observa da janela do apartamento a saída das duas. Dona Úrsula encaminha-se até o carro, com dificuldade. Se não fosse tão esnobe, por certo levaria uma bengala. Uma velha daquelas não devia andar por aí, falseando o pé nas calçadas irregulares. Mas elas que são brancas, que se entendam. Dulcina desiste da cena e volta para a sua cozinha. Espera que o mundo lhe sorria com mais calma, mais leveza, principalmente porque está sozinha. Corre até a sala contígua, liga o aparelho e som e tira da bolsa um cd de pagode. Começa a canta e sacudir-se no sentido aivoso da música, à medida que pega uma almofada aqui, colocando-a na posição destinada, uma revista acolá, enquanto dirige-se para as atividades em que estava.

Da rua, Úrsula levanta a cabeça, através da janela do veículo, como se suspeitasse do descomedimento da empregada. Mas logo a esquece, afogueada pelos raios do sol que parecem queimarem-lhe a retina. Franze o cenho, destemperada, reclamando da dor, suspeitando precisar de oculista. Susana oferece-lhe óculos escuros, que recusa terminante. Aos poucos, se acostumará. É questão de tempo.

Susana tenta criar uma atmosfera amigável entre as duas, tentando ser espontânea. Fala de seu apartamento, do trabalho incessante na redação do jornal, da academia que costuma frequentar bem cedo. Úrsula, por sua vez, comenta sobre Dulcina, sobre o temperamento exacerbado, no despreparo nas atividades de empregada doméstica e finaliza falando de suas poucas qualidades. Sabe, que apesar de tudo, precisa de sua presença, mesmo que a incomode um pouco.

_Por que ela a incomoda?

Úrsula faz uma breve pausa. Certamente concluiria que a causa principal era o próprio comportamento de Dulcina, mas nem sabe porque motivo, resolve ser sincera.

_Na verdade, me sinto bem sozinha. Incomoda-me a presença de Dulcina, o seu vai-e-vem pela casa, a sua habilidade em contar histórias, em se relacionar com as pessoas. Sabe, Susana, talvez eu tenha um pouco de inveja dela.

_Inveja?

Úrsula observa as ruas atentamente, sem olhar para Susana. Fala como se confessasse a si mesma.

_Sim, esta peculiaridade em ser mais aberta, em relacionar-se com facilidade, até mesmo a ousadia... ela é uma mulher livre.

_E a senhora é livre?

_Você acha que existe alguma mulher livre neste mundo, na ampla acepção da palavra?

_Mas a senhora acabou de falar sobre Dulcina...

_Dulcina é exceção à regra. Talvez porque o seu mundo seja muito distante do meu, do seu. Dizem os sociólogos que há duas classes que se permitem a liberdade: a classe dos dominantes, a classe alta, dos muito ricos ou até mesmo artistas e os miseráveis, muito pobres. Obviamente, Dulcina se enquadra no segundo. Claro que ela não é uma miserável, mas vive no meio mais rude, mais tosco que um ser humano pode viver.

_E a senhora nunca pensou porque acontece isso?

_Acho que nunca pensei nisso. As coisas somente acontecem, não ficamos refletindo porque isso é assim, porque aquilo se dá daquela maneira.

_É verdade. Mas a mulher venceu muitas barreiras. Atualmente, nós buscamos a nossa liberdade.

_Você acha? Mas não quero fazer panfletagem. Não me interessa modismos, nem feminismos, nem levantar bandeiras de luta. Estou muito velha para isso.

_Mas voltando à Dulcina, diria que a senhora gosta muito dela, só não admite isso.

_É uma bobagem.

_Pode ser, concordo. Mas o fato de reconhecer que ela a incomoda, já é uma ponte para chegar até ela, para vir a gostar dela. Não acha?

_Dulcina é uma bárbara, inculta, grosseira.

_Talvez a incomode o fato dela ser assim, realmente. É um entrave para o relacionamento de vocês.

_E eu quero me relacionar com aquela lá? Só me interessa a faxina que faz na minha casa.

_Mas ela poderia ser uma companhia agradável. Não a deixaria tão solitária.

Úrsula irrita-se com a insistência de Susana. Intransigente, recusa-se a continuar com o assunto.

_Por favor, Susana, este é um tema encerrado pra mim. Não insista.

_Está bem dona Úrsula. Acho que me excedi.

_Se excedeu sim. Dulcina é problema meu. Aliás, nem é assunto a ser abordado.

Susana calou-se um tanto arrependida de ter insistido. Não quer causar danos à entrevista. Úrsula representa a principal fonte de sua pesquisa e precisa conquistá-la.

Ao chegar ao cemitério, descem no estacionamento. Úrsula, por um momento, torna-se de uma palidez intensa, fraquejando as pernas, encostando o corpo no carro, com dificuldade. Susana a ampara, perguntando se quer voltar atrás. Quem sabe voltam outro dia. Úrsula ressente-se da indisposição, pede uma água, mas não pretende desistir da visita. Na primeira melhora, resolve seguir caminho e desfilam pelos corredores em busca do mausoléu onde estão o marido e o filho sepultado. Susana segura-a pelo braço, apoiando-a. Por um momento, Úrsula retrai-se, considerando uma ajuda desnecessária. Mas evitou mostrar-se ingrata e deixou-se levar pela mão suave e firme da jornalista. Aos poucos, sentia-se protegida e segura.

No túmulo, separaram-se, porque Ursula se antecipou indo ao encontro da fotografia do filho. Aponta, mostrando-lhe, como se estivesse apresentando-o como se vivo estivesse.

Susana observa o comportamento metódico, a maneira cuidadosa como se aproxima, a mão clara e tremula que estende no granito escuro, acariciando levemente a fotografia do filho. Ao lado, uma foto do pai, que ela reconhece ser o grande jornalista, motivo de sua pesquisa. Fazem um silêncio cúmplice. Susana percebe que Úrsula enxuga uma lágrima, com o dorso da mão. Funga, ajeita-se no corpo frágil e faz uma pequena oração. Em seguida, volta-se para Susana e pergunta: _você já perdeu alguém, Susana?

_Sim, minha mãe. Faz muito tempo.

Abaixa os olhos e volta-se para a imagem na lápide.

_Ele é lindo, você não acha?

_Sim, era um rapaz muito bonito. Não lhe deixou netos?

Uma sombra perpassa o olhar de Úrsula, como se o sol se escondesse por minutos e a nuvem negra ocultasse as nuances da vida que brotavam aqui e ali, revelando apenas sombras. Não esconde o ódio que brota inevitável e se espalha pela face e todo o corpo, como um espírito maligno.

_Aquela lá era estéril, uma figueira maldita.

Susana não fez nenhum comentário. A ira já era de bom tamanho. Acomodou-se num degrau do mausoléu, sentando-se reticente. Procurava organizar as idéias, comportar-se de modo distanciado de suas aflições mais íntimas, mas o ambiente soturno a deixava ansiosa. De qualquer forma, respeitava a dor daquela mulher que de alguma maneira confiava seus sentimentos a ela. Procurou mergulhar no tema, como se fizesse parte de sua vida.

Úrsula prosseguiu no mesmo tom agastado, embora com alguma mágoa, um sofrimento escondido que não se limitava apenas ao filho.

_Ela nunca foi uma boa nora. Na verdade, nunca gostou de mim, apenas me aturava. Aliás, fez o que pôde para separar-me de meu filho. Por isso, ele morreu de desgosto.

_A senhora nunca mais a procurou?

_Não tenho motivos. Não vou lhe mentir, eu a procurei sim. Afinal, éramos duas abandonadas pela vida. Ela perdeu o marido, eu o filho. Achei que devíamos nos unir.

_E não o fizeram?

_Não houve clima. Até me aproximei, no inicio. Mas logo em seguida, acabamos discutindo. Não valia à pena. O único motivo que nos unia, não existe mais.

_Mas a lembrança pode uni-las. Talvez vocês tivessem coisas a resolver. Certamente, seriam mais felizes se conversassem, talvez até, se discutissem.

_Como você pode me sugerir isso? Você não sabe quem é aquela mulher.

_Realmente, não sei nada dela, mas diz a experiência que se houver diálogo, tudo pode se resolver.

_É muito fácil falar, é muito fácil. Na sua idade, tudo é possível, tudo se resolve na conversa. Mas não é bem assim, Susana. Há marcas intensas, que nada pode apagar. Há feridas que não curam.

Susana respira curto. Reflete que não é o caminho certo, que precisa de uma brecha para embrenhar-se no tema principal, que é motivo da entrevista. Então dispara à queima roupa. Quem sabe, uma sacudidela, resolve.

_Seu marido parecia um homem muito tranquilo.

_Jaime era um fascinado pela vida. Não deveria ter ido tão cedo.

_Mas foi um homem que viveu a plenitude da vida, que realizou-se como jornalista, como pai, esposo. A senhora o amava muito, não é verdade?

Úrsula adoça a voz. Fala em tom mais baixo e pausado.

_Sim, eu o amava muito – e retribui a pergunta, o que deixa Susana perplexa. Parece que há uma barreira, um obstáculo forte que ela interpõe, sempre que tenta aproximar o tema do marido – e você, ama alguém?

_Eu? Talvez não assim com esta intensidade.

_Mas o que sabe de minha vida? O que você sabe, Susana, leu nos jornais. Não é melhor ouvir mais fontes para conhecer melhor, para saber como era o meu relacionamento com Jaime?

_Sim, sem dúvida. Tem razão, tudo que sei é o que dizem por ai nas revistas, nos jornais ou até mesmo nas redações. Não se esqueça que ele sempre foi exemplo para muita gente.

_Mas você não me respondeu. Você tem namorado?

_Fui casada por dois anos. Felizmente, não tivemos filhos. Atualmente tenho um namorado, mas as coisas andam meio frias entre nós.

_Hoje em dia, as mulheres pulam de galho em galho, de cama em cama. Você acha isso liberdade? Querer ser igual aos homens?

–Não é um assunto para discutirmos neste ambiente, não acha?

_Talvez para você. Pra mim é o lugar ideal. Aqui estão os três homens que amei.

_Três?

_Sim, me refiro também a meu pai. Além disso, é aqui que quero ficar, quando morrer, ao lado de meu filho e de Jaime. Mas se aquela morrer, que fique bem longe de mim. Não a coloquem no mausoléu da família, ela não merece.

_A senhora se refere a sua nora?

_E quem haveria de ser?

_As perdas ficam maiores e mais pesadas, quando se tem amargura, rancor.

_E o que você sabe de amargura. Que experiência tem você da vida, para me dar lições? Ora vá pro diabo! – e afasta-se, resmungando, abandonando em definitivo a discussão que não admitia.

Susana percebe que o destempero de Úrsula é uma maneira de recusar-se a discussão do que considera ponto pacifico, do que não pretende afastar-se um milímetro em suas concepções. Tenta segui-la, mas um gesto de Úrsula a impede, deixando-a estagnada, sem mover um músculo. Empurra-a com o cotovelo, mexendo o corpo descompassado em direção a um banco de pedra, ali perto. Susana a acompanha com o olhar. Deixa-se ficar quieta, pensando numa provável saída. Talvez se pedisse desculpas, se voltasse a falar no filho, se perguntasse alguma coisa agradável sobre o marido. Mas o que dizer frente a uma atitude inóspita, inesperada? De repente, percebe que Úrsula a espia de soslaio, com uma expressão mais triste do que brava. Sente-se encorajada a aproximar-se. Ensaia alguns passos e pousa as mãos delicadas em seus ombros, produzindo uma leve massagem.

_Desculpe, Dona Úrsula. Não quis ofendê-la.

_Mas ofendeu. Eu não vim aqui pra isso, pra ficar escutando idiotices. O meu ouvido não é penico!

_A senhora tem razão. Meu objetivo não é esse, ao contrário, quero aproximar-me da senhora. Olhe, se deixar, posso ser sua amiga.

Úrsula levanta os olhos, amuada. Pergunta como uma criança emburrada. _E você acha que é possível? Não foi um bom começo.

Susana calou-se. Deu meia volta e perguntou: _Não trouxe flores?

_Não, apenas faço minhas orações.

Ficaram as duas, em silêncio. Úrsula se persignou e rezou por alguns minutos, no lugar onde estava. Depois, levantou-se lentamente, sugerindo irem embora. Antes que Susana respondesse, alguém exclamou o nome de Úrsula com indisfarçável surpresa.

terça-feira, janeiro 12, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA VIDRAÇA - CAPÍTULO I I

HOJE TERÇA-FEIRA, 12 DE JANEIRO DE 2016, PUBLICAMOS O SEGUNDO CAPÍTULO DE NOSSO FOLHETIM DERRAMADO. ESPERO QUE GOSTEM E CONTINUEM LENDO A SEQUÊNCIA DOS CAPÍTULOS.

Capítulo 2

_Pois não?

_A senhora é dona Úrsula?

Tive vontade de responder, sim, tal como a matriarca dos Cem anos de solidão do Gabriel Garcia Marques. Mulher de fibra, mesmo cega, se mostrava forte, valente. Mas não disse nada. Talvez nem conheça o livro. As jornalistas de hoje em dia são feitas a martelo, como dizia o meu pai. Ele sempre se queixava dos ajudantes. Detestava gente incompetente.

_Desculpe, não entendi o que disse.

Não disse nada, só pensei. Às vezes, penso demais e falo de menos. Também, nesta solidão em que vivo. Costumo falar com minhas plantas. Certamente, me dão mais atenção do que qualquer jornalista interessada em bisbilhotar. Desculpe, Rita, às vezes sou assim, ingrata.

_E quem é você?

_Meu nome é Susana Medeiros. Nos falamos ao telefone, lembra?

_Sim, mas falei com tantas pessoas. E não a conheço pessoalmente.

_Trabalho no Diário de Hoje.

_Não a esperava. É que vem tanta gente aqui, este apartamento está sempre cheio.

_Que bom. Nós combinamos que seria hoje, mas se tem outro compromisso, trocamos de dia.

_Não, não, por favor, entre.

Nunca pensei que seria assim, dissimulada. Na verdade, nem sei porque agi desta forma, talvez para demonstrar que não sou uma mulher solitária, que a casa vive cheia tal como a de Dona Júlia. Detesto a piedade alheia.

Mando-a sentar na poltrona a minha frente, propositalmente, para que tenha a visão da parede como um todo, repleta de quadros, e certificados. Seu olhar pode desviar-se após a sala e ter uma visão gratificante do piano. Logo vai avistar seus olhos intencionalmente perdidos, sua boca entreaberta, revelando um desejo oculto. Femme fatale. Os homens a adoravam, Rita. As mulheres a invejavam.

Agora percebo que é uma moça bem vestida, elegante, mas tem um quê de humilde que não sei muito bem identificar. Talvez a maquiagem inexpressiva, quase transparente e o cabelo penteado para trás, parecendo uma freira recém saída do convento. A roupa é impecável. Um conjunto de blazer e calça na mesma cor, um tom escuro, me parece verde musgo ou azul petróleo, não sei bem – meus olhos já não são os mesmos! Pouco sorri, mas os dentes são claros e muito alinhados. Entretanto, ela não tem nada de glamour, de sedução, de elegância interior.

Será que sirvo alguma coisa? Talvez um chá, é de bom tom. Daqui, posso me olhar no espelho. Bem estratégica esta minha posição na poltrona. Estou perfeita, apesar de todas fragilidades. Depois do banho, soube me ajeitar com cuidado, você não acha? Meu cabelo está penteado, comprido a mais do que devia e a tinta está escassa. Infelizmente, foi difícil esconder a raiz branca. Além disso, as minhas joias não realçaram nesta blusa branca. Talvez contrastassem com uma cor viva, até mesmo o preto daria melhor efeito. Fiquei tanto tempo escolhendo a roupa e não chegava a nenhuma conclusão...

_Muito bem, Susana, o que você quer saber? Espere, espere. Antes de começar, não gostaria de tomar um chá comigo?

_ Aceitaria um cafezinho mais tarde.

Um cafezinho. Estas jovens de hoje não sabem o que é tomar um chá com elegância, Rita. Não se esmeram em pelo menos parecerem finas. Certamente, quer um cafezinho para acompanhar um cigarro. Mas aqui, no meu apartamento, não admito que fumem. O Jaime fumava tanto, mas naquela época, fumar era um deleite, um prazer, um ato quase imponderável, como a vida ou a morte. Você sabe. A redação era uma névoa só. Uma fumaça que se espalhava e se acumulava. Fazia parte do clã. Um grupo de fumantes. Eu, ao contrário, detestava aquele cheiro de nicotina. Mas não me aborrecia tanto quanto hoje. Talvez pela falta de ar que às vezes, sinto.

_Não se preocupe com isso. Na verdade, gostaria de começar a nossa entrevista. Não se assuste, não é nada formal, apenas uma conversa espontânea, sem qualquer constrangimento. A senhora falará apenas o que lhe for conveniente.

_Jaime era um homem muito querido.

_Se a senhora permitir, eu gravarei a entrevista, ou melhor, a nossa conversa. Ficará mais fácil para eu organizar os textos.

_Você pretende escrever um livro sobre ele?

_Sim, sobre a vida dele. Um grande jornalista que foi de certa forma, esquecido. Que viveu no tempo da repressão, que fez grandes reportagens.

_É verdade.

Não consigo acrescentar nada. Não sei o porquê, mas fiquei nervosa, de repente. Talvez por mexer no passado. Não é bom ficar relembrando o passado para estranhos.

_A senhora ficou pensativa...

_De repente, achei que devia mostrar-lhe o meu apartamento. Quero que saiba mais sobre a minha vida.

Ela me encara de uma maneira estranha. Talvez pense que enlouqueci, mas não quero falar sobre o Jaime agora. De qualquer modo, obedeceu, sorrindo. Ela sabe que precisa agradar-me. E sei que precisa de mim. É um jogo, no qual tentamos compor as peças, dar as cartas sem blefar. Com cuidado, atenção. Uma depende da outra e ela muito mais de mim, do que eu dela. Reparei que tem os olhos claros, nem verdes, nem castanhos, uma cor indefinida.

Ao meu lado, mostro-lhe o piano, falo das inúmeras apresentações que dei, em toda a minha vida, do tempo em que lecionava no conservatório, até de pequenos saraus, que se realizaram em minha casa. Sinto que ela olha para você com sincera curiosidade.

_ É Rita Hayworth?

Apenas fiz um gesto de assentimento. Não quero falar de você. Não deveria ser óbvio para ela. Quase uma invasão de privacidade.

_A senhora sempre morou aqui?

_Não, nós morávamos numa casa imensa, um verdadeiro paraíso: com jardins, árvores, muito espaço. Herança de meu pai, um homem esforçado que se ocupava de marcenaria, sabe? Estava sempre repleta de amigos. Houve um tempo em que alguns se hospedaram em nossa residência. Não lembro muito bem o ano, mas Jaime havia voltado de uma viagem da Serra dos Carajás.

_A serra pelada?

_Exatamente. Mas veja, aqui costumávamos ficar horas e horas olhando o pôr-do-sol. Eu, sentada ao piano e... – não consigo prosseguir. A voz falha, a emoção domina. Pudesse tomar distância do passado e tocar de leve, com cautela, apaziguando a ferida.

_Alguma lembrança má?

_Não, uma lembrança muito boa, mas triste.

_Então, não vamos falar nisso. Quem sabe, voltamos para sala?

_Não, eu quero falar. Não se trata de Jaime.

_Não?

_De Luisinho, meu filho.

Não conto em detalhes, apenas comento: quando ele vinha, as noites eram menores, mais felizes. Costumava ficar ao meu lado, até as luzes da cidade ficarem intensas, visíveis. Vez que outra, me ouvia ao piano ou apenas confidenciava um problema, uma preocupação. Seus silêncios nunca eram interrompidos por mim, pois quando aconteciam, eu sabia que alguma coisa estava errada. Se quisesse, me contava. Não o forçava, mas via de regra, acabava abrindo a alma. Somente eu o entendia. Quando a noite caía, examinávamos com cuidado, a lua. Mas não por muito tempo, porque era a hora de voltar para casa. Às vezes, eu percebia que ele escondia algum sofrimento.

_Seu filho não vem mais?

Não se devia exigir tanto dos velhos. Como explicar que ele morreu há cinco anos? Como revelar a dor que senti e que sinto todo este tempo? Como dizer que não sei o que é dormir à noite, há tanto tempo? Depois de falar-lhe rapidamente, vou preparar o maldito cafezinho.

_Eu a acompanho, se não se importa.

Quem diria? Será que ela está sendo gentil apenas ou teve pena do meu sofrimento? Que seja gentileza, mesmo falsa, é menos doído.

Ela me segue batendo o salto no parquê. Devia ser mais comedida. Pelo menos, se esforçar em ser delicada. Caminhar com nobreza, mal tocando o salto no piso. Quase pairando no ar, tal como você. (Eram outros tempos, Rita). Ao contrário, parece caminhar aos atropelos. Quem sabe está aflita, porque ainda não conseguiu nada de mim. De qualquer maneira, está ao meu lado e já aciona a cafeteira.

_A senhora mora sozinha?

Ela não parece jornalista, só faz pergunta idiota. Mas hoje em dia, todo mundo pensa que sabe tudo. Vai ver que é o caso dela. Não respondo, mudo de assunto.

_Sabe que daqui eu só posso ver os fundos dos outros apartamentos? Diferente da sala de música, que dá para a esquina. Mas é bem divertido. Desta janela, vejo centenas de pombais, gente que entra e sai fazendo nada. Às vezes, só as empregadas aparecem, outras vezes, alguns fumantes. Você fuma?

_Não. Mas a senhora, me parece, gosta muito de ficar na janela. Na frente do apartamento também tem uma bela vista.

_Se você considera uma bela vista, um prédio imenso que encobre o meu sol, com um velho parado na frente da minha janela...

_Um velho?

_Um dia, eu falo sobre ele. Mas sente-se aí. Vamos tomar o café aqui mesmo, na cozinha. Trouxe o gravador?

_Sim, está comigo.

_Imagino que você como todo jornalista é uma pessoa muito curiosa e crítica. Então, o que me diz de pessoas que falam sozinhas? Mas por favor, sem demagogia, não vá me dizer que é coisa de solitário.

_A senhora tem este hábito?

Não sei porque ela tem o dom de me tirar do sério. Sempre responde com outra pergunta. Que pretende dizer, que sou uma velha caquética como o outro aí da frente?

_Pela sua expressão, vi que não gostou muito da minha pergunta. Mas não quis ofendê-la. Para mim, é muito natural. Não se refere a pessoas solitárias apenas. Pessoas sozinhas, não obrigatoriamente solitárias.

_Na verdade, falo com minhas plantas. Tenho centenas de violetas, samambaias, azaleias, inclusive uma mini roseira num vaso. Conheço cada uma, sei o que sentem quando me aproximo, quando as acaricio. Elas conhecem a minha voz. Não pense que sou louca.

_Imagine, isso é fabuloso. A senhora é uma pessoa rica, criativa. Uma pessoa de valores.

_Quando perguntei, não pretendia falar de mim.

_Não?

_Do velho aí da frente. Ele costuma falar sozinho, olhando para a rua. Às vezes, até ri. Nunca me encara e quando o faz, desvia os olhos rapidamente.

_Então, no caso dele, deve ser solidão profunda.

_É verdade... Deve ser. Sabe que uma vez eu o vi pelado?

_E o que a senhora sentiu?

_Nada, ou melhor, nojo! Um velho magrela, descarnado. Parece um espectro, quase um espírito. Você me respeite!

_Desculpe-me dona Úrsula, não me interprete mal.

_Aqui não tem outra interpretação, moça. Não se faça de idiota.

Acho que me calando alguns minutos, permanecendo assim, emburrada, ela perceberá que tem que escolher as palavras quando se referir a mim. Provavelmente, se esforçará em pedir desculpas e tentar me conquistar de alguma forma. Pois que faça, porque não deixarei que inspire qualquer sentimento desavergonhado em relação a mim. Ora, que diabo. Pensar que eu poderia sentir alguma coisa por aquele velho! Ela está brincando comigo!

_Dona Úrsula, nós tomamos café, aliás, maravilhoso. Conversamos sobre várias coisas, mas não falamos ainda sobre seu marido.

_Você já cansou de mim, não é mesmo?

_De modo algum. Acho, inclusive que vamos nos encontrar diversas vezes, talvez irmos a lugares que a senhora costumava ir com o seu marido. Acho que uma boa razão para ficarmos juntas.

_Praticamente não saio de casa. Apenas, para visitar o túmulo do meu filho. Ele morreu há cinco anos. Ele era a vida desta casa. Quando estava aqui, era uma casa cheia. Bastava a sua presença. A mulher, era uma desqualificada, mal-educada. Não servia pra ele.

Depois que ele morreu, tentei me aproximar dela. Acho que deveria perdoar tudo que me fez sofrer. Ela o separou de mim, sabe? Ou melhor, tentou me separar, mas ele foi forte, nunca cedeu. Esteve sempre ao meu lado, embora vivessem às turras.

_Faz muito tempo que isso aconteceu?

_Cinco anos. Cinco anos que não durmo, que caminho por entre estas salas, esperando as horas passarem, para chegar o novo dia e começar o que nunca terminou. A vida pra mim, não tem intervalo, interrupção, não tem começo nem fim. É tudo uma coisa só.

_Talvez a senhora precise de ajuda.

_Preciso de uma luneta potente.

_O que disse?

_Um binóculo, uma luneta. Bobagem minha. Mas tenho pensado muito nisso. Já que passo as noites acordada, nada mais justo do que olhar o mundo.

_Quando todos dormem.

_Mas por hoje chega. Não quero falar mais nada.

_Está bem. Não quero que a senhora se aborreça. Amanhã, voltamos a conversar.

Quando ela se prepara para pegar a bolsa e a pasta de documentos, volto-me para o corredor e vejo o reflexo do velho na vidraça da porta que divide a sala de estar com a do piano. Estou certa de que está na postura habitual, olhando o nada e falando ao mundo. Quase sem querer, chamo-lhe a atenção.

_Espere, o velho está na janela debruçado. Está falando sozinho, e observe que não há nenhuma flor por perto.

_Mas é do outro lado da rua. E a senhora não pode vê-lo daqui, da cozinha.

_Venha comigo. Tenho certeza de que está lá. Eu posso entendê-lo pelos lábios. Vamos tentar descobrir.

Você viu o aconteceu, Rita? Quando fomos à janela, não consegui me concentrar na fisionomia do velho, pelo menos um bom tempo. Percebi que Susana estremeceu. Seus lábios, de súbito ficaram descorados. Quando o seu cotovelo gelado tocou-me o braço, pensei que fosse desmaiar. Talvez uma lembrança, um fato triste do passado tenha lhe despertado um sentimento de fuga, de medo e angústia.

_O que você tem? Está chorando? Se emocionou com a história dele?

_Não sei qual é a história dele.

_Você não ouviu?

_Não ouvi nada. Não sei ler os lábios, dona Úrsula.

_Mas viu o enfermeiro chegando, não viu?

_Por favor, Dona Úrsula. Nós combinamos um outro dia.

_Escute, eu posso ajudá-la. O que aconteceu?

_Nada, não se preocupe.

_Mas você chorou. Se não foi pelo velho...

_É que, por um momento, eu lembrei meu pai. Mas não há nada que se possa fazer.

_Ah, meu Deus, só me faltava esta, uma jornalista com um drama.

_Exatamente por isso, dona Úrsula. Não devo misturar as coisas. Estou aqui, como profissional.

_Mas quem sabe, eu possa ajudá-la. O que aconteceu com ele?

_É uma longa história. Outro dia, lhe conto.

_Se você quiser, eu posso sair com você. Amanhã, vou visitar o túmulo do Luisinho. Você pode vir aqui, me buscar eu falarei sobre Jaime, prometo.

Às vezes, ela me observa como se avaliasse um vaso velho de porcelana. Não sei se quer realmente sair comigo. Se não quiser, que o diga e, se não precisa de minha ajuda, que se ajeite sozinha.

_Está bem, dona Úrsula, a princípio não há nenhum inconveniente. Podemos marcar uma hora?

_Pode ser às três. Você liga meia hora antes, para eu me aprontar. Sabe que também fiquei com pena do velho? Nunca ele falou tanto em toda a sua vida.

Estou assim, pensativa, que embora Susana tenha ido embora, ficou alguma coisa nova aqui dentro. Nem sei explicar o quê, mas uma pequena mudança, um sopro de vida. Por um momento, me senti útil, como se a tranquilidade daquela menina dependesse de minha ajuda, do meu apoio. Sinto que ela precisa de mim. Talvez todos precisemos uns dos outros em algum momento da vida. Pode ser a vez dela. Aquela humildade que surpreendi em sua fisionomia não passava de uma sombra, um sofrimento denso que ela tenta ocultar.

De qualquer maneira, é bom que eu esqueça este assunto e retome as minhas coisas. Quem sabe, desenrolar aquele novelo de lã velha e retomar o meu tricô. É uma boa maneira de passar o tempo e aliviar o peso das horas.

Sempre que o interfone toca, sinto um estremecimento. Acho que ando ansiosa. Será que Susana esqueceu alguma coisa?

_Quem? Susana?

_Sou eu, dona Úrsula. Dulcina.

_Que Dulcina? Não conheço nenhuma Dulcina!

Esta gente tem mania de se apresentar com tanta intimidade, como se eu fosse obrigada a conhecer todo o mundo. Imagine, não estou interessada em comprar nada, nem atender ninguém, muito menos receber santinho de candidato. Já basta a visita que tive hoje. Valeu pelos próximos meses!

_Moça, não sei do que está falando. Deve ter errado de apartamento.

_Só se a senhora me despediu. Sou a empregada! Esqueceu?

_Não esqueci, atrevida. Você fala como uma doente! Vá, vá entrando e não se demore, porque a casa está imunda!

Como o tempo passou depressa, a ponto de esquecer que Dulcina estava a caminho. Pronto. Acabou o meu dia. Agora, precisamos nos separar, Rita. Me fecho na vida.

Não confio nesta Dulcina e não quero intimidades. Acabou. Falo só o que interessa. Se possível, nem penso.

Úrsula abre a porta, afastando-se em seguida para a poltrona mais próxima, onde afunda-se lentamente deixando as pernas na banqueta. Deixa-se ficar absorta, articulando cuidadosamente os nós de um novelo de lã usada. O silêncio pesa, absoluto. Para ela, a cortina caiu e o espetáculo acabou. O auditório esvazia. Sente-se caminhando entre os corredores, ainda aspirando o odor recente das pessoas nas cadeiras. Os ruídos, as vozes que se despedem, as risadas longínquas, o empurrar de móveis nos bastidores. Observa, vez que outra, a parede dos certificados e quadros e fotografias, sem perceber a presença de Dulcina. Mas esta enche um ambiente. Estabanada, voz grave e em tom avantajado, braços carregando sacolas e uma bolsa sintética vermelha. Esbraveja, ofegante.

_O ônibus tava uma loucura. Fiquei presa entre a porta e o cobrador. Quem disse que eu passava pra frente? Parece que o povo todo resolveu sair pra rua, nem é feriado nem dia santo, meu Deus!

Sem obter resposta e talvez sem preocupar-se com isso, dirige-se à cozinha, solta as sacolas sobre a mesa, guarda a bolsa num armário na área de serviço e retorna, vestindo um avental xadrez. O suor envolve a testa, vindo da nuca, fazendo-a apertar os olhos doídos.

_Que bicho lhe mordeu? A senhora tá esquisita! Toda maquiada, parece que vai a uma festa. E estas joias do fundo do baú? Aconteceu alguma coisa? Esquecer que o meu nome é Dulcina, que trabalho nesta casa, é normal.

Ela levanta, dá alguns passos até a o piano e a encara com os olhos sublinhados a lápis, olhar afiado.

_A rotunda precisa de uns ajustes. Não sei se reparou.

_Rotunda? Por que a senhora não fala língua de gente? Já sei, se refere ao mural da sala de troféus.

_Você realmente nunca entenderá Dulcina – e levantando-se, passeia pela sala, deixando a linha de lã seguir-lhe os passos – rotunda é o pano de fundo. O veludo está ruço, branquicento. Dê uma escovada nele, só isso que lhe peço.

Na porta, ainda ouve a censura rotineira de Úrsula.

_Você não faz juz ao nome que tem. Já lhe disse que Dulcina foi uma grande atriz de teatro? Dulcina de Moraes, uma diva.

_Sei também que Ursula foi a mulher do tal Gabriel Marques. Mulher de fibra, cega e valente. Se tivesse que pegar uma condução até aqui, aturar o cheiro de estivador de banho vencido há três dias se esfregando na gente, não ia ter tempo pra essas baboseiras!

Úrsula empurrou o novelo com o pé, fazendo rolar até a poltrona. Voltou a sentar-se e puxou o fio devagar, tentando levantá-lo do piso, mas inevitavelmente o desenrola. Resmunga, baixinho: – esta imprestável. Não serve nem pra me pegar o novelo.

Desiste do novelo, deixando-o sob o pé da poltrona. Esquece-o e abaixa a cabeça, desconfortada. O cheiro de realidade que Dulcina traz da rua a incomoda. Tudo a irrita: desde seus passos descontrolados pela casa até a música que ouve na rádio. Os ruídos de uma vida sem glamour.

fonte da ilustração: Chelli http://mrg.bz/86qRjl

quinta-feira, janeiro 07, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA VIDRAÇA - CAPÍTULO I

ESTE É O SEGUNDO FOLHETIM QUE PUBLICAMOS EM CAPÍTULOS. COMO NO ANTERIOR, SERÁ PUBLICADO NAS TERÇAS-FEIRAS E QUINTAS-FEIRAS. HOJE QUINTA-FEIRA, 7 DE JANEIRO DE 2016, PUBLICAMOS O 1º CAPÍTULO. ESPERO QUE CURTAM E VOLTEM AO BLOG PARA ACOMPANHAR A SEQUÊNCIA. OBRIGADO.

Capítulo 1

Não sei se me arrumo de jeito. Quero ter as coisas no lugar e os dias passam rápidos que nem me dou conta. Acho que preciso parar e pensar e refletir muito, para não ficar rememorando coisas dormidas, esquecidas, mortas e enterradas.

Por mais que me esforce ao contrário, os fatos acontecem. Pudera amanhecer o dia e nem ver as primeiras cores, os primeiros riscos avermelhados, quando tem sol ou quando o sol vai aparecer daqui a pouco. Que nada. Já nem me animo com estas belezas da natureza. Tudo já é cinza, sem cor.

Afinal, passo as noites olhando pela janela, que nem desconfio se há qualquer diferença no tempo. Se chove, faz frio ou calor, saberei no decorrer do dia. A cabeça pesa, o corpo dói e os anos que se acumulam me entocam nesta casa, me deixam perplexa apenas com minha sisudez, com meu desânimo, com meu pouco fazer.

Quisera sair, nem que fosse para fugir desta janela inexorável como o tempo que corrói meus ossos, que afunila minha garganta, que me deixa rouca, voz cansada e sem vida. Meus cabelos esgadelhados. Se as pessoas me vissem assim, como me olho no espelho, por certo teriam náusea, virariam o rosto, entediados, aflitos.

Meu único filho morreu, faz cinco anos. Ele era lindo, um rapaz forte, homem de grandes paixões, sentimento cru. Morreu de dor, solidão. A mulher vive por aí, esquecida de mim, cobrindo a saudade com flores de plástico. Eu, por meu lado, vou quando posso. Só assim, me afasto de minha janela e visito o seu túmulo.

Recordo os tempos em que era apenas um menino, um garoto franzino, que se vestia de zorro, enfiava a espada nas almofadas e sentia-se um herói. Corria pela sala, batendo joelhos no passo desengonçado, de quem se afirma nas pernas miúdas sem grande presteza.

Já naquela época, eu quase não dormia, não tanto quanto hoje. O Jaime voltava tarde, ficava muito tempo na redação do jornal e Luisinho, cansado, dormia a sono solto. Eu olhava aquele vaivém da barriguinha e pensava comigo que nunca aquele sopro se dissiparia antes do meu. É a lei da vida. É a lógica. Por que não morri antes? Para ficar mais tempo olhando as luzes se apagar pela minha janela e o burburinho da cidade atiçada me empurrar pra dentro?

Na frente de minha janela, mora um velho ranzinza, que costuma falar sozinho. Deve ser mais velho do que eu, porque me parece caquético. Acho até que já caducou. Nunca olha pro meu lado e quando o faz, desvia os olhos depressa, temendo encontrar os meus.

Às vezes, vejo um homem no apartamento. Deve ser o filho, que aparece vez que outra pra ver se ainda vive, o infeliz. Eu não tenho este problema, já que ninguém vem me visitar. A não ser hoje, mas deixa pra lá. Quando chegar a hora, eu vou pensar nisso. Nem sei se vou atender, se vale à pena.

De noite, observo o velho estender a calça na poltrona, guardar os chinelos sob a cama e vestido num pijama démodé, se deita de qualquer jeito, enrolando-se nas cobertas. Acho que passa muito frio. Não fecha a janela, nem puxa as cortinas. Não atina. Faz sempre a mesma coisa. É metódico. Um dia, o vi pelado. Voltava do banho e nem se preocupara em vir com a toalha enrolada. Cena deplorável. Uma bunda magra sustentada em coxas finas, descarnadas. Acho que naquele dia, ou melhor, naquela noite, ele nem vestiu o pijama, porque quando voltei a olhar, já dormia virado pro lado. Cobertas até as orelhas. Será que ele tem ar condicionado? Mesmo assim. Velho sente muito frio. Eu já não sinto. Quer dizer, não sinto tanto, porque me aqueço bem. Meu hobby é fazer estes sapatos de lã que habitualmente uso. Mantenho os pés aquecidos e o restante vem por acréscimo.

Acho que devo me vestir com decência. Tirar estes chinelos de pano, procurar os meus brincos de ouro e todas as jóias que guardo no baú. Um baú de miséria. Se jóia me valesse de alguma coisa! Mas se todos pensassem assim, não existiria o garimpo da serra pelada. Será que ainda existe a serra pelada? Se pudesse, faria uma viagem. Deve ser um lugar muito lindo. O Jaime fez uma reportagem lá. Se eu tenho um sonho nesta minha vida, eu que nem sonho, seria o de ir até a serra pelada. Mas não tenho tempo pra isso, nem dinheiro, nem saúde. Quanto mais, vontade. Não tenho vontade de nada, nem de me vestir.

Estranho, o velho não apareceu na janela. Por estas horas, ele sempre dá uma olhadinha pra baixo. Acho que pra descobrir se os carros aumentaram um pouquinho de tamanho. Velho esquisito!... Olha de soslaio. Não encara. Às vezes, se debruça na janela, como se fosse se atirar na calçada. Qualquer dia desses, cai mesmo. Fraco como é. Mas deixa correr. O velho tem as dele, eu as minhas. Cada um com suas manias.

Hoje ele não apareceu. Será que foi ao médico? Quando velho sai de casa, ou é pra ir ao médico ou pra visitar cemitério. Falar nisso, bom que eu dê jeito nas coisas. Você não acha? Comprar flores, mandar fazer faxina no túmulo do Luisinho. A última vez que fui, tinha chovido muito e se acumulado folhas de tudo que é tipo de árvore. Um lixo só. Vento e chuva só atrapalham os mortos. Quando não os velhos!

Será que ela vem? Deixa eu ver, que dia é hoje? Deve ser amanhã, se não for na segunda...

Bem que podia ser hoje, pra me livrar de vez desta invasão. Sei o que essa gente procura: bisbilhotar a vida dos outros. Até que ponto lhe interessa a história de Jaime?

Vai sentir piedade, dó de uma velha atirada neste apartamento sozinha, que não arreda pé da janela. Uma mulher que um dia foi a esposa do Jaime. Coitada, vive da pobre aposentadoria que ele deixou.

A minha biografia? Deve desconhecer totalmente.

Não sabe, por certo, que fui uma grande pianista, uma mulher acostumada às luzes da ribalta, dos holofotes, ao olhar amoroso dos fãs, ao aplauso arrebatado do público. Mas faz tanto tempo! Não posso me apresentar mal, não acha Rita?

De qualquer forma, o interesse dela deve ser esse: bisbilhotar a minha vida. Detesto esta gente que fica se intrometendo na vida dos outros. Tal como a Dona Júlia, do 403. Não dá ponto sem nó. Vive cercada de gente, marido, filhos, sobrinhos, o diabo a quatro. Não tira a bunda da cadeira, tomando café e falando no telefone, mas não tem dia que não fique espiando da escada pra descobrir alguma novidade no prédio. Um dia ainda jogo aquela zinha escada abaixo.

Meu Deus, por um tempo, fui tão religiosa. Que aconteceu comigo que tenho estes pensamentos de ira? Mas que a Dona Júlia é uma maçante, ah, isso é. Sempre que a Dulcina chega, ela sempre pergunta como estou. Mas não é para saber da minha saúde, se fosse isso realmente, viria até meu apartamento ou ligaria. É pra ver se descobre alguma coisa. Tenho certeza que se ela vir a moça, vai interpelá-la na escada ou no elevador. A curiosidade ainda vai matar aquela lá.

A visita. Deve ser hoje sim. Melhor eu me arrumar para não causar piedade ou nojo. Você não acha Rita? Sabe-se lá como essa gente reage na frente de uma velha como eu.

Já tive meus encantos, fui muito admirada, não só na minha profissão, mas nas relações sociais. O Jaime tinha muito ciúmes, quando eu chamava a atenção dos homens.

Mas que fazer, eu tinha meus predicados. Era alta, a pele muito clara, os cabelos castanhos. E meus olhos eram grandes, expressivos. Hoje, quase não tem vida, escondidos que estão nas papadas que sobraram de minhas pálpebras. Quando o Luisinho se foi, envelheci dez anos. Meus olhos incharam, perderam o brilho. A vida não teve mais sentido. Se havia algum, se foi.

Ah, graças a Deus! O velho apareceu na janela. Você viu? Uhm, está lambendo os lábios. O café foi mais demorado, hoje. Nem deu tempo de passar um guardanapo naquela boca! Que velho desajeitado. Menos mal que está vivo. Não para ninguém naquele apartamento. Este aí, já faz mais de ano.

Olha, como ele não me encara. Acho que tem medo que eu puxe conversa. Pois pra eu abrir a boca, precisa ser alguém muito interessante, ou que me procure, como esta moça que vem aqui hoje: a tal visita. A que vem saber sobre a vida do Jaime. Este velho aí pode se benzer. Eu jamais vou conversar com ele. Nem que o prédio dele incendeie.

Se ele soubesse, que o vi pelado! Ia morrer de vergonha! Ou não, tem jeito de ser confiado. Jamais contaria isso a ele, jamais! Será que é mais cedo do que eu imagino? Quem sabe, ele está na hora correta? Quem sabe, acordou há pouco? Ando meio perdida nos horários. Vou pro meu banho, antes que batam na porta e eu tenha de atender com a boca cheia. Vou fazer o desjejum antes da moça chegar. Não lembro se já tomei café. A noite foi tão longa!

Postagem em destaque

A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

PULICAÇÕES MAIS VISITADAS