Este blog pretende expressar a literatura em suas distintas modalidades, de modo a representar a liberdade na arte de criar, aliada à criatividade muitas vezes absurda da sociedade em que vivemos. Por outro lado, pretende mostrar o cotidiano, a política, a discussão sobre cinema e filmes favoritos, bem como qualquer assunto referente à cultura.
sábado, julho 20, 2024
Uma pessoa má
sexta-feira, novembro 11, 2022
Um certo despertar
Seguia pela Av. Portugal numa dessas tardes primaveris, um tanto outonais, atualmente. Um pouco de frio, um sol que aquece à tarde e parece indicar uma proximidade real com o verão. Que nada, daqui a pouco, retorna o ciclo de calor e frio. A natureza tem suas regras e talvez uma delas seja apenas nos preparar aos poucos, para a mudança que transcorre lentamente.
Mas olhando ao longe, embora de carro, pude ver um céu muito azul, de vez enquanto, entrecortado pelas árvores que se debruçavam distraídas em suas copas pela avenida. Meus olhos acostumados com o nosso céu, no entanto, parecia encontrar nele e naquelas ocorrências de cores, nos caminhos da Cidade Nova, um certo despertar, que há tempos não experimentava. Como se gerasse uma nova era e um vento suave, quase brisa, soprasse devagar novos ares, novas descobertas, novas esperanças. Então, meu coração deu uma sacudida, de leve, delicado com meu corpo há tanto calejado, nestes últimos tempos, com meus olhos sem muita iluminação e minha vida vacilante.
Então, parei o carro ali mesmo, observando os espaços entre as árvores, as pessoas em atividade física ou seguindo seus caminhos entre crianças, brinquedos e bicicletas. Na minha playlist, ouvia a música “Lâmina de amor” de Chico Salem e a letra realçava exatamente este meu sentimento, da salvaguarda da esperança. “Quanto tempo até isso virar um país e o navio negreiro incendiar vazio?” “Quanta munição vai querer dinamitar nosso cancioneiro e nosso refrão?” “Não vou cansar, nem desistir, meu canto é lâmina de amor”. Que preservemos esses novos tempos, como inspiração e resgate de uma vida mais digna e amorosa.
fonte da ilustração: https://www.freeimages.com/pt/photo/world-photo-file-vii-1163456
sexta-feira, julho 12, 2019
O ipê pensante
Sentei-me sob a sombra de um ipê de minha rua. Um ipê roxo, altaneiro, elegante, agora com poucas folhas e ramagens. Um ipê que sofre o processo do inverno e como tal, se recolhe à seiva mantenedora, abrigando-se e perdendo aos poucos as flores, as folhas e alguns ramos. Espera resignado a primavera. Por certo, observa o sol alongado no céu, enfraquecido e distante.
À noite, espera a lua que às vezes, se some, esquecida entre nuvens e neblinas, trazendo mais escuridão.
O que pensará o ipê de minha rua, se todas as coisas são assim, se sempre foram as mesmas, as temperaturas frias, os ventos que oscilam seus galhos, as noites cada vez mais longas. Talvez alguns pássaros comentem: esta noite não acaba mais. Talvez ele ouça sussurros, arrepios de frio, penas ao vento, brisas inesperadas vindas sabe lá de onde, provavelmente do mar. Talvez ele espere os dias maiores, as manhãs aconchegantes, o sol mais forte, as brotos surgindo, as flores antecipando a primavera e os ventos fortes trazendo os pólens. Outros pássaros, outros sons, outros sussurros, outras vozes.
Mas tudo não é a mesma coisa? As noites, os dias não se sucedem iguais? Se o ipê de minha rua pensasse, se é que não pensa, por certo diria: não! Nem tudo é igual, nem tudo soma, nem tudo evolui, nem todos os sons são claros e vibrantes, nem todas as sombras são as mesmas das árvores, nem o vento sibila do mesmo jeito.
Há algo diferente, algo que o ipê não sabe. Nem o homem comum, o transeunte, o atarefado do dia a dia. Talvez os cientistas saibam, talvez os pensadores, os filósofos, os educadores, os que pensam a vida e o País saibam. Aquela sombra do ipê, aquele dia ensolarado, aquele frio intenso nunca mais será o mesmo, porque a lâmina que decepa cabeças pensantes atua precisa e tal como o ipê, seus pares nunca mais serão os mesmos.
sábado, abril 01, 2017
As cores de abril
“As cores de abril, os ares de anil, o mundo se abriu em flor. E pássaros mil, nas flores de abril, voando e fazendo amor.”
O poeta Vinícius de Moraes identifica nestes versos, o início do outono, numa perspectiva de beleza e paixão, na qual a natureza tinge suas cores, dando voz à poesia.
É abril que começa. É o outono que chega, a estação, a meu ver, mais suave e plena de matizes, cantos e poesia. Plenitude.
Como se a paz reinasse por um período até chegar o inverno.
O inverno, que para nós, gaúchos, em regra é rigoroso, em meio a ventanias e frio intenso.
Entretanto, no inverno, resiste com grandeza a flor símbolo de nosso Estado, o brinco-de-princesa.
Uma flor que vence as intempéries e justifica a sua resistência pela beleza que acolhe nossos jardins e praças.
Uma flor que viceja durante todo o ano e tem a forma de um brinco, como os usados pela mulher gaúcha.
Suas cores vão do azul, violeta, ao vermelho, branco e rosa, cujas nuances se mesclam aos coloridos beija-flores.
É tudo graça e alegria.
Por isso, me veio à mente, a canção do Vinícius, em cujos versos não admite que o bem-te-vi (a dor do poeta) chore, porque tudo é tão belo que não permite a dor.
Assim são os brincos-de-princesa. As flores de abril, de maio, de junho, do ano todo.
As flores que vicejam em nosso Estado e que se adaptam aos ambientes, suportando o frio e a geada, tal como nosso povo que enfrenta o rigor das estações.
Tudo é passível de dor, de mágoa, de melancolia, menos o confronto com o meio bravio.
Assim como o brinco-de-princesa, que floresce na primavera, a alma do gaúcho renasce para a jornada que continua.
sexta-feira, dezembro 16, 2016
Horas para orar
Horas vão, horas vêm
horas de todos os fusos
horas de frio, horas de dor
Oras pra todos os santos
e por ora, oras por mim também
Ora essa, pros anjos oras também
Por certo as horas virão
e horas que passarão
Ora lentas e doídas, ora em dúvida e incautas,
nao te deixarão orar por mais ninguém,
quarta-feira, dezembro 14, 2016
Momentos e encontros

Há momentos em que a multidão restringe os movimentos, os passos, os suspiros e outros em que a solidão prevalece em espaços vazios, produzindo estranhamentos em nossos mundos.
Há momentos de abastança, festas eloquentes e climas de euforia. Outros de espanto, pobreza e medo.
Há momentos de certeza, outros desconfiança.
Há momentos de temperança e tolerância. Outros em guerra lutando por paz.
Há momentos de entusiasmo, criatividade e procuras, outros de trabalho e suor.
Há momentos de prazer, de excessos e devaneios, outros de reflexões e dúvidas.
Há momentos que se cruzam, que se interpõem e se unem, ou morrem ou se recriam.
Por isso pergunta-se: por que lá fora o frio, a dor, o medo, a angústia, o sofrimento?
Quem sabe aqui, também, hospitais a céu aberto, onde as feridas não curam e os algozes as aceleram.
A vida, às vezes, ecoa sonora e musical, lá fora. E aqui, retumba surdo o som que some e não se assume.
Quem sou eu nestes encontros? Quem somos nós? Um mundo sem fim? Uma verdade sem dor? Uma dor irreal?
Talvez bastem apenas os momentos, aqueles que se atravessem nas fronteiras, que se encontrem e se mirem. Mirar produz o elo, porque o outro é espelho de mim.
Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/users/Quadronet_Webdesign-1555018/
domingo, junho 19, 2016
A VISITA
Chegar a casa, percorrendo as ruas estreitas, de paralelepípedos irregulares, batida incerta no peito, olhos febris. Difícil saber o significado da visita, entender a expectativa da hora, o aperto de mão.
Minha mão na do meu pai, caminhando orgulhoso, torcendo os pés nas pedras incólumes. Tropeçando, olhos pairando nos céus, gestos hesitantes, braços indagando inquietos. Segui-o em tudo, até na incerteza.
Tinha de fazê-lo para chegar lá. Saber como o tal tio nos receberia e ter ao mesmo tempo a convicção do acolhimento sereno.
Muito se falava nele. Meu pai tinha orgulho da sabedoria, da linguagem precisa, do seu amor pelas letras e filosofia.
Eu divagava, mão apertada, coração aos saltos.
Via as sombras das pernas longas de meu pai no sol da calçada. Os pés grandes, apressados. Se soubesse o quão distante seria o caminho, talvez não me levasse.
Mas valia à pena o sacrifício para transmitir conceitos saudáveis que talvez eu apreendesse.
Agora sei que ele estava certo, porque muito daquela experiência alicercei na minha construção pessoal.
Só não entendia uma coisa: Por que consideravam o tal tio, um homem triste e solitário? Por que estados da alma banais o atingiam de maneira tão intensa, se era tão profundo o seu conhecimento humano?
Falavam da mulher que o abandonara há algum tempo. Era o que se manifestava para o senso comum. Não para mim. Na verdade, não que eu tivesse a perspicácia necessária para inferir tais coisas, mas pelo simples motivo de não me interessar pelo mundo peculiar dos adultos.
Talvez quando o conhecesse, até me decepcionasse e ele nem correspondesse aquilo tudo que se imaginava ou que meu pai queria transmitir.
Meu pai sim era um desbravador, gostava de despertar em mim sentimentos de justiça, de dever, de honra.
Se não tivesse aquele jeito desajeitado de me guiar, eu até justificaria todos os seus propósitos.
Não naquele dia, naquele momento. Minhas mãos suavam, o braço esticado doía. Acompanhá-lo não era fácil.
Quando dobrava a esquina, fugia um pouco do sol, escondia-se do calor e furava o céu devagarinho com o indicador, mostrando a chuva vindoura.
Se chovesse, talvez ele parasse e aliviasse a carga. Ou talvez desandasse a correr. Era imprevisível. Obstinado em suas idéias. Concluía o que dizia sempre com o olhar, desenhando na retina o desfecho da trama.
Eu sempre o entendia. Mesmo que inventasse histórias, eu sabia, que no fundo havia um quê de verdade, um objetivo que sinalizava um bem maior.
Quando chegássemos, logo que passassem por nós as casas antigas, solares abandonados de famílias falidas e fábricas empoeiradas, talvez os assuntos ficassem mais claros.
De uma forma letrada, apoiada pelos livros, dicionários, enciclopédias, manuais, teses, jornais e revistas.
Tudo que se imaginasse. Tudo que fosse sonho, adentrado por nós, daqui a pouco, quem sabe tomando um suco de limão, antes da conversa, para refrescar, logo após o aperto de mão.
Se fosse por meu pai, já estaríamos lá, pelo menos, pelo seu desejo, não pela sua competência. Rua mal informada, bairro inexistente, referências estranhas.
Ele sempre se enganava em um detalhe qualquer, o boteco que existira um dia, a placa de néon do cinema da esquina e que apagada, não se tinha a certeza de que era a mesma. Faziam parte da epopéia dele estes constrangimentos, estes empecilhos.
De certa forma, isto produzia um certo colorido de fuga da rotina.
Por certo ouviria bem atento as histórias do tio, seus conhecimentos do mundo e a apreensão do mundo. Talvez semelhante ao dele, porém concebido daquela maneira prazerosa, precisa e convincente.
Chegaríamos lá, eu quase sem os dedos das mãos, ele, sem os cabelos, de tanto que os alisava para trás, ajeitando o que o vento estragava.
Um vento de corrupio nas folhas secas, que avançava rápido nas folhas que subiam em círculos, mas que logo arrefecia, deixando-as atracadas nos muros e nas paredes das casas. E nós entre as folhas caídas, cansados da viagem.
Pedi para sentar no banco mais próximo, no portal de uma casa, na beira da calçada, no muro da igreja.
Ele me olhou, sorriu e largou a minha mão. Abaixou-se, passou a mãos pesada pelos meus cabelos, quase desnucando o que restava de equilíbrio, ajeitando a gola da camisa e puxando o casaco.
Levantou-se em seguida. Segurou-me a mão e afirmou eufórico: —Chegamos!
Olhei para o alto e vi a casa cor de cimento, paredes irregulares, frisos que desciam, num estilo excêntrico.
A porta destoava um pouco do conjunto: tão forte e majestosa quanto a dos castelos. Aldrava pesada, que eu avistava por baixo.
O vento de outono retomava a ação.
Na porta, mão firme, batida constante e contínua.
Um homem magro e baixo, cabelos brancos, olhos claros. Sorriso tímido, jeito absorto, de quem não conhece a visita.
Foi só por um momento.
Depois, temas passados a limpo: a política, a família, a vida. Todos os pontos auscultados no coração aflito.
Olhares em volta, encontrando-se, às vezes.
Perguntas sobre idade, estudo, leituras. Atenção redobrada.
Livros empilhados, estantes abarrotadas, máquina de escrever, caneta tinteiro. Uma mão pequena, estendida, resvalando descuidada no tampo da mesa, dedos tamborilando, sugando o que podia de letras, frases, pequenos textos.
Batida tímida nas teclas.
Olhar enviesado, temeroso.
Um sorriso. Um suco de limão. Mesuras, satisfação sincera de reencontro. Conversa à solta.
O sol ampliava a atmosfera. Abria-se uma nesga de luz, invadindo a sala, entre as persianas, iluminando quadros, rios, cachoeiras, janelas abertas, roupas no varal.
Sentava-se a nossa frente. Poltrona macia, afundado, pequeno, as pernas juntas, os sentidos despertos. Ouvidos alertas. Boca quieta. Eu só ouvia.
Meu pai falava de vez em quando, dava palpites, iniciava assuntos.
Pouco lembravam o passado, só de passagem, um evento aqui, outro acolá, parceiros de brincadeiras, mesma idade.
Tanto tempo separados. Voltar ali, sabendo-se sozinho. Solitário e triste e nada comentar.
Era digno não falar. Apenas recobrar as horas passadas, lembrar o tempo sem solidão. Feliz.
O refresco acabara, olhei para o copo e mordi devagarinho a borda fininha de cristal. Frágil. Como ele, o tio, mas grandioso.
Só compreendera muito tempo depois.
E na hora, não entendera a despedida triste, aperto de mão demorado, pedido que se cuidasse, tomasse por cabresto o corpo, a mente, o coração, a vida.
Ficasse forte, cuidasse de si.
Meu pai falava tudo de súbito, temendo ofendê-lo. Não ousava falar na perda.
Caminhar mais lento, calçada à fora, atravessando ruas, paralelepípedos irregulares, eu ao seu lado, seguro, seguindo a nossa história.
Silêncio.
Sabia que nossa relação seria mais forte.
Eu tinha me tornado um pouco adulto, mesmo não me interessando muito pelos acontecimentos tristes. Sabia, entretanto, que compartilhávamos um segredo: a coragem do enfrentamento da vida e o resgate da amizade.
Partilhar da verdade. Voltar pelas ruas, sentindo o vento já frio nas pernas era realizar um novo caminho, com muito mais certeza de tudo ou pelo menos, a certeza de que não se sabe quase nada. Só uma alegria a mais, no coração.
Fonte da ilustração: Matthews, Rebecca. StillWorksImagery. https://pixabay.com/pt/recepção-livro-educação-escola-1375312/
quinta-feira, junho 16, 2016
A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 6º CAPÍTULO
Capítulo 6
Seu Domingues caminhava devagar, passos miúdos, quase estudados. Olhar absorto, absorvido no nada, quase infinito. Quase falando, quase sorrindo, quase vivendo. Sobreviver? Era esta a ideia? Pois estava ali para ultrapassar os parcos limites de sua existência. Ouvia vozes, sorrisos de crianças, farfalhar de folhas. Outono? Talvez. Ou qualquer estação que trouxesse um pouco de vida, aliada ao sol forte que lhe ardia a testa. Meio dia. Sol a pino. Quem sabe verão? Não. Impossível. Aquele friozinho que já lhe arrepiava os pelos dos braços. Outono chegava. Prenúncio de inverno. Forte, de geada. Crepusculando o mundo soturno do frio. Decadência.
Sentou no banco da praça como fazia há quinze anos. Veria por acaso as mesmas pessoas, os mesmos velhos solitários como ele, ali, a jogar dama, espiar as pernas das moças inatingíveis, bisbilhotar a vida alheia. Vida intensa que segue. Pipocar um sorriso aqui, uma lágrima ali, uma vontade de nada, de não saber o quê.
Hoje não havia ninguém conhecido. Nem mesmo para dar a notícia fatal de algum amigo que já partira, como muitos. Agora estava realmente só.
Ele ficou assim, não sabe quanto tempo. Uma hora, duas, três. Uma eternidade. Até que o inusitado aconteceu.
Uma bicicleta do outro lado da rua. Uma moça bonita, da loja de conveniências. Marília.
Ela aproximou-se, naquele jeito fagueiro, atitude de quem tem a vida pela frente. Chegou célere. Sentou-se num pulo, ao seu lado. Sorriu. Uma lufada de vida, de ar, de dignidade. Encheu os pulmões, o coração. Sorriu também.
— O senhor não acha melhor voltar para a loja?
— Por que Marília? Está tão bom aqui. Veja este sol. Pelo menos um alento, para um velho como eu.
— Lá o senhor pode ler o seu jornal, tomar o seu café bem quente. Aqui está muito frio.
— Você acha Marília? Aqui, pelo menos, eu posso ficar um pouco sozinho.
— Então quer dizer que não gosta de nossa companhia?
— Não, Marília, é que chega um momento de nossa vida, que às vezes preferimos ficar sozinhos. Nada acontece, entende?
—Pois vou lhe contar uma novidade.
Ele a olhou intrigado, como se nada significasse alguma novidade para ele. Entretanto, ouviu-a com paciência.
— O senhor sabia que chegou um detetive na cidade?
— Um detetive? O que vai descobrir neste fim de mundo?
— Talvez alguém o tenha contratado. Ocorreram uns crimes por aqui, não foi?
— Eu não acredito nisso, Marília. E depois, tudo já foi solucionado e o que não foi, não descobrirão nunca.
— Por que o senhor pensa isso?
Calou-se por um momento. Refletiu e acrescentou meio displicente com o assunto.
— Não sei, deve ser porque já vivi demais e sei que nada acontece por acaso.
— Não entendi nada, Seu Domingues. Mas não importa, vou indo, porque tenho que pegar o meu filho na escolinha pra voltar à tarde pra loja. Um bom dia pra o senhor!
— Bom dia Marília.
Ele continuou sentado, com os olhos mais fixos do nunca no mais obscuro de sua mente. Parecia que as coisas ficavam de certo modo atordoadas e o incomodavam.
Quem seria aquele detetive? Quem o teria chamado? Por que Marília sempre lhe trazia uma novidade que não lhe dizia respeito.
Deixou-se ficar por um tempo e sentiu um olhar pesado em suas costas. Voltou-se e percebeu que Rosa continuava parada na porta do hotel. Pensou, não tem o que fazer mesmo, um hotel vagabundo, uma cidade que não acontece nada e uma gente desocupada!
sábado, janeiro 09, 2016
SEDUÇÃO
Saiu à noite, pelas vielas escuras. Um impulso indefinido. Talvez sentir-se vivo. Impulso, pulsão, compulsivo. Tudo que milhares de psiquiatras, psicólogos, psicanalistas, até autores de autoajuda já tinham informado. Sabia, entretanto que precisava seguir o ritual. Um sentimento de busca, uma verdade inconteste que latejava no peito e respondia no sexo, o degrau inferior que percorria pensamentos, mas que o impelia a sentir-se alguém.
Talvez fosse um louco, destes que andam às escuras, escondidos nas brumas das árvores dos parques, prontos a atacar ou serem atacados. A praça o seduzia; uma atração tão forte, que não ousava fugir.
Lembrava-lhe brinquedos, dias ensolarados, o avô ao seu lado, o carinho seguro, o passo certo e a certeza de que a vida se resumia na firmeza da mão. Nada os separaria, estariam sempre juntos, ele, ouvindo suas histórias enfadonhas, que o transportavam a sua vida rural: um modelo tão estranho e diferente do seu. Aos dez anos, tinha poucos amigos.
O pai, distante, executivo sempre temeroso da falência aviltada eternamente a seus ouvidos, a mãe envolvida na sua vida social e decadente.
Nada mais restava a não ser o avô, um velho marginalizado pela pouca cultura, narrador de histórias rudes, baseadas no manuseio dos animais, cercado por gente simples como ele, considerada desprezível pelo pai e por toda a família. Também não se importavam com a sua presença, desde que se mantivesse contida no elo familiar do menino. Este aprendera quase tudo sobre cavalos, éguas no cio, vacas prenhes e caças proibidas. Mas o que mais o fascinava não era o enredo inverossímil das histórias, mas o ambiente lúdico da praça, que ficava próxima a sua casa, onde tudo acontecia, onde elas se desenrolavam em narrativas fantásticas. O que o encantava era a intimidade com o avô, naquele espaço de liberdade e paz, onde pombas sobrevoavam, atrevidas, e palhaços produziam publicidade dos circos que chegavam à cidade. Onde percebia nos olhos do avô um certo ar de inocência.
Agora, aos trinta anos, o velho já enterrado há mais de dez, não lhe importavam as luzes da praça, nem o ensolarado dos recantos, nem a mágoa ressentida de se afastar dos meninos mais corajosos, que se arriscavam na gangorra, em pé, ou na roda gigante, da qual se avistava o topo das árvores. Nem a humilhação de se sentir confortável apenas no carrossel, com a certeza de que colocaria os pés em terra firme. Bobagem. Nada disso causava qualquer emoção, apenas lembranças distantes, nos quais a verdade se escondia em seu coração e o refúgio maior era o coração do velho.
Viver pelos becos sombrios, atravessar as vielas sórdidas, envoltas no negrume dos desejos mais recônditos produzia um prazer muito maior do que o gozo que procurava. No entanto, um vazio imenso se instalava em seu peito, que sentia o suor escorrer gelado através das roupas grossas de lã, um frio intenso de bater joelhos, parceiro nestas buscas intermináveis. Via em cada olhar entre as sombras, uma provável fonte de prazer, mais forte do que o medo de ser atacado ou cruelmente humilhado. Em todos, talvez avistasse os meninos que o desprezavam, e por isso, quisesse agradá-los, para se sentir um igual. Ou talvez, as imagens sombrias e disformes traduzissem a rudeza do avô, que mesmo no ensolarado do sol, carregasse com ele, a crueza de um mundo marginalizado, que o atraía intensamente. Olhos passeavam nas sombras agitadas, de rumos diferentes, que se cruzavam a todo momento, que se aproximavam, se tocavam, pedindo sexo. Homens, mulheres, prostitutas, vadios, mendigos, ladrões, traficantes, drogados, policiais, travestis, garotos de programa, todos em fila, à espera de um beijo seu. Uma confirmação que finalmente cederia a sua sina. Coração alerta, as pernas trêmulas, doente de frio.
Noite límpida. Só estrelas no céu e a lua se inseria entre aqueles galhos retorcidos, desenhando imagens absurdas. Ali, próximo, seres que se esgueiravam no ambiente insípido, molhados de sereno e suor, bocas úmidas que procuravam outras bocas e outros corpos. E ele, ali, como um malabarista entre os galhos secos e disformes, meio escondido, obedecendo à hierarquia da sedução, temeroso de ceder também, de se sentir um igual, tão igual que jamais voltasse a ser o que deveria. Alguns sorriam, outros se masturbavam indecentes, na noite vazia de sonhos e ilusões, outros se locupletavam com as moedas que proviam a miséria de seus cofres sem dono. Ladrões de corpos e almas. Ladrões de si mesmos, de suas vidas, seus destinos, desafiados a cada momento no brilhar de facas, no tilintar de faróis oficiais, no disparar de pistolas.
Se pudesse fugir, mas estava preso ao chão, realizando o ritual que ousava repetir.
Foi assim, que percebeu um olhar mais forte, a voz que não se produzia na boca, mas no corpo inteiro, que o deixou tão atraído que pensou que fosse morrer. Até sorriu, quando a beleza se alternou entre a miséria humana e pensou ser um dos seus. Com sonhos, esperanças, ideais, quem sabe, um dia evadir-se daquela vida e se transformar num novo homem, esquecer este universo avesso à realidade dos outros de bem. Então o acompanhou, tropeçando, a voz embargada, o coração aos pulos, a boca estremecida. Excitado. Sua chance. Só uma vez. Um homem como ele não se atreveria jamais a prosseguir naquele caminho. Bastava ser feliz, por alguns momentos e esquecer para sempre. Seguiu-o para uma touceira, desfiou o blusão nos nódulos do tronco, entorpeceu os braços, estendido no alto e, sem ação, enlevou-se em frases bonitas, gestos sedutores que certamente outro homem não faria, pelo menos não um como o avô. Sentiu-se apalpado, invadido. Foi beijado com lascívia e aflição. Suas pernas aconchegavam o sexo vigoroso e deixou-se ficar quieto. Manteve-se como o menino à procura de amigos, frustrando-se por ser covarde, agarrado na figura firme e segura do avô. Não precisava mais dele, porém. Estava seguro, quando o encarou, seduzido na voz sussurrante. Até quando avistou a arma brilhar e pairaram exigências rápidas, como cartão de crédito, dinheiro ou chave do carro. Nada dizia, pois nada acreditava. O torpor impediu a voz. A mãe sorria, afirmando que a página policial não era para a sua família; o pai por sua vez não acreditava na exiguidade da hora, no confronto da conversa, no contra-argumento e por isso se afastava, acenando a cabeça, enfadado.
Apenas o avô, com suas histórias, no ensolarado da praça, contando como se sacrificava o porco e como o sangue jorrava, lavando a mesa improvisada, após gritos dilacerantes de dor. Então, sentiu o sangue correr na mão, oriundo do pescoço, como o porco sacrificado e pensou que encontraria o avô e certamente, seria novamente feliz.
quinta-feira, setembro 17, 2015
Minha avó e a Apollo 11
Havia um clima de angústia e alguma agitação na casa. Foi no dia do casamento dos dois.
Minha avó estava deitada em seu quarto. Eu tinha a impressão de que ela observava a minha mãe com um olhar de súplica e até um pouco de desconfiança. Talvez imaginasse que aquele casamento pudesse curar a sua doença, ou pelo menos, não a matasse de vez.
Minha mãe, ao contrário, por mais que evitasse demonstrar, apresentava uma inquietação em cada movimento ou conversa. No fundo, ela sabia que a morte era inevitável. Apenas, desejava que a mãe não sofresse tanto!
E aquela falta de ar que não passava, aquela angustiosa espera de que alguma coisa acontecesse e por um milagre, ela voltasse a conversar normalmente, a respirar com fluidez, voltar a sorrir.
Minha mãe chorava pelos cantos, mas na frente dela, sorria e dava esperanças.
Meu avô parecia não entender bem aquela história, mas aceitava pacificamente a ideia do casamento. Não sabia porque a filha inventara um casamento religioso, tanto tempo depois, velhos e cansados, que diferença fazia? Mas se é o que se devia fazer, que se cumprisse.
Naquela época, o homem estava prestes a ir à lua. Era uma esperança para a humanidade, a certeza de que muitas coisas mudariam, talvez doenças fossem curadas, ou em consequência dessas viagens espaciais, até se descobrisse alguma forma de vida. Não se conhecia muito do assunto, mas tínhamos certeza de que alguma coisa boa viria daquelas viagens interplanetárias. O homem riscando os céus, descobrindo novos mundos, enfrentando o espaço. Havia slogans na TV, na rádio, nos jornais. Todo mundo falava na era espacial.
Eu ficava dividido entre estes dois mundos. O mundo imaginário, com um quê de realidade, bastava que o homem pisasse na lua para tudo ficar real e decisivo. Por outro lado, havia o meu mundo pequeno, real, no qual as noites eram intermináveis, em de algum modo, participava das dificuldades de meus pais, na tentativa de uma melhora de minha avó, na busca por médicos, por remédios especializados ou uma provável hospitalização.
Até que marcaram o dia em que a Apolo 11 rasgaria o céu em direção ao astro tão almejado, no caso o satélite natural da terra.
No meu mundo particular, marcaram a data do casamento. Era uma noite fria de maio. Um maio que se arrastava em suas derradeiras noites, porque nas noites as coisas aconteciam, nas noites em que minha avó gravitava como um pêndulo, numa falta de ar que ia e vinha, sem tempo da oscilação parar. Um maio quase junho parecendo persistir no frio. Um vento que também oscilava lá fora.
O Padre Costa chegou e aproximou-se dos dois, sorrindo. Meu avô o olhava desconfiado, sentado ao lado da cama.
De meus olhos de criança, observei a cena, através de uma janela que dava para uma área lateral. O cenário pronto, os protagonistas aptos e os personagens em volta.
Com a presença do padre, minha avó parecia ter melhorado da falta de ar. Uma tia de olhar intrigado afastava-se do quarto, em direção à cozinha. Não acreditava que nada mudasse. Para ela, tudo não passava de crendices. Minha mãe nada argumentava. Ela sabia que a esperança era quase nula, mas por que não levá-los ao encontro com o sacramento, por que morrerem sem esta oportunidade?(No fundo, era o que pensava).
O padre realizou a cerimônia. Eles, sentados e encostados na cabeceira da cama. O ritual consolidado. Cumprimentos. Sorrisos.
Quando o padre foi embora, houve um certo alívio para a tia descrente e parece que tudo se aquietou.
O maio terminou. Junho chegou rápido e foi um dos meses mais frios do ano.
Em 20 de julho de 1969, o homem pisou na lua pela primeira vez.
Minha avó ainda resistiu um tempo, até para descrer daquela façanha. E numa noite de julho, dois anos depois, ela também se foi. Foi uma noite fria, tão fria quanto àquela.
O dia? Foi cinzento.
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