Mostrando postagens com marcador cinema. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador cinema. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, outubro 16, 2019

O que queria Dóris Fontaine?

A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de relance. Homens sedentos por seus segredos mais íntimos, suas intenções ocultas. Nem sabiam que nada era real. Sua vida era plana como o rio que circundava a cidade.

Naquela noite, na boate, alguma coisa violou seus sentidos quando o avistou, ali sentado à beira do palco, olhando-a como uma estrela. Imaginou o homem dos sonhos cujo olhar intuía em seu coração e no sexo dormente uma explosão antagônica: desejo e medo na mesma moeda. Uma fotografia que se projetava em várias dimensões.

Uma bebida desfilava entre as mesas e o suor da garrafa ficava nos dedos, como sequência slow motion. Tudo parecia cinema naquela noite, embora o mundo gritasse por promessas não vindas lá de fora. Soldados que se consideravam célebres numa guerra que nem era nossa. Ele, entretanto, era civil e sua farda não passava de um corpo ilustrado por um sorriso à luz negra que devolvia em flashes um olhar que a comia. Então sorriu, quase feliz, saindo de cena, fugindo do cenário, dublando o que nem ouvia; coração assaltado pelo novo que libertava por segundos o cinza de sua vida.

Soldados riam e gritavam, mencionando Castela, navios, o Getúlio, a ida, na chancela de serem os melhores. Um ou outro, dissimulava um sorriso. Ela percebia. Mas quem era ela? Apenas Dóris Fontana, porque Fontaine à la Joan ninguém conseguia pronunciar. Ela odiava quando a Chamavam de Dóris Fom-fom.

A música seguia seu compasso comezinho de sempre. O maestro engatava um tango num bolero e a vida seguia. Mas hoje, na presença dele, um blues anunciava anjos, como se os timbres e ritmos e tons se confundissem no prazer que a inspirava.

Ela desceu do palco e ele ofereceu um drinque. Nada extraordinário, era quase de praxe o hábito, mas a chamou de Dóris Fontaine, com uma pronúncia quase americana e seu olhar impreciso se perdeu em profusões de imagens que vinham de um passado distante. Talvez da infância, não sabia, mas alguma coisa que a deixava feliz. Quem sabe o carrinho de boneca que empurrava num jardim que não era seu?

Olhou-o e sorriu tão ingênua, que pensou voltar a ser a menina do interior, na virgindade dos sentimentos, mesmo no adiantado da hora. Ele a beijou suave, sem pressa e sem imposição. Nada pediu, nada deixou, nada procurou a não ser a liberdade de serem o que eram.

Sonhava? Ela se perguntava feliz. Beberam, dançaram, riram e ele foi embora, deixando promessas.

No cinema, numa tarde qualquer após a ressaca, Dóris observava o cartaz de “Soberba", com Anne Baxter no topo de uma escada, enquanto Joseph Cotten detinha-se na parte inferior, na espera do encontro. Talvez a história nada tivesse a ver com o que pensava, mas lembrava a sua interpretação sobre o palco. Talvez o seu Joseph Cotten fosse o homem que a visitava todas as noites.

E como nos filmes, ele trazia flores, lia os versos de Raimundo Correia, não importava se falava em pombas, cavalgada de fidalgos ou palavras que mal entendia, juntando moça e éter. O éter que conhecia é o que deixava tudo azul, nítido e forte aos ouvidos e a fazia dormir. Entretanto, o que falava, trazia um tom de primavera que a despertava para um sol que se descolara há tempos de seus ombros. Não mais vento, não mais chuva, não mais frio. Até os sons eram claros e festivos. Tiravam retratos. Passeavam no dia. Iam ao cinema, ao parque, à praia. Na noite tomavam uísque, vodca ou gim. Ela se desmanchava no jazz e revelava as garras no tango. Na madrugada, se amavam. E o mundo girava arriscando um futuro que se instalava em algum lugar.

A turnê porém seguia para resgatar o moral dos aliados na base aérea de Natal. Seu coração dividido. O mundo dividido. Era dinheiro a rodo e futuro promissor.

Então, ele chegou devagar, incendiou seus olhos com desejo e mágoa. Um foco de luz, uma energia que sustentava o ar e seu corpo bailava num mundo que a família sonhara: o de uma mulher direita. Assim diziam, assim queriam.

O desejo de ser rica e talvez casada com um americano ou outro estrangeiro ficava para trás. Ele chorou, ele a abraçou, ele pediu; eles casaram.

Como no filme, ele voltou como o príncipe que resgatou a sua vida e ela se desarmou em devaneios. Deixou a boate, esqueceu a turnê, o elenco, o futuro, deixou a vida. E se sustentou como uma esposa, sem sem música, sem poema, sem palco, sem ribalta, sem brilho, sem romance, sem luz. Só o éter.

quarta-feira, agosto 23, 2017

Cinema de rua e sonhos de primavera

Uma noite de primavera. A brisa leve sussurrava em nossas testas suadas. Meu pai vestia paletó azul, meio gasto.

O olhar se perdia ao longe, como se aguardasse o galardão de ouro. O longe que se perdia, na verdade era a tela de parede caiada. Ele parecia mais ansioso do que eu. Sua boca entreaberta sorria.

De repente, fitou-me e ficou sério. Eu é que deveria estar feliz e ter muitas expectativas naquele momento. Seria uma noite e tanto: uma noite só de homens. As mulheres ficaram em casa.

Daqui a pouco, chegaríamos na rua onde seria projetado o filme.

As pessoas se aglomeravam entre vendedores de algodão-doce e pipoca, enquanto atravessávamos ruas de paralelepípedos e trilhos. O caminho habitual agora atingia um ar festivo e uma euforia se rendia a nossas mentes curiosas. Aos poucos, o cenário quase onírico se formava.

Na calçada, paramos sob uma árvore, já apinhada de meninos à espera do espetáculo. Para meu pai, eram apenas meninos de rua, sem disciplina. Ele era assim: um homem que almejava o melhor para nós, a seu modo.

De repente, a música ecoou silenciando o burburinho. Nada havia, porém, que sugerisse uma imagem. Apenas o desejo incontrolável dos espectadores.

Meu pai punha as mãos nos bolsos e olhava o relógio, desconfiado. Dizia alguma coisa, tentando conservar o meu entusiasmo.

O pacote de pipoca acabara. Minha decepção só não fora maior porque, desta vez, irrompera uma imagem na tela, que parecia ocupar toda a plateia que se acotovelava nas paredes das casas.

Num alto-falante, alguém informava que a fita era uma obra-prima da sétima arte, dirigida ao seleto público.

No fundo, me encantei mais pelo espetáculo do cinema, pela preparação da festa, do que pela história.

No final da sessão, houve prêmios para o público e meu pai ganhara uma lata de biscoitos Aymoré.

Ele recebera o prêmio, próximo à tela, ainda iluminada. Eu observava o seu perfil azulado, como um personagem que se deslocava da tela para alcançar a realidade. Ali percebi que a magia do cinema, mesmo de rua, me encantava e me transportava a um mundo novo.

Voltamos em seguida para casa, com a lata de biscoitos na mão e muitos sonhos na cabeça.

sexta-feira, abril 21, 2017

Vem, morena, vem

Vida útil, vida inglória, ingrata, insólita, insana, imbróglio de leva e traz, impaciência, intolerância, dor, inútil. Tudo isso e muito mais pra te dizer, morena, que a dor que sentes agora, já senti com muito mais força e afinco, quando me deparaste na porta, de quatro, chorando feito um bezerro desmamado.

Poderias ter evitado aquilo, ser mais romântica, confiada e confiante, amada e amante, amiga e compreensiva. Só porque sou homem, que jogo futebol nos fins de semana e rebento meus meniscos, não era motivo pra me abandonares em plena quarta-feira. Em plena quarta-feira, morena, no dia que combinamos ir ao cinema, lembras do filme? Nem lembras mais, por certo. A raiva, a intolerância, o mau-humor já detonou teu cérebro, já fundiu tua mente, confundiu teus sentimentos.

Era um filme daqueles de amores transbordando, derramados, de paixões ardentes, de beijos pungentes em faces rosadas, de luzes de matizes doirados em cenários pastel. Havia até musicais, morena, e é raro um homem como eu, gostar de musical. Pensa bem, sou sensível até a flor da pele. Devia pesar estes meus bons sentimentos.

Lembras da tarde em que salvei a velhinha que estava estirada em plena avenida, cheirando a grama, nariz enfiado entre paralelepípedos irregulares e crateras emolduradas de pasto? Sei que não deu certo, morena, mas lembras, bem que tentei. Passei de carro pela avenida e vi a senhora despencar no chão, envergar-se como folha morta de outono, migrar no interior da terra, transformar-se em larva medíocre, alijada da dignidade, esperando a morte. Claro que foi noventa e nove por cento de imaginação, mas sabes, morena, sou assim, sensível e criativo. Voltei correndo, feito o Massa enfrentando a fórmula 1 e deu no que deu. A velha tinha se levantado com uma garrafa na mão e quase me jogara o vasilhame na nuca, não querendo ser internada porque não era louca. Eu declarei isso a ela, pelo contrário, tentei ajudá-la, dando a mão, revelando afeto. Mas que nada.

Deixa, pra lá, morena. Não vais entender nunca o meu ponto de vista. Se sou socialista, tu és extrema direita, se sou holístico, és radical opus dei, se sou zen, és estressante e estressada. Nossos pinos não batem. Mas nossos corações sim, ah, estes batem em uníssono.

Quando nossos corpos ficam assim, juntinhos, ressoam na mesma frequência, ah, bouquet de vinho dissipando-se nos lábios, escorregando suave pela boca, amaciando a língua e o espírito. Não tenho dúvida, morena. Nossas bocas se encontram devagarinho, na mesma intensidade, sinto teus lábios molhados, beijando meu pescoço, assim, obscena, faceira, atrevida, mordendo-me a orelha, auscultando meus ouvidos, enquadrando meu coração no compasso que esperas.

Também te sinto palpitar acelerada e teu peito arfar e teus seios juntarem-se ao meu corpo, afugentando os ruídos da rua, a poluição visual, as deformidades do dia. Ficamos assim, quietinhos, num pedaço de paraíso, temerosos que o tempo passe e que a mágica acabe. Somos assim, morena, unha e coração. Será que assim, que se diz? No nosso caso, sim. Sou mais coração e tu, mais unha. Aí, me deixas na sala como bode expiatório, exibindo chifres, dando razões ao mundo de servir de exemplo a teus caprichos. Um bode expiatório aos teus pecados.

Mas na quarta-feira morena, quando após o cinema, pegaríamos aquela pizzaria para passar as horas que restavam na noite rotineira de um casal suburbano, classe média, senso comum e meio medíocre. Na verdade, pizzaria, não. Sabes que detesto pizza. Mas todo mundo gosta. Como diz o Chico, naquela música, você não gosta de mim, mas sua filha gosta. Estou disperso, morena, delirando. Misturando as coisas. Me deixaste enfeitando a sala e destruindo a casa. Por que hoje, porque na quarta-feira? Podíamos pegar aquele barzinho de música ao vivo e conversar, colocar os pontos nos is, ajeitar nossas carências, ajustar nossas dificuldades.

No barzinho? Vê morena, tu me confundes. Barzinho é coisa pra louco. Ninguém conversa, só ingere cerveja porque é de praxe beber até em posto de gasolina, gritar para poder ser ouvido, entrar em fila de toalete e ouvir o cantor gritando um Fagner desalmado que mastiga as notas sem piedade. Eu por minha parte, finjo ouvir as conversas e dissimulo qualquer coisa, discutindo qualquer assunto e não dizendo nada. Tenho saudades daqueles bares em que o cara tocava um violão, baixinho, uma MPB tranquila e a gente ouvindo solitário, mesmo a dois, o que a poesia balbuciava.

Sei morena, que às vezes, não falamos a mesma língua, talvez porque nossos dialetos sejam diametralmente opostos. Eu falo galego e tu esperanto. Me querias o super-homem do Gil (quem dera, pudesse todo homem compreender, ó mãe, quem dera, ser o verão o apogeu da primavera e só por ela ser. Quem sabe, o super-homem venha nos restituir a glória, mudando como deus o curso da história , por causa da mulher) e eu seja apenas o malandro do Chico.

Eu também sonhava contigo, na figura suave que paira no ar, declarando amor, proclamando "com que com açúcar e com afeto, fizeste meu doce predileto pra eu parar em casa", mas de antemão sabias que "os amigos me esperavam, aquecias meu prato, beijavas meu retrato e me abrias os braços". Mas não somos nenhum desses, morena. Nem o Chico se enquadra, em nossos esquadros e descalabros. Nem que nossos ideais se misturem nestas imagens, nossos corações não ousam lutar para abrir as comportas que o presente fechou. Me deixaste assim, abandonado e bobo. Me roubaste um beijo e brincaste de menina em tempos de Capitu. Que pena, morena.

Somos assim, tu e eu, bobos, perdidos no emaranhado de sentimentos que não se coadunam com nossa realidade, assim, tão cheia de nós, que não fizemos e não ousamos desvendar.

Se eu pedisse, tu voltavas morena? Se eu pedisse, desvendavas junto comigo o nó cego da insegurança, do medo, do pavor de ser um quando sonhamos ser dois? Se eu pedisse, abandonavas o jeito arrogante, bamboleando quadris nas calçadas estreitas e voltavas, ensaiavas uns passos e refletias que não sou o Johnny Depp, mas também não sou o açougueiro gordo da esquina, que espanca a carne sonhando em fazer amor com a mulher? Ele faz, a gente vive. Não chegamos ser o casal da Valsinha do Chico, nem dançamos nem nos amamos na praça. Mas precisamos um do outro para não enlouquecer.

Pelo menos, não hoje, morena, não na quarta, por favor, não deixa o tempo passar, o mundo gira, a quinta chega tão depressa! Na quinta não tem cinema, nem barzinho, nem passeio à tarde. Na quinta pode ser tarde demais.

Vem, morena, vem.

quinta-feira, outubro 20, 2016

Pai na bicicleta: uma acrobacia de alegria

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/bicicleta-sombra-desporto-hispânico-233379/


Houve tempo em que te vi sorrindo, orgulhoso, satisfeito, encontrando nos filhos a certeza inabalável da vida, do se fazer pai e amigo.

Houve tempo em que me puseste no colo e abriste a página do jornal, ensinando-me a ler. Ali conheci o valor das palavras, da leitura e mais ainda, o prazer de ser amado e protegido.

Houve tempo em que te vi assim, cabisbaixo, olhando pros lados, insatisfeito. Talvez refletisses o que fazer diante dos problemas: da chamada do professor em casa, da briga costurada com o colega, da ordem desobedecida ao cruzar a rua e ver a bola picando, campo à fora, meninos ruidosos, na luta aguerrida do futebol. Sei, que na verdade, me querias na escrivaninha, pequeno troféu, que criaste, mais perto dos estudos e bem distante dos chamados “guris de rua”, daquela época. Benditos guris, nada semelhantes aos de hoje.

Houve tempo em que te vi desconfiado com a política, com os homens do poder, com a autoridade e autoritarismo. Houve o tempo do silêncio.

Houve tempo em que te vi criança, deslizando matreiro nas calçadas vazias de um feriado deserto da semana-santa, bamboleando o corpo numa coreografia imaginada para me mostrar outra face: a da alegria.

Houve o tempo em que me mostraste o cinema de rua, filmes do Sesi azulando as paredes das casas, enchendo-nos de euforia e imaginação.

Houve tempo em que me levaste à igreja, em que me mostraste o sacrário, em que dobraste teus joelhos nas noites de adoração. Houve tempo em que não se ligava o rádio, quando a sexta-feira anunciava a morte de Cristo, mas neste tempo, também eu procurava no Cine Real os clássicos da paixão.

Houve tempo em que te vi torcendo, solitário, por um time que evitavas mostrar preferência, mas via nos teus olhos um matiz diferente quando o vermelho entrava em campo.

Houve tempo em que assumias o Natal e revelavas o prazer de viver em família e sorrir e presentear, participando do que era doce e afável.

Houve tempo em que te vi amigo, solidário e irmão, acolhendo pessoas em casa, pleiteando vagas a amigos no trabalho, cuidadoso e responsável, acalentando as feridas e dores de meus avós em sua jornada final, sensibilizado e sensibilizando.

Houve tempo em que te vi feliz e reconhecido, profissional disciplinado, sendo laureado como operário padrão. Aí, o salto de qualidade estava além do padronizado, do igual, porque expressava na alma a gratidão dos colegas, resultado do desempenho intenso e honesto no que fazias.

Houve tempo em que te vi mais velho, marido, pai, avô. Houve tempo em que o te vi chorar, ressaltando tua humanidade intrínseca, um pedaço de ti te faltava, produzindo uma mágoa silenciosa.

Houve tempo em que te vi brilhar na finitude da vida, convivendo na família em plena lucidez, sobrevivendo aos percalços naturais da idade e apontando uma centelha de luz, mesmo que não o demonstrasses concretamente, víamos em teu olhar assim, tão intenso, dizendo coisas que às vezes não expressavas, mas que tua alma plena identificava.

Sei pai, que vivesses com dignidade até o fim. Sei que não deixaste mágoas, porque não permitiste desunião, desacordo ou preferências.

Sei que soubesses tão bem amar em toda a tua existência, que assumiste a família como dom maior e absoluto em tua opção de vida.

Sei que deixaste o exemplo, pedra fundamental de tua personalidade generosa.

Só não te tenho aqui, agora, mas te carrego comigo em todos os momentos nas ladeiras em que deslizo, tal como tu, na bicicleta de meus sonhos, te vejo ali, na bagageira, indicando os caminhos e rindo do meu medo absurdo das acrobacias que fazias.

Um dia desprendo o pé da roda, pai e faço como tu, sigo em frente e levo apenas a alegria simples de viver.

Mas por certo, te sinto mais intensamente, toda vez que te imito no papel que desempenhaste tão bem: o de pai.

sábado, outubro 08, 2016

Alguns aspectos do filme "A pele em que habito"de Pedro Almodóvar

"A pele em que habito" de Pedro Almodóvar é um filme que a princípio parece uma página em branco. Não há nada a dizer. Mas por pouco tempo.

Aos poucos, nos damos conta da grandiosidade da obra, quando percebemos a realidade perversa das contingências que levam o protagonista a agir de maneira alucinada, ou talvez, excessivamente planejada. 

Mas voltemos ao diretor, Almodóvar, que pensamos por vezes assistirmos filmes semelhantes, com a mesma temática urbana e seus relacionamentos loucos do cotidiano, na efervescência das relações conturbadas do século XXI.

Entretanto, em cada trabalho, o cineasta apresenta a reinvenção do fazer cinema pautada na ousadia dos cortes ou na interrogação da câmera que revela a cena, ocultando.

"A pele que habito” parte de novas narrativas, talvez desconhecidas ao grande público, embora muito bem enfronhadas nos cenários e tramas que por vezes parecem comédia, regadas a certo melodrama.

O filme é uma construção de elementos de muita intensidade, de tal ordem que contabilizam uma narrativa densa e assustadora. Percebe-se que o diretor passeia entre o drama e o humor, cujos elementos de tensão e emoção produzem uma margem estreita entre o sublime, o maravilhoso, o surpreendente e o ridículo. Revela, sem pudores, a imaginação na narrativa, construindo cada passo ao léu dos desvarios das paixões extremas.  

O roteiro é baseado no romance Mygale (1995), que mais tarde foi publicado sobre o título de Tarântula (2005), de autoria do escritor francês Thierry Jonquet.

Para realizar a obra cinematográfica, a partir deste romance, almodovar se mostra mais maduro, distanciado do sistema estabelecido de gêneros de filmes, com a única preocupação de mercado, ao contrário cria uma obra completamente distanciada dos aspectos populares, trazendo um frescor novo ao cinema atual, misturando drama, triller e ficção científica.

A história inicia com a intenção obsessiva de um cirurgião plástico, Robert Legard (Antonio Bandeiras) de criar uma pele nova, pois após a morte de sua mulher num acidente de carro, no qual sofrera potentes queimaduras, ele acredita que através da criação de uma pele ela teria sido salva. Doze anos mais tarde, ele consegue cultivar esta pele em laboratório, aproveitando os avanços da ciência, entretanto atravessando campos proibidos , como a transgênise com seres humanos. 

A partir dessa trama inicial, o filme, com o seu suspense, vai atraindo a atenção do espectador a cada passo.

Almodóvar, assim, toma a ideia do romance de Tierry Jonquet e a transforma a seu gosto, investindo por cenários de sexo, humor, romantismo, obsessão e vingança.

Nesta seara se unem os diversos sentimentos e procuras de cada personagem, culminando com a descoberta do médico e do espectador, que custa a descobrir qual é o rumo que o protagonista realmente persegue.

O filme que mostrar, que a partir da pressão interna e do desejo de vingança, o homem pode cometer as maiores atrocidades, como subverter as regras e aproveitar as capacidades intelectuais e de poder sobre o outro.

Através da morte de sua filha, enferma e presumivelmente estuprada, o médico executa a sua vingança, exercendo o experimento com o estuprador.

Talvez a paixão pudesse ser a grande redentora, ou a morte, ou o encontro da cobaia com a mãe.

Tudo está nas entrelinhas do filme, um misto de terror, drama e o sempre presente humor de Almodovar.

Fica-nos a questão: pode o homem interferir na complexidade da natureza humana, seja sob quaisquer aspectos, tanto sociais, psicológicos ou relacionados à integridade física?

Postagem em destaque

A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

PULICAÇÕES MAIS VISITADAS